SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.9 issue17Psychologists at basic health units: professional training and practiceThe developmental dyslexia: neuropsychological and cognitive aspects author indexsubject indexarticles search
Home Pagealphabetic serial listing  

Interações

Print version ISSN 1413-2907

Interações vol.9 no.17 São Paulo June 2004

 

ARTIGOS

 

Doce, pirâmide ou flor?: o processo de produção de sentidos em um contexto de ensinar e aprender

 

Candy, pyramid or flower?: the process of production of meaning in a context of teaching and learning

 

 

Andréa Vieira ZanellaI; Sílvia Zanatta da RosII; Alice Casanova dos ReisIII; Kelly Bedin FrançaIV

Universidade Federal de Santa Catarina. Centro de Filosofia e Ciências Humanas. Departamento de Psicologia.

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este texto discute o processo de produção de sentidos sobre o produto de uma atividade estética em uma situação formal de ensinar e aprender. Tal atividade foi proposta a acadêmicos matriculados em uma disciplina do curso de Psicologia da Universidade Federal de Santa Catarina. Os procedimentos escolhidos para coleta e análise de dados foram a videografia e a análise microgenética. A atenção centrou-se no diálogo estabelecido entre professoras e alunos no decorrer da atividade e na produção de uma das participantes, enfatizando as mediações engendradas e seus resultados. As reflexões fundamentaram-se nas contribuições de Vigotski, especificamente nas discussões sobre o processo de produção/apropriação de sentidos e a constituição do sujeito. Como resultado foram identificados elementos indicadores das mediações ali objetivadas e do processo vivido pela protagonista da situação, que resultou no reconhecimento de si como capaz de produzir criativamente algo que engendra múltiplos senti-dos para os sujeitos em relação.

Palavras-chave: Criatividade, Ensinar e aprender, Produção de sentidos, Constituição do sujeito, Vigotski.


ABSTRACT

This text discusses the process of production of meaning through the product of an aesthetic activity in a formal situation of teaching and learning. This activity was proposed to academics enrolled in a certain discipline of the Psychology Course at Federal University of Santa Catarina. The procedures chosen for collection and analysis of data were the videografia and the microgenetic analysis. The attention was focused on the dialogue established between teachers and pupils throughout the activity and in the production of one of the participants, emphasizing the mediations produced and its results. The reflections were based on the contributions of Vigotski, specifically on the discussions on the process of production/appropriation of meaning and on the constitution of the subject. As a result, some elements of the mediations that have been aimed there, as well as elements of the process experienced by the protagonist of the situation, were identified. The protagonist recognized herself as capable to produce something creative that generates multiple meanings for the subjects involved.

Keywords: Creativity, Teaching and learning, Production of meanings, Subject constitution, Vigotski.


 

 

Forjar: domar o ferro à força,
não até uma flor já sabida,
mas ao que pode até ser flor
se flor parece a quem o diga.
(João Cabral de Melo Neto, 1997, p. 41)

Introdução

Neste texto é analisado o processo de produção de sentidos sobre o produto de uma atividade estética em uma situação formal de ensinar e aprender. O foco de atenção consistiu no diálogo estabelecido entre professoras e alunos, em razão do movimento empreendido por uma participante no decorrer da atividade e do que produziu, com ênfase para as mediações ali engendradas e seus resultados. As análises pautaram-se no arcabouço teórico da Psicologia Histórico-Cultural, fundamentalmente nas contribuições de Vigotski sobre o processo de produção e apropriação de sentidos, e nas reflexões advindas sobre a constituição do sujeito.

A atividade estética analisada foi proposta a acadêmicos de Psicologia da Universidade Federal de Santa Catarina, regularmente matriculados em uma disciplina optativa1 que compõe a grade curricular do curso. Escolheu-se a videografia e a análise microgenética como procedimentos para a coleta e análise de dados porque permitem registrar e compreender a intrincada trama de senti-dos que circulam/são produzidos nas relações interpessoais, consistindo em recurso de vital importância para pesquisas que focalizam o processo de constituição do sujeito.2 Como critério para a seleção do episódio que será aqui apresentado considerou-se a quantidade e a qualidade de elementos do diálogo travado tanto entre professoras e alunos quanto entre os próprios alunos. Esses elementos foram reconhecidos como indicadores das mediações, realizadas pelas educadoras e pelos colegas, do processo vivido pela protagonista da situação, que resultou no reconhecimento de si como capaz de produzir criativamente algo que engendra múltiplos senti-dos para os sujeitos em relação.

Ensinar e aprender e constituição do sujeito: breves considerações

Ensinar e aprender em contextos de escolarização formal caracterizam-se como atividades mediadas por sentidos específicos, resultantes de uma determinada forma de organização social que delimita a escola como locus privilegiado para a socialização e apropriação de determinados conhecimentos, a saber, os reconhecidos como científicos.

Em decorrência, lugares sociais de saber e não-saber são demarcados, sendo a trama dialógica dos sujeitos em relação mediada por esses lugares e pela importância que assumem naquele contexto. Professores e alunos têm suas falas reconhecidas e investidas de importância em razão: da história de seus agentes; da história dos lugares sociais que assumem; das características demarcadoras das relações interpessoais que ali se produzem, as quais são balizadas pelos modos de organização do contexto pedagógico; e do que se constitui como objeto de conhecimento.

Assim, as relações interpessoais em contextos de escolarização formal são delineadas por características que transcendem as especificidades das atividades que as originam – ensinar e aprender conhecimentos científicos – quando do conhecimento a ser apropriado. São relações travadas por sujeitos históricos, que apresentam determinadas formas de estar no mundo, as quais podem ali ser reconhecidas ou não, confirmadas, aceitas ou reprovadas. Essas formas, no entanto, são constantemente transformadas pelos próprios sujeitos e pelos outros com quem dialogam, o que confere aos contextos interpsicológicos o caráter de arena de produção de sentidos.

Necessário se faz esclarecer que os Outros que se apresentam como constitutivos do Eu não se resumem aos outros presentes nas relações interpessoais. Ao discutir o processo de constituição do sujeito à luz dos aportes teóricos de Lev Vigotski e Pierre Janet, Góes chama a atenção para o fato de que

o estudo das relações sociais não pode se restringir ao exame do plano observável das interações face a face; os processos de linguagem que acontecem nessas interações devem ser vistos como algo maior do que a conversação de interlocutores imediatos; os efeitos dos outros sobre o indivíduo não dependem somente de formas de atuação direta; os outros não são apenas as pessoas fisicamente presentes, mas também“figurastipo” da cultura ou representantes dos códigos e normas, participantes das práticas sociais (Góes, 2000b, p. 128).

Partindo desse pressuposto, destaca-se que as relações interpessoais em sala de aula são mediadas por sentidos produzidos pelos sujeitos em relação, originados e ao mesmo tempo marcados por outros sentidos, característicos dos grupos sociais a que esses sujeitos pertencem. Isso porque toda palavra, unidade de qualquer enunciação, veicula sentidos públicos e privados; apresenta uma dimensão que é compartilhada (o significado, como afirma Vigotski), a qual traz as marcas da história em que foi forjada. Simultaneamente, há múltiplos sentidos que também podem ser atribuídos a essa mesma palavra, que dependem das condições sociais em que os sujeitos em relação se inserem e das singularidades que ali se objetivam. Ao mesmo tempo em que cada pessoa é partícipe ativa do contexto em que se insere, sua participação é marcada pelas características do grupo social ao qual pertence, pela posição que assume e é reconhecida, enfim, pela cultura que a forja. Afinal, cada pessoa é, como esclarece Vigotski,“um agregado de relações sociais encarnadas num indivíduo”3 (2000, p. 33).

Contextos escolares são, nesse sentido, expressão da sociedade como um todo, na medida em que ali se objetivam relações entre diferentes classes sociais e concepções variadas de ser humano e mundo. Ao mesmo tempo, são fundamento dessa mesma sociedade, na medida em que consistem em locus onde os múltiplos sentidos sobre essas relações podem ser ali (re)significados, transformando-se nesse movimento os próprios sujeitos que ali se encontram.

Essa afirmação é possível desde que se pressuponha que as relações interpessoais engendradas em sala de aula veiculam mais que conhecimentos científicos: são prenhes de valores, preferências, emoções, conceitos e preconceitos. Resultam, em decorrência, em processos outros além das transformações em termos de aprendizagem do que se constitui como objeto do conhecimento: resultam na constituição de características singulares dos sujeitos que ativamente participam do que ali acontece.

A questão da constituição do sujeito é complexa, posto que pode se referir a aspectos relacionados ao conhecimento, às características de gênero e etnia, à sexualidade, ao lugar social assumido em determinadas relações, ao sujeito como produtor de história, ao artista, entre outros. Embora plural no que se refere aos aspectos considerados, há uma referência para toda e qualquer análise a esse respeito, a saber, as significações socialmente produzidas, que no embate dos encontros e confrontos com outros são transformadas e apropriadas.

O sujeito somente pode ser compreendido a partir das múltiplas relações que estabelece, pois como destaca Smolka,“não é o que o indivíduo é, a priori, que explica seus modos de se relacionar com os outros, mas são as relações sociais nas quais ele está envolvido que podem explicar seus modos de ser, de agir, de pensar, de relacionar-se” (2000, p. 30).

A significação, por sua vez, é necessariamente um processo, visto que implica o intenso movimento de produção e transformação coletiva de significados e sentidos,4 e sua apropriação privada. É pressuposto e resultado da ação conjunta de sujeitos que participam ativamente da sua produção/transformação e que, na medida em que deles se apropriam, constituem suas características singulares. Como esclarece Pino,“o universo da significação é um universo em constante agitação e produção onde, ao mesmo tempo que nele os sujeitos são constituídos, eles o constituem novamente” (1993, p. 23).

Contextos de ensinar e aprender são, portanto, contextos de produção de significações em que os sujeitos em relação ativamente produzem aos outros como a si mesmos. Isso porque aprender, de acordo com a Psicologia Histórico-Cultural, consiste na apropriação ativa (e não adaptação, introjeção literal do percebido) das significações das produções humanas que caracterizam a realidade como universo semiótico: é um meio para a humanização, posto que possibilita a constituição de modos mais complexos e elaborados de regulação pelo próprio sujeito de sua conduta e vontade.5

A atividade, os sujeitos e a trama de sentidos

Na situação aqui analisada, os sujeitos foram mobilizados a empreenderem uma atividade criadora. O resultado deveria ser um objeto que fosse reconhecido pelos sujeitos em relação como estético.

Produzir algo que possa assim ser reconhecido implica necessaria-mente a constituição de uma situação estética, uma vez que“não é só um objeto no qual se exterioriza ou expressa um assunto; mas sim um objeto produzido para ser compartilhado ou consumido pelos outros aquilo que exterioriza ou expressa” (Sánchez Vázquez, 1999, p. 77).

O objeto estético só se apresenta como tal à medida que é socialmente significado ou que com ele se estabelece uma relação estética. Para tanto, faz-se mister que estejam implicados na situação tanto o objeto estético como quem o admira, o que significa considerar os afetos, possibilidades cognitivas, vontades, motivações e preferências desse sujeito.

Com essas características, demarca-se um diferencial da atividade que será aqui analisada em relação aos contextos de escolarização formal, tal como reconhecidos em nossa sociedade: embora inserida em um lugar prenhe das mesmas significações que caracterizam um contexto pedagógico, não havia na situação foco deste estudo um objeto de conhecimento a ser socializado/apropriado que pudesse ser reconhecido como científico. Não havia, portanto, um significado, um sentido unívoco, tampouco literal, direto e explícito, como Saramago (1997) o caracteriza.

Ao contrário, os sentidos atribuídos por seus produtores poderiam dialogar com os vários sentidos atribuídos pelos colegas e professores a esse mesmo objeto, sem a necessidade de que algum deles fosse estabilizado a partir de critérios outros que não a própria escolha dos sujeitos em relação.6 Redimensionou-se, naquele momento, o próprio processo de ensinar e aprender, posto que a intencionalidade que o caracteriza em situações formais de escolarização não encontrava guarida. Foi preciso ressignificar o lugar de professor como socializador de conhecimentos naquele contexto, pois como afirma Vigotski,“ensinar o ato criador da arte é impossível; entretanto, isso não significa, em absoluto, que o educador não pode contribuir para a sua formação e manifestação” (1998, p. 325).

A atividade em questão ocorreu no quarto dia de aula da disciplina Psicologia da Criatividade. Ao contrário dos anteriores, em que predominou a discussão teórica de textos previamente lidos pelos alunos a respeito de criatividade, nesse dia a proposta de trabalho consistiu em uma atividade plástica. Após a realização de um aquecimento corporal utilizado como mobilizador para a proposta seguinte, os alunos tinham à sua disposição várias revistas e papéis de texturas e cores variadas, bem como cola, tesoura e fita gomada. Esse material deveria ser utilizado para a confecção de uma escultura, sem que qualquer consigna que pudesse sugerir alguma temática fosse dada. As falas que seguem aconteceram após a conclusão da atividade, quando foi aberto aos alunos espaço para falarem sobre o processo vivido e seu resultado.

(turno1) Prof.1 –“... Acho que o fundamental é a gente ouvir... Socializar o que fizeram, como fizeram e falar um pouco do processo... Estar discutindo isso e poder mostrar as obras que fizeram, pois todo mundo produziu arte. Bruna... A Bruna fez uma cara, assim...” (move a cabeça de um lado para o outro).

(turno2) Bruna –“É, eu não cons... Eu estava até escrevendo aqui... Eu não conseguia pensar em nada... Aí eu comecei a me distrair com as revistas, porque eu adoro ler. Aí comecei a ler. Aí eu disse: ‘ah, tem que fazer alguma coisa, né?’... Eu não gosto muito dessas coisas... Eu não me sinto muito bem quando tem que criar alguma coisa porque eu não... não... Parece que eu não vou conseguir fazer nada. Nada ficava, nada fica legal... Aí eu tentei fazer uma pirâmide, alguma coisa com as bolinhas. Aí não deu certo, estava caindo tudo! Aí eu comecei a amassar o papel para fazer uns elos, alguma coisa, assim, para ver se vinha alguma coisa na minha mente, mas também não deu certo. Aí eu comecei a misturar, colocar uma em cima da outra. Uma hora eu dobrei o papel, aí fez uma ponta, eu falei: ‘ah, vai isso aqui mesmo!’ (risos). Fiz alguma coisa assim que eu não entendi o que é. Não, não tem nada para explicar sobre a minha obra. Eu fiz o que... O que deu, o que eu consegui”.

(turno 3) Prof.1 –“Eu vou comentar porque eu achei tão engraçado... Ela fez aquela montanha de bolinhas, eu já imaginei... um doce chamado cascata de nozes. É uma montanha de suspiros com uma calda de nozes e chocolate. Você pegou aquelas bolinhas... Ela pegava e tirava (risos), aí eu fiquei ofendida: ‘Quê que ela tá fazendo com a minha cascata de nozes?’ Colocava e botava lá, e eu não entendia, daí colocava o meu suspiro num outro negócio... Aí eu comecei a rir, não é possível!:”.

(turno 4) Bruna –“Ah, eu estava indignada porque nada ficava no lugar, esse papel não cola aí eu disse assim: ‘ah, não vai dar certo, o que eu quero fazer não dá’. Aí eu comecei a amassar tudo e foi isso aí mesmo que saiu”.

(turno 5) Prof.2 –“Primeiro eu gostaria de te propor uma coisa com isto que tu não fizeste. Que tu nos mostrasses de diversos ângulos, de forma que a gente pudesse olhar essa obra de diversas maneiras... que encontrasse esses diversos ângulos...”.

(turno 6) Bruna –“Não sei se ela vai ficar inteira” (pega a obra).

(turno 7) Prof.2 –“Vamos ver o que nos sugere”.

(turno8) Bruna –“Bom, aqui era a base da pirâmide, mas não deu certo” (mostra a parte inferior da obra).

(Várias pessoas falam ao mesmo tempo).

(turno 9) Prof.2 –“Olha aí... Aí eu vejo uma coisa... nossa!”.

(turno 10) Marcelo –“Uma forma...”.

(turno 11) Daniela –“Uma flor, né!”.

(turno 12) Prof.2 –“Riquíssimo, riquíssimo, uma explosão de muitas coisas, um a explosão de desejos, uma explosão de idéias...”.

(turno 13) Bruna –“É, eu queria fazer alguma coisa que tivesse a ver comigo, co m o que eu estou passando agora, mas não... sei lá, não saiu... Não sei o quê que tem muito a ver. Aí não sei o que ficou... sei lá...”.

(turno 14) Prof.1 –“Mas acho que o que ela propôs (referindo-se à outr a professora) é uma coisa legal, vamos ver o que a gente vê disso aí... Bruna nã o conseguiu ver nada, vamos ver se a gente consegue ver, e o quê”.

(turno 15) Nico –“Uma flor, uma estrela, um disco voador...”.

(turno 16) Alguma aluna –“Eu também vi uma flor...”.

(Várias pessoas falando ao mesmo tempo).

(turno 17) Bruna –“Pode ser...”.

(turno 18) Prof.1 –“Tão engraçado, eu também achei tão rico!”.

(Continuam a discutir sentidos possíveis, até que uma das professora s sintetiza a discussão).

(turno 21) Prof.1 –“Nós vimos um monte de coisa!”.

(turno 22) Bruna –“Pois é, eu não sabia que tinha feito tudo isso!”.

(Risos).

Vários aspectos se destacam no episódio apresentado. Nos momentos que imediatamente antecedem o início, a professora 1 indica a tarefa a ser desenvolvida pelos alunos. Passado um tempo, interfere novamente dizendo que aqueles que ainda não haviam finalizado seus trabalhos precisavam fazê-lo, a fim de expor aos demais o processo de sua produção. Solicita a participação oral de cada aluno, narrando o que vivenciou durante a realização de seu trabalho, bem como a análise do resultado.

A limitação do tempo imposto pela professora pode se caracterizar como um problema, dada a dificuldade de alguns em finalizarem uma atividade, à qual não estavam acostumados. Esse é um aspecto que se apresenta como complexo em contextos de escolarização formal: considerar tempos diversos, ritmos característicos e, ao mesmo tempo, trabalhar com o grupo propondo atividades coletivas torna-se ainda mais complexo ao se trabalhar oficinas estéticas, onde os limites de tempo e as exigências disciplinares confrontam-se com as necessidades específicas de cada aluno que procura criar, que trabalha com um material que, embora lhe seja familiar, é apresentado como recurso para uma atividade outra que não aquela para o qual foi produzido. Ao invés de ler, amassar e recortar os vários papéis disponíveis, cabia-lhes ressignificar o existente. Forjar, enfim, domar o ferro à força, como assinala João Cabral de Melo Neto na epígrafe deste texto.

No primeiro turno, a professora 1, ao solicitar que falem, escutem e montem suas obras, institui a oportunidade para o diálogo que poderá, com as devidas mediações, levar ao reconhecimento de si e dos colegas como produtores de algo novo. Ganha destaque essa intervenção na medida em que é no contexto intersubjetivo, fundado em relações dialógicas, que reside a possibilidade de (re)significação e (re)criação a partir do legado do outro. Porém, essa mesma professora antecipa e direciona os sentidos possíveis, à medida que significa o que os alunos fizeram como“obra”, como“arte”.

No turno 2, uma das alunas – Bruna – ao falar sobre como vivenciou a atividade, conta que em um primeiro momento e previa-mente convencida de que“não faz arte”, desvia e ancora sua atenção naquilo que considera ter bom desempenho: ler. No entanto, instigada pela mediação do outro, no caso a professora, auto-regula sua conduta, impondo a si própria a consigna de confecção de alguma coisa. Ambivalente, define seu querer de forma negativa, antecipa seu insucesso e começa, por ensaio e erro, a produzir algo. São ações isoladas, a seu ver, para as quais busca sentidos. Quer que venha alguma coisa à sua“mente” sem“acioná-la” para tal, sem planejar e pensar em possibilidades. Parece que, deliberadamente, tenta fazer o que é impossível: dissociar suas ações motoras do pensar, como se fosse um autômato produtivo de movimentos mecânicos, dos quais brotaria a atividade criadora, por força de um dado potencial inato.

Fica plasmada nessa conduta a máxima do legado social de que a atividade criadora flui do interior do sujeito como algo desprovido de processos complexos de pensamento, como algo que é produto de sentidos acurados, de uma sensibilidade que se associa a processos afetivo-emocionais intensos e revolucionários, ou então a algo pueril ligado à infância, prenhe de imaginação, fantasia e espontaneidade. Contrapondo-se a essa perspectiva, Vigotski (1990, p. 40) destaca a historicidade da atividade criadora, sendo essa possibilidade de todos os seres humanos.

Na seqüência (turno 3), a professora 1, relatando o que sentiu ao observar Bruna trabalhando, explicita a atribuição de significados e sentidos que faz à produção da aluna: relaciona o que estava sendo produzido a um produto da culinária nacional rico na aparência e que sugere algo artístico. As emoções decorrentes dos sentidos atribuídos ao produto da atividade de Bruna, que se mesclaram a lembranças, foram aos poucos se distanciando, na medida em que se reconhecia a provisoriedade do que até então surgia dos papéis amassados.

Bruna (turno 4), por sua vez, relata também seu descontentamento, porém este relacionado a sua impotência frente ao material, culpabilizando as circunstâncias (“esse papel não cola”) e desreponsabilizando-se pelo resultado de seu investimento. Amassa o papel esperando que algo se produza por si. Parece recorrer a um expediente animista, que confere“vontade” ao amontoado de papel e bolinhas por ela confeccionado, deixando-se dominar pelo material, por fim rende-se ao que“saiu”.

A professora 2, dando-se conta do processo descrito, intervém (turno 5) tentando deixar claro o paradoxo que se criara: Bruna“fez algo que não fez”. Na mediação, a professora primeiramente assume como verdadeiro que a aluna nada produziu, mas solicita que ela exponha“isso aí mesmo que saiu”. Sugere à aluna que mostre o produzido de diversos ângulos para que se possa lançar diferentes olhares ao mesmo.

Bruna aceita a sugestão (turno 6), mas agora, e por conta da mensagem paradoxal, confere ao amontoado de papel uma existência, ou seja, é algo que expressa em si o efeito daquilo que foi executado através do trabalho de alguém. Quando afirma que não sabe“se ela vai ficar inteira” ao ser pega, concorda que há algo executando, começando aí a desconstruir o paradoxo.

A professora 2, no turno 7, lida com a arte materializada no“bolo de papel”, e não com sua negação, como fizera no turno anterior. Retoma a busca de sentidos antes deflagrada pela professora 1 no início do episódio.

No turno 8, Bruna, premida pelo fato de ter assumido a existência de sua obra, começa a identificá-la como uma pirâmide que não deu certo. Mostra-a ao grupo e, ao agir desse modo, autoriza-o e convida os colegas a atribuírem sentidos ao que expõe. Os colegas falam entre si, denominam, adjetivam o observado de acordo com o ângulo em que é exibido, criando um clima favorável ao estabelecimento de relações interpessoais gestadoras de múltiplas significações.

Os turnos 9, 10, 11, e 12 expressam o entorno centralizado por Bruna e sua produção, que vai se constituindo como objeto estético no e com o grupo pela atribuição de sentidos, evidenciando-se assim que a“obra de arte” não existe como tal, sendo antes de tudo produto da relação entre sujeitos – de uma relação estética. Essa situação ilustra o que Sánchez Vásquez afirma:

Objeto e sujeito se correlacionam na relação estética; o primeiro só tem sentido para o homem quando este não entra em contato com ele abstratamente, mas através de toda a sua riqueza humana: o sujeito só pode encontrar seu objeto, na relação estética, quando se apresenta diante dele como um objeto concreto e carregado totalmente de significação humana (1978, p. 88)

O que o autor aponta, e o episódio revela, é que o sujeito significa o produto de seu trabalho na medida em que este é significado pelo grupo. A situação estética em sua dimensão criativa é encontro, mutualidade.

As concepções do senso comum sobre a atividade criadora assentam-se no fato de que produzir o novo não é algo que esteja disponível a qualquer cidadão. Esse legado social é apropriado e materializa-se nas ações do sujeito, penalizando-o frente às situações onde se cria ou se“faz arte”. É assim que Bruna, no turno 13, afirma que queria fazer algo que tivesse a ver com aquilo pelo qual está passando nesse momento, mas“não sai nada”. É como se não estivesse autorizada a criar de maneira a expressar algo que veicula múltiplos sentidos.

Em contraposição, defendemos que a atividade criadora é produto social, não no sentido de que se é de um é de todos, ao contrário, por ser de todos é também de um sujeito singular. É como se aquilo que está materializado nos objetos se tornasse instrumento da sociedade, algo sígnico que ultrapassa o imediato e o direto, que“pronuncia a palavra que estávamos buscando, faz soar a corda que continuava esticada e muda” (Guyeau apud Vigotski, 1998, p. 316).

Nesse sentido, a professora 1, no turno 14, apresenta uma mediação que está orientada a“fazer soar a corda muda”, a ser aquilo que, embora aparente, mantém-se oculto ao olhar de Bruna. Algo que possa ser visto, que objetive sentidos para os“espectadores”: uma flor, uma corda, uma estrela, outra flor (turnos 15 e 16), ou seja,“sentidos segundos, terceiros e quartos, de direções irradiantes” (Saramago, 1997, p. 135). Irradiam Bruna que, no turno 17, admite que o que fez“pode ser” alguma das coisas apontadas como possíveis pelos colegas.

Os turnos seguintes acrescentam aos sentidos que circulam na arena da trama dialógica ali tecida algo que projeta a produção de Bruna para além de seu lugar até então marcado pela estaticidade. Espaço, tempo e diversidade entram em cena através das palavras“rico”,“constante” e“movimento”. Movimento, como diria Saramago (1997), em que o“sentido de cada palavra parece como uma estrela quando se põe a projetar marés vivas pelo espaço afora, ventos cósmicos...”.

Marés tão vivas que permitiram que fosse visto um“monte de coisas” (turno 21) e ventos cósmicos que des-cobriram o e no papel produções simbólicas, sociais, históricas, datadas. Descobriram o humano que“vê” para além da relação direta ou limitada, e daquilo que é sensorialmente orientado, e nesse momento revela-se o signo, a cultura. É assim que Bruna, no turno 22, conclui que“não sabia que tinha feito tudo aquilo”. Reconhece um outro lugar para o seu fazer e para si própria: um“nada” que assume, via outros, sentidos múltiplos, e um“não ser capaz” que, confrontado com a multiplicidade de olhares, precisa ser revisto, ressignificado, reinventado.

Seus colegas riem depois de ouvirem seu depoimento. Riem como se ri vendo emergir sentidos que transformam amontoados de papel em matéria semioticamente mediada e, portanto, matéria significada.

Considerações Finais

O episódio apresentado e as análises decorrentes suscitam reflexões que permitem delinear alguns fios que tecem as complexas relações entre atividade criadora, relação estética, objeto estético e contextos de ensinar e aprender.

Vigotski (1990) afirma que a atividade criadora supõe a criação de algo novo. E que dimensão possui este novo na arte?

... a verdadeira natureza da arte sempre implica algo que transforma, que supera o sentimento comum (...). A arte está para a vida como o vinho para a uva (...) a arte recebe da vida seu material mas produz, acima deste material, algo que ainda não está nas propriedades deste material (Vigotski, 1998, p. 307).

É o processo coletivo de produção de sentidos ao que é considerado artístico que cria possibilidades de surgimento do novo. E o novo só é considerado como tal porque transforma, deforma e reforma o existente, e de certo modo, surpreende. Se a arte produz algo acima do material que“recolheu da vida”, o faz no embate dialógico, no qual cada enunciado, ideologicamente marcado, mescla significações que são fruto de contextos de produções simbólicas.

Assim, é possível afirmar, a exemplo de toda e qualquer relação do sujeito com a realidade, que no processo de criar não há contato direto de um sujeito com um objeto, pois a relação estética é estabelecida via significados e sentidos compartilhados com os outros que se apresentam como interlocutores, como parceiros do diálogo que caracteriza as díades sujeito/sociedade, sujeito/cultura. Deste modo, a situação estética constitui-se em um contexto que possibilita ao sujeito descolar-se da realidade em si e, por se caracterizar como contexto de significações, pode contribuir para o redimensionamento do próprio sujeito e de sua existência.

Se a arte produz algo que é projetado para além do vivenciado, para algo que não está nas propriedades do contato direto com a vida, projeta o próprio sujeito e lhe permite ressignificar a própria existência, como afirma Vigotski:“é precisamente a atividade criadora do homem que faz dele um ser projetado para o futuro, um ser que contribui ao criar e modificar seu presente” (1990, p. 9).

A atividade criadora é, por sua vez, produto de relações humanas, de sujeitos ativos que se fazem criativos ao significarem o produto de uma atividade como criativa. Com esse entendimento, a atividade estética foi proposta aos alunos e o contexto de ensinar e aprender foi organizado. Com esse entendimento, também buscamos tecer as reflexões sobre o episódio aqui apresentado. Distanciamo-nos, assim, daquela visão tradicional da arte como contemplação, para assentarmo-nos em uma concepção que considera que é no embate discursivo que se engendra a trama de sentidos que transforma papel amassado e cola em produto estético, e seu produtor em“artista”. É artista porque, ao ser reconhecido como produtor de um objeto estético, se reconhece como autor, imprimindo um dado sentido ao que faz.

O contexto foco das análises, bem como suas características, merece igualmente considerações. O espaço institucionalizado que demarca lugares sociais, bem como as atividades que o justificam – ensinar e aprender conhecimentos científicos em sala de aula –, foram nesse caso relativamente confrontados. Por um lado, características foram mantidas, como os lugares demarcados de alunos e professores, ainda que tenham sido ressignificadas atuações prototípicas e se apresentem como produtores/autores, no caso dos alunos, e mediadores cujas intervenções possibilitaram a emergência de novos sujeitos, no caso das professoras e suas intervenções.

Por outro lado, a ausência de um objeto a ser conhecido previamente demarcado, o qual não se reconhece como científico na medida em que os sentidos que o conotam assumem“direções irradiantes” (Saramago, 1997, p. 235), permite compreender a complexidade do processo de produção coletiva de significações e sua apropriação privada.

No episódio em questão o que se evidencia, mais do que os sentidos que na trama dialógica emergiram para a obra de Bruna, é o movimento que empreende, com a participação dos colegas e mediações das professoras, em direção à ressignificação de si mesma. Do“não conseguir fazer nada”, que marcou seu discurso no início do episódio, ao reconhecimento de que“tinha feito muita coisa”, um tenso embate se processou. Mais do que sentidos possíveis à sua obra – que virou doce, pirâmide, flor, estrela, disco voador –, destaca-se a emergência da própria produção e de seu produtor, o que só foi possível via significações específicas produzidas por sujeitos históricos, em um contexto social peculiar – contexto de troca, do embate, da partilha, da provocação direcionada ao devir.

 

Referências Bibliográficas

GÓES, M.C.R. (2000a). A abordagem microgenética na matriz histórico-cultural: uma perspectiva para o estudo da constituição da subjetividade. Cadernos Cedes. 50: 9-25.        [ Links ]

________. (2000b). A formação do indivíduo nas relações sociais: contribuições teóricas de Lev Vigotski e Pierre Janet. Educação & Sociedade. 71: 116-131.        [ Links ]

________. (1997). As relações intersubjetivas na construção de conhecimentos. In: GÓES, M.C.; SMOLKA, A.L.B. (orgs). A significação nos espaços educacionais: interação social e subjetivação. 2. ed. Campinas: Papirus. (Série Magistério: Formação e Trabalho Pedagógico).        [ Links ]

MELO NETO, J.C. (1997). Entre o sertão e Sevilha. Rio de Janeiro: Ediouro.        [ Links ]

PINO, A. (1993). Processos de significação e constituição do sujeito. Temas em Psicologia. 1: 17-24.        [ Links ]

________. (2000). O social e o cultural na obra de Lev S. Vygotsky. Educação e Sociedade. 71: 45-78.        [ Links ]

SÁNCHEZ VÁZQUEZ, A. (1978). As idéias estéticas de Marx. Rio de Janeiro: Paz e Terra.        [ Links ]

________. (1999). Convite à estética. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.        [ Links ]

SARAMAGO, J. (1997). Todos os nomes. São Paulo: Companhia das Letras.        [ Links ]

SMOLKA, A.L. (2000). O (im)próprio e o (im)pertinente na apropriação das práticas sociais. Cadernos Cedes. 50: 26-40.        [ Links ]

VIGOTSKI, L.S. (1990). La imaginacion y el arte en la infancia. Madrid: Akal.        [ Links ]

________. (2000). Manuscrito de 1929. Educação & Sociedade. 71: 21-44.        [ Links ]

________. (1931/1991). Obras Escogidas III: problemas del desarollo de la psique. Madrid: Visor Distribuiciones.        [ Links ]

________. (1998). Psicologia da arte. São Paulo: Martins Fontes.        [ Links ]

ZANELLA, A.V; NUERNBERG, A.H. (2001). Movimentos de regulação d a conduta em sala de aula e constituição do sujeito: um olhar à luz da psicologia histórico-cultural. Psicologia Argumento. 29: 49-53.        [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Andréa Vieira Zanella
Universidade Federal de Santa Catarina – Centro de Filosofia e Ciências Humanas – Deptº Psicologia Campus Trindade – 88010-970 – Florianópolis/SC
tel: (48) 331-9984
e-mail: azanella@cfh.ufsc.br

recebido em 29/12/03
aprovado em 10/05/04

 

 

Notas

I Professora do Departamento e do Programa de Pós-graduação em Psicologia da UFSC; Bolsista em Produtividade do CNPq; Doutora em Psicologia da Educação (PUC-SP).
II Professora do Programa de Pós-graduação em Educação da UFSC; Doutora em Psicologia da Educação (PUC-SP).
III Graduanda em Psicologia (UFSC); Bolsista de Iniciação Científica (PIBIC/CNPq-BIP/UFSC).
IV Graduanda em Psicologia (UFSC); Bolsista de Iniciação Científica (CNPq/UFSC).
1 Disciplina“Psicologia da Criatividade”, com 36 horas-aula, ministrada no decorrer de um semestre letivo.
2 Discussão sobre a videografia e análise microgenética encontra-se em Góes (2000a).
3 Sobre o significado dessa assertiva de Vigotski, ver Pino (2000).
4 A distinção entre significado e sentido é esclarecida por Vigotski:“...o sentido da palavra é a soma de todos os eventos psicológicos evocados em nossa consciência graças à palavra. O significado é só uma dessas zonas do sentido, a mais estável, coerente e precisa” (1991, p. 333).
5 A possibilidade, pelo sujeito, de regulação da própria conduta e vontade é constituída em relações sociais em que a regulação pública se apresenta, embora não se caracterize como movimento linear do público para o privado, do social para o singular. Isso porque“assim como tudo que o constitui, a apropriação/desenvolvimento da possibilidade de regulação própria da conduta realiza-se de maneira singular, na medida em que cada um é concomitantemente sujeito/produtor e sujeitado às significações produzidas no contexto das relações sociais” (Zanella e Nuernberg, 2001, p. 53).
6 Demarca-se essa característica porque, em contextos de escolarização formal, por mais que sentidos variados por ali transitem, os professores assumem o lugar de agentes que circunscrevem esses sentidos, estabilizam alguns – os que coincidem ou se aproximam com o objeto de conhecimento, e repelem outros (a esse respeito ver Góes, 1997).