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Interações

versión impresa ISSN 1413-2907

Interações v.9 n.17 São Paulo jun. 2004

 

RESENHAS

 

Paulo Rona*

Endereço para correspondência

 

 

MIELI, Paola. Sobre as manipulações irreversíveis do corpo e outros textos psicanalíticos. Trad. Vera Avellar e Ana Vicentini de Azevedo. Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria, 2002. 92p. ISBN 858601155X.

Paola Mieli, psicanalista italiana e residente nos Estados Unidos, é doutora em filosofia e membro do Le Cercle Freudien, da Lacanian School of San Francisco e da School of Visual Arts. Trabalhando em uma cultura que viu grandes deturpações das propostas psicanalíticas freudianas e mostrou-se refratária à obra lacaniana, a autora apresenta neste pequeno livro uma coletânea de artigos de rara clareza – para os padrões freqüentemente herméticos do lacanismo –, e com um impecável rigor em suas referências, sejam às de Freud, sempre presentes, sejam às de Lacan.

Em Sobre as manipulações irreversíveis do corpo, artigo que dá nome à coletânea, a autora, retomando de Freud e Lacan a noção de identificação, destaca o caráter instável e oscilatório da imagem, ao mesmo tempo alienada e constituinte, do eu como um eu corporal; é através de um corte, produto da ação de um traço, “termo simbólico primordial”, que dá forma ao desenho imaginário, que a oscilação se abranda e que a imagem se confirma e se estabiliza, permitindo a inscrição narcísica e sua fruição.

A autora volta-se para a ocorrência de manipulações voluntárias e irreversíveis do corpo (sob a forma de tatuagens, cirurgias plásticas ou cicatrizes), como decorrência de uma “necessidade” daqueles que tiveram seu corpo assim marcado. Sua tese é a de que essa “manipulação irreversível é uma tentativa de dar estabilidade a uma forma que oscila” (p. 11), seja por falta, excesso ou indefinição, e que indica uma falha nas operações que dariam estabilização à imagem constituinte. A autora define como punctum o lugar do corpo percebido pelo sujeito como o que insiste e a partir do qual se vê visto, e como landmark (sinal que delimita territórios, marca um local ou um acontecimento) o resultado dessas intervenções físicas irreversíveis. Estas, seja como incisões, inscrições de um marco, seja como apagamento, corte ou separação, transformam o corpo simbolicamente, equilibrando uma imagem e possibilitando a satisfação dela proveniente.

Utilizando fragmentos clínicos, Paola Mieli descreve essas “operações” de apagamento de um punctum ou de inscrição voluntária de um marco que, ao provocar a separação ou a realização na carne de um traço, ganham reconhecimento e valor simbólico. Tal como o privilégio que os furos do corpo têm em relação à função erógena, os cortes, marcas e perfurações, mesmo artificiais, igualmente possibilitam a criação de bordas e delimitações – sentidas como “necessárias” em suplência a marcas simbólicas ausentes.

Os tempos do trauma é um artigo de caráter teórico e essencialmente freudiano sobre a dialética entre a realidade e a verdade históricas em suas incidências na psicanálise. É sobre as noções de trauma, fantasia e temporalidade que esse texto preciso e rigoroso se debruça, retomando questões fundamentais para a psicanálise. Esse escrito poderia ser considerado “introdutório”, e a esse fim poderia servir ao leitor mais leigo, salvo pelo fato de que, para um leitor já avisado dos problemas que essas noções implicam, a articulação da autora fornece uma interessante síntese de noções essenciais à metapsicologia freudiana.

Arma secreta é um fragmento clínico, descrito com leveza e elegância, que discute a arte neurótica da aposta de risco nulo, daquela em que nada ou nunca se perde. Estando apenas o puro prestígio em jogo, mas ausente a ameaça de morte, encontra-se uma sutil inversão hegeliana em que a vitória de um não encontra compensação na perda do outro. Nada perdendo, aquele que encarnaria a posição do perdedor ocupa efetivamente a posição do tolo. Comparada pela autora ao chiste, mas ficando quanto a ele no meio do caminho, essa manobra neurótica preserva simultaneamente o outro e seu autor, que nada ganha senão o prazer (apenas aparente) de evitar o acaso real, e o sonho da restituição ou da burla da morte invencível. A aposta sem risco de dano restitui ao sujeito seu saber como teoria imaginária que faz barreira à horrível certeza da morte, ao indefectível real.

A feminilidade e os limites da teoria prolonga o tema do artigo anterior a respeito do esforço de teorização humano e sua relação com a castração e com o gozo interditado ou, o que é o mesmo, com a ausência da totalidade do saber. Articulada, portanto, com a função fálica, a teoria busca a solução para um impasse, o da falta do objeto, solução essa que não faz mais que explicitar o desejo. Considerando a feminilidade como “o nome dado pelo sujeito do desejo ao objeto, quando esse objeto ‘não pode ser nomeado porque falta’” (p. 64), a autora faz ver que não deveríamos nos surpreender com as dificuldades que a teoria encontra ao abordar esta questão. Ao propor respostas e nomeações para um objeto ausente, perde a natureza daquilo que a caracteriza: o fato de que ela, como objeto, não pode ser nomeada.

O sexo do mestre ou da maîtresse : uma nota trata também do feminino. Aqui, a autora debate, com o recurso à literatura, a função fálica e imaginária da mulher que é simultaneamente objeto sexual e sedutora, suposta detentora do saber do que é uma mulher, mas que, e por isso mesmo, sustenta o discurso viril na criação da imagem conjunta da criada e da patroa. Caricatura de uma potência fálica, mas que ao mesmo tempo, por fazer-se objeto de um desejo, satisfaz sua vocação masoquista, a maîtresse, dama dominadora, permite que seu parceiro descanse em sua fantasia viril.

Em Fins, Paola Mieli retoma a questão “o que é um psicanalista?” – levando em conta sua aparição em conjunturas distintas do setting tradicional. Ao discutir o saber suposto daquele que analisa e sua inserção institucional – inclusive, e sobretudo, nas instituições de formação de psicanalistas –, a autora reabre a dialética do singular e do coletivo apontando o sofrimento daquele que, segundo Lacan, não se autoriza senão por si mesmo, mas que, no coletivo, busca a garantia de um saber que em sua prática não funciona senão como ilusão. Ao propor a escuta analítica para o discurso institucional, a autora sugere um espaço para o ato analítico, característico do analista, fora do tratamento “padrão”, seja em instituições, seja na própria formação de psicanalistas, na qual a demanda por ensino funciona apenas como sintoma, reclamando, portanto, um psicanalista e não um mestre sapiente.

Essa coletânea termina com O que significa hoje ser lacaniano para um psicanalista?, no qual Paola Mieli faz uma reflexão sobre a inserção de um psicanalista em uma cultura em permanente tensão com o ensino de Lacan, e na qual seu saber, nunca bastante, jamais deve deixar de fazer produção: “não cessar de tentar escrever o que não cessa de não se escrever” (p. 87), em uma referência ao real – e não somente ao simbólico – com que a clínica nos confronta.

 

Endereço para correspondência
e-mail: p.rona@zaz.com.br

 

 

*Psicanalista; Mestre em Psicologia (Universidade São Marcos); Membro Acadêmico do Departamento de Formação em Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae.