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Interações

Print version ISSN 1413-2907

Interações vol.9 no.18 São Paulo Dec. 2004

 

ARTIGOS

 

Tremendo diante da vida: um estudo de caso sobre a doença dos nervos

 

Trembling before life: a case study about nerves

 

 

Martha Traverso-Yépez 1, I, Luciana Fernandes De Medeiros 2, II

1Universidade Federal do Rio Grande do Norte
2Universidade Potiguar/UnP.

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Termos como doença dos nervos são freqüentemente usados nos serviços de saúde pública, e referem-se normalmente a um problema que se caracteriza por múltiplas queixas, como dores generalizadas e sensações corporais diversas, além de sintomas de depressão e/ou ansiedade. O estudo de caso teve lugar em uma unidade de saúde na cidade de Natal/RN, sendo a participante uma mulher casada de 38 anos, dona de casa e mãe de dois filhos. Ao longo das entrevistas observou-se que o processo dialógico desenvolvido promoveu uma reflexão sobre seu problema e sobre si mesma, gerando narrativas nas quais o sofrimento foi progressivamente relacionado às limitações sócioestruturais do contexto. Evidencia-se, nesse processo, o papel estruturador da linguagem, que aos poucos contribui para uma melhor organização do discurso. Fica clara a relevância de promover espaços para o livre-falar, em que o psicólogo possa atuar como mediador, facilitando a construção de novos sentidos sobre a experiência.

Palavras-chave: Doença dos nervos, Processos de significação, Narrativas, Papel do psicólogo, Estudo de caso.


ABSTRACT

Terms like ‘nerves´ are frequently used in public health services as a reference to a problem that is characterized by multiple complaints such as generalized pain, diffuse body sensations and symptoms of depression and anxiety. The present study was carried out in a health service in Natal, Rio Grande do Norte, Brazil. In order to understand the meanings attributed to ‘nerves´, interviews were conducted with a 38-year-old married woman and mother of two teenagers. The dialogical process developed through this interaction provided the woman with opportunities for talking about herself and her problems, generating narratives in which suffering was progressively related to the social and structural limitations of her life-context. Throughout these interviews, the structuring role of language could be observed in the improved organization of her discourse. The paper concludes by pointing out the relevance of providing opportunities for self-expression, with psychologists acting as mediators and facilitating the construction of new meanings for these experiences through dialogical conversation.

Keywords: Nerves, Meaning process, Narratives, Psychologist´s role, Case study.


 

 

Introdução

A experiência profissional na área da saúde, bem como a literatura sobre doença dos nervos mostram que esta é uma queixa bastante comum, principalmente no serviço público, entre usuários com baixo nível sócioeducativo. Observa-se que existe dificuldade entre os profissionais em lidar com o amplo leque de termos e significados usados por esses usuários para tentar explicar dores e sensações corporais diversas, acompanhadas geralmente de sintomas de depressão ou ansiedade. Diante da queixa, há a tendência entre os profissionais da saúde em não dar a devida importância. Quando dão maior atenção geralmente prescrevem calmantes e outros medicamentos, atendendo especificamente aos sintomas que a pessoa apresenta no momento. Percebe-se ainda que a recidiva é muito alta entre usuários do serviço de saúde pública com esse tipo de transtorno.

Frente a essa problemática buscou-se investigar e compreender os significados atribuídos pelo usuário à sua doença dos nervos, estudar suas relações com a experiência da vida cotidiana e apontar possibilidades de intervenção.

 

O percurso metodológico

O estudo fez parte de uma pesquisa maior (Medeiros, 2003), realizada em uma unidade de saúde em um bairro da periferia de Natal/RN, que tem como uma das principais características o baixo poder aquisitivo da maioria de seus habitantes. A pesquisa foi apresentada ao diretor da Unidade e às equipes do Programa Saúde da Família (PSF), que viabilizaram a realização do trabalho, sendo rigorosamente observados os princípios éticos pautados no consentimento informado das participantes, bem como no sigilo de suas identidades. Durante as entrevistas com as usuárias que concordaram em participar voluntariamente, foi sugerido um seguimento terapêutico, cujo aceite ficou a critério delas.

Duas das treze participantes tiveram esse acompanhamento, sendo que o trabalho ora apresentado objetiva analisar um desses casos, focalizando a atenção na forma dessa pessoa significar sua doença. Acreditamos que o estudo de caso permite aprofundar o problema, objetivando compreender melhor como e porquê determinado evento ocorre nesses contextos (Yin, 1994).

A entrevistada é uma mulher de 38 anos, com a queixa específica de doença dos nervos. As vinte e duas entrevistas, realizadas no período de janeiro a dezembro/2001, aconteceram na própria unidade de saúde e foram registradas em áudio, com o consentimento da participante. As falas foram transcritas e lidas, de forma a apreender os significados relativos à doença dos nervos. Buscou-se investigar os sintomas, as explicações atribuídas ao problema, as formas de lidar e a evolução do discurso através dos processos de significação.

Observou-se que no ato de se expressar e tentar estruturar uma narrativa com sentido, a entrevistada ia conectando elementos de interação do momento presente com aspectos de sua experiência e contexto sócio-cultural, processando significados que iam tornando o desconhecido em familiar. Bruner (1990) e Murray (1999) apontam que nesse processo os elementos, antes desestruturados na história de vida da pessoa, passam a ter um sentido, isto é, tornam-se mais compreensíveis para ela.

Restringindo-se ao domínio da psicologia, e dentro de uma concepção qualificada como pós-moderna, Grandesso define a narrativa como “a organização por meio do discurso, por meio de termos, símbolos ou metáforas, de um fluxo de experiência vivida, em uma seqüência temporal e significativa” (2000, p. 199). Assim, dentro desta perspectiva, é destacado o caráter dinâmico das narrativas, no sentido de que as histórias de vida e as que construímos sobre o mundo à nossa volta estão sempre abertas a uma “reconstrução transformadora” (p. 200), em função dos processos de interanimação dialógica, os quais acontecem nos contextos das instituições e estruturas sociais. Para Grandesso:

Uma narrativa só pode constituir-se à medida que acontecimentos passados são conectados a acontecimentos presentes e a desdobramentos futuros possíveis, em uma seqüência linear que, brindando a pessoa com um sentido de continuidade da existência, lhe oferece um marco referencial para interpretar sua cotidianidade e construir futuros possíveis (2000, p. 201).

Consideramos, portanto, o encontro terapêutico como esse lugar privilegiado de espaços de ressignificação, de construção e reconstrução de sentidos e futuros possíveis. Assim, ao longo desse processo, não se objetivou somente compreender o sofrimento incorporado por Maria, mas também visualizar as mudanças que foram acontecendo em seu discurso a partir da prática dialógica gerada nos encontros.

 

Sofrimento incorporado: condições de vida e doença dos nervos

Historicamente a doença dos nervos tem sido associada à histeria e à distonia neuro-vegetativa (DNV), sobretudo na perspectiva biomédica (Silveira, 2000). A histeria tem sido mencionada desde a Antigüidade, geralmente associada à condição feminina, e mais recentemente, de acordo com a teoria freudiana, vinculada à sexualidade reprimida. Já a DNV caracteriza-se por queixas vagas e imprecisas, sem causas orgânicas evidentes, tendo sua etiologia localizada na esfera psíquica, embora também possa ser sinônimo de reação psicossomática (Doretto, 1998).

Frente à ausência de uma etiologia orgânica correspondente, é comum que o médico associe o termo à crise nervosa e ao “piti”, desconsiderando a complexidade do problema, e tratando-o com um certo desdém (Ribeiro, 1996). Assim, a intervenção, quando existe, tende a ser inadequada.

Costa (1987) e Silveira (2000) consideram a doença dos nervos como um sofrimento generalizado que se manifesta com uma profusão de sintomas fisiológicos, físicos e psíquicos, não tendo um lugar específico na classificação nosológica. Observando as queixas de doença dos nervos citadas pelos referidos autores, verifica-se uma diversidade de sensações e sintomas que caracterizam esse sofrimento:

(...) tonteiras, palpitações, vista escura, desmaios, esquecimentos, insônias, medo (...), dormência nas pernas, cansaço, falta de apetite (...), tremores no corpo (...), dores de cabeça (...), dores difusas, irritabilidade, crises de choro (...), impaciência (...), crises de nervos etc (Costa, 1987, p. 15).

Ansiedade, angústia. Agitação (...), sensações corporais diversas (...), vontade de morrer (...), falta de vontade de comer (...), perturbações no sono (...), instabilidade emocional (...), esquecimentos (Silveira, 2000, p. 114).

Essa diversidade de sintomas pode ser considerada como uma das principais características da queixa de nervos, e aponta para um problema que atinge vários aspectos da vida cotidiana. Verifica-se ainda que esses sintomas são semelhantes aos descritos pela APA no DSM-IV (1995) para diagnosticar a ansiedade generalizada e a depressão. De fato, a doença de nervos pode estar relacionada a esses quadros, no entanto, aprofundando o estudo sobre o problema, este se apresenta como expressão de uma situação bem mais complexa.

Como aponta Finkler (1989), percebe-se que a doença dos nervos funciona como uma via de expressão, social e culturalmente aceita, das preocupações diárias e das dificuldades do cotidiano. Esse sofrimento manifesta-se no corpo porque é nele que se depositam as frustrações, os conflitos e os percalços do dia-a-dia. Nesse sentido, o sofrimento é incorporado justamente porque modifica toda a fisiologia do organismo, resultando nos diferentes sintomas. Para a autora citada, é todo o corpo representando ou atuando nas suas difíceis condições de existência, dos transtornos do mundo externo, da incoerência e da falta de controle. Finkler ainda afirma que “nervos significa a corporalização da adversidade generalizada e recriada no mundo interno do corpo” (1989, p. 82). Portanto, o sofrimento expressa-se por meio de múltiplos sintomas físicos e psíquicos, podendo ser experimentados tanto como causa quanto como conseqüência desse sofrimento.

Confinar o sofrimento no corpo pode também funcionar como uma tentativa da pessoa em legitimá-lo como doença, em uma tentativa de ajustar-se ao modelo biomédico, que prioriza no componente físico a origem de todo e qualquer transtorno de saúde (Rozemberg, 1994; Silveira, 2000). Dessa forma, ocorre uma certa medicalização do sofrimento psicossocial, isto é, “a transformação de uma dificuldade da realidade social em uma doença expressa através do corpo” (Low, 1989, p. 40). A utilização do termo nervos para referir o sofrimento generalizado provavelmente está ligada a essas questões.

Evidencia-se ainda a estreita inter-relação entre a doença dos nervos e as condições de vida, tanto materiais quanto existenciais. Talvez por esse motivo a temática tenha sido estudada especialmente pela antropologia médica em diferentes contextos, como no brasileiro com Duarte (1986) e em outros países com Davis e Low (1989). Boltanski (1989), Rozemberg (1994) e Minayo (1998) apontam justamente que os problemas gerados pela falta de atividades produtivas e as precárias condições de vida decorrentes, bem como a falta de perspectivas e a insalubridade no trabalho podem ser considerados fatores que favorecem o desencadear desse tipo de sofrimento.

Acredita-se que as pessoas de menor nível sócio-econômico tendem a ter mais problemas e menos oportunidades de desenvolver um repertório de recursos materiais e psicológicos para enfrentá-los. De acordo com Paez (1985) e Mirowski e Ross (1989), o pouco acesso à educação formal, por exemplo, é um dos fatores que podem contribuir para a utilização de estratégias de enfrentamento menos eficazes.

A questão das estratégias de enfrentamento fica ainda mais clara quando se revisa os resultados das investigações de Gomes e Rozemberg (2000) e Silveira (2000). De acordo com essa revisão, as pessoas que sofrem dos nervos normalmente reportam situações de total perda do controle, que algumas denominam de “ataques”. Além disso, os ditos “ataques” relacionados com as dificuldades em lidar com determinadas situações cotidianas podem ser considerados como um “gatilho” para o transtorno mental propriamente dito entre as pessoas mais vulneráveis.

Diante de eventos estressantes as pessoas podem ter diferentes reações, relacionadas aos recursos internos e externos para resolver a situação. Segundo Agustín-Ozamiz (1992), essas reações podem ocorrer em três graus: o transtorno psicológico, que se refere a um estado geral de mal-estar com alterações psicofisiológicas; a desordem psiquiátrica, geralmente diagnosticada como neurose ou psicose; e por fim, o comportamento psicopatológico, em que a pessoa está suscetível a tentativas de suicídio, impulsos violentos e adições. No caso da doença dos nervos, acredita-se que esta estaria inserida entre as duas primeiras reações citadas, reforçando a idéia de que seu agravamento poderia gerar um transtorno mais severo.

Decorrente dessa situação, uma das principais conseqüências do sofrimento psicossocial crônico tem sido o uso indiscriminado de medicamentos, especialmente psicotrópicos – hábito bastante arraigado nas práticas de saúde, que objetiva a supressão dos sintomas (Lefèvre, 1991; Rozemberg, 1994; Carvalho, 2001). Transfigurando o sofrimento psicossocial em uma doença orgânica, cria-se de imediato a necessidade de um agente químico capaz de eliminá-la. No caso específico da doença dos nervos, essa adesão incondicional ao medicamento tem sentido quando, localizado o sofrimento no corpo, acredita-se no medicamento como única forma de cura, uma vez que este vai agir sobre o órgão doente – os nervos.

O psicotrópico tem sido usado para amenizar o sofrimento, bem como para prevenir o surgimento dos sintomas e as possíveis crises, podendo ter sua prescrição reinterpretada de acordo com as necessidades do indivíduo, gerando também o problema da automedicação. Silveira afirma que “ter a medicação em casa permite que a própria paciente faça a profilaxia das crises, das suas e das prováveis crises dos outros” (2000, p. 77).

A falta de perspectivas de mudanças e de melhora do sofrimento diário gera a necessidade de se eliminar pelo menos os sintomas físicos que aparecem, mesmo que os usuários fiquem dopados e muitas vezes até incapacitados para desenvolver as atividades corriqueiras. Fica claro que o medicamento ajuda apenas a mascarar os problemas relacionados às condições de vida, às dificuldades em lidar com os problemas do cotidiano, e transforma a necessidade de uma mudança estrutural em um sintoma passível de alívio.

 

A prevalência do sofrimento feminino: a dimensão do gênero

Nos estudos sobre doença dos nervos constata-se que a maioria dos queixosos são mulheres, sendo relevante, portanto, considerar as relações de gênero envolvidas. Enfatizamos que essa categoria refere-se ao sexo social e não às diferenças biológicas entre os sexos, sendo que para Lavinas, “o sexo social – portanto, o gênero – é uma das relações estruturantes que situa o indivíduo no mundo e determina, ao longo de sua vida, oportunidades, escolhas, trajetórias, vivências, lugares, interesses” (1997, p. 16).

Pela “naturalização” das normas sociais diferenciadas que são impostas aos homens e mulheres desde o nascimento e durante todo o processo de socialização, o menino vai aprendendo a ser homem e a menina a ser mulher, com toda a carga de comportamentos esperados para cada sexo (Hardey, 1998). Contudo, as diferenças biológicas entre homens e mulheres normalmente funcionam como justificativas sociais e ideológicas para a dominação, o preconceito e a opressão que permeia o universo feminino.

Assim, o papel “natural” da mulher é cuidar da casa, dos filhos e do marido, cabendo ao homem trabalhar fora e prover a família. Conseqüentemente, o papel de cuidadora é naturalizado como sendo feminino, e de fato existe na mulher a tendência a assumir esse papel na família e prestar uma atenção maior às sensações corporais, bem como a de se preocupar com os sinais e sintomas da doença (Radley, 1994). Pode ser essa uma das razões pela qual, segundo Radley (1994), as mulheres tendem a adoecer mais do que os homens, e por isso, a procurar com maior freqüência os serviços de saúde. O maior índice de morbidade entre mulheres também é associado por Álvaro e Paez como decorrente da:

atribuição dos diferentes papéis entre homens e mulheres, a socialização diferencial, as diferenças na expressão das emoções, o efeito dos maus tratos infantis, as estratégias de enfrentamento diferentes e à sua posição desfavorável no mercado de trabalho (1996, p. 394).

A maior parte da literatura pesquisada constata que a sociedade brasileira sofre com os resquícios do modelo patriarcal, no qual as iniqüidades de gênero são comuns. Portanto, como movimento social de caráter reivindicatório, o feminismo nos últimos anos vem denunciando a falácia da igualdade, contextualizando historicamente a condição de subordinação das mulheres e apontando a discriminação social, política e cultural que elas sofrem (Muraro, 2001). Contudo, é bom enfatizar a interdependência entre gênero e classe social, considerando que valores, papéis, atribuições e normas de interação entre os sexos dependem muito do contexto sócio-cultural em que os processos de subjetivação acontecem. Como Pinheiro destaca:

O processo de construção e reconstrução das categorias de gênero comporta especificidades segundo a classe social, com a qual relaciona-se de forma complexa, exacerbando ou atenuando aspectos de uma relação que se caracteriza pela desigualdade e hierarquia (2001, p. 47).

Nesse sentido, podemos destacar que apesar do exercício ocupacional estar perpassado pela divisão sexual do trabalho (Vaitsman, 1994), a classe social influencia de forma marcante essa divisão. Assim, é possível observar que embora as mulheres de classes média e alta estejam ganhando espaços na esfera pública pelo exercício de uma profissão remunerada, nas camadas populares, quando esse trabalho fora de casa existe, é mal pago e geralmente ocorre em condições precárias.

Pesquisas mostram que nas camadas mais abastadas as mulheres com emprego formal relatam um grau de satisfação pessoal maior do que aquelas que são apenas donas de casa (Mirowski e Ross, 1989; Radley, 1994; Hardey, 1998). Ao sair de casa para trabalhar a mulher é liberada por alguns momentos das tarefas domésticas e das constantes demandas do marido e dos filhos. Radley (1994) aponta ainda que enquanto exercem uma profissão, as mulheres podem desenvolver seus potenciais e ajudar no orçamento doméstico. Outrossim, o trabalho pode diminuir a exclusão social, permitindo à mulher maior participação nas decisões políticas e sociais dentro do contexto em que vive.

Isso complementa os achados de Mérchan-Hamman e Costa (2000), ao apontarem que o trabalho doméstico tem sido reportado como uma das dimensões que mais contribuem para o adoecer das mulheres, principalmente nas camadas populares, nas quais a depreciação desse tipo de ocupação fica em evidência. É preciso lembrar que nesse contexto, no qual a maioria das mulheres não tem acesso à educação formal e suas expectativas são restritas, a ocupação remunerada mais próxima de suas realidades é o de empregada doméstica. Por conseguinte, tendem a ser duplamente desvalorizadas: dentro e fora de casa.

Além das dificuldades na esfera do trabalho, as mulheres das classes populares estão mais expostas a serem vítimas da violência doméstica, principalmente quando o cônjuge quer manter tudo sob seu controle. Miller (1999) mostra que quando não são espancadas por qualquer motivo, algumas mulheres podem sofrer diversos tipos de abusos não-físicos, como o abuso emocional, o psicológico, o social e o econômico. O sofrimento gerado por esse tipo de violência, de fato, contribui para a diminuição da auto-estima e da autonomia, favorecendo sentimentos de inadequação e menos valia, isolamento social e a própria doença dos nervos.

As iniqüidades de gênero fortemente instituídas no contexto de baixa renda parecem, portanto, contribuir com essa presença significativa de mulheres com problemas de doença dos nervos. Observa-se que as diferenças de gênero relacionadas ao processo saúde-doença referem-se muito mais ao papel social, às dificuldades sócio-econômicas, às condições de trabalho e às desigualdades a que as mulheres são submetidas.

 

Conhecendo uma sofredora dos nervos

A participante, a quem daremos o nome fictício de Maria, tem 38 anos, é casada, mãe de dois filhos adolescentes, dona de casa, e no período das entrevistas cursava a sexta série do primeiro grau. Maria está casada há cerca de 20 anos, e considera seu casamento estável, sem maiores problemas. Ao longo das entrevistas surgiram as fontes de suas preocupações – por exemplo, os problemas de tipo econômico e a insegurança existencial decorrente da baixa renda mensal do marido, que não chega a 2SM. Durante as entrevistas, o marido ficou sem trabalho, diminuindo ainda mais o poder aquisitivo da família, tendo que sobreviver com os poucos e instáveis recursos advindos de biscates.

Maria percebe-se como alguém que gosta de ajudar pessoas por meio de opiniões e conselhos, e mostra-se frustrada com as limitações de perspectivas próprias de seu contexto. É na escola que se diverte, faz amizades e busca colocar em prática seu desejo de aconselhar. Têm expectativas de melhorar de vida ao concluir os estudos e encontrar um emprego formal. No entanto, acredita que tal intento não será possível, visto achar-se insegura, indecisa e medrosa. Além disso, não admite trabalhar como empregada doméstica, uma vez que, de acordo com ela mesma, não tem qualificação para outro tipo de trabalho. Aparecem com freqüência traços de auto-imagem negativa, reforçada pelas afirmações de que se acha feia, gorda e “complexada” com seu corpo. Sua marcante sensibilidade aumenta ainda mais seu grau de percepção com relação aos problemas da vida cotidiana, e às sensações corporais que começa a associar no decorrer dos encontros:

“ Assim, nervosa, porque eu vivo o problema daquela pessoa, eu vejo aquela agitação, a pessoa vem conversar comigo e eu procuro orientar (...) Ah, depois eu penso, fico com dó da pessoa que tá passando aquilo, né, eu acho que isso também contribui para eu ficar nervosa ” (1ª entrevista).

“ (...) essa semana eu assisti um caso na televisão (...) aquela imagem um pouco apagada, mas eu vi, né, o pai segurando o filho (...) na hora eu penso logo ‘ah, eu não vou me preocupar´; a gente é humano, a gente sente, né; mas só que eu procuro fazer de conta que não aconteceu nada, eu faço de conta, ah, aconteceu, pronto (...) mas só que quando foi mais tarde (...) que eu almocei e me deitei um pouquinho (...) minha mão já começou assim, tremer, uma coisa horrível, é ruim, é chato, sabe, dá uma raiva, eu me chateio com isso... quando eu tô com uma crise muito forte, eu sinto mesmo meus nervos tremendo ” (1 a entrevista).

Evidencia-se a relação entre o sofrimento e os acontecimentos do dia-a-dia, mostrando o quanto tais situações, por mais banais que possam parecer, adquirem importância significativa para Maria. A ocorrência de eventos inesperados e/ou negativos normalmente agravam os sintomas, e conseqüentemente o sofrimento psicossocial “crônico”, podendo acarretar o que Finkler (1989) denomina de perda do senso de coerência, isto é, uma certa desestruturação interna.

 

Vida que estremece, nervos que tremem

Observa-se nas primeiras entrevistas um quadro ainda difuso, permeado por sensações desagradáveis, em que há uma tentativa de nomeá-las para esclarecer o que sente, tanto para ela quanto para o profissional:

“ (...) eu fico assim sem poder respirar muito bem, né, como se meu coração quisesse alterar e depois disso, um problema assim, na minha pele, meus nervos, eu sinto que estremecem, é como se a gente tivesse um choque assim bem rápido, entendeu? E aí, pronto, se eu tô aqui conversando com você, isso pode ocorrer a qualquer momento, eu sinto nas minhas coxas, na minha nádega... em qualquer canto, mas antes era só nos braços, sabe? Dá um choque, estremece rapidinho, aí pára ” (1 a entrevista).

“ (...) quando eu vou adormecendo, sinto aquela coisa estremecer, estremece... eu só sei que eu tava adormecendo, já desperto... e é uma coisa que não me deixa dormir, isso me aflige muito, aí eu levanto... e viro para o outro lado e faço de conta que não está acontecendo nada, e vou, nem penso nada na hora, né? (...) aí, eu virei de lado tentando adormecer, mas não consigo. (...) e eu me desperto através desse tremor que eu sinto, através desse estremecer, eu vejo, ah, eu tava dormindo... e dá uma leseira na minha cabeça, não dá nem pra explicar ” (1 a entrevista).

Assim, além dos tremores, outros sintomas são também destacados, como dificuldades para dormir, tonturas, “penicões”, esquecimentos, nervosismo e ansiedade:

“ (...) minha mão começou assim, treme, uma coisa horrível, é ruim, é chato, sabe, dá uma raiva, eu me chateio com isso... quando eu tô com uma crise muito forte, eu sinto mesmo meus nervos tremendo ” (2 a entrevista).

“ (...) que é penicão, aquele beliscão, como que algo tivesse lhe mordendo, dentro, lá dentro, lá... vem de dentro prá fora, não é assim em cima da pele. Como uns bicho mordendo. Uma coisa, uma coisa horrível ” (2 a entrevista).

“(...) eu tenho um problema grande de esquecimento, eu acho que isso eu falei pra médica também naquele dia. Eu disse que tudo isso faz parte de, né? É alguma coisa na minha cabeça, só penso que é algo que vai desmoronando mesmo (...) ou o meu cérebro, não sei ” (2 a entrevista).

Maria sente que o incômodo trazido pelos sintomas, embora expressos no corpo, trazem um significativo mal-estar generalizado. Os sintomas são citados repetidamente ao longo das entrevistas, sempre contribuindo para o aumento do mal-estar e do sofrimento. Relacionada às sensações desagradáveis, aparece a possível causa do problema como algo desconhecido, localizado no cérebro. Tal questão pode decorrer da crença popular, reforçada pelo modelo biomédico vigente, de que todo sofrimento é fruto de uma afeção orgânica:

“ (...) eu sinto aquela coisa ruim, aqui dentro do meu cérebro, entende? Eu sinto que algo, que prejudica (...) e aquele aborrecimento assim, sabe? (...) Mas, é uma coisa que prejudica a minha mente, eu acho ” (2 a entrevista).

“ Problema de saúde, né? Porque eu sou uma pessoa normal, assim, se eu tivesse com minha saúde completa, é lógico que eu não ia, se eu tivesse um sustinho assim qualquer, me despertasse assim. Mas normalmente não eu sentir aquilo, aquilo que me incomodou. É que aquilo... é por que eu tinha em mim, no meu cérebro, eu acho ” (2 a entrevista).

Essa questão de ser ou não ser normal fica muito presente no discurso de Maria. Existe, de fato, preocupação em não ser considerada louca ou anormal, embora os sintomas de nervos possam, em algum momento, desencadear uma crise semelhante ao surto psicótico. Isso remete aos parâmetros do senso comum, referentes às dicotomias saúde-doença, normalidade-loucura, físico-mental – representações bastante freqüentes na área da saúde, sobretudo pela hegemonia do modelo biomédico. Yardley (1999) mostra a falácia de tais dicotomias, o que dificulta a legitimação do sofrimento psicossocial. A doença dos nervos, por exemplo, não se enquadra nesses critérios dicotômicos.

Uma das principais características desse tipo de queixa é justamente a diversidade de sintomas, que nesse caso aparecem difusos, trazendo diferentes sensações incomodam e que interferem no dia-a-dia de Maria. Algumas sensações são tão diferentes para ela, que há o uso de metáforas para tentar explicá-las, como é o caso do “bicho mordendo ” ou o caso da “ deliração ” que, quando questionada, ela define como “ quando a gente nem tá dormindo nem tá acordada, né? ”.

Percebe-se que esses sintomas, e especialmente a variedade de metáforas para expressá-los, estão presentes em outros estudos de autores brasileiros como Duarte (1986), Costa (1987), Gomes e Rozemberg (2000) e Silveira (2000), que investigaram a doença dos nervos em diferentes contextos das camadas populares brasileiras. As metáforas utilizadas estão de acordo com o contexto sócio-cultural onde são elaborados os discursos.

Os diferentes sintomas atribuídos à doença dos nervos também revelam, no trecho a seguir, a visão de Maria acerca de sua situação geral de saúde, bem como a necessidade percebida de ajuda:

“ Eu acho que a gente conversando com uma psicóloga é bom prá saúde, a gente recebe uma orientação, uma educação que a gente não tem; eu acho importante quando a gente passa por uns problemas; eu acho importante porque eu aprendo, me desperta alguma coisa. Aí, graças a Deus, eu estou aqui... porque eu tenho um problema de saúde ” (1 a entrevista).

Constata-se a necessidade de atenção por parte do profissional de saúde, que para ela é um verdadeiro guia, o dono do saber que vai ajudá-la a superar suas crises. Embora, pela complexidade do problema, o profissional não tenha esse poder, os usuários dos serviços de saúde normalmente colocam-se sob sua responsabilidade, mesmo não tendo sempre um atendimento adequado às suas necessidades.

 

Do cérebro às preocupações do cotidiano...

Nos encontros foi observada a relação entre os sintomas e as limitações decorrentes do contexto sócio-econômico apontadas por Mirowski e Ross (1989), Gomes e Rozemberg (2000) e Silveira (2000), ainda que nem sempre essa relação esteja clara para Maria, principalmente nas primeiras falas. A falta de uma explicação para o sofrimento dá margens a diferentes argumentos sobre o desencadeamento do mesmo, evidenciando uma total falta de controle da situação:

“ (...) eu acho assim, que isso é coisa que acontece na vida da gente. Coisa que a gente não entende e não sabe, mas, que eu não sou culpada, não, por que eu faço o máximo para que não aconteçam essas coisas ” (2 a entrevista).

A desconsideração da relação entre sintomas e sofrimento vai cedendo ao longo das entrevistas, quando Maria começa a vincular os sintomas com os problemas da vida cotidiana.

“ (...) eu acho que é como você é propenso. Que é mais quando eu tô mais preocupada, mais, é! Mais preocupada! Quando eu tenho raiva, quando tenho/eu senti assim, só umas duas vezes essa semana. No dia que eu fiquei, assim, preocupada, problema de casa. Aí... eu senti ” (5 a entrevista).

“ É, é. Quando eu tô mais preocupada, quando eu passo uma raiva, ou então, quando tenho um desgosto, sabe? Mas, isso, quando... quando tá tudo bem, aí eu já melhoro. Demora ” (5 a entrevista).

Quanto mais ela fala sobre sua história e seu sofrimento, mais elementos apontam para essa relação:

“ Porque eu senti que eu fiquei mais nervosa, mais preocupada devido uns probleminhas que houve lá na casa da minha mãe (...) e também a preocupação assim com meu filho. O pai dele ficou reclamando que ele tava chegando assim de 10 horas, aí ficou reclamando. Aí, um dia eu fiquei esperando... onze horas, esperando prá ele chegar, e nada, até que ele chegou um tanto tarde e o pai começa a reclamar. Aí eu num queria que acontecesse aquilo. Aí, aquilo ali, deixou eu mais nervosa, senti aquela, uma ansiedade, uma coisa ” (13 a entrevista).

Mais adiante, na mesma entrevista (13 a ), Maria começa a perceber com mais clareza a relação de suas preocupações com o nervosismo como conseqüência da falta de controle da situação: “ (...) aí eu fico preocupada (...) eh (...) sempre tô pensando naquilo, pensando naquela coisa, aí fica assim, eu acho que é por isso que eu fico assim ”.

Nesse sentido, observa-se que ao falar livremente sobre seus sintomas e seu sofrimento com o entrevistador/mediador há uma certa evolução no discurso. Se nas primeiras entrevistas o foco era a diversidade de sintomas, agora a atenção recai sobre as relações familiares, a vida doméstica e o cotidiano, que estão diretamente relacionados com seu sofrimento. Podemos apontar que a possibilidade desse espaço dialógico viabiliza um processo de reflexão diferente, que pode gerar uma mudança na forma como sente, percebe e age diante das dificuldades da vida. Como Grandesso destaca:

uma narrativa constrói na linguagem, independentemente de qual seja o seu modo (...), o ainda não dito, o inédito, em um novo arranjo congruente que integra em uma história diferentes e dispersos eventos, cujos significados decorrem da narrativa como um todo (2000, p. 199).

Assim vai ficando mais clara a influência dos aspectos relacionados às condições de vida, e como esse sofrimento está permeado pela realidade social. Essa relação entre o sofrimento e as dificuldades do dia-a-dia perpassa pelo corpo através dos sintomas e sensações, corroborando a idéia de Low (1989) e Finkler (1989) sobre o sofrimento incorporado.

 

Aprendendo a lidar com as dificuldades do dia-a-dia

Como fora colocado antes, nas primeiras entrevistas a forma de Maria lidar com os sintomas parece confusa pela própria característica de seu sofrimento; porém, começamos a perceber tentativas de melhora por meio da consciência das estratégias que lhe permitem amenizar a situação de sofrimento:

“ é, fica tremendo devagarzinho, devagarzinho, e eu procuro ficar bem quieta, que é pra melhorar ” (3 a entrevista).

Ao relacionar o sofrimento com as preocupações da vida cotidiana, Maria foi deslocando a atribuição de causalidade, que antes centrava quase com exclusividade no cérebro e na hereditariedade, desencadeando uma auto-imagem negativa, bem como evidentes sintomas depressivos. Por exemplo, os problemas da filha sendo tratados de forma diferente:

“ Quanto mais ela fica dura, e eu nem... fico falando (...) nem me meto assim com ela mais... Às vezes eu até... chego pra mim falar com ela (...) penso se tocar no assunto ela vai se aborrecer mais, deixo pra lá. Um dia ela vai se corrigir. E, pronto. Quando ela... conversar... eu aceito ela do jeito que é... ” (21 a entrevista).

Maria também aprendeu a identificar os espaços que geram bem-estar. Assim, o fato de ter outras atividades (decidiu continuar estudando), além das domésticas, é identificado como algo que contribui para se sentir bem:

“(...) e eu me sinto bem na escola (...) foi essa semana que a gente foi conhecer a classe e eu fiquei bem alegre. Que aí, encontrei com minhas amigas, os amigos, as pessoas, colegas de classe (...) aí é aquela alegria, aí é bom, eu gosto, sabe? Eu me sinto mais à vontade, esqueço mais esse problema de casa ” (9 a entrevista).

Embora esteja exercendo diferentes papéis sociais, o que poderia favorecer um maior nível de estresse, o fato de estar realizando atividades fora da esfera doméstica lhe traz maior satisfação, bem como amplia seu círculo de relações interpessoais. Tal constatação corrobora as idéias de Hardey (1998), que acredita na realização de atividades como uma forma de diminuir a privação e a exclusão social, situação comum na classe trabalhadora.

Paulatinamente foi percebendo que sua doença dos nervos é algo que depende também dela, da forma como se situa com relação aos problemas. Isso facilitou a construção de formas mais adequadas de lidar:

“ Mas aí eu tava assim um pouco preocupada, aí, de lá pra cá tirei mais a preocupação. Soube de notícia, mas eu, eu consegui me controlar melhor. Tirar aquilo (...) Assim, procurando esquecer mais ” (13 a entrevista).

“ (...) eu tentava assim, lidar com aquilo eu/me controlar, mas num... num havia jeito, por mais que eu me esforçasse, que eu tentasse, mas num... e... agora, eu sinto que eu tô melhor... eu aprendi lidar mais... e ... mas, porque tô melhor ” (19 a entrevista).

Observa-se que o processo de contar livremente sua história facilitou uma reconfiguração da mesma, de forma a compreender melhor a gênese de seu sofrimento, a refletir sobre o que antes lhe era difuso e a encontrar estratégias de enfrentamento eficazes, sempre dentro de suas possibilidades e limitações. Embora os problemas, sobretudo de ordem doméstica, e as recaídas continuem, os sintomas são bem mais leves e não permanecem como antes. Parece que o fato de conhecê-los melhor gerou maior sensação de controle e uma vida com um pouco menos de sofrimento:

“ eu acho assim que (...) foi alguma coisa que despertou dentro de mim, dessas conversas que a gente tem, eu, eu acho que eu comecei a aprender mais... eu penso que eu aprendi mais um pouco, me despertei/ eu tô amadurecendo mais. E... eu acho... assim... num sei bem explicar, mas... que é um esforço meu também, né? ” (9 a entrevista).

“ porque eu sinto que eu aprendi muita coisa e eu melhorei muito. É assim, tipo um despertamento, e a gente se desenvolve mais, e aprende (...) quando a gente é fechado assim pra (...) aí eu gostei, eu tô gostando ” (20 a entrevista).

Embora sejam problemas estruturais de difícil solução que estão permanentemente gerando sofrimento na vida de pessoas como Maria, é importante destacar a importância desse espaço de prática dialógica, no qual o participante possa envolver-se ativamente na co-construção das mudanças, por mais limitadas que sejam (Grandesso, 2000).

 

Considerações finais

O estudo de caso aqui apresentado ratifica as considerações da doença dos nervos como um problema complexo, que traz significativo sofrimento para o queixoso em um contexto de profundas limitações sócio-estruturais. A diversidade de sintomas – e a forma como estes se manifestam corporalmente – corroboram a idéia de um problema que precisa ser compreendido. Verifica-se que é uma queixa que não pode ser considerada apenas como um problema físico ou mental, sendo necessário repensar esses conceitos (Yardley, 1999). De fato, não tendo a doença dos nervos uma classificação nosológica concreta, os profissionais de saúde tendem a desconsiderá-la ou, no melhor dos casos, apenas dão atenção medicamentosa isolada aos diversos sintomas que surgem. Entretanto, o fato torna-se um verdadeiro problema de saúde pública.

Assim, no caso de Maria, com uma história de diferentes queixas de saúde, ao ter oportunidade de tomar consciência de seu problema de uma forma mais organizada, e de refletir sobre o quanto suas preocupações estavam influenciando em seu sofrimento, ela passa a ter certo controle, encontrando estratégias de enfrentamento mais eficazes, sem depender tanto dos medicamentos e da contínua cobrança de exames e consultas aos médicos e especialistas. Tal constatação fica ainda mais clara nas palavras de Anderson e Goolishian:

O sentido e sua compreensão são construídos socialmente pelas pessoas na conversação, no uso da linguagem umas com as outras. Assim sendo, as ações humanas têm lugar em uma realidade de entendimento criada por meio da construção social e do diálogo. Estas realidades narrativas construídas socialmente conferem sentido e organização à experiência individual (1998, p. 38).

É interessante observar o papel do psicólogo, sobretudo no que se refere à sua atuação na saúde pública. Alguns autores, como Silva (1992), Spink (1992) e Campos (1992), discutiram essa questão e apontaram a importância de clarificar o papel do psicólogo na área de saúde, destacando a necessidade de reconhecer a permanente interdependência da dimensão orgânica e os contextos social, cultural e econômico, além de considerar o processo saúde-doença como um fenômeno social e histórico.

Acreditamos que a doença dos nervos merece maior atenção por parte de todos os profissionais da saúde, sobretudo porque está expressando um sofrimento que pode evoluir para transtornos mais graves, existindo inclusive a possibilidade de que as crises de ansiedade possam gerar surtos psicóticos mais sérios. Destacamos, portanto, a necessidade de propor estratégias de intervenção mais voltadas para a escuta terapêutica, de forma a possibilitar um espaço para o livre falar, permitindo a reconstituição de uma história fragmentada pelas dificuldades da vida. Seja na forma de grupos de ajuda mútua, ou em espaços terapêuticos individuais, o profissional de psicologia ao fazer parte das equipes de saúde pública deve cumprir seu papel de facilitador dos citados contextos de ressignificação, em diálogo permanente com os outros profissionais do serviço.

 

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Endereço para correspondência
Martha Traverso -Yépez
R.Abraham Tahim 1670 / Bl.C-101
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E-mail: traverso@ufrnet.br

Luciana Fernandes de Medeiros
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E-mail: lumedeirospsi@hotmail.com

Recebido em 21/01/04
Versão revisada recebida em 17/07/04
Aprovado em 22/09/04

 

IDoutora em Psicologia Social pela Universidade Complutense de Madri; Professora do Curso de Psicologia e do Programa de Pós-graduação na Universidade Federal do Rio Grande do Norte/UFRN.
II Mestre em Psicologia pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia/UFRN; Professora do curso de Psicologia da Universidade Potiguar/UnP.