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Interações

versión impresa ISSN 1413-2907

Interações v.10 n.19 São Paulo jun. 2005

 

ARTIGOS

 

Medicina legal nas teses da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro (1830-1930): o encontro entre medicina e direito, uma das condições de emergência da psicologia jurídica1

 

Forensic medicine in the theses of Medical School in Rio de Janeiro (1830-1930): the encounter between medicine and law, one of the conditions to the emergence of juridical psychology

 

 

Ana Maria Jacó-Vilela*I; Adriana Amaral do Espírito SantoII; Vivian Ferraz Studart PereiraIII

*Universidade Estadual do Rio de Janeiro

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Sabendo-se que a Psiquiatria no Brasil constituiu-se a partir da Medicina Legal, o artigo analisa as teses de Medicina Legal da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, defendidas nos anos de 1832-1930. Durante esse período as teses eram obrigatórias para a obtenção do título de Doutor em Medicina, isto é, para a conclusão do curso médico. Apresentam-se as principais idéias psiquiátricas européias – notadamente Pinel, Morel e Lombroso – e seu desdobramento nas teses. Acrescenta-se também o pensamento nelas presente acerca do papel social dos médicos. O início do Manicômio Judiciário no Brasil é apresentado rapidamente, indicando-se em seguida a gênese do campo da Psicologia Jurídica, vista então como forma instrumental de auxílio ao psiquiatra na determinação das características não só do réu ou criminoso, mas também da criança e do doente.

Palavras-chave: Teses da Faculdade de Medicina, Medicina legal, Psiquiatria, Psicologia jurídica, Degeneração.


ABSTRACT

Psychiatry was constituted within forensic medicine in Brazil. In this context, this paper analyzes theses in forensic medicine which were submitted to the Medical School in Rio de Janeiro between 1832 to1930. During these years, the development of a thesis was a mandatory requirement for students to conclude their medicine course and obtain their medical degree. This paper analyzes seminal European ideas on psychiatry – particularly the ones by Pinel, Morel and Lombroso – and their application in the theses. It also examines notions the ways in which the social role of doctors are featured in these theses. The onset of the Judiciary Insane Asylum in Brazil is briefly presented, followed by the genesis of the field of forensic psychology – an instrument that helped psychiatrists to determine not only defendants’ or criminals’ characteristics, but also characteristics of patients and children.

Keywords: Theses at the medical school, Forensic medicine, Psychiatry, Forensic psychology, Degeneration.


 

 

Introdução

Este trabalho procura analisar um dos aspectos observados em pesquisa que estamos desenvolvendo acerca da contribuição dos saberes médicos e católicos à constituição da Psicologia no Brasil. Especificamente com relação aos médicos, uma fonte importante de dados foram as teses da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro. Assim, este trabalho se propõe a analisar aquelas que se referem especificamente ao tema de Medicina Legal, lembrando que este campo contribuiu de forma efetiva na constituição da Psiquiatria no Brasil.

É importante ressaltar que a obrigatoriedade das teses iniciou-se nos anos de 1830, quando havia somente duas décadas a imprensa e a produção de livros encontravam-se liberadas no Brasil, por meio do “processo civilizatório” iniciado com a chegada da Corte Portuguesa em 1808. Assim, elas podem ser consideradas os primeiros livros autenticamente brasileiros, não só no sentido da nacionalidade de seus autores, mas principalmente no sentido de serem aqui impressas e representarem o pensamento da elite brasileira sobre vários temas candentes então em circulação.

Esse pensamento procura se aproximar das idéias mais em voga nas capitais européias, notadamente Paris. Sabemos que o século XIX assiste à definitiva hegemonia do novo modelo de compreensão da natureza, a ciência, marcadamente as ciências da vida. Gall, com sua frenologia proposta em 1825, Galton dissertando sobre a hereditariedade da inteligência em 1869, e principalmente Darwin em 1859, afastando os seres vivos do universo da Criação, são autores que por meio de suas teorias permitirão aos poucos a consolidação de uma dada biologia, cujo paradigma estende-se aos outros campos do conhecimento. O organismo torna-se metáfora para a vida em sociedade, esta entendida como uma totalidade em que os órgãos, igualmente valorados, têm diferentes funções a desempenhar. O indivíduo livre e igual aos outros (Dumont, 1985) da Revolução Francesa pode ser assim percebido também como diferente dos demais – diferença que redundará, no Romantismo, no estudo da interioridade.

Porém, como retornar à diferença sem macular a igualdade que faz parte da natureza humana? A biologia fornece a resposta: não mais a diferença centrada nos vínculos comunitários e religiosos presentes na tradição, mas uma diferença que também faz parte da natureza. São, portanto, dois os entendimentos de natureza: como razão, afirma a igualdade dos homens que lhes propicia construir a vida em sociedade; por outro lado, aponta uma desigualdade que se situa aquém da sociedade, que é biológica, pertence ao “organismo humano” (Russo, 1997).

Esta primazia do conhecimento biológico no século XIX faz com que um dos conceitos a surgir seja o de “raça”, que embora denote a herança de características físicas pertencentes aos diferentes grupos humanos, no contexto de reação ao ideário iluminista aproxima-se muito do conceito de “povo”. Acrescentando-se o conceito darwinista de seleção natural, forma-se um caldo propício não só à afirmação da diferença – biologicamente determinada – como à hierarquização das diferentes raças, justificativa para o domínio ocidental do homem branco sobre os “povos primitivos”.

No Brasil, essas idéias refletem-se no pensamento dos estudantes de medicina e médicos da época, profissionais que representam o pensamento de uma elite destinada a dirigir o destino do país, identificar seus problemas e criar possíveis soluções. Isto é o que muitos autores denominam de “intervenção médica na sociedade” (Machado, 1978; Costa, 1989) e reflete-se nas teses de conclusão de curso da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro realizadas entre os anos de 1830 e 19302.

Como dito, uma parte de nossa investigação referiu-se ao levantamento e análise das teses da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro. Uma seleção prévia entre as quase dez mil teses resultou em um conjunto de setecentos e oitenta e cinco, que supusemos apresentar conteúdo psicológico, visto nosso objetivo com o estudo das teses ser a verificação e análise desse tipo de conteúdo. Para a demarcação desse conjunto utilizou-se como critério básico a análise do título das teses, selecionando-se aquelas em que se estavam presentes palavras indicativas de possível conteúdo psicológico. Além disso, foram automaticamente selecionadas aquelas teses mencionadas em obras consideradas de referência, quais sejam Jurandir Freire Costa, Ordem médica e norma familiar, 1989; Sonia Alberti, Crepúsculo da alma, 2003 (decorrente de dissertação de mestrado defendida em 1980) e Lílian Lobo, Tribunal de todos os desvios, 1997.

As teses selecionadas foram categorizadas em doze grupos, divididas em oitenta subcategorias. Procurou-se validar cada categoria por meio de leitura de uma amostra, pelo menos 20% das teses nela incluídas. Objetivava-se verificar se nelas estava presente conteúdo psicológico, ou seja, se foram satisfatórios nossos critérios iniciais de escolha e agrupamento das teses.

Neste texto, como dito anteriormente, propomo-nos a analisar mais especificamente as teses classificadas e validadas, de acordo com a metodologia utilizada, como pertencentes à categoria de Medicina Legal. Analisaremos também algumas teses de outras categorias que possuem conteúdos relativos ao referido tema, o que se justifica porque utilizamos o procedimento de categorização exclusiva das teses, isto é, sua inserção em uma única categoria. Como muitos temas são comuns, a questão médico-legal aparece, ainda que de forma secundária, em teses classificadas em outras categorias.

Observe-se ainda que incluímos na categoria Medicina Legal os trabalhos referentes à articulação entre o corpo de conhecimentos e práticas médicas e a instância jurídica. Entretanto, como nosso olhar dirige-se à presença do saber psicológico, as teses que recolhemos para análise situam-se mais especificamente no campo do que hoje se denomina Psiquiatria Forense, ou seja, onde, mais do que provas físicas relacionadas ao crime, o que interessa ao médico investigar é a mente criminosa. O conteúdo psíquico, portanto, é claro nas teses selecionadas. Mantemos a denominação da categoria como “Medicina Legal” por ser assim que os médicos se referiam a seus trabalhos.

Isto porque, quando da inauguração do Hospício de Pedro II no Rio de Janeiro em 1852, as faculdades de medicina do Rio de Janeiro e da Bahia – criadas em 1832, sucedendo aos antigos colégios médico­cirúrgicos – possuíam uma cátedra de Medicina Legal (Russo, 1993). Logo em seguida foi criada a cadeira de Higiene, uma das principais áreas de pesquisa, sobretudo no Rio de Janeiro. Somente em 1881, em uma nova reforma do ensino médico (decreto 3024), foi criada a cadeira de Clínica Psiquiátrica e Moléstias Mentais, interinamente ocupada pelo também catedrático de Medicina Legal à época, Dr. Nuno de Andrade, diretor médico do hospício. Conforme Venâncio (2003), somente em 1887 a nova cátedra e a direção do hospício serão ocupadas por aquele que é considerado o primeiro psiquiatra brasileiro, João Carlos Teixeira Brandão (1854-1921). Como diz Russo:

É possível portanto afirmar que a medicina legal foi praticamente o berço da psiquiatria brasileira. Esta raiz comum que une as duas especialidades não é de modo algum fortuita. As relações de proximidade e conflito entre a medicina legal e a psiquiatria demonstram de forma exemplar a importância do discurso médico em geral, e do psiquiátrico em particular, na definição das questões políticas fundamentais para a nova sociedade que emergia (1993, p. 9).

Para discutir a questão das articulações entre medicina e direito, apresentaremos como primeiro ponto as teses de Medicina Legal do Rio de Janeiro, localizando-as nas duas grandes etapas da articulação entre Medicina e Direito, aquela que se inicia com Pinel e Esquirol, e a subseqüente, a partir as idéias de Morel; como segundo ponto, apresentaremos a resultante desse pensamento no personagem Heitor Carrilho e no Manicômio Judiciário; apontaremos em seguida em relação com o anteriormente exposto, o surgimento da psicologia jurídica no Brasil, para finalmente estabelecermos algumas conclusões.

 

As teses de Medicina Legal e a presença de Pinel e Esquirol

Ao falarmos de Medicina Legal estamos falando de um momento da Medicina em que o poder do médico é crescente, e em que se iniciam seus embates com o outro importante campo do saber, o Direito. Até então esses saberes se situam em espaços separados, cabendo ao Direito comprovar a existência do crime e punir o criminoso. Historiando as formas jurídicas de busca da Verdade, Foucault (1996) aponta uma primeira etapa do Direito, em que ocorre a prevalência – na Antigüidade e na Idade Média – do procedimento da prova, cujo resultado revela a Verdade. Esta, portanto, é externa aos autores e pré-existente aos próprios fatos, por isso o ordálio pode dá-la a conhecer.

É somente em um segundo período, entre 1750 e 1850, envolvido pelos ideais iluministas, que começa a surgir na Europa um pensamento voltado para uma sistematização de normas associadas aos diversos tipos de delitos, dele emergindo os princípios do Direito Clássico. Segundo este, todo membro da sociedade é dotado de livre arbítrio – a liberdade do ideário revolucionário – e, responsável pelos seus atos, deve sofrer punição de acordo com a gravidade dos mesmos. A exceção é feita para aqueles que se encontram em estado de completa perturbação dos sentidos e da inteligência no ato de cometer o crime.

Os principais expoentes desse pensamento foram Francisco Carrara e Cesare Bonesana, o Marquês de Beccaria. Na análise de Campa (1995), o livro deste último, Dos delitos e das penas, datado de 1764, tornou­se o símbolo da reação liberal à situação penal que vigorava, ao criticar a crueldade das penas e defender a aplicação da lei exclusivamente pelo legislador. Observe-se que o autor está se referindo aqui à sistematização do uso de tortura para obter confissões, e da pena implicar suplícios que se desenrolavam em praça pública, como bem descreveu Foucault em Vigiar e punir (1997).

Beccaria, cujos princípios foram adotados na Declaração de Direitos Humanos, tratou em sua obra de temas como a pena de morte e os asilos – grandes depositários de todo tipo de dejetos sociais, loucos, mendigos, enfermos graves. Propõe a substituição da violência no procedimento jurídico por outro método, os interrogatórios. Estamos frente, pois, a um outro processo de comprovação da Verdade, de acordo com a análise de Foucault explicitada acima: não mais a verdade revelada pela prova, mas aquela descoberta pelo inquérito, a investigação da natureza por aqueles capacitados para isso.

Assim, a partir de princípios do século XIX surge um novo tipo de preocupação com o homem delinqüente e as razões de seus delitos, agora situada não mais no campo da moral religiosa, fundada na Verdade revelada, mas embasada na ciência que está se constituindo como novo critério de verdade.

Aos poucos o Direito Positivo – positivo porque objetivo: o crime é uma abstração, o que existe é o criminoso – assume a hegemonia no sistema judiciário. Para isso, contudo, um outro fator é de extrema importância: o desenvolvimento da Psiquiatria como campo autônomo dentro da Medicina e como área reconhecida de exercício profissional.

O Direito Positivo significa o início de um período de disputa entre as instâncias jurídica e médica, pois parece haver uma exclusão mútua, uma tentativa de substituir um modo de controle pelo outro. Assim, há um problema de classificação em referência aos dois núcleos de saber: o réu é culpado ou louco? Por trás desse confronto teórico há uma concorrência entre os agentes do trabalho social: a que tipo de especialistas confiar a análise do acusado ou suspeito, de modo a apresentar “evidência” ou “indicativo” como “peça” de acusação ou defesa? A quem confiar o cuidado dos detentos?

A psiquiatria tentava ganhar um espaço de intervenção entre a repressão consecutiva ao ato criminoso e a ação preventiva, espaço no qual o futuro da medicina mental vai se desdobrar. Entretanto, nesse momento os diferentes enfoques referem-se ao ato criminoso ainda como se tratando de um problema do intelecto.

Na França estavam sendo discutidas a questão moral, sua natureza, suas vicissitudes e possíveis resoluções. A principal influência desse primeiro momento é de Phillippe Pinel (1745-1826), considerado o disparador da primeira revolução psiquiátrica.

Influenciado pela Revolução Francesa, Pinel entendia a loucura não como uma essência pertinente a alguns homens, ou seja, algo que se centrava na diferença entre os homens, mas como uma “desrazão”, a mesma razão comum a todos os homens que aqui se apresenta de outra forma. Não há, pois, uma diferença qualitativa – afinal, todos os homens são iguais, universalidade da natureza humana que se torna um princípio subjacente ao Direito moderno. Assim, não é mais necessário abandonar, colocar nas naus dos desvairados, usar como objeto de escárnio aqueles loucos que até então se encontram nas ruas e possuem uma posição reconhecida – e diferente – no grupo social. A estes não era possível compreender, estavam fora da comunicabilidade humana. Seu tratamento – quando havia – pressupunha uma ação direta sobre o corpo, como a sangria, a imersão em água etc (Gauchet e Swain, 1980). Agora, irmanados pela razão, é possível tratá-los, e Pinel cria o que é denominado “tratamento moral”, que desenvolve no hospital de la Salpêtrière, a grande instituição psiquiátrica francesa.

Pinel já havia escrito algumas notas sobre a loucura sem delírio, e aquele que é considerado seu principal discípulo e continuador, Jean Etienne Dominique Esquirol (1772-1840), falará de uma patologia dos sentimentos e da vontade, sem perturbações intelectuais próprias. Busca mostrar que no quadro de monomania, um certo tipo de crime, por sua simples ocorrência, atesta sozinho a existência da loucura. Na escola de Salpêtrière, pela atenção dada ao comportamento e à perturbação de outras faculdades além do entendimento, constrói-se em torno de Esquirol uma renovação da concepção da loucura que vai impor sua marca em todo o século XIX.

Isso ficará evidente no caso Pierre Rivière, conforme apresentado por Foucault, e no que aqui nos interessa, principalmente pela análise feita por Castel (1991). Exemplo fundante da Psiquiatria Forense, o “caso” inicia com a análise psiquiátrica de Pierre Rivière após ser preso pelo assassinato de seu pai e dois irmãos. Enquanto o médico de província, ainda pouco ilustrado pela nova ciência que se desenvolve em Paris, fala de sua culpa, os psiquiatras parisienses, entre os quais Esquirol – tomando conhecimento do caso apenas por meio do manuscrito escrito por Rivière e dos autos do processo –, afirmam a irresponsabilidade penal de Pierre Rivière, por se encontrar tomado pela loucura no momento desses atos. Com isso, o réu não é condenado à morte, mas à prisão, onde logo se suicida.

O poder psiquiátrico pode impedir, assim, o exercício da última forma de repressão judiciária – a morte –, mas não foi ainda preparado um quadro jurídico e institucional específico no qual inscrever suas conquistas. Entretanto, ao se firmar a possibilidade de inimputabilidade por deliberação médica, mantém-se a exigência da outra forma de repressão judiciária, o regime privativo de liberdade, e mesmo uma intervenção precedendo o ato que pôs em movimento a máquina judiciária. Porque, embora médicos e juízes compartilhem das normas dominantes em matéria de repressão, os psiquiatras têm necessidade, além disso, de um novo dispositivo para desdobrar os recursos da medicina mental. Encontram-se assim em uma relação ambígua arespeito do poder judiciário. É seu olhar especialista que se acha investido do poder de intervir, observar os sintomas, calcular o desenrolar da enfermidade, prever a possibilidade de remissão e a cura ou a degeneração, mas ainda lhes falta estabelecimento próprio em que possam exercitar seu poder.

Assim, nada mais adequado que boa parte das teses se dediquem a apresentar as idéias dos grandes teóricos europeus3 para ilustrar o campo em que o trabalho médico deve se desenvolver. Manoel Antonio Dias de Castro Monteiro, em tese denominada Alienação mental considerada debaixo do ponto de vista médico-legal, de 1852, por exemplo, dedica-se a explicitar as variadas classificações do que já é chamado de doença mental, apontando as diferenças entre alienação mental, imbecilidade, idiotismo e loucura (na qual reconhece três gêneros: a monomania, a mania e a demência). Afirma também que as formas de loucura que mais interessam à justiça criminal são a monomania homicida, a piromania e a monomania de roubo. Se com relação à etiologia aponta uma variedade de causas – hereditárias, abuso de álcool, sífilis, supressão de menstruação, gravidez... –, por outro lado é enfático e restritivo na avaliação da responsabilidade do criminoso: o louco não tem consciência do bem e do mal, a consciência moral abandona o doente. Um exemplo dessa visão está presente na tese de Azevedo Júnior, também de 1852, em que o autor aponta a gravidez como tendo influência imediata no moral da mulher, podendo levar até à alienação mental. Em um crime, por exemplo, a gravidez pode servir como fator atenuante ou mesmo levar à absolvição.

 

As teorias da degenerescência, o grande mecanismoexplicativo

Outra tese vai apontar como essa questão moral é enfocada de forma bem diferente da visão estritamente teológica predominante ainda na primeira metade do século XIX. Alexandre Stockler Pinto de Menezes, em sua tese Responsabilidade legal dos alienados, de 1887, procura apresentar a “teoria positiva da razão, loucura, alienação e idiotismo”, e assim discorre sobre as relações entre corpo e alma, dois elementos distintos porém não dissociados. Sua perspectiva segue o modelo fisicalista – seguindo a frenologia proposta em 1825 por Gall, a alma é relacionada ao cérebro. O corpo atua sobre ela, portanto, por meio do sistema muscular e nervoso sensitivo, a alma/cérebro reage ao (e sobre o) corpo pelos nervos motores e sensitivos.

Se a responsabilidade de cada um decorre de sua liberdade (aqui entendida como essência humana) e de sua obrigação (social), no caso dos alienados a situação muda. “Há doenças que limitam a capacidade para determinados atos e contratos” (p. 20). Assim, o louco é irresponsável mesmo que seu ato seja voluntário, pois a não consciência das conseqüências de um ato isenta seu autor da responsabilidade por ele. Menezes discorda ainda que haja responsabilidade criminal dos alienados em seus intervalos de lucidez, pois em grande parte trata-se de alienação herdada ou derivada da constituição física, o que destina fatalmente o indivíduo ao crime, dada a incapacidade de senso moral. Ainda nesse sentido, fala da existência de uma nova escola de pensamento que defende a necessidade social de extirpar o tipo criminoso – podemos supor que está se referindo à idéia de eugenia, que após ser proposta por Francis Galton em suas teorizações acerca da hereditariedade da inteligência e da capacidade mental, com o pressuposto de uma “evolução dos povos”, é rapidamente transformada em aniquilação social dos menos aptos.

Parece-nos que essa tese de Menezes é a primeira a se aproximar da nova Escola Penal, o Direito Positivo. Por sua vez, a tese de José Cabral de Alencar, Obsessões e impulsões ao homicídio e o suicídio (1902), é uma representante das novas idéias no campo médico-legal. Cita Pinel, para quem “os alienados não eram indivíduos comparáveis a criminosos, mas doentes dignos de piedade como todos os outros” (p. 68). Estamos já em fins do século XIX e o Direito Positivo é reforçado pelos trabalhos de César Lombroso (1835-1909), criador da Antropologia Criminal, de Henrique Ferri (1856-1929), da Sociologia Criminal, e de Rafael Garófalo (1852-1934), este sendo o primeiro a usar a denominação “Criminologia” para as Ciências Penais. Serão estas as principais influências no pensamento que irá constituir a Medicina Legal no Brasil, especialmente as idéias introduzidas por Lombroso.

Para este, o crime é um fenômeno natural do homem, devendo sua etiologia, eminentemente individual, ser estudada de modo a que se possa constituir programas eficazes de prevenção. Afirmava haver a transmissão hereditária da criminalidade, explicando ainda o criminoso como uma subespécie ou um subtipo humano, possuidor de estigmas degenerativos, comportamentais, psicológicos e sociais. Cria então uma categoria, a do criminoso nato, para cuja descrição apóia-se principalmente na teoria da degenerescência formulada em 1857 por Bénédict Augustin Morel (1809-1873).

O criminoso nato, que corresponderia a 40% da população criminosa, seria um ser inferior, atávico, semelhante à criança, no sentido de encontrar-se nas primeiras fases de evolução da raça humana. Possuiria características físicas próprias, como uma pronunciada assimetria craniana, rosto pálido, cabelos abundantes, barba escassa e maxilares proeminentes. Além disso, traria com ele uma forma de epilepsia larvada, que atacando os centros nervosos causaria estados fugazes de inconsciência nem sempre perceptíveis. Os epiléticos seriam pessoas muito sensíveis, com tendências delituosas, e que se deixariam levar, exatamente por este exacerbamento das emoções, ao cometimento de crimes excepcionais, o que justificaria sua temibilidade.

Ferri, assim como Lombroso, entendia o crime a partir da análise do indivíduo, de seu tipo físico e da raça a que pertencia. Segundo sua visão, a Antropologia Criminal era o “único método científico” no combate à criminalidade (Schwarcz, 1993, p. 156), e imbuído do caráter classificatório da ciência de sua época, estabeleceu cinco grupos para classificar os criminosos: inatos, loucos, habituais, de ocasião e passionais. Definiu também três categorias básicas de fatores para o crime: a) antropológicos ou individuais, presentes eminentemente nos criminosos natos, loucos ou passionais; b) físicos ou telúricos, que incidem sobre todos os tipos de delinqüentes; c) sociais, mais freqüentes nos criminosos ocasionais ou por hábito. Os fatores sociais são as principais causas para a delinqüência, porém são também os mais facilmente corrigíveis.

Para Garófalo, por sua vez, a fundamentação do comportamento e do tipo criminosos deve ser buscada em uma anomalia psíquica ou moral do delinqüente, a ser entendida, sociologicamente, como uma degeneração: o criminoso possui um déficit de base orgânica na esfera moral, resultado de uma mutação psíquica, transmissível por via hereditária e com conotações atávicas e degenerativas. Salienta também a relevância dos dados anatômicos, destacando a importância da antropometria craniana para determinar a personalidade criminosa. Garófalo pretendeu criar, dentro da Criminologia, o conceito de “delito natural”, que seria um conjunto de condutas reprováveis em qualquer tempo e lugar, independentemente das variações legais. No entanto, como não conseguiu defini-lo, substituiu a análise dos atos pela análise dos sentimentos, passando a considerar o delito como lesão do que denominava “senso moral”.

O Direito Positivo rejeita como “metafísica” a noção de livre arbítrio, tão cara aos iluministas e ao Direito Clássico, e concentra seu olhar não no crime, mas no criminoso; não na punição, mas no tratamento e na regeneração. Seus interesses são a investigação da subjetividade, da interioridade dos criminosos, além de definir os meios adequados de tratamento para transformá-los em cidadãos disciplinados e obedientes, visto que os métodos anteriores, pretendendo somente punir o crime, não surtiam efeito educativo sobre o criminoso. A pena tem, pois, o caráter duplo de recuperação do indivíduo e de proteção social. Aqui adota-se tanto a técnica do “inquérito”, que vai possibilitar abstrair elementos comuns e criar classificações, quanto a do “exame”, que permite o escrutínio detalhado, revelador do mundo interno de cada um.

Assim, a tese do citado Alencar (1902), seguindo também a escola psiquiátrica de fins do século XIX e começo do XX, em que a influência de Lombroso é grande, aponta que o grau de perniciosidade do criminoso, sob o ponto de vista social, é que deve servir como critério para seu julgamento. Finalmente, alia-se à eugenia ao afirmar que o médico legista, pelo estudo do crime e da personalidade do criminoso, será capaz de estabelecer o grau de periculosidade dos alienados criminosos que devem ser removidos da sociedade, pois constituem sua parte doente. O autor refere-se ainda à presença de estigmas anatômicos, psíquicos e sociológicos, e destaca o papel fundamental da hereditariedade na etiologia das obsessões e impulsões ao homicídio e ao suicídio.

Vamos agora nos deter na Teoria da Degenerescência, citada anteriormente e apresentada em 1857 por Morel em seu livro Traité des dégéneréscences physiques, intellectuelles et morales de l’espèce humain (Domont Serpa, 1998). Ela é, talvez, a teoria psicossocial mais influente no meio médico brasileiro da segunda metade do século XIX e inícios do XX. Procurando estabelecer relações entre a loucura individual e a degeneração racial, a degeneração torna-se a categoria médico-legal por excelência.

Morel defende a idéia da transmissão de uma predisposição do organismo à degenerescência, esta podendo ser identificada pela ocorrência de traços físicos e morais característicos dos degenerados. Leonel Gomes Velho, em sua tese Do degenerado e sua capacidade civil, de 1905, apresenta as idéias de Morel e alguns de seus seguidores, procurando inicialmente apontar as diferentes definições de “degenerado” e de como este se encontra presente em todos os recantos da vida4 – não existem só os degenerados débeis, pouco aptos para as lutas pela existência, mas também os superiores, aqueles indivíduos “originais, bizarros e excêntricos que, apesar de serem triunfantes na vida e até ocuparem elevadas posições sociais, são tão anormais sob o ponto de vista cerebral quanto os idiotas. Devido a este fato, os débeis, por serem impotentes, são menos prejudiciais à sociedade que os degenerados superiores” (s/esp).

Todos os degenerados têm características externas típicas que se constituem em estigmas físicos da degeneração. Ocorre muitas vezes de o degenerado apresentar apenas estigmas físicos ou apenas estigmas psíquicos, embora seja mais comum a presença dos dois tipos de sinais de degeneração. Velho aponta como principais estigmas físicos: hidrocefalia, microcefalia, albinismo, quantidade de pêlos anormais, barba na mulher, ausência de barba no homem, assimetria da face, lábio leporino, mamas muito grandes ou atrofia das mesmas nas mulheres, hérnia inguinal congênita, ausência de membros ou dedos ao nascimento, hermafroditismo, atrofia de pênis, esterilidade e outrasanomalias genitais. É comum ainda aos degenerados a surdez, a mudez, a gagueira e os movimentos automáticos como os tiques nervosos.

Por outro lado, a degeneração atua também sobre o cérebro e a medula, o que, de acordo com a teoria da correspondência entre o cérebro e os atributos psíquicos proposta por Gall, ocasiona aberrações do intelecto e dos sentimentos morais. A degeneração rompe a harmonia do funcionamento cerebral causando efeitos anômalos que são resultados das disfunções orgânicas do cérebro, por exemplo: defeitos nos processos de raciocínio, medos irrisórios, sandices extravagantes, abandono da família, onanismo, verborragia, perversões sexuais, estados oscilantes de depressão e exaltação, vaidade, pretensiosidade, atitudes não esperadas socialmente como gargalhar em velórios. Tais características estão presentes apenas nos débeis e desequilibrados, pois a maioria dos idiotas e imbecis têm o intelecto e o moral totalmente aniquilados.

As idéias de Morel também estão presentes em outra tese, de Cesário Alves Corrêa, Estygmas anatômicos dos degenerados (1905), na qual encontramos ainda a influência do pensamento de Lombroso referente aos estigmas degenerativos e à hereditariedade – “todos os factores occasionando uma perturbação no organismo dos paes e exercendo influência sobre o espermatozóide, o ovulo ou o embryão, podem criar a tara original que é a degeneração e os estygmas que revelam-n’a” (p. 21).

De qualquer forma, os degenerados possuem um estigma indelével no cérebro. A predisposição hereditária é a base de suas concepções delirantes. Velho cita Legrain, que teria sintetizado seus estudos em duas proposições: “Os bebedores são degenerados, ou seja, a causa dos excessos de bebida na maioria das pessoas é a degeneração hereditária”, e “O alcoolismo é uma das causas mais potentes da degeneração, ou seja, filhos de alcoolistas são degenerados” (s/p). Por sua vez, filhos ilícitos têm duas vezes mais chances de serem degenerados, além de haver uma maior taxa de mortalidade entre eles.

A sociedade tem, pois, o direito de se proteger das ações intempestivas daqueles que visam sua destruição. O princípio da preservação social é sagrado. O perito médico que vai avaliar um crime deve analisar não somente as características de personalidade do criminoso, como também as circunstâncias que precederam ou acompanharam o delito.

Surge aqui pela primeira vez, a par da idéia de responsabilidade penal, a de periculosidade. Velho (1905) cita Magnan, que propõe a formulação de um coeficiente de nocividade em lugar do grau de responsabilidade para se avaliar o criminoso. O juiz então definiria a pena proporcionalmente ao grau de nocividade do indivíduo, princípio que, sob o nome de periculosidade, se mantém até hoje.

Como conclusão final de seu pensamento, Velho adverte que o casamento dos degenerados deve ser combatido totalmente pelas ciências médicas, pois tal fato constituirá um perigo constante para o meio social, visto que fatalmente será produzido um outro degenerado. Vemos, pois, que os princípios eugênicos encontram-se bem disseminados no pensamento médico.

As teses não discutem somente a relação entre loucura estrito senso e crime, mas se detêm também em outros casos, atentam para algumas especificidades. José Marcelino Pessoa de Vasconcellos (1889) aponta em Do estado mental dos aphasicos a necessidade do auxílio do médico legista em julgamentos de indivíduos com vocabulário muito reduzido, a fim de diferenciar casos de afasia de casos com outras perturbações mentais ou inteligência reduzida. O autor também estabelece três grupos de afásicos: 1) inteligência enfraquecida, 2) inteligência manifestamente alterada, 3) entendimento abolido, inteligência extinta e vontade aniquilada; a partir desta divisão estabelece questões sobre a capacidade civil desses indivíduos. Assim, defende a criação de estabelecimentos especiais para aqueles pertencentes ao segundo grupo, de forma que seu isolamento possa tranqüilizar a sociedade, garantir a segurança pública e a reputação das famílias. Já os indivíduos do terceiro grupo não são considerados criminosos, mas devem ser interditados e colocados sob tutela, para que esta vele sobre sua fortuna e seus atos, que deixariam de ter qualquer validade jurídica.

Ao tratar de menores de 18 anos alguns cuidados devem ser tomados. Assim, Ruy Carneiro da Cunha faz, em 1911, considerações sobre a responsabilidade dos delinqüentes nesta faixa etária, em sua tese intitulada Assistencia aos menores abandonados e delinqüentes. Segundo o autor, a criança – que de acordo com o evolucionismo tão aceito por nossos autores – só deve ser considerada responsável perante o código penal se o delito for cometido com discernimento. No entanto, este não é considerado uma variável adequada para a questão da responsabilidade, uma vez que o discernimento é mais psicológico do que jurídico. Por este motivo, para determinar a responsabilidade do jovem no delito, o autor procura estabelecer critérios mais objetivos, como os antecedentes do delinqüente.

Para Cunha, a idéia de cura significa uma questão de saúde moral; defende, no lugar da punição, a prevenção das causas que levam ao crime. Para isso, a única solução é a educação, visto que um indivíduo ilustrado e sem moral pode tornar-se muito perigoso. Nosso autor já é do começo do século XX, e para ele a educação moral ou reformatória tem como principal fim prevenir o crime, o pauperismo e a degeneração, por meio do ensinamento de hábitos físicos, morais e mentais.

Discute ainda a questão do pátrio poder, já que uma família “desorganizada, viciosa ou negligente é a causa primordial da criminalidade” (p. 29), bem como a ausência de tribunais especiais para menores no Brasil5 ou de estabelecimentos de recolhimento e educação para menores, que receberiam os criminosos e moralmente abandonados, com o fim de evitar a vagabundagem, e de modificar o caráter daqueles que fossem recolhidos.

Assim, começa a se firmar de maneira cada vez mais clara os campos de atuação médica: não só a recuperação do corpo enfermo, mas também do psiquismo, indelevelmente ligado ao corpo; a prevenção dos males individuais, pela orientação e educação sobre as formas adequadas, ao mesmo tempo morais e saudáveis, de comportamento e de vida; e com tudo isso, a consecução do objetivo principal, “sanar o país”, levá-lo a ocupar o patamar civilizado dos países europeus. Para isto é necessário, antes de mais nada, a proteção social.

Esse processo – de valoração da atividade médica no espaço antes resguardado ao Direito – será crescente e sofrerá, claro, resistência por parte do campo judiciário, como se observa na análise de Viveiros de Castro, importante professor de Direito Criminal da Faculdade Livre de Direito do Rio de Janeiro:

Antes de Lombroso a antropologia criminal tinha tido também seus esboços, seus predecessores, na Física Social de Quetelet, nos estudos antropológicos de Brocca e de Gall, nas descobertas psiquiátricas de Pinel e Esquirol, nos trabalhos médicos legais de Orfila, Casper e Tardieu. (...) Os juristas, a grande classe superficial e pedantesca, retória e frívola, dos bacharéis em Direito, receiam que a nova escola penal acabe com o direito criminal, reduzindo-o a um domínio da medicina, a um ramo das ciências naturais. É rebaixar a ciência, gritam eles, que foi a honra de Beccaria e é hoje a glória de Carrara (1913, p. 20).

Entretanto, com o apogeu da nova escola penal, o Direito Positivo, torna-se possível criar os instrumentos próprios que antes faltavam àMedicina. É nessa tradição de pensamento que se cria o Manicômio Judiciário no Rio de Janeiro. Vamos então nos deter um pouco sobre essa instituição e seu fundador e principal mentor.

 

O Manicômio Judiciário

As idéias presentes nas teses da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro são exemplos dos princípios positivistas que vão permeando a Medicina e que irão se consolidar na figura de Heitor Carrilho (1890­1954), médico psiquiatra que desempenhou um importante papel na disseminação e consolidação desses princípios no país.

Carrilho começou sua carreira no Hospital Nacional de Alienados, então sob a direção de Juliano Moreira. Era encarregado da Seção Lombroso, setor que abrigava “criminosos loucos”. Em 1921 os internos dessa Seção foram removidos para uma nova instituição, à sombra do complexo penitenciário da rua Frei Caneca, no Rio de Janeiro – o Manicômio Judiciário, que também fica sob a direção de Carrilho. Essa instituição destinava-se à internação de condenados das prisões federais que apresentassem sintomas de loucura ou que devessem ser submetidos a observação especial ou tratamento, bem como de delinqüentes isentos de responsabilidade por motivo de afecção mental.

Carrilho dirigiu esse primeiro Manicômio Judiciário até sua morte, em 1954, quando a instituição acrescentou à sua denominação o nome de seu primeiro diretor. O hóspede mais célebre do Manicômio,Febrônio Índio do Brasil, internado em 1927 com 32 anos, deve sua longa estada nesta instituição ao laudo de Carrilho, solicitado pela defesa, graças ao qual escapa de uma condenação por homicídio e é destinado ao Manicômio até o fim de sua vida6.

Missionário do Direito Positivo e oponente do Direito Clássico, ou “Direito Punitivo”, as idéias fundamentais de Carrilho foram sacramentadas no Código Penal Brasileiro de 1940. Foi um personagem fundamental na implantação de mais três manicômios judiciários no país, em São Paulo, Barbacena e Porto Alegre. Classificava os pacientes segundo dois critérios: o estado consciente no momento do crime, sendo nesse caso “temíveis”, e seu grau de “corrigibilidade”. Em outras palavras, procurava avaliar a responsabilidade legal dos criminosos e estimar sua probabilidade de cura, como aparece em sua classificação de criminosos, publicada em 1930, cujo critério foi a idéia de “defesa social” (Carrilho, 1930).

Carrilho defendia a individualização do criminoso, da pena e da terapêutica. De acordo com suas idéias, a importância fundamental do crime não é determinar a sanção, mas revelar a personalidade do delinqüente, sendo a “inconsciência” e a “temibilidade” derivadas não do crime ou da doença, mas da constituição e da personalidade do criminoso. O crime é um “sintoma” da anormalidade, e é ele o que denuncia essa anormalidade, instaurando o processo criminal e o laudo médico. No caso dos loucos morais e dos epiléticos larvados, o crime é freqüentemente o único sintoma visível.

 

A constituição do campo da Psicologia Jurídica

No processo de articulação entre Medicina e Direito vemos surgir no Rio de Janeiro, a partir dos anos de 1930, um outro membro da família do psiquiatra forense. Trata-se do psicologista, que começara a realizar “testes de identificação” no Laboratório de Biologia Infantil do Juizado de Menores e já estará, ao final dos anos 40, no Manicômio Judiciário. Parece que a psiquiatria precisa de novas formas de apoio concreto, visível, mensurável, para além da antropometria, em sua determinação da periculosidade e da inimputabilidade de réus e condenados. Os testes psicológicos, então em seu apogeu no Brasil, surgem como o dispositivo indicador de anomalias e desvios. O primeiro livro de Psicologia Jurídica que é conhecido no meio “psi” brasileiro (o Manual de Psicologia Jurídica, de Mira y López, edição argentina de 1945) só vem a confirmar ser este o caminho da psicologia em suas relações com a Justiça.

No livro citado, Mira y López fundamenta a existência da Psicologia Jurídica na necessidade de apoio ao melhor exercício do Direito, considerando que a finalidade deste é a profilaxia delitiva. Daí a importância da higiene mental como forma de evitar a delinqüência, de se compreender a motivação psicológica do delito e de se promover a reforma moral do delinqüente.

Mira refere-se ao mecanismo da prova, que apresentamos anteriormente, comparando os antigos julgamentos persas com os métodos atuais de exame por meio de diferentes testes e do “testemunho” daquele que viu. A “Psicologia do Testemunho”, historicamente a primeira grande articulação entre Psicologia e Direito, demonstra a psicologização que se encontra em curso: não só o criminoso deve ser examinado, mas também aquele que vê e relata aquilo que viu – que processos internos estarão propiciando ou dificultando a veracidade de seu relato?

Segundo o autor, a psicologia do testemunho é um dos capítulos mais brilhantes da Psicologia Jurídica. Para Mira y López, o tipo de personalidade influencia o testemunho, um dos motivos pelos quais vai defender a utilização de testes psicológicos para avaliá-la. Esses testes são importantes ferramentas de auxílio ao psicólogo jurídico, não apenas na psicologia do testemunho, mas também para caracterizar a personalidade criminosa e os motivos da delinqüência, dentro da visão cientificista e biologizante então predominante.

O autor atribui também grande importância à maneira como são realizados os interrogatórios, uma vez que os juízes e advogados não possuiriam a preparação psicológica necessária para obter cientificamente as declarações imprescindíveis ao andamento dos processos judiciais. O psicólogo iria, portanto, ser incorporado para suprir a necessidade de mais um especialista para compor a área jurídica.

Os testes psicológicos muito rapidamente vão se tornando o meio adequado para a determinação da imputabilidade e da periculosidadedo réu ou do condenado. É nessa perspectiva de exame, de descoberta da Verdade interior, íntima, de cada um, que a Psicologia se aproximará do Direito.

Esta forma de relação se manterá por muito tempo. Aos poucos, contudo, outros enfoques vão surgindo na psicologia jurídica, deixando de lado a simples questão de aperfeiçoamento das técnicas de exame e iniciando um questionamento destas e a proposição de que esse sujeito-singular, dotado de uma interioridade e uma intimidade que podem ser conhecidas pelos diferentes tipos de exames psicológicos, é também um sujeito-cidadão, cabendo muitas vezes ao psicólogo tornar-se uma voz na defesa de seus direitos normalmente escamoteados (Jacó-Vilela, 1999).

 

Conclusões

Com a consolidação das Faculdades de Medicina, o novo modelo de ciência e as idéias correlatas de evolução e progresso, centradas no materialismo e no positivismo do século XIX, tornam-se cada vez mais presentes no universo intelectual brasileiro. Assim, começam a se delinear de forma cada vez mais clara os novos campos de atuação médica: não só a recuperação do corpo enfermo mas também da alma, do espírito, indelevelmente ligado ao corpo; a prevenção dos males individuais, por meio da orientação e educação sobre as formas adequadas, ao mesmo tempo morais e saudáveis, de comportamento e de vida; e com tudo isso, a consecução do objetivo principal, “sanar o país”, levá-lo a ocupar o patamar civilizado dos países europeus. Para isso é necessária, entre outras tantas atividades públicas de que os médicos se encarregam, a proteção social.

É nesse contexto que se desenvolve a Medicina Legal, articulação dos saberes da Medicina e do Direito, de onde mais tarde se constituirá a psiquiatria brasileira, apoiando-se principalmente na categoria da degeneração. Esta, de amplo caráter explicativo, abordando desde causas determinantes até conseqüências irreversíveis, servirá não só como suporte para o estudo das moléstias mentais, como será principalmente instrumento legitimador das desigualdades raciais no país.

Será também por meio da ciência que, já no século XX, os psiquiatras irão recorrer ao campo ainda em constituição no país, a Psicologia, tendo em vista o caráter concreto e mensurável dos testes apontarem, sem sombra de dúvida, para seu suporte científico.

Assim, na constituição do que hoje denominamos como Psicologia Jurídica no Brasil, podemos observar reflexos de toda essa linha de pensamento que vinha se desenvolvendo, fortemente influenciada pelo positivismo, utilizando-se de critérios biológicos e métodos experimentais, na tentativa de determinar, de acordo com os cânones dominantes de ciência, as características de personalidade dos atores envolvidos no drama social – o réu ou o interno no Manicômio, a criança abandonada, o menor delinqüente. Recorrer às teses da Faculdade de Medicina para apontar algumas das condições que tornaram possível a constituição deste campo parece-nos justificar a pesquisa com este tema, pois nos possibilita visualizar uma das gêneses de uma forma ainda presente de inserção da psicologia nas instâncias jurídicas.

 

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Endereço para correspondência
Ana Maria Jacó-Vilela
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Recebido em 15/10/04
Versão revisada recebida em 24/05/05
Aprovado em 02/08/05

 

 

Notas

IProfessora do Programa de Pós-graduação em Psicologia Social (UERJ); Coordenadora do Programa de Estudos e Pesquisas em História da Psicologia - Clio-Psychê.
IIGraduanda em Psicologia; Bolsista de Iniciação Científica (CNPq).
IIIGraduanda em Psicologia; Bolsista de Iniciação Científica (CNPq).
1Este trabalho foi realizado com apoio do CNPq (bolsa de produtividade em pesquisa e bolsas de Iniciação Científica). As autoras agradecem à leitura atenta e aos comentários de Rogério Centofanti e de Antônio Carlos Cerezzo de Almeida.
2Nesta data elas deixam de ser obrigatórias para a conclusão do curso de graduação e obtenção do título de médico.
3Alguns autores menosprezam o papel das teses porque representariam somente “compilação das teorias européias”. Mesmo que fosse assim – do que discordamos –, sua relevância não seria menor, pois a suposta compilação partiria de uma seletividade que indicaria, por si só, o que naquele momento era considerado relevante para a realidade brasileira.
4Um dos aspectos mais interessantes da teoria da degenerescência é seu caráter circular e totalizante – causas ambientais da degenerescência são transmitidas hereditariamente, os indivíduos fora de uma “média” não claramente estabelecida são degenerados, sinais físicos têm ressonância psíquica e vice-versa.
5O primeiro Juízo de Menores será criado no Rio de Janeiro em 1923 e começará a funcionar em 1924.
6Febrônio morreu em 1984, após passar 57 anos no Manicômio Judiciário (ver, a respeito, Fry, 1982 e 1985). Representa entre nós o ponto de inflexão entre Direito e Psiquiatria, como Pierre Rivière havia sido na França. Silvio Da-Rin (1984) fez um excelente curta narrando sua trajetória.