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Interações

versión impresa ISSN 1413-2907

Interações v.10 n.19 São Paulo jun. 2005

 

ARTIGOS

 

Sobre a ternura, noção esquecida

 

On tenderness, a forgotten notion

 

Ana Lila LejarragaI

Universidade Federal do Rio de Janeiro. Instituto de Psicologia.

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A proposta deste trabalho é reformular a noção de ternura, com o intuito de refletir sobre as relações amorosas contemporâneas. Mostrando os impasses da concepção freudiana da ternura como pulsão sexual de alvo inibido, o estudo resgata a faceta mais originária da ternura, apontada por Freud em 1912. Essa outra dimensão da ternura, que remete à necessidade infantil de ser amado, cuidado e considerado, é explorada com base nas contribuições de Ferenczi, Balint e Winnicott. Levanta-se a hipótese da ternura ser uma forma de identificação, que pode ser chamada de identificação terna, em que uma parte do eu se identifica com a condição desvalida e dependente do outro. Finalmente, articula-se a necessidade infantil de ternura com o estado de desamparo, interpretando-se a necessidade do homem de ser amado, devido a sua condição desamparada, como necessidade de ternura, ou seja, de ser reconhecido e considerado por um outro.

Palavras-chave: Ternura, Pulsão, Amor, Amor romântico, Desamparo, Identificação.


ABSTRACT

The aim of this paper is to discuss the notion of tenderness in order to examine contemporary love relations. By demonstrating the impasse of the Freudian conception of tenderness as sexual drive on inhibited target, the study recovers the original facet of tenderness pointed by Freud in 1912. This other dimension of tenderness – which refers to the necessity of children to be loved, cared for and esteemed – is analyzed through the theories of Ferenczi, Balint and Winnicott. I suggest that tenderness is a way of identification, which may be called a tender identification, in which one part of the self is identified with the helpless and dependent condition of the other. Finally, this paper articulates the need for tenderness during childhood with the condition of abandonment. It interprets the human need to be loved, due to helplessness, as a need for tenderness, that is, of being recognized and esteemed by another.

Keywords: Tenderness, Drive, Love, Romantic love, Helplessness, Identification.


 

 

Introdução

Nosso objetivo neste trabalho é abordar a esquecida noção de ternura – noção imprecisa, mas fértil –, na tentativa de abrir novas perspectivas para pensar sobre o fenômeno amoroso.

Entendemos que a ternura não pode ser reduzida à noção de pulsão inibida quanto ao alvo, com seus conseqüentes efeitos de restrição da satisfação primitiva e atenuação do prazer. Propomos, assim, resgatar a outra faceta da ternura – sua dimensão mais originária –, apontada por Freud em 1912. Essa outra dimensão, que remete à necessidade infantil de ser amado, cuidado e considerado, será explorada com base nas contribuições de Ferenczi, Balint e Winnicott. Conceber a ternura positivamente, e não só como inibição de um alvo sexual, a nosso ver contribuiria para abordar outras facetas da noção do amor e para refletir sobre as relações amorosas contemporâneas.

No mundo atual, devido principalmente à difusão das tecnologias da contraconcepção, triunfa uma nova e mais livre moral erótica. Modificam-se as práticas sexuais de homens e mulheres, proliferando os discursos sobre sexualidade e os tratados de sexologia (Giddens, 1992). Assistimos nas últimas décadas ao que se descreve como uma “revolução sexual”, inseparável de transformações no campo das relações amorosas. Para poder gozar dos prazeres eróticos, nos dias de hoje não é mais necessário se apaixonar ou assumir compromissos e deveres maritais. Como diz Bauman: “o sexo está sendo completamente purificado de todas as ‘poluições’ e ‘corpos estranhos’ tais como obrigações assumidas, laços protegidos, direitos adquiridos”(1998, p. 185). A função social do sexo muda: de base da família e suporte na construção das estruturas sociais duráveis desloca-se para o universo da coleção de experiências, transformando-se o indivíduo pós-moderno em um “colecionador de sensações” (p. 184).

No ideal do amor romântico, que chegou a seu auge nos séculos XIX e nas primeiras décadas do XX, o sexo era inseparável do amor e do laço conjugal. O modelo de amor romântico, cuja paternidade indiscutível foi atribuída a Rousseau1, consistia em um projeto amoroso que era também uma proposta filosófica e política para a sociedade burguesa em ascensão. Na visão rousseauniana, o amor apaixonado devia ser a base da construção da família, pilar da sociedade.

Assim, o ideal de amor romântico integra a sexualidade natural do homem com o amor e o casamento, propondo um amor recíproco e indissolúvel, cuja finalidade última é a felicidade. O amor deve ser exclusivo e eterno para garantir a estabilidade da família e levar adiante o projeto político. O amor romântico integra a natureza humana com os objetivos da sociedade política, pondo as paixões a serviço da comunidade e da vida pública. Os literatos herdeiros de Rousseau exploraram as contradições e os impasses de seu projeto amoroso. Por exemplo Goethe, o romancista mais citado por Freud, mostra com Os sofrimentos do jovem Werthere com As afinidades eletivas os destinos trágicos do apaixonamento, quando o mesmo não se enquadra na construção da família.

No mundo contemporâneo esses ingredientes do amor romântico – apaixonamento, desejo sexual, amor e laço conjugal indissolúvel – não estão tão fusionados como outrora. O modelo amoroso romântico, que promete felicidade duradoura, tem também seu ônus de padecimentos, postergações e restrições eróticas que o indivíduo contemporâneo não estaria disposto a sofrer. Segundo Costa, o amor romântico nasce na “Era dos Sentimentos” marcado por renúncias, devaneios e projetos a longo prazo, mas hoje, na “Era das Sensações”, com o enfraquecimento da sociedade patriarcal e o culto às satisfações imediatas, esse ideal mostra sua incongruência. O ideal do amor como bem supremo perdura nos dias atuais, combinando-se antinomicamente com o culto às sensações. Assim, nas palavras de Costa: “em suma, vivemos numa moral dupla: de um lado; a sedução das sensações, e do outro, a saudade dos sentimentos. Queremos um amor imortal e com data de validade marcada: eis sua incontornável antinomia e sua moderna vicissitude!” (Costa, 1998, p. 21).

Vários pensadores abordam esse declínio do modelo de amor romântico, tecendo considerações sobre a perda do valor social do sentimento amoroso. Paz, por exemplo, refere-se ao “ocaso do amor”, postulando que a idéia do amor, que nasceu em um canto de Europa, ameaça hoje se dissipar. Na sua visão humanista, seus inimigos seriam a confiscação do erotismo e do amor pelos poderes do dinheiro e a desvalorização da noção de pessoa, indissociável da idéia de liberdade, sem a qual, para o autor, não existe amor (1994, p. 170). De outra perspectiva, Lipovetsky entende que a sensibilidade política dos anos 60 deu lugar, nos 70, a uma inflação psi,canalizando as paixões no sentido do Eu, promovido à categoria de umbigo do mundo. Dessa forma, ama-se narcisicamente o próprio eu e renuncia-se ao amor pelo outro, às paixões incontroláveis e aos laços sentimentais que ameaçam a autonomia do indivíduo (1983, p. 73).

Esses diagnósticos sobre a vida amorosa atual2, mais críticos alguns e mais nostálgicos outros, coincidem na idéia da decadência do ideal romântico e do mal-estar amoroso contemporâneo. Excederia os limites do presente estudo aprofundar essas idéias, participando dessa polêmica. Nossa proposta consiste, entretanto, em refletir sobre a necessidade de amor, de ter alguma forma de laço afetivo, que parece persistir nos indivíduos apesar do declínio do modelo romântico e das incertezas amorosas atuais.

Freud já se referia, em 1926, à “necessidade de ser amado” (p. 145) como inerente à condição humana. Interrogamo-nos em que consiste essa “necessidade de ser amado” que não poderia ser reduzida às simples aspirações eróticas nem a uma suposta necessidade de paixão romântica.

Assim, abordaremos sucintamente a metapsicologia freudiana do amor no intuito de focar a noção de ternura, que consideramos fértil para trabalhar estas questões.

 

A noção de ternura na teoria freudiana do amor

Embora a noção de amor percorra toda a obra freudiana – nos relatos das histéricas, na teoria da sexualidade, nos impasses amorosos do homem moderno, na transferência, no mal-estar de Eros na civilização –, o que se entende geralmente como metapsicologia do amor é a teoria de 1914, quando Freud introduz o conceito de narcisismo e consolida a teoria do amor apaixonado. Entendemos que a teoria narcísica do amor é uma teoria sobre o apaixonamento romântico (Lejarraga, 2002), em que o objeto é idealizado como único e insubstituível, apresentando-se como uma promessa de plenitude imaginária e felicidade, na qual convergem o amar e o desejar.

Freud recorre ao mito de Narciso – uma história de amor que culmina em morte – para falar do amor. A dinâmica amorosa se compreende em torno dos processos de idealização e das tentativas de restauração do estado narcísico. O estar apaixonado consiste em um transbordar da libido narcisista sobre o objeto, que é elevado ao nível do ideal. O apaixonamento representa uma via imediata de acesso ao ideal e à onipotência narcísica (Freud, 1914).

O investimento libidinal do objeto amado torna o eu apaixonado frágil e dependente do amado. O trabalho de idealização outorga ao objeto virtudes e perfeições imaginárias, deixando “cego” o eu apaixonado. E na medida em que o objeto é colocado no lugar do ideal, o amante torna-se um humilde servo do objeto idealizado (Freud, 1921, p. 107). Através da idealização do objeto de amor e da aspiração de união com ele, o eu pretende a fusão narcísica, a plenitude. O amor, por sua natureza narcísica, aspira a um reencontro com os primeiros objetos, perdidos para sempre. O apaixonamento tem um caráter ilusório, já que por um lado projeta no objeto os próprios ideais narcísicos, conferindo-lhe perfeições inexistentes, e por outro, acena imaginariamente com uma completude irrealizável. Desse modo, a metapsicologia do amor centrada no narcisismo enfatiza o caráter impossível e ilusório da plena realização amorosa, constituindo uma magistral metáfora da paixão romântica.

A teoria freudiana do amor inclui, em 1921, o ingrediente da ternura, responsável pela persistência do sentimento amoroso, além da simples atração sensual. Em Psicologia do grupo e análise do ego(1921), Freud considera que o estar apaixonado é resultado da confluência do amor sensual e da ternura, e que graças à contribuição da corrente terna é possível medir o grau de apaixonamento.

No Pós-escritodo mesmo texto, Freud faz uma longa análise sobre a noção de ternura como pulsão sexual inibida quanto ao alvo, contraposta à sensualidade, que corresponde às pulsões sexuais diretas ou sem inibição.

Embora em Psicologia do amor, em 1912, a ternura fosse considerada a corrente mais antiga, ligada aos cuidados parentais, Freud retoma em 1921 a noção de ternura esboçada nos Três ensaios, em que o sentimento terno era um derivado do recalque da sexualidade. Assim, na Psicologia do amor, Freud considerava que “dessas duas correntes (terna e sensual), a terna é a mais antiga. Ela procede da primeira infância; formou-se fundando-se nos interesses da pulsão de autoconservação e se dirige para as pessoas da família e aquelas que cuidam da criança” (1912, p. 174). E em 1921 afirma Freud: “a observação direta, bem como a subseqüente investigação analítica dos resíduos da infância, não deixam dúvidas quanto à confluência de sentimentos ternos e ciumentos por um lado, e propósitos sexuais pelo outro” (p. 130). A pessoa amada, conclui Freud, é objeto das aspirações sexuais, enfatizando só um dos pólos dessa confluência de afetos.

Posteriormente toda a configuração amorosa edípica sucumbe ao recalque, e as aspirações sexuais ficam recalcadas e inconscientes, só restando, em relação aos primeiros objetos de amor, laços de ternura. Assim, o sentimento de ternura proviria das aspirações sexuais incestuosas, constituindo uma pulsão inibida quanto ao alvo, produto da ação do recalque (Freud, 1921).

Entretanto, Freud reconhecia uma mistura de sentimentos ternos e desejos sexuais em um momento anterior ao drama edípico e à castração, no começo das relações do infante com as pessoas encarregadas de seu cuidado. Qual seria a origem da ternura infantil anterior à castração, se ainda não houve motivos para a inibição do alvo sexual? A noção de inibição supõe a existência de obstáculos que impedem a pulsão de atingir sua meta de forma direta, “encontrando uma satisfação atenuada em atividades ou relações que podem ser consideradas como aproximações mais ou menos longínquas do alvo primitivo” (Laplanche e Pontalis, 1979, p. 311). A inibição é considerada como um princípio de sublimação, porque em ambas a pulsão se afasta do alvo sexual direto. Mas enquanto a sublimação substitui o alvo sexual por outro socialmente valorizado, a inibição não abandona totalmente a meta originária, contentando-se com suas aproximações e satisfações atenuadas. Em função disso a pulsão inibida nunca atingiria uma cabal satisfação, já que o prazer obtido seria sempre “menor” ou “diminuído” em relação à satisfação do alvo originário.

Resumindo, vemos que Freud oscila entre uma concepção de ternura como pulsão inibida, na descrição da vida sexual adulta, e uma idéia de ternura infantil, cuja origem não poderia ser teorizada como inibição. Como explicar que a ternura seja uma pulsão de alvo inibido – o que pressupõe uma restrição do alvo direto, e portanto, alguma forma de interdição – e a existência da ternura na infância, desde as origens?

 

Outras contribuições teóricas para conceber a ternura

Frente a esse impasse, sucessores de Freud como Ferenczi, Balint e Winnicott desenvolveram uma noção de ternura mais complexa que não poderia ser reduzida à inibição do funcionamento pulsional.

Ferenczi, com sua noção de linguagem da ternura contraposta à linguagem da paixão, ajuda-nos a pensar a ternura positivamente, como uma modalidade da vida erótica infantil, de caráter lúdico, que precede à castração e ao recalque, diferente do erotismo passional adulto e sem a conotação de restrição ou inibição da concepção freudiana (Ferenczi, 1989).

Balint, discípulo de Ferenczi, desenvolve uma concepção da ternura e das relações objetais precoces irredutíveis ao pulsional. Considera que devemos distinguir o desenvolvimento pulsional, que diz respeito às pulsões parciais auto-eróticas, e o desenvolvimento relacional, que diz respeito às relações de objeto amorosas (Balint, 1972, p. 52). Para ele, os modos de amar não dependem dos objetivos e fontes das pulsões parciais, já que se trata de processos diferentes. Uma coisa seria o desenvolvimento do erotismo e outra, o desenvolvimento do amor. A criança apresenta inicialmente, na teoria balintiana, um desejo passivo de ternura, ou desejo de ser amado, cuja satisfação é uma sensação calma e tranqüila de bem-estar. Esse desejo de ternura passivo, que Balint denomina também de amor de objeto passivo ou de amor primário, consiste no desejo de ser amado e cuidado sempre, de ser atendido em todos os desejos, interesses e necessidades, de forma incondicional, sem ter que dar nada em troca. O fato de se tratar de um “desejo passivo de ternura” (p. 62) não significa que o mesmo seja expresso de forma atenuada ou passivamente. A demanda infantil de ternura tem um caráter apaixonado e a reação à ausência de gratificação suscita respostas passionais e agressivas.

Balint considera que embora Freud tenha apontado duas facetas da ternura – como a corrente mais antiga e como sexualidade inibida quanto ao alvo –, só se preocupa em teorizar a segunda faceta. Da perspectiva balintiana, temos duas formas de ternura: a ternura ativa dos adultos e a ternura passiva infantil.

A ternura ativa adulta corresponde à pulsão sexual inibida no seualvo. É sabido que o alvo sexual refere-se ao prazer de órgão das pulsões parciais ou ao prazer orgástico. Contudo, entendemos que a ternura só pode corresponder à inibição de um alvo sexual que pressuponha uma relação objetal para sua satisfação. Pensamos que a inibição de um objetivo auto-erótico, como por exemplo de uma pulsão parcial anal, não provocaria ternura. A ternura como pulsão inibida seria a contrapartida do amor sensual, e o alvo sexual inibido seria o prazer orgástico genital. E como a pulsão inibida não abandona totalmente a meta originária, contentando-se com suas aproximações, o prazer obtido na ternura será sempre menor ou diminuído que o sexual direto. A ternura adulta não existiria antes do recalque. Entretanto, a ternura passiva infantil3 existe durante toda a vida, desde a primeira infância até a velhice, e funciona como um componente imprescindível de toda relação amorosa.

O impasse freudiano da ternura como pulsão sexual de alvo inibido e como corrente mais antiga dilui-se, assim, com as contribuições de Ferenczi e Balint, já que se trataria de duas formas diferentes de ternura.

A concepção de Winnicott (1945) do desenvolvimento emocional primitivo também nos auxilia para positivar a ternura como uma modalidade de laço precoce entre o bebê e a mãe, não derivando da inibição do pulsional. Winnicott explora terrenos não desenvolvidos por Freud, valorizando o amor nas primeiras trocas entre o bebê e o meio-ambiente, tanto da perspectiva dos indispensáveis cuidados amorosos do ambiente, quanto do desenvolvimento da capacidade de amar no sujeito.

A expressão primitiva do amor inclui a agressividade, que é quase um equivalente da atividade ou da motilidade da força vital. Como nesse momento inicial ainda não existe integração nem organização egóicas, os impulsos amorosos coexistem com os impulsos ativos e impiedosos que não têm consideração com o objeto (Winnicott, 1950). Devemos diferenciar, nesse estágio inicial, o amor primitivo da criança da devoção amorosa materna, condição indispensável para a experiência dos estados de tranqüilidade, a confiança no ambiente e a própria constituição subjetiva. A ênfase de Winnicott reside nos cuidados amorosos que o ambiente pode brindar, já que o amor primitivo infantil não poderia ser definido muito além da total dependência do bebê e de seu impulso vital criativo.

No estágio inicial da dependência absoluta, o fundamental é o processo silencioso da integração, personalização e início de contato com a realidade que realiza o bebê, sustentado pela provisão do amor materno, e condição de possibilidade das conquistas posteriores. Nesse estágio convivem os estados tranqüilos e excitados do bebê, que correspondem a duas funções de mãe: a mãe-ambiente, amada pelos cuidados que propicia, e a mãe-objeto, atacada pela excitação pulsional (Winnicott, 1963). Aos poucos o bebê vai reconhecendo que a mãe dos estados calmos; a mãe do amor calmo ou da ternura, e a mãe dos estados excitados; a mãe do amor excitado ou da paixão são uma mesma pessoa (O’Dwyer de Macedo, 1999, p. 56). Assim, o bebê percebe que o objeto atacado é o mesmo que o amado, desenvolvendo a capacidade de concernimento pelos possíveis danos feitos à pessoa amada (Winnicott, 1963). Se a mãe for suficientemente boa e sobreviver aos impulsos eróticos e impiedosos do bebê, aceitando seu concernimento e reparação, ele aprende a dar e reparar, estabelecendo-se um ciclo benigno de destruir e reparar, machucar e curar etc. A criança aprende a ter confiança no ambiente, que propicia e reafirma seu impulso espontâneo. A criança torna-se responsável e preocupada com o objeto amado, integrando a frustração e a raiva no sentimento amoroso. A criança passa a reconhecer o outro como uma pessoa total e aprende a cuidar dele, o que constitui a base das relações amorosas. O amor, nesta perspectiva, pode ser concebido como a capacidade de reconhecer o outro, de cuidar do outro e permanecer, ao mesmo tempo, espontâneo e criativo. O amor ou a capacidade amorosa surge de um longo processo de trocas entre o indivíduo e seu ambiente, como uma afirmação do gesto criativo conjuntamente com a descoberta do outro.

É importante salientar, no intuito de definir melhor a noção de ternura, a distinção winnicottiana entre a dependência do lactente e a condição psicológica da mãe. No final da gravidez e até as primeiras semanas ou meses após o nascimento, a mãe comumente desenvolve um estado de sensibilidade aumentada para atender incondicionalmente às necessidades e desejos do bebê: estado de “preocupação materna primária”, ou “devoção materna” (Winnicott, 1956). As necessidades do bebê, que são inicialmente corporais e aos poucos transformam-se em necessidades do ego, não podem, segundo Winnicott, ser reduzidas a tensões instintivas; trata-se de necessidades do ego ou de necessidades psíquicas primárias, como aconchego, calor, colo, contato corporal etc.

A sensibilidade exacerbada da mãe devotada, que a nosso ver seria um sentimento de ternura intensificado, corresponde à capacidade da mãe de se identificar com o que o bebê sente (Winnicott, 1956). Entendemos que o eu materno identifica-se com a condição dependente e frágil do recém-nascido, como se a mãe projetasse no bebê seu próprio desamparo infantil. Nesse sentido, nossa hipótese é considerar que a ternura pressupõe uma forma de identificação que pode ser chamada de identificação terna, em que uma parte do eu identifica-se com um aspecto desvalido do objeto, o que remete à própria dependência infantil.

Recapitulando, vimos que autores como Ferenczi, Balint e Winnicott desenvolvem uma concepção da ternura que não deriva da inibição do pulsional nem pressupõe a interdição do sexual. Ferenczi criou a noção de linguagem da ternura ou estádio da ternura, considerando que crianças nesse estádio não poderiam se abster da ternura, sobretudo materna. Balint desenvolve a idéia de um desejo passivo de ternura irredutível ao pulsional, cuja satisfação gera uma sensação de calmo e tranqüilo bem-estar. E Winnicott aborda a construção da capacidade amorosa em um longo processo de trocas entre o indivíduo e o ambiente, teorizando sobre os cuidados amorosos maternos, que permitem a satisfação das necessidades psíquicas primárias, propiciando os estados calmos do bebê.

 

Uma hipótese para reformular a noção de ternura

Para efeitos deste trabalho, e sem desconhecer as diferenças teóricas entre os autores, aproximamos as noções de “necessidades psíquicas primárias” e “desejo passivo de ternura”. Essas necessidades psíquicas, que quando satisfeitas produzem estados calmos e experiências de bem-estar, poderiam ser ressignificadas como “necessidade infantil de ternura”, pois embora o bebê nada saiba sobre a necessidade que o aflige, quando não recebe uma adequada provisão de ternura materna, sofre danos na constituição de seu self em sua integração egóica4.

A nosso ver, essa “necessidade infantil de ternura” deriva da dependência do bebê dos cuidados do adulto para sua sobrevivência e sua organização psíquica. Assim, se temos que supor alguma base para a “necessidade infantil de ternura”, esta não seria a satisfação das pulsões de auto-conservação nem a inibição das pulsões sexuais, mas o estado de desamparo5. Como diz Freud, o “estado de desamparo produz as primeiras situações de perigo e cria a necessidade de ser amado, de que o homem não se livrará mais” (1926, p. 145).

Entendemos que essa necessidade de “ser amado”, que acompanhará o homem durante toda sua vida, porque sua condição não deixará nunca de ser desamparada, não se refere à necessidade do amor romântico nem da idealização passional que Freud teorizava na metapsicologia do amor, mas à necessidade de ternura; de ser reconhecido, cuidado e amado por um outro.

Por outro lado, o que se entende geralmente como “capacidade de amar” não seria a capacidade orgástica nem de idealizar o objeto, mas a capacidade de reconhecer o outro; de considerar e se preocupar com ele; de se identificar ternamente com sua condição desvalida, ou seja, a capacidade de sentir ternura.

Quando Freud, em 1921, acrescentava o ingrediente da ternura, ampliava sua concepção do amor, indissociável até esse momento da imagem da paixão romântica, impossível e absoluta. A inclusão da ternura pode ser pensada como um tributo freudiano à visão romântica do amor e do casamento, que conjugaria em uma relação única desejo sexual, paixão, ternura, amizade e duração. Desse modo, a ternura permitiria ultrapassar a fugacidade e precariedade da idealização passional, garantindo a permanência do laço.

O sentimento de ternura não seria só condição para medir o grau de apaixonamento, como afirmava Freud, mas condição dos laços afetivos em geral. A marca distintiva do apaixonamento, em nosso entender, que o diferencia do simples desejo erótico, é a idealização narcísica do objeto, que pode levar ao total domínio do ego por parte do objeto idealizado e à humilhação egóica, como também às sensações de fusão e completude e aos estados de êxtase amoroso.

Com esta nova leitura da noção de ternura, o componente de ternura deixaria de ser imprescindível no apaixonamento, para se tornar condição do amor em um sentido amplo. Assim, teríamos apaixonamentos em que não se desenvolve o sentimento de ternura, como acontece em certas paixões com evoluções perversas ou que simplesmente se dissipam sem criar um laço amoroso, como também teríamos relações ternas em que não existe a idealização passional. A ternura não se associa a mecanismos de idealização. Remete, a nosso ver, a processos de identificação.

A hipótese de que a ternura não seria uma pulsão sexual de alvo inibido, mas uma forma de identificação, levaria a incluir o componente da identificação na teoria do amor. Nesse sentido, a capacidade de amar seria essencialmente a capacidade de se identificar ternamente com o outro, o que se combina em diferentes graus com o desejo sensual.

 

Considerações finais

O modelo de amor romântico, como afirmam vários autores da contemporaneidade, entrou em declínio com as transformações sociais das últimas décadas. A alternativa amorosa nos dias atuais pareceria se reduzir à polaridade entre o refúgio no amor romântico, com as conseqüentes restrições sexuais e exclusões, ou a insatisfação sentimental com o livre gozo das sensações (Costa, 1998).

Supomos, contudo, que o indivíduo não anseia hoje retornar ao romantismo de outrora, com suas renúncias e padecimentos. O que o indivíduo contemporâneo não pode, apesar do livre acesso aos prazeres eróticos e da decadência do ideal romântico, é abster-se dos laços afetivos, da necessidade de amar e de ser amado de alguma forma. Cremos que o sujeito contemporâneo, o “colecionador de sensações”, é um ser agônico de ternura, que não consegue abrir mão da necessidade de ternura, de ser considerado e reconhecido pelo semelhante.

Entendemos que assim como o amor romântico deixou de ser a única alternativa possível para a vida sexual, também pode deixar de ser o reduto nobre da ternura. Da mesma forma que o sexo pôde se libertar do modelo romântico, que só o legitimava quando fusionado ao amor apaixonado e à construção de um laço conjugal, talvez a ternura possa também ser desatrelada desse modelo, buscando novas formas de expressão fora dos imperativos românticos. Talvez o declínio do ideal romântico, embora tenha produzido desconcerto e incerteza, possa trazer a vantagem de ter que reinventar novas modalidades amorosas, mais ternas e possíveis, criando novas combinações de erotismo e ternura.

 

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Endereço para correspondência
Ana Lila Lejarraga
Rua Gal. Góes Monteiro, 8 / Bl. A / 1002 – 22290-080 – Rio de Janeiro/RJ
tel: (21) 2275-5962
e-mail: analila@ms.microlink.com.br

Recebido em 10/06/04
Versão revisada recebida em 17/12/04
Aprovado em 17/05/05

 

 

Notas

IPsicanalista; Professora Adjunta do Instituto de Psicologia (UFRJ); Mestre em Teoria Psicanalítica (UFRJ); Doutora em Saúde Coletiva (IMS/UERJ).
1Sobre isto, consultar Bloom, cap. “Rousseau e o projeto romântico” (1993), e Soares, Refúgio num mundo sem coração: um estudo sobre o amor na obra de Rousseau (1997).
2Vários pensadores discorrem sobre as transformações das relações amorosas na contemporaneidade. Foram consultados para este estudo: Bauman (1998), Bloom (1993), Costa (1998), Giddens (1992), Lipovetsky (1983) e Paz (1994).
3Cabe destacar que a noção de ternura passiva alude ao desejo de ser amado ternamente, correspondendo àquilo que a criança deseja receber do objeto, e não ao que ela sente pelo objeto. A ternura é passiva não porque a criança tenha um comportamento passivo, mas porque é objeto da ternura do outro.
4Winnicott considera, em referência às necessidades egóicas, que se trata de necessidades e não de desejos, porque sua não satisfação provocaria graves danos na formação egóica e na constituição do self.
5Fazemos menção ao “estado de desamparo” no sentido dado por Freud no Projetode 1895, como um estado de dependência física e psíquica do infante, que precisa da ação de outrem para sua sobrevivência, o que não deve ser confundido com o penoso sentimento de desamparo nem com a ausência de amparo.