SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.10 número19Sobre a ternura, noção esquecidaUma clínica do sensível: a respeito da relação entre destituição subjetiva e primado do objeto índice de autoresíndice de materiabúsqueda de artículos
Home Pagelista alfabética de revistas  

Interações

versión impresa ISSN 1413-2907

Interações v.10 n.19 São Paulo jun. 2005

 

ARTIGOS

 

Notas sobre a dicotomia corpo–psique

 

Notes on the dichotomy between body–psyche

 

José Leon CrochíkI

Universidade de São Paulo. Instituto de Psicologia.

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este ensaio teve como objetivo refletir sobre a dicotomia estabelecida pela nossa cultura entre corpo e psique, tomando como base alguns textos de S. Freud e outros de T.W. Adorno.

Palavras-chave: Corpo, Psique, Teoria crítica da sociedade, Psicanálise, Dominação social.


ABSTRACT

The aim of this paper is to examine the dichotomy established in our culture between body and psyche in reference to the work of Adorno and Freud.

Keywords: Body, Psyche, Critical social theory, Psychoanalysis, Social domination.


 

 

A relação entre natureza e cultura percorre o texto Dialética do esclarecimento, de Horkheimer e Adorno (1985), de forma que o materialismo de Marx é ampliado pelo conceito de dominação sobre a natureza para dar conta dessa relação. A luta de classes é uma das formas de expressão da vingança da natureza ao domínio provocado sobre ela na luta pela autoconservação, uma vez que, segundo esses autores, mesmo antes da propriedade privada a violência é suposta na mais simples divisão de trabalho: a dos gêneros. E com o fim do nomadismo, argumentam: “a ordem social foi instaurada sobre a base da propriedade fixa. Dominação e trabalho separam-se” (p. 28). Assim, antes da propriedade, o trabalho já se apresentava como uma forma de dominação da natureza1. A dominação da natureza, que se tornou intrínseca à nossa civilização, deve ser combatida, tendo em vista a libertação da humanidade. Dominação que se apresenta também nas relações entre os homens, e como autodominação. A dominação em nossa história, até o momento, aparece como a base da mediação da relação dos homens entre si, e como representante da natureza ainda não inteiramente dominada. Conforme Horkheimer e Adorno:

Hoje, quando a utopia baconiana de “imperar na prática sobre a natureza” se realizou numa escala telúrica, tornou-se manifesta a essência da coação que ele atribuía à natureza não dominada. Era a própria dominação.É à sua dissolução que pode proceder o saber em que Bacon vê a “superioridade dos homens” (1985, p. 52).

Essa concepção está também presente em Freud (1986), no texto Mal-estar na civilização2, que ao se contrapor à explicação de que a propriedade é a fonte original da violência, argumenta que o desejo da posse é anterior à propriedade; essa é uma forma poderosa de agressão, mas não é a única, e tampouco a primeira. Poderíamos supor, então, que os frankfurtianos estivessem influenciados pelo pensamento freudiano, mas de forma distinta desse, Horkheimer e Adorno (1985) não supõem que a violência seja inerente ao homem como forma de expressão de um princípio universal, representado pelas pulsões de morte. A dominação é natureza não dominada; a liberdade depende de sua superação3.

A dominação que recai sobre a natureza expressa-se na sociedade que medeia todas as relações. A sociedade refere-se às relações objetivas que os homens criaram coletivamente para dar conta de suas necessidades. Mediada pela dominação, tem se configurado historicamente pela violência entre suas partes. A cultura, por sua vez, é conceituada como a produção de rituais, costumes, regras e pensamentos, que dependem das relações objetivas. Se a formação do indivíduo refere-se à incorporação da cultura, a sociedade apresenta-se por meio dessa. A história deve ser a da relação entre natureza e cultura, mediada pela sociedade. A natureza não pode ser pensada unicamente como o para si humano, mas também como em si. Aliás, como argumenta Adorno em Idéia da história natural (1991a), natureza e história estão entrelaçadas: a história é natureza humana.

O corpo humano, como corpo sublimado, remete também à história e à natureza. O beijo e a carícia lembram a mordida e o tapa que os nossos antepassados utilizavam em suas relações sexuais. Segundo Horkheimer e Adorno:

A beleza do colo e o torneado dos quadris agem sobre a sexualidade não como fatos a-históricos, puramente naturais, mas como imagens que encerram toda a experiência social. Nesta experiência está viva a intenção de algo diverso da natureza, o amor não limitado ao sexo. Mas a ternura, até mesmo a mais incorpórea, é a sexualidade metamorfoseada. A mão acariciando os cabelos e o beijo na fronte, que exprimem o desvario do amor espiritual, são formas apaziguadas de golpes e mordidas que acompanham, por exemplo, o ato sexual dos selvagens australianos. A separação é abstrata (1985, p. 103).

A idéia de corpo sublimado remete ao corpo histórico, que reúne natureza e cultura, e implica também o corpo transformado segundo as técnicas e as necessidades sociais. Descartes tenta separá-los, mas a noção de natureza já é cultural, ou seja, para a sociedade da época, o corpo deveria ser metrificado, dado que poderia ser pensado como uma máquina, e a noção de máquina não pertence à natureza. Mas a medida, assim como a matemática da qual provém, é segundo Horkheimer e Adorno (1985), a mais elevada sublimação do que está morto. O corpo-máquina, representado como tal pelo espírito, distingue-se desse por necessidades sociais. O que leva a pensar que a distinção corpo-mente é, como Adorno costuma se referir a outras dicotomias, falsa e verdadeira4. A constatação de ser falsa ocorre quando se considera que o pensamento emana do corpo. Em outras palavras, as pulsões como representantes psíquicas de necessidades somáticas são corpo e psique, e se atualmente são considerados separadamente é porque os desejos que essas pulsões visam satisfazer são negados; não só os produtos para satisfazer os desejos são simulacros, mas os próprios desejos quase não podem ser elaborados5. Em Tabus sexuais e direitos hoje, Adorno (1969) descreve a “sexualidade dessexuada”, afirmando que a manifestação sexual na sociedade industrial tem sido liberada, mas não a própria pulsão. Se o desejo é o pai do pensamento, na sociedade administrada este último tende a se tornar órfão.

Mas a separação entre corpo e psique é verdadeira, na acepção que considera o corpo como máquina, na humilhação a que ele deve ser submetido, como o ódio da civilização à natureza dominada. O corpo como sede de realização dos desejos, mediado pela psique, lembra a submissão à natureza que o homem deve negar. Negando a natureza, nega-se o desejo. Deve-se lembrar, contudo, que a negação do desejo não significa sua eliminação.

O espírito cultuado mas desprezado por aqueles que não puderam desenvolvê-lo representa também a cultura desnaturada. O corpo forte, no entanto, contrapõe-se à fragilidade que é atribuída ao pensamento, e o corpo frágil, assim como a fragilidade em geral, é desprezada pela natureza fortalecida como culto ao corpo. A separação corpo-espírito representa a ruptura entre natureza e cultura. De um lado, os deserdados da cultura, mas mediados por ela, promovem o culto ao corpo forte e saudável; de outro, os herdeiros da cultura, do esclarecimento, dificultam sua democratização e desprezam o corpo, pois consideram-no como natureza superada. A dominação apresenta-se em ambos os pólos. Contudo, o esclarecimento, segundo os frankfurtianos, é natureza e mais do que natureza. Abandonar a natureza é perder o telos da vida. Abandonar a cultura é encaminhar-se rapidamente para a destruição. Mas o ideal hoje fortalecido de corpo e mente saudáveis, pelo endurecimento de ambos, torna-os insensíveis à experiência.

A mesma racionalidade está presente na percepção do corpo e do espírito. Um corpo forte é um corpo treinado, disciplinado, capaz de destruição do outro com o menor dispêndio e na mais pura assepsia; o espírito forte deve presidir o homem prático, de ação, capaz de modificar a realidade em função do que quer. Se a união da força física domesticada com a força espiritual é o modelo do indivíduo burguês, a dupla hierarquia que Adorno percebe na escola – a hierarquia daqueles que se saem melhor nas disciplinas dentro da sala de aula e a hierarquia dos que vão melhor nos esportes e nas atividades corporais – seguem uma mesma lógica. Caberia verificar empiricamente o quanto essas duas hierarquias estão cada vez mais entrelaçadas. Mesmo que isso não se realize na escola, a pressão para que todos desenvolvam ao máximo suas potencialidades, não para a liberdade, mas para o desempenho, deve encaminhar todos para o corpo e a mente treinados para enfrentar as adversidades da vida. Certamente não há problema em se valorizar, na formação do indivíduo, o desenvolvimento do corpo e do espírito para a adaptação, pois essa é necessária; a crítica é necessária quando esse desenvolvimento é considerado como ideal, elidindo a formação para a sensibilidade que vai além da adaptação, e representa a própria possibilidade da experiência.

A cisão natureza-cultura foi necessária dentro da lógica da civilização ocidental para que a base material de uma cultura verdadeiramente humana pudesse se realizar, mas isso não deveria implicar a superioridade da segunda sobre a primeira, e sim a possibilidade da convivência com o que é outro: a natureza como recordação do que teve de ser abandonado e na cultura pode se expressar e realizar de forma não destrutiva e diferenciadora. Nas palavras de Adorno:

Se fosse permitido especular sobre o estado de reconciliação, não caberia imaginá-lo nem sob a forma de indiferenciada unidade de sujeito e objeto nem sob a de sua hostil antítese: antes, a comunicação do diferenciado. Somente então o conceito de comunicação encontraria seu lugar de direito como algo objetivo. O atual é tão vergonhoso porque trai o melhor, o potencial de um entendimento entre homens e coisas, para entregá-lo à comunicação entre sujeitos, conforme os requerimentos da razão subjetiva. Em seu lugar de direito estaria, também do ponto de vista da teoria de conhecimento, a relação entre sujeito e objeto na paz realizada, tanto entre os homens como entre eles, e o outro que não eles. Paz é um estado de diferenciação sem dominação, no qual o diferente é compartido (1995, p. 184).

No fascismo o corpo foi lançado sobre o espírito e o ressentimento dos que nada possuíam se associou com a crueldade, que teve vazão por meio da tecnologia mais avançada. A crueldade, conforme se pode depreender de Horkheimer e Adorno (1985), é formação reativa do desejo da proximidade dos corpos. A alienação espacial necessária para a constituição de um eu corporal traz consigo a lembrança do que foi perdido: o aconchego dos corpos. A ambivalência em relação ao corpo, o amor e o ódio pela mulher, remetem à separação burguesa entre a felicidade e a autoconservação. A máxima de Schoppenhaeur (citada por Freud, 1976) sobre porcos espinhos em uma noite de frio ilustra bem essa ambivalência: ao se aproximarem em demasia, seus espinhos ferem o outro, ao se afastarem, sentem frio.

A civilização, o esclarecimento, ao perderem a origem retornam à morte em vida. Se o homem troca parcela de seu prazer por uma vida em segurança, a civilização não tem compensado mais tarde a realização adiada do desejo. Se o fascista é, segundo Horkheimer e Adorno (1985), aquele que nunca se sente satisfeito, a civilização ocidental dá as bases para seu surgimento. A hostilidade dos homens em relação à cultura foi examinada por Freud (1986) e circunscrita por Adorno (1991b): os indivíduos não se reconhecem na cultura, que lhes impõe constantemente sacrifícios que quase não são recompensados no futuro; para a cultura, a felicidade dos indivíduos não está em primeiro plano.

A crítica à civilização técnica não levou os frankfurtianos a defenderem uma utopia da vida natural; o esclarecimento é dialético, deve desencantar até o fim, mas sem perder o encanto da vida; calcado nos desejos, estes não devem ser abandonados, mas compreendidos em sua elaboração, que os permite se tornarem mais do que natureza. Assim, não é o desejo da dominação que deve ser primordialmente combatido, mas a própria dominação social que o suscita e permite seu desenvolvimento e manutenção. Compreendendo ao que se dirige esse desejo de dominação, de posse, a própria dominação social pode ser combatida. Para isso, a ideologia que a justifica também deve ser criticada. Mas a razão humana que serve à dominação e também à liberdade não deve ser destruída, e sim superada nessa contradição, o que só é possível em uma sociedade livre.

Se o esclarecimento regride ao mito é porque se tornou fim em si mesmo, e não mais meio para constituir uma sociedade racional. O ódio à técnica não é menos pernicioso do que o fetiche associado a ela. E assim a disciplina do corpo não é só irracional, pois pode permitir, pela repetição, a liberdade dessa repetição. Quando o corpo pode ser disciplinado para a mimesis original – o impulso em direção ao outro –, para permitir o conhecimento, para o prazer, a disciplina é dominação que se reconcilia com a natureza e pode ser liberdade: “Os instrumentos da dominação destinados a alcançar a todos, – a linguagem, as armas epor fim as máquinas – devem se deixar alcançar por todos. É assim que o aspecto da racionalidade se impõe na dominação como um aspecto que é também distinto dela” (Horkheimer e Adorno, 1985, p. 48).

Os sacrifícios exigidos e a conseqüente disciplina são racionais, e por isso não são sacrifícios quando associados a necessidades objetivas; quando não o são, ressaltam basicamente a manutenção de uma sociedade que deveria ser transformada. A disciplina para o trabalho foi necessária, agora é anacrônica6; já a disciplina do espírito é necessária para o convívio civilizado. O sacrifício que não opõe o indivíduo e a coletividade não é irracional. Segundo Horkheimer e Adorno:

Enquanto os indivíduos forem sacrificados, enquanto o sacrifício implicar a oposição entre a coletividade e o indivíduo, a impostura será uma componente objetiva do sacrifício. Se a fé na substituição pela vítima sacrificada significa a reminiscência de algo que não é um aspecto originário do eu, mas proveniente da história da dominação, ele se converte para o eu plenamente desenvolvido numa inverdade: o eu é exatamente o indivíduo humano ao qual não se credita mais a força mágica da substituição (1985, p. 58).

A disciplina para a sustentação da dominação deve ser criticada; a disciplina que permite a liberdade não. Em Kant, em Freud, em Adorno, ainda que por argumentações diversas, ela é necessária. Para Kant, a disciplina da vontade é necessária para se seguir o imperativo categórico; para Freud, sem repressão das pulsões, não há civilização; para Adorno, sem a auto-reflexão, sem o esclarecimento, que implicam consciência do que deve ser evitado, não há conciliação. A crítica da dominação envolve a dominação do pensamento subserviente. Criticar a disciplina exige disciplina, se não se quer recair na negação indeterminada. Os sacrifícios de Ulisses, personagem da Odisséia, realizados no regresso a Itaca, poderiam ter tido fim quando retornou à sua pátria; sua introversão nega que a viagem tenha chegado ao fim, tornando o homem um eterno errante. Segundo Horkheimer e Adorno:

Todos esses sacrifícios supérfluos são necessários: contra o sacrifício. Uma vítima de um desses sacrifícios é o próprio Ulisses, o eu que está sempre a se refrear e assim deixa escapar a vida que salvou e que só recorda como uma viagem de erros. No entanto, ele é ao mesmo tempo uma vítima que se sacrifica pela abolição do sacrifício. Sua renúncia senhoril é, enquanto luta com o mito, representativa de uma sociedade que não precisa mais da renúncia e da dominação: que se tornou senhora de si, não para fazer violência a si mesma e aos outros, mas para a reconciliação (1985, p. 61).

Não há problemas em errar, em navegar, mas em não se reconhecerem nenhum lugar. É verdade que, segundo a psicanálise, o objeto primordial do desejo, por seu caráter fantasmagórico, perdeu-se para sempre, o que não o impede de ser perseguido nas diversas experiências ao longo da vida, e dessa forma, a relação desconhecimento­reconhecimento apresenta-se o tempo todo. O novo objeto é conhecido, intermediado por algo que foi perdido no passado, mas ao mesmo tempo como sendo distinto desse. Na análise que Adorno e Simpson (1986) fazem sobre a música séria, o já conhecido é meio para se chegar ao novo, que a música popular estandardizada impede. Quando só o conhecido é percebido, quando o objeto é feito um para-si, o homem se reproduz; quando o passado é negado, não há identificação, ou melhor, há, mas ao nível inconsciente, o que preside o preconceito, como uma identificação negada. Enfim, a lembrança dos sacrifícios, dos sofrimentos, dos antepassados, é importante; a sua perpetuação gera o cativeiro.

O corpo é, segundo Freud (1986) e Adorno (1991b), a base das ameaças. A principal delas é a mutilação, a castração. Sob essa ameaça ocorre a formação burguesa. O que implica que sua base é o medo. Esse medo deveria ser mitigado pela civilização e por seu representante – o esclarecimento –, mas é perpetuado. Quando o medo pode ser expresso, pode encontrar outros caminhos, que não a sua transformação em violência ou em submissão, que é autoviolência. Quando não é conhecido, pode se converter em astúcia e dominação. O horror mítico, que sobreviveu no esclarecimento em suas diversas figuras, impele à negação da separação entre natureza e cultura. A ideologia como justificativa da dominação tenta negá-la sempre exigindo o sacrifício, para que o sacrifício maior seja evitado. Assim, sucumbe-se para não sucumbir. A ideologia põe a ameaça à distância, o medo quase não é reconhecido, e menos ainda a objetividade que o suscita. O medo real é substituído pelo medo social de ser expulso da coletividade (Adorno, 1991b), e a indústria cultural suscita continuamente a mania para que o indivíduo suporte a sua impotência frente à sociedade, cuja consciência deve ser sempre negada, mesmo quando se apresenta como reconhecimento da impotência e da falha individuais, que dificultam a adaptação bem-sucedida, que suscitam a subserviência.

Em uma sociedade complexa, como a do século XIX, a ideologia mantinha alguma racionalidade (Horkheimer e Adorno, 1978). Os ideais defendidos poderiam ser universalizados. Sua falsidade residia em não poderem ser realizados por uma sociedade antagônica. Em uma sociedade menos complexa como a atual, devido aos mecanismos de produção e controle sociais, a ideologia é menos sofisticada, o que torna a ameaça mais visível. Se o espírito é fortalecido em uma sociedade mais complexa, que exige, por necessidades materiais, alguns homens produtivos, na sociedade de abundância real ou potencial, mas que administra por meio da carência, o espírito regride.

A libertação da fome, da miséria, da dor, associava-se com a formação da humanidade, e assim as conquistas materiais eram também conquistas políticas; por isso também a ideologia liberal era verdadeira. Na sociedade atual, quando as condições objetivas para a liberdade do sofrimento, oriundo da escassez da produção material, já estão estabelecidas, a luta por uma humanidade liberada é negada. O progresso foi sustado ao ter de se desenvolver unicamente dentro da ordem. A administração em que se tornou a política é a expressão mais direta dessa ordem. Por ter sido suspenso o movimento de transformação social, o espírito, a cultura, diminuem sua distância da sociedade, passando basicamente a reproduzi-la. Os homens sucumbem à materialidade. Assim, a ameaça torna-se mais visível, sobretudo a da destruição, e a própria ideologia é empobrecida. Nas palavras de Horkheimer e Adorno:

Se a crítica materialista da sociedade objetou outrora ao idealismo que não é a consciência que determina o ser, mas é o ser que determina a consciência, que a verdade sobre a sociedade não será encontrada nas concepções idealistas que ela elaborou sobre si mesma, mas em sua economia, a autoconsciência dos contemporâneos acabou por rejeitar semelhante idealismo. Eles julgam seu próprio eu segundo o valor de mercado e aprendem o que são a partir do que se passa com eles na economia capitalista (1985, p. 197).

Assim como o enriquecimento, tal como impulsionado pelo calvinismo, poderia trazer o reino dos céus, evitar a perdição, o fortalecimento do corpo tenta imaginariamente responder à ameaça. Se o corpo do guerreiro significava poder, e na Grécia antiga era restrito a poucos, sua universalização significa a possibilidade de se defender cotidianamente de um inimigo quase visível. A idéia da saúde parece preceder a da estética que se pretende do corpo forte. O corpo belo é o corpo saudável. O excesso deve ser evitado. Mas é o excesso que é suscitado como resposta ao controle contínuo; excesso esse que se torna compulsão para a repetição; assim, se o progresso deve se restringir à ordem, o excesso restringe-se ao controle; ambos – excesso e controle – são possíveis, mas como repetição do existente, posto que não são mais vinculados a fins humanos.

O excesso, que outrora poderia significar uma tentativa de libertação e pôde ser pensado na figura do especialista ou do neurótico que exageravam algumas tendências de suas ações, hoje perde a especificidade; ainda deve significar uma tentativa de libertação, mas sob a forma da compulsão não tem mais nenhuma especialização. Adorno (1991b), ao citar a frase de Mandeville – “Vícios privados, virtudes públicas” –, mostra que o considerado patológico da perspectiva do indivíduo, de sua vida privada, é importante para as necessidades sociais. Assim, o fetiche pela técnica pode ser problemático para a vida do indivíduo, mas sem a técnica, e os homens que se identificam com ela, não haveria progresso; a neurose obsessiva pode dificultar a vida dos indivíduos que a desenvolvem, mas sem as manias de limpeza, de organização, de perfeição, várias atividades sociais importantes não seriam possíveis. Segundo Adorno (1991b), a sociedade a cada momento leva os homens às regressões psíquicas que necessita.

Voltando à questão da compulsão à repetição, nesta o sentido é expropriado e a própria repetição o retém. Tentativa desesperada de se libertar não se sabe bem do quê. O excesso, o exagero, o que vai além do necessário – no trabalho, no sexo, no cultivo do corpo, nos cuidados com a saúde – fortalecem a percepção da dialética do esclarecimento explícita em Freud (1986): os homens conseguiram avanços que permitiram uma vida mais longa, porém sem prazer. Do que se pode depreender a pergunta: saúde para o quê? Para a morte, responde Adorno (1975).

O desempenho sexual tornou-se também uma questão de saúde; não traz mais, segundo Marcuse (1981), o ímpeto de liberdade e de felicidade que antes a sexualidade podia conter. Ao mesmo tempo expressa saúde e faz bem para essa e para a realização da idéia da felicidade natural. Os desejos sexuais, associados aos fetiches fornecidos pela indústria cultural não trazem mais a promessa de prazer que se contrapõe à disciplina social, é mais um de seus elementos. Os modelos sexuais ofertados por essa indústria têm sua base nos que podem se beneficiar do consumo de uma dieta alimentar, de exercícios físicos prescritos, de uma vida na qual a ameaça da miséria esteja aparentemente mais distante. Por serem postos como modelos, e voltados sobretudo para o corpo duro, preparado, isto é, controlado pelas medidas estabelecidas, são corpos que todos podem ou poderiam ter. Por serem basicamente corpos padronizados, não retêm o que os particulariza e permite sua beleza como vida. O movimento do andar, dos gestos, que podem expressar a sensibilidade e a sensualidade, tornam-se artificiais como os apresentados pelos modelos em desfiles. Os corpos assim tornam-se intercambiáveis. Mas o amor, segundo Freud (1976), remete à fusão entre as pulsões propriamente sexuais e as pulsões inibidas em sua finalidade sexual; dessas últimas provêm o carinho, o afeto, a ternura; elas particularizam o objeto de amor, tornando-o insubstituível. Ou seja, para o amor existir, para ser pleno, a pulsão deve ser um tanto refreada pelo objeto, e não atravessá-lo. Esse refreamento da pulsão, que permite a particularização do objeto, é o que lhe dá um sentido e a distingue da compulsão. Esta não se relaciona com objetos particulares, e assim impede a própria individuação. A sexualidade converteu-se em rituais sexuais, e por isso tornou-se coletiva, ainda que exercida isoladamente ou em pares. Segundo Marcuse (1999), esse ritual fez parte da psicologia das massas do fascismo alemão: a liberdade sexual como um dos preceitos para manter uma sociedade opressiva.

À exibição dos corpos belos e saudáveis deve corresponder a contenção dos desejos suscitados nos outros. Ainda que em todos os lugares homens e mulheres desfilem, querendo ser desejados, os desejos sexuais que suscitam só podem ser realizados, como não poderia deixar de ser, com a anuência do proprietário do corpo desejado. Mas o querer ser desejado parece ter se colocado no lugar do próprio desejo. Assim como Adorno (1995) relatou que algumas mulheres sentiam mais prazer em se preparar para a festa do que com a própria festa (hoje isso também pode ser dito em relação aos homens), e em conjunto com Horkheimer (1985) assinalou que a indústria cultural tende a substituir o prazer pelo pré-prazer, o querer ser apreciado se põe no lugar da própria relação. Isso nos remete à histeria descrita por Freud ao final do século XIX: mulheres que seduziam os homens, mas se negavam a eles, e à análise sobre a indústria cultural que apresenta promessas de felicidade que não devem ser cumpridas. Na indústria cultural, o voyeurismo e o exibicionismo são complementares. Eles deveriam compor o ato sexual e não substituí-lo; quando isso ocorre, o verdadeiro prazer que vai além do corpo, mas tem sua base nele, é negado. Ele se restringe ao corpo e assim reafirma a presença da natureza dominada na sociedade.

Freud (1976) não concedeu ao romantismo burguês. O amor espiritual tem sua base no desejo do corpo do outro; mas o desejo não é somente expressado pelos instrumentos fornecidos pela cultura, é configurado por ela. O desespero do desejo da completude que é buscado no outro remete ao conhecimento da incompletude individual. Ao mesmo tempo, de acordo com Freud (1986), mas também com Adorno (1969), o amor rompe as fronteiras do ego. Mas para que elas possam ser rompidas, devem ser estabelecidas. Só quem possui um ego delimitado pode amar. A fragilidade do ego, que suscita a onipotência como reação à impotência que é percebida, não permite o delineamento de um eu. Os outros também não podem ser delimitados como objetos específicos do amor, pois para a pulsão ser refreada e se deter no objeto é necessária aquela delimitação. Assim, os corpos belos e saudáveis são admirados e possuídos como prosseguimento daqueles que o admiram e o possuem. Nesse sentido, o corpo belo e saudável torna-se propriedade e valor de troca do que não pode ser cambiável.

De um lado pode-se, por meio do corpo, conceder prazer para quem se permite possuí-lo, mas esse outro não é um outro, mas aquele que se assemelha a si mesmo. De outro, a recusa ao outro de um prazer constantemente estimulado, mas nunca permitido, suscita o ressentimento de não poder possuir o que outros possuem. O estupro, como violação do não consentimento, pode ser uma resposta ao controle da sexualidade perpetuamente suscitada. Claro que se o corpo torna-se valor de troca, mesmo o consentimento não evita o estupro, uma vez que ele se refere também a ter se tornado mercadoria. Assim, o estupro, como é considerado nesta sociedade, tem sua base no “roubo” da propriedade de outrem. Certamente não é um roubo como outro qualquer; mas se o trabalho no capitalismo, segundo Marx (1978), pode ser associado com a prostituição, o estupro também pode ser relacionado a retirar algo de alguém. Para além da propriedade, mas mediadas por ela, no estupro as pulsões destrutivas se sobrepõem à libido; o prazer sexual é meio para realizar a destruição. A dominação e a posse, nesse caso, servem à morte.

Se como diz Freud (1986), no que é seguido por Adorno (1991b), o apreço que se tem pelos bens produzidos pela civilização é formação reativa ao que antes era no mínimo indiferente, o prazer pode também se associar à redução do corpo à mercadoria, ou ao que deve ser usado, controlado, dominado. Uma espécie de identificação com o agressor, que envolve o masoquismo. E dessa forma, a posse do corpo pelo outro traz também a possibilidade da satisfação com a violência. Dizem Horkheimer e Adorno:

Assim como as mulheres têm adoração pelo paranóide impassível, assim também os povos caem de joelhos frente ao fascismo totalitário. Nas próprias pessoas que se entregam, o elemento paranóico que elas possuem deixa-se atrair pelo indivíduo paranóico como um ser maléfico, e seus escrúpulos morais pelo indivíduo sem escrúpulos, a quem devotam sua gratidão. Elas seguem um homem que nem sequer olha para elas, que não as considera como sujeitos, mas que as deixa entregues aos múltiplos fins do aparelho social (1985, p. 178).

Para Freud (1986), a particularização do objeto ocorre pela necessidade de mantê-lo; quando o desejo cessa após o ato sexual, uma vez que se sabe de seu retorno. Na sociedade administrada, e não só nela, observa-se também o contrário: a necessidade de se manter a relação particular, utilizando-se para isso da sexualidade. Não devem ser poucos os casais nos quais a relação sexual ocorre com o fito de preservar o casamento, ou seja, os direitos adquiridos, não importando se esse é legalizado ou não. Dessa forma, a vontade, o desejo, são mediados pela necessidade da manutenção da propriedade, que ilusoriamente nos defende das ameaças de destruição. Assim, a propriedade além de mediar a escolha de parceiros – e esse termo já é criticado por Adorno (1969) – medeia também a perpetuação darelação. É uma espécie de estupro consentido. O mesmo deve ocorrer com namorados, mas aqui poder-se-ia observar o medo da solidão associado ao de não ser amado, e à decorrente ameaça do abandono e da destruição. O ter de procurar alguém para ser cuidado, como substituto dos pais, quase substitui o cuidado que a sociedade deveria ter para com todos.

A convivência social certamente é a base da diferenciação individual, como argumentam Horkheimer e Adorno (1978), mas essa diferenciação não deve prescindir da solidão, que nos dias atuais é quase sinônimo de autonomia. A alienação espacial, a separação no espaço, permite a delimitação dos corpos; essa separação, como eu corporal, é a própria base do indivíduo. Ulisses, personagem da Odisséia – o protótipo do indivíduo burguês –, só pôde desenvolver sua astúcia sozinho, como meio de autoconservação. Claro que hoje, se a autoconservação poderia já ser garantida por todos a todos, isso não implica que a separação dos corpos, que preside a possibilidade do desejo, seja negada. Se a auto­reflexão só é possível pela experiência com os outros, ela é voltada ao próprio indivíduo. As críticas que Adorno faz à integração cega à coletividade não podem prescindir da auto-reflexão solitária. A separação dos corpos enuncia o indivíduo. Algo semelhante pode ser dito da separação entre corpo e psique. Mas a psique deveria ter o trabalho de buscar o objeto adequado para a satisfação do desejo que tem base no corpo. Se qualquer ou vários objetos servem, o desejo regride à necessidade.

O problema não parece residir nesses tipos de separação, mas na ausência de relação entre o que se separa. O corpo reduzido à máquina ou à reprodução do natural é objeto de ódio de um pensamento que não se reconhece mais na natureza. O corpo que pudesse expressar os sentimentos – eles mesmos produtos da relação natureza-cultura – poderia servir como crítica ao sofrimento existente. A conversão histérica, definida pela psicanálise, caminhava nesse sentido: o corpo com funções alteradas pelo sofrimento psíquico. Se outrora o sofrimento corporal era denúncia da repressão social, hoje os corpos belos e saudáveis expressam o sofrimento coletivo: o mal-estar que paira como má-consciência. A beleza exuberante e intocada que os corpos exibem assemelham-se ao amor platônico: a natureza sob a forma de uma metafísica que expulsa o espírito – uma metafísica tornada natural. Relações sexuais sim, desde que o espírito fique de fora. Tal como Simone Weill (1979) descreveu sua experiência na fábrica, o espírito deve ficar no cartão de ponto, e só deve ser recuperado à saída do trabalho. O desempenho sexual que deve fortalecer imaginariamente um eu frágil não pode ser pensado, mas mensurado. Segue as regras do trabalho produtivo.

O corpo perfeito, que com o auxílio da tecnologia torna-se “natural”, representa a própria dialética do esclarecimento: a submissão da natureza ao homem só ocorreu com a submissão do homem à natureza. Esta reaparece no que está mais desenvolvido. A separação que deveriaimplicar uma relação torna-se fusão dos dois pólos. É a vingança da natureza, que dominada volta a dominar a cultura. Na relação indivíduo-cultura ocorre algo semelhante. Adorno (1991b) indica que a sociedade mais avançada quase não permite a distinção entre ambos. O autoritário reproduz quase imediatamente sua cultura. Como ele argumenta: a vitória da sociedade sobre o indivíduo é a vitória do id sobre o ego. Com a regressão do ego, e portanto com sua fragilidade, os desejos mais primitivos do id podem ser “realizados”, desde que a lealdade social permaneça. O corpo perfeito reproduz a perfeição da racionalidade social: tudo deve ter uma função, deve servir para outra coisa, nada deve ter valor em si próprio, nem a vida, que deve servir à coletividade.

O corpo do histérico ainda implicava uma distância entre a sociedade e o indivíduo. Conforme defendeu Marcuse (1981), a partir do início do século passado os problemas psicológicos passaram a significar imediatamente problemas políticos. Já Adorno (1991b) argumenta que ideal para a sociedade administrada é aquele que reage à maneira de um autômato. Segundo ambos, as mudanças sociais e econômicas acarretaram esse tipo de relação aparentemente mais imediata. O enfraquecimento do ego resulta da perda da relativa autonomia das instituições, que com o processo de racionalização social passaram a ter a mesma racionalidade da totalidade.

O enfraquecimento do eu e a perda da relativa autonomia das instituições não devem levar, contudo, a que se defenda a restauração do passado. No que se refere ao eu, claro que poderíamos já ter um indivíduo autônomo que percebesse as contradições sociais e o que impede o prosseguimento do movimento dessas contradições, e atuasse para a modificação social. Se na configuração social pode-se, segundo Adorno (1991b), encontrar as regressões psíquicas que a sociedade impulsiona, a percepção disso pode levar à resistência individual ao que essa sociedade exige de sacrifícios, por ora anacrônicos. As instituições, pela crítica ao passado e ao presente, poderiam também conter espaços de resistência, o que certamente ainda ocorre, pois a racionalização social não é somente contrária aos homens. Do passado é necessário recuperar a esperança perdida de que os homens poderiam ser diferentes, desde que essa recuperação não tenha uma perspectiva romântica. O conceito de indivíduo defendido pelo liberalismo e pela formação clássica, do qual o atual é uma sombra, é importante para que se possa avaliar a regressão existente, mas não é modelo a ser restituído, mesmo porque já era problemático. Com uma sociedade livre da dominação, a ameaça e o medo não seriam mais a base para a formação do indivíduo.

A separação corpo-psique para ser superada não deve ser negada. O corpo que remete à natureza dominada, assim como a razão, são natureza e mais do que natureza. O substrato real, isto é, natural, deve ser considerado. Ele não pode ser qualquer coisa que a sociedade imprima; tem os seus limites, que estão além das necessidades e possibilidades sociais. A flexibilidade da adaptação humana não é ilimitada, nisso reside o real, e portanto, o que é possível. Mas isso não significa que a superação dos limites não faça parte da natureza humana,ou seja, da cultura. É dessa dialética, parece-me, que deveria se ocupar os que se preocupam com a dominação dos corpos. E aqui se volta ao início deste texto: a natureza, tomada como matéria-prima ou como para si da sociedade, deixa de lado a origem que insiste em se manifestar quanto mais negada é. Ora, como Adorno (1991b) argumentou, o que vem depois não é menos verdadeiro do que a origem, mas se essa é desconsiderada perde-se o rumo.

 

Referências Bibliográficas

ADORNO, T.W. (1969). Intervenciones. Caracas: Monte Avila.        [ Links ]

________. (1975). Minima Moralia. Caracas: Monte Avila.        [ Links ]

________. (1991a). La idea de historia natural. In: ___. Actualidad de la filosofía. Barcelona: Paidós.        [ Links ]

________. (1991b). Relación entre sociología y psicología. In: ___. Actualidad d e la filosofía. Barcelona: Paidós.        [ Links ]

________. (1995).Palavras e sinais. Petrópolis: Vozes.        [ Links ]

ADORNO, T.W.; SIMPSON, G. (1986). Sobre música popular. In: COHN, G. (trad e org). Textos de T.W. Adorno. São Paulo: Ática.        [ Links ]

HORKHEIMER, M.; ADORNO, T.W. (1985). Dialética do esclarecimento. 2. ed. Ri o de Janeiro: Jorge Zahar.        [ Links ]

________. (1978). Temas básicos de sociologia. São Paulo: Cultrix.        [ Links ]

FREUD, S. (1976). Psicologia de grupos e análise do ego. Rio de Janeiro: Imago.        [ Links ]

________. (1986). El Mal-Estar en La Cultura. In: BRAUSTEIN, N.A. (org). A Medio Siglo de El Malestar en La Cultura de Sigmund Freud. México: Siglo Veintiuno.        [ Links ]

KANT, I. (1980). Fundamentação da metafísica dos costumes. In: ___. Kant: textos selecionados. São Paulo: Abril Cultural. (Coleção Os Pensadores).        [ Links ]

MARCUSE, H. (1981). Eros e civilização. Rio de Janeiro: Zahar.        [ Links ]

__________ (1999). Tecnologia, guerra e fascismo. São Paulo: Fundação Editor a da UNESP.        [ Links ]

MARX, K. (1978). Manuscritos de Paris. In: MARX, K.; ENGELS, F. Obras. Barcelona: Grupo Editorial Grijalbo.        [ Links ]

WEILL, S. (1979). A condição operária e outros estudos sobre a opressão. Rio de Janeiro: Paz e Terra.        [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
José Leon Crochík
Rua Harmonia, 698 / 43 – 05435-000 – São Paulo/SP
tel: (11) 3815-2945
e-mail: jlchna@usp.br

Recebido em 06/07/04
Aprovado em 01/10/04

 

 

Notas

IProfessor Livre-Docente (Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo); Docente do IPUSP e dos Programas de Estudos Pós-graduados em Educação: História, Política, Sociedade e em Psicologia Social (PUC-SP); Pesquisador Bolsista do CNPq.
1Neste texto, natureza é entendida da forma que Adorno (1991) a delinea em sua relação com a história, tentando superar no conceito a dicotomia natureza-história: “Si es que la cuestión de la relación entre naturaleza e historia se ha de plantear con seriedad, entonces sólo ofrecerá un aspecto responsable cuando consiga captar al Ser histórico como Ser natural en su determinación histórica extrema, en donde es máximamente histórico, o cuando consiga captar la naturaleza como ser histórico donde en apariencia persiste en si mismo hasta lo más hondo como naturaleza” (p. 117).
2É interessante notar, ainda que não seja possível desenvolver neste texto, que a dialética do esclarecimento apresenta-se nesse texto de Freud: o progresso social traz imanentemente a regressão social, tendo em vista que a felicidade humana não está entre os principais objetivos da civilização. Dessa forma, apresenta-se também a idéia de que o indivíduo não é somente apêndice da maquinaria, mas da sociedade altamente regulamentada, isto é, administrada.
3É importante também apontar aqui que Horkheimer e Adorno (1985) entendem a crueldade como formação reativa ao desejo de proximidade dos homens, o que parece distingui-los, no que tange à apropriação da obra de Freud, da estabelecida por Marcuse, em Eros e civilização, que assume o dualismo pulsional de Freud.
4As dicotomias em questão referem-se a sujeito-objeto (Adorno, 1995) e indivíduo­sociedade (Adorno, 1991b). Importante destacar que é distinto o movimento dialético, descrito pelo autor, referente a essas dicotomias.
5A fragilidade do ego, propícia à sociedade administrada, é correlata dessa dificuldade de percepção e elaboração de desejos, que por sua vez é produto das ameaças provindas dessa sociedade, que impede o indivíduo de resistir ao apelo da opressão de uma disciplina moralista, legalista, formalista, mas não necessariamente racional; opressão que aparece sob a forma de liberdade. Como exemplo, por excelência, temos a democracia formal, que permite aos homens escolherem quem deve melhor administrá-los.
6Conforme Adorno (1995) e Marcuse (1981), o avanço da tecnologia, que possibilita um incremento cada vez maior da automação na esfera do trabalho, os conhecimentos, a riqueza acumulada, caracterizam nossa sociedade como abundante no que se refere à produção real ou potencial; produção essa capaz de eliminar a miséria e a pobreza da face da Terra. Outra decorrência disso é que o trabalho já poderia ser reduzido a um mínimo. Paradoxalmente, no entanto, quanto menos é necessária, do ponto de vista objetivo, a necessidade do trabalho, mais ele é imposto para a manutenção da atual estrutura social. Se o trabalho é cada vez menos necessário para a manutenção dos homens, a disciplina voltada a ele é anacrônica do ponto de vista objetivo, e só é necessária para a manutenção da desigualdade social.