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Interações

Print version ISSN 1413-2907

Interações vol.10 no.20 São Paulo Dec. 2005

 

ARTIGOS

 

Abuso sexual e traumatismo psíquico

 

Sexual abuse, psychological trauma and transgeneration

 

 

Maria do Carmo Cintra de Almeida-Prado*, 1; Terezinha Féres-Carneiro**, 2

* Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Instituto de Psicologia
** Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Departamento de Psicologia

 

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Etimologicamente, a palavra trauma vem do grego e significa ferida. Na obra freudiana destacam-se três momentos-chave para a compreensão do trauma, todos envolvendo o aspecto econômico, pois na noção de trauma há sempre um excesso. A teoria do trauma foi retomada por Ferenczi, cujo ponto de vista envolve o reconhecimento de um evento real e de um desmentido, por parte do adulto, na origem do trauma. Em sua interação com o adulto, a criança utiliza-se da linguagem da ternura, enquanto o adulto utiliza-se da linguagem da paixão. Propomo-nos neste trabalho abordar e ampliar dois conceitos básicos: a confusão de línguas e o trauma cumulativo, relacionando-os à psicodinâmica da mãe, à perspectiva transgeracional e a algumas dificuldades particulares dos profissionais envolvidos nesse tipo de assistência. Apresentamos o conceito de trauma ativo, que foi ilustrado a partir da discussão do filme Monster, de Patty Jenkins.

Palavras-chave: Trauma, Família, Criança, Abuso sexual, Transgeracionalidade.


ABSTRACT

The word trauma comes from the Greek and means ‘a wound’. Freud’s work underscored three key moments in the understanding of trauma, all of them involving an economical aspect that characterized it as an excess. Ferenczi further elaborated the theory on trauma and recognized in the origin of trauma an actual traumatic event which is often denied by the adult involved in it. The child, in his/her interaction with an adult, makes use of a language of tenderness, while the adult makes use of a language of passion. In the present paper, we further analyzed these two basic concepts involved in the traumatic event: the confusion of languages and the cumulative trauma. We then relate them to the psychodynamics of the mother, to the transgenerational perspective, and to some particular difficulties for professionals involved in this area. In addition, we introduce the concept of ‘active trauma’ and illustrate it with a discussion of Patty Jenkins’ film entitled Monster.

Keywords: Trauma, Family, Child, Sexual abuse, Transgeneration.


 

 

Etimologicamente, a palavra trauma vem do grego e significa ferida. Cada fase de elaboração da teoria psicanalítica influenciou o conceito de trauma e repercutiu na avaliação e na prática clínicas. A psicanálise transpôs para o plano psíquico três significações implicadas no termo: a de um choque violento, a de uma refração e a de conseqüências sobre o conjunto da organização (Laplanche e Pontalis, 1967). Na obra freudiana destacam-se três momentos- chave para a compreensão do trauma, todos envolvendo o ponto de vista econômico, pois na noção de trauma há sempre um excesso.

No primeiro, de 1895 a 1905, Freud apresentou os conceitos básicos para a compreensão do inconsciente: a primeira tópica, os processos primários e secundários, os sonhos como via régia de acesso ao inconsciente, os processos de formação de sintoma e a etiologia da histeria e da neurose obsessiva. Nesse momento o modelo básico de ação do trauma ligava-se à sedução, vista como o fator principal na etiologia da neurose. O trauma era concebido como decorrente de um fator ambiental que invadia o ego, que saturado de energia libidinal não conseguia descarregá-la. A sedução sexual apresentava-se como paradigma da situação traumática. Freud se disse decepcionado ao descobrir que as cenas de sedução jamais tinham acontecido realmente, o que o levou a um outro entendimento, baseado na compreensão do mecanismo de repressão e da importância da fantasia para a vida psíquica. No entanto, será que as cenas de sedução não ocorreram jamais mesmo? Freud achou um excesso a freqüência com que tais cenas eram relatadas por suas pacientes. Todavia, considerando a quantidade impressionante de crianças que atualmente chegam incessantemente a serviços especializados, vítimas de abuso sexual, pode-se ter dúvidas se Freud exagerou em sua afirmativa: jamais. Se foi este o caso, como pode ter sido difícil para essas pacientes não terem encontrado no analista alguém com condições de compreender sua real experiência, inclusive a psíquica! Freud virá a dizer que a única realidade à qual o sujeito realmente dá crédito é sua realidade psíquica – e isto vale para paciente e para analista.

No segundo, de 1905 a 1920, Freud detalha o desenvolvimento sexual infantil e elabora a metapsicologia psicanalítica. Aqui o paradigma da situação traumática passa a ser as fantasias originárias, que envolvem angústias de sedução, castração, relativas à cena primária e ao complexo de Édipo. O trauma passa a ser compreendido em relação à urgência e pressão das pulsões sexuais e à luta que o ego trava contra elas, e os conflitos e as vivências traumáticas passam a ser examinados e compreendidos a partir das fantasias inconscientes e da realidade psíquica interna.

O terceiro, de 1920 a 1939, inicia-se com a apresentação de um artigo que será um marco na teoria psicanalítica, Além do princípio do prazer, em que Freud apresenta sua segunda teoria pulsional, relacionando a pulsão de morte à compulsão à repetição, vista como um princípio de funcionamento psíquico. Em 1923, Freud apresenta sua segunda tópica, em termos de id, ego e superego. O trauma adquire uma outra dimensão, essencialmente intersistêmica e pulsional, passando a ser visto como uma efração da para-excitação. O bebê, em seu desamparo, torna-se paradigma da angústia que excede em muito a capacidade de seu ego para se proteger da efração quantitativa, seja ela de origem interna ou externa. Em 1926, Freud propõe uma nova teoria da angústia, relacionando o trauma à perda de objeto. Faz distinção entre as situações traumáticas e as situações de perigo, relativas às quais há dois tipos de angústia, uma automática, outra como sinal de aproximação do trauma. A essência da situação traumática é a experiência de desamparo por parte do ego diante de um excesso de excitação.

Freud (1937, 1939) retoma suas preocupações iniciais a respeito das neuroses traumáticas dizendo que quando estímulos externos e internos ultrapassam a barreira de escudo protetor do ego, eles causam um efeito surpresa e provocam uma excessiva angústia difusa, cujo efeito é devastador, inclusive para o processo de simbolização.

 

Traumatismo, traumático e trauma

Apoiando-se sobre esta evolução em três tempos do conceito de trauma na obra freudiana, Bokanowski (2003) propõe a distinção dos três termos, traumatismo, traumático e trauma, atribuindo-lhes valências diferentes da perspectiva da organização psíquica e dos parâmetros aos quais estes nos fazem confrontar, sobretudo na visão do tratamento psicanalítico.

Para o autor, traumatismo designa a concepção genérica do trauma, mais especificamente o que aparece, no tratamento psicanalítico, como os aspectos representáveis, figuráveis e simbolizáveis do efeito traumático da organização fantasiosa do sujeito, basicamente as fantasias originárias, bem como o peso do sexual sobre essa organização; é o que classicamente transparece na organização dos tipos de funcionamento psíquico próprios das ditas neuroses de transferência.

O traumático designa mais especificamente o aspecto econômico do traumatismo por falta de “para-excitação”, isto é, de recursos para desviar a excitação. Este princípio econômico acarreta um tipo de funcionamento a respeito do qual poder-se-ia falar de funcionamento “marcado pelo trauma”; mesmo que seus efeitos sejam parcialmente representáveis, figuráveis e simbolizáveis, eles nunca o são totalmente. E nós nos perguntamos: será que efeitos traumáticos, sobretudo os que dizem respeito a situações de abuso sexual na infância, são simbolizáveis e superados totalmente? Dolto (1982) assinala que as mulheres vítimas de abuso sexual na infância correspondem aos casos mais difíceis de serem tratados psicanaliticamente, sobretudo quando é imposto à criança o silêncio pelo adulto abusador culpabilizado, tirando-lhe desta forma toda via de simbolização e possibilidade de elaboração. Ferenczi (1933) também considerava que a culpa sentida pelo adulto infrator por sua postura é transmitida à criança através da identificação.

Dolto e Ferenczi falam sobre o adulto abusador, mas a criança vítima de abuso sexual se vê às voltas com adultos abusadores quando não encontra em seu meio familiar suporte de outro adulto em quem possa confiar, particularmente da mãe, que lhe dê crédito e lhe proteja. Em uma sociedade essencialmente adultocêntrica, os adultos se mostram pouco disponíveis a escutar a criança e a acreditar nela, sobretudo quando suas vidas possam se ver de alguma forma afetadas pela revelação e pelo reconhecimento dos fatos, implicando em possíveis providências a serem tomadas e que podem afetar a vida desses adultos, como a manutenção da relação conjugal, o envolvimento de conveniências financeiras, o medo de ficar só ou simplesmente a intenção de “manter a família”.

Cremos também que o silêncio imposto à criança pelo abusador e pela mãe ou pelo meio circundante não se deva particularmente à culpa, mas sim à perseguição. Tratar-se-ia de uma culpa persecutória, perseguição que não permite uma atitude verdadeiramente reparatória, mas ao contrário, faz com que a situação abusiva tenda a perdurar, particularmente em se tratando de mães não protetoras, isto é, aquelas que desmentem a criança e se mantêm em conluio com o abusador, muitas vezes responsabilizando ainda a criança por disfunções e insatisfações conjugais, ou mesmo pelo fracasso do casamento.

A culpa persecutória ou perseguição impossibilita a vivência da culpa por favorecer a mobilização de defesas maníacas, que implicam na desqualificação do objeto, no triunfo sobre ele e na onipotência de pensamento, associados a outros mecanismos, próprios da posição esquizo-paranóide, como a cisão, a negação e a identificação projetiva massiva. Desta forma, evitam-se as vivências depressivas, que quando toleradas possibilitam a experiência da culpa e de sentimentos de responsabilidade pelo objeto, havendo então, genuinamente, possibilidade de reparação. É exatamente o que não costuma acontecer nas situações de abuso sexual na infância, prevalecendo os sentimentos persecutórios e seu cortejo de mecanismos defensivos.

Entendemos que o que se transmite à criança é de fato culpa persecutória, e ao contrário de Ferenczi, achamos que isto ocorre menos por identificação, mais por incorporação, e com isso queremos acentuar os entraves na possibilidade de simbolização da experiência.

Voltando a Bokanowski, vemos que o trauma designa a ação positiva, mas sobretudo negativa do traumatismo sobre a organização psíquica; como sugere Freud, ele pode acarretar ataques precoces ao ego, sob a forma de feridas de ordem narcísica. Esses traumas, que dizem respeito às marcas do objeto ou à ação do meio, e que podem se dar antes do estabelecimento da linguagem, vêm perturbar e reforçar os primeiros mecanismos defensivos, como a negação, a cisão, a identificação projetiva, a idealização, a onipotência etc, e podem organizar zonas psíquicas mortas, criptas (Abraham e Torok, 1978), por causa da ausência de representação, de figuração e de simbolização que eles acarretam. Segundo Bokanowski, o que se designa por “trauma” interessa às categorias do primário e do originário (Aulagnier, 1975) em articulação com as categorias edípicas clássicas, o que situa o conceito no centro das preocupações de toda análise contemporânea. Cremos que aqui delineia-se a importância da transmissão psíquica entre gerações, pois nada se passa em família que seja totalmente desconhecido para seus membros (Pincus e Dare, 1978), e as vias de transmissão psíquica entre gerações configuram-se com a própria formação da identidade do sujeito. São três as vias comumente referidas – a identificação, o superego e o negativo –, às quais acrescentamos uma quarta, os mitos familiares.

Sobre os mitos familiares como transmissores geracionais gostaríamos de esclarecer que, conforme detalhamos em trabalho anterior (Almeida Prado, 1999), é próprio do mito nada dizer sobre uma situação em particular, mas contar uma história que se desenrola em diversos planos, tratando-se de uma criação inconsciente, próxima da criação estética, em que os diversos problemas fazem eco uns aos outros. Os mitos compõem-se sempre de feixes de relações. Neles, as contradições tendem a se ajustar umas às outras e a não serem mais percebidas como tais; desta forma, os mitos podem dispensar a procura de outras soluções para aqueles problemas, particularmente em se tratando de mitos canônicos, aqueles que não toleram variantes. A criação do mito é inconsciente e ele organiza-se conforme a lógica inconsciente, semelhante à demonstrada por Freud (1900) em seu estudo sobre os sonhos. Os mitos estão para o aparelho psíquico familiar (Ruffiot, 1981) assim como a fantasia está para o aparelho psíquico individual. As famílias não vivem sem seus mitos, e os mitos familiares e as fantasias individuais influenciam-se constante e mutuamente, seja em um sentido sadio ou patogênico.

Bokanowski (2003) propõe a diferenciação entre os termos traumatismo, traumático e trauma como uma possibilidade de assinalar um meio de diferenciação entre uma maior ou uma menor capacidade de simbolização implicada a partir da experiência traumática. O termo trauma estaria enfatizando o estrago produzido na capacidade de simbolizar e de transformar, e o favorecimento de zonas psíquicas mortas, de criptas, cujos fantasmas assombram gerações futuras, afetando suas escolhas amorosas e a possibilidade de fruição da sexualidade.

Barrois (1995) é muito enfático ao afirmar que o termo traumatismo deve referir-se não a um acontecimento, mas a um acidente, em sentido pesado. Entende que uma situação traumática é essencialmente inesperada, imprevisível, súbita e evidentemente ameaçadora à vida do sujeito e/ou a de um alter ego. Acrescentamos a esses aspectos o fato de envolver o sujeito em um estado de despreparo e desamparo. Diz o autor que o traumatismo psíquico apresenta-se como a resposta a tudo isso “no interior” do sujeito. É uma espécie de traumatismo em ato e em potência.

A quebra da confiança e da segurança a partir da relação com adultos abusivos, não protetores, tem conseqüências caracteriais, pois favorece rupturas e distorções da autonomia do ego. Favorece a criança a desacreditar na confiabilidade e segurança das pessoas em geral, o que também se refletirá em suas relações futuras. A partir da adolescência, algumas dessas pessoas, na tentativa desesperada de obtenção de contato e afeto, tornam-se promíscuas; outras, ao contrário, muito pouco disponíveis para relacionamentos, tendendo ao isolamento e à depressão, que aliás está presente também no primeiro caso, porém expressa por sua face maníaca.

 

O trauma cumulativo: uma visão da realidade do trauma

Khan (1963, 1964), ao propor seu conceito de trauma cumulativo, apresenta uma divisão da área das pesquisas psicanalíticas em cinco estádios, assinalando que um não anula o outro, mas que eles correm paralelamente, reforçando-se e corrigindo-se mutuamente, ampliando a complexidade da metapsicologia psicanalítica. Sua divisão é bastante similar a aqui apresentada, com a diferença que o autor subdivide o que abordamos como terceiro momento em duas partes, com ênfase nos textos de 1920 e 1926 em que Freud trata especificamente da pulsão de morte e da angústia, respectivamente. Khan considera que com as modificações ocorridas no conceito de angústia e situações traumáticas, o papel do meio ambiente, sobretudo da mãe, e a necessidade de “auxílio externo” nas situações de desamparo situam-se bem no centro do conceito de trauma. A seu ver, é desta forma que as fontes intrapsíquicas, intersistêmicas e ambientais do trauma integram-se em um referencial unitário. Khan refere a atenção dada por Freud ao ego em termos das modificações sofridas no processo de defesa (1940[1938]), bem como através de suas características congênitas e distúrbios de sua função de síntese, e considera que essas novas formulações têm amplas implicações para avaliar origem e função do trauma. A quinta fase que propõe estende-se de 1939 a 1963-64, quando apresentou seus artigos, nos quais valoriza os progressos alcançados pela psicologia do ego, e a ênfase dada ao relacionamento mãe-filho, o que permite, a seu ver, uma alteração do referencial para a discussão da natureza e do papel do trauma.

É interessante notar-se que nessa sumária revisão sobre a evolução metapsicológica dos conceitos psicanalíticos e suas conseqüências para a compreensão do trauma, Khan não faça referência a Ferenczi (1933), que enfatiza a existência de um fator exógeno e modificador do psiquismo na situação traumática, e assim reconhece na origem do trauma a presença de um evento real e de um desmentido por parte de um adulto ao qual a criança estava ligada e que se apresentava para ela como modelo identificatório. Aqui novamente a situação parece-nos mais complexa porque a criança tem, além do abusador em si, outros adultos como modelos identificatórios, particularmente a mãe, que também podem não responder a seus apelos. Em sua condição de pessoa dependente, a solidão, o desamparo e a confusão da criança são imensos.

Khan não se ocupou de situações envolvendo abuso sexual na infância, mas seu conceito de trauma cumulativo, se ampliado, parecenos muito útil para pensarmos essas situações. O autor dá ênfase ao fracasso da mãe em dosar e regular os estímulos externos e internos no início da infância de seu filho. Nomeia de trauma cumulativo a tensão e as invasões decorrentes do fracasso do papel da mãe como escudo protetor, o que tem conseqüências mais específicas nas vicissitudes do desenvolvimento do ego corporal do bebê e da criança. Cita Winnicott (1958), para quem essas invasões maternas dilaceram a verdadeira integração do ego e provocam uma organização defensiva e um funcionamento prematuros. Procura examinar a natureza e a função do trauma cumulativo, que se inicia no período de desenvolvimento em que o bebê precisa e usa a mãe como escudo protetor. Os fracassos maternos temporários nessa função são inevitáveis, mas corrigíveis e sanados pelo desdobramento da complexidade e ritmo dos processos de maturação.

Quando os fracassos maternos em seu papel de escudo protetor são significativamente freqüentes, dão-se invasões no psico-soma da criança que ela não tem como eliminar; forma-se assim um núcleo de reação patogênica. As invasões decorrentes do tratamento dado pela mãe passam a agregar-se e formam a estrutura e a função do trauma cumulativo. Essas invasões fomentam um interjogo com a mãe, bem distinto de sua adaptação às necessidades da criança, e acarretam diferentes efeitos, entre os quais um desenvolvimento prematuro e seletivo do ego, uma conformidade especial ao temperamento materno, dificuldades no processo de separação e individuação, cristalização de uma atitude de preocupação excessiva com a mãe e de um desejo exagerado de se tornar objeto de sua preocupação, catexização precoce da realidade externa e interna, com a nociva exclusão da conscientização subjetiva do ego e sua experiência de si próprio como entidade coerente. Uma vez iniciado esse interjogo entre a mãe e a criança, ele traz para sua esfera de ação todas as novas experiências de desenvolvimento e de relações objetais.

Khan lembra que embora o ego possa sobreviver e superar essas tensões e aproveitá-las para finalidades válidas, deixando em suspenso o trauma cumulativo, pode também acontecer que, no futuro, ele entre em colapso, como efeito de forte tensão e crise. “Um aspecto traiçoeiro do trauma cumulativo é que ele age e se fixa por toda a infância até a adolescência” (1963, p. 73). O mal, sutil ou não, que se esteja infligindo à criança, terá suas conseqüências manifestando-se em data futura.

Em nenhum de seus artigos Khan aborda os motivos que podem levar a mãe a falhar em seu papel de escudo protetor. Refere a atitudes maternas inconvenientemente invasivas e suas conseqüências nocivas, sobretudo quando elas se dão de forma repetitiva. Mas e a mãe? O que a levaria a isso? Traumas cumulativos por falhas maternas? O que não se resolve, repete-se, por ação da pulsão de morte, intrapsiquicamente e por gerações sucessivas. A realidade interna da mãe é responsável por sua ação real junto à criança, pela maneira como irá concebê-la e tratá-la. A realidade da criança envolve sua vida de fantasia, a realidade interna de sua mãe e o que dela decorre no tratamento que recebe.

Partindo da análise clínica e de dados obtidos pela análise quantitativa e qualitativa de testes, Amendola (2004) conclui que mães de crianças vítimas de abuso sexual, referindo-se especificamente àquelas que têm para com o filho uma atitude protetora após o conhecimento da situação de abuso, apresentam transtorno de personalidade dependente, caracterizado por uma atitude permissiva para que outros tomem decisões importantes em sua vida, subordinando-se às necessidades e desejos dos outros, demonstrando relutância em fazer exigências às pessoas das quais depende, medo de abandono, de solidão, do desamparo e da própria incompetência, bem como dificuldade de tomar decisões. São pessoas que se mostram especialmente vulneráveis a angústia e a sintomas psicossomáticos. Amendola destaca dois momentos distintos na vida dessas mulheres, um anterior à constatação do abuso sexual, outro, posterior, quando experienciam estresse de grande magnitude (estresse pós-traumático), com intensas vivências de angústia. São mulheres que se mostram imaturas e basicamente dependentes.

Muita coisa se passou desde 1963-1964, ou paralelamente aos estudos desenvolvidos por Khan, com ênfase especial à transmissão psíquica entre gerações de situações que envolvem lutos impossíveis de ser elaborados e superados, vergonha, humilhação, violência (Abraham e Torok, 1978; Tisseron, 1992,1995; Kaës et al., 1993; Eiguer et al., 1997; Faimberg, 2001, Almeida Prado, 2004). A esses aspectos que vêm sendo bastante retomados, discutidos e aprofundados, frisamos o sexual, por constituir a raiz de nossa identidade, estar tão relacionado à etiologia dos quadros psicopatológicos, ao complexo de Édipo como organizador psíquico e meta-organizador grupal, às vicissitudes traumáticas, e ainda ser fonte de tanto sofrimento para as pessoas.

 

O trauma ativo: uma ilustração a partir do filme Monster

Monster, que em português recebeu o subtítulo (desnecessário a nosso ver) Desejo assassino, é uma co-produção americano-alemã de 2003, dirigida por Patty Jenkins, que aborda a história real de Aileen Wournos, prostituta condenada à morte como a primeira mulher serial killer, depois de matar sete homens.

A personagem composta por Charlize Theron apresenta uma relação muito desconfortável com seu próprio corpo, cuja movimentação é “sem jeito”, e expressa o mal-estar que ela parece ter em ocupá-lo. A violência está sempre palpitante em sua postura e sua fala, e sua incontinência afetiva é esperada a qualquer momento em rompantes impulsivos e explosivos. Sua depressão também é patente e contínua, presente mesmo em sua postura fanfarrona e maniforme. Seu abandono é total. Apresentase como pessoa extremamente solitária, buscando através de seu corpo ganhar alguns dólares que lhe permitam uma precaríssima subsistência e o consumo de álcool e cigarros.

O filme inicia-se com comentários da própria personagem sobre seus sonhos de menina, em total contraste com o que ela veio a se tornar em adulta. Sonhava com fama, com reconhecimento, com amor. Pouco se aborda sobre sua infância, mas há uma cena rápida, em que aparece uma menina pequena, que vira a cabeça e olha assustada para trás. Em seguida, vêem-se apenas os olhos de um homem maduro, cuja expressão é impactante e causa tensão. Será mais tarde que a personagem, já às voltas com seus assassinatos, fará referência à situação de abuso sexual sofrido na infância, cometido por amigo de seu pai, que não acreditou nela e a espancou; situações estas que foram se repetindo – ela apanhava do pai por ser abusada pelo amigo dele, conforme ela mesma declara. Nenhuma referência, em momento algum, é feita à mãe, apenas aos irmãos, que ao saberem de sua promiscuidade, já adolescente, espancam-na, o que a faz fugir e não mais retornar, dando a entender que também ninguém de sua família a procurou ou quis saber o que poderia ter lhe acontecido. Torna-se prostituta aos 13 anos.

Aileen mente, procurando apresentar-se com recursos ou qualidades que não tem, mas que supostamente a deixariam mais valorizada sob o olhar do outro. É o que acontece quando se encontra pela primeira vez com Selby (representada por Christina Ricci), jovem afastada de sua família e de seu estado de origem, Ohio, por suas tendências homossexuais, após ter beijado uma mulher. Aileen entra em um bar, molhada, inquieta, dando a entender que chegava de um de seus encontros, em que poderia ter sido largada em qualquer lugar, sob a chuva, sem nenhuma consideração. Selby tenta se aproximar dela e Aileen a repele com violência, dizendo não ser homossexual. Selby, com certa delicadeza, insiste e busca manter o contato, o que acaba precipitando que durmam juntas, e uma relação de suposta cumplicidade comece a se estabelecer.

É interessante a paixão que Aileen desenvolve por Selby, que se mostra como pessoa basicamente narcísica, sem a mínima capacidade de empatia com a condição de Aileen, com sua intenção de deixar a prostituição, sobretudo pelo que podia representar de privação para si mesma. Queria se divertir e ter prazer, pelo sexo, pelo álcool, pelo cigarro. Parecia não ver nada de mais em Aileen prostituir-se, mesmo após o conhecimento de seu primeiro assassinato, em legítima defesa, em meio a brutal situação de estupro, praticado com extrema crueldade e possível intenção de matá-la. Essa situação suscita em Aileen um ódio intenso dos homens e um desconcerto com a postura de Selby, que parece não ter a dimensão do que poderia estar representando para ela continuar se prostituindo e expondo-se a homens que poderiam maltratá-la com crueldade, e mesmo matá-la.

Visando abandonar a prostituição e encontrar uma outra forma de vida, Aileen faz tentativas frustradas de procurar emprego, pleiteados sem que leve em consideração sua habilitação e formação, que eram absolutamente nulas, reagindo com violência ao embaraço que causava com sua evidente perda de sentido de realidade. Via-se incapaz de poder pensar a situação de modo mais realístico, e assim promover mudanças em seu próprio benefício. Seu precário narcisismo não resistia à realidade dos fatos, que a remetiam à precaríssima realidade interna, e Aileen reagia violentamente indignada. Até mesmo como cidadã via-se sem direitos, pois quando na volta de uma dessas tentativas infrutíferas de buscar emprego, um policial em um carro a interpela, ela se vê premida pela “lei” a entrar no carro, para mais uma vez ser vítima de uma situação abusiva, com o policial sujeitando-a a um “boquete” para liberá-la, alegando tê-la ajudado a escapar de uma situação policial anterior. Aileen nem se lembrava dele, dando a entender que mal devia se lembrar também dos outros homens. Predominava a relação de coisa: ela era uma coisa, os homens eram outras coisas. A condição de sujeito assim se via apagada.

De volta a seu mundo, refere-se a suas buscas depreciativamente, com triunfo e fanfarronice, buscando reverter maniacamente suas vivências de desqualificação e rejeição. Retorna à prostituição, com todo o horror e repulsa que os homens lhe causam; e passa a matá-los para ficar com seus carros e dinheiro, e desta forma manter-se com Selby, que tem com ela uma relação de dominação. Aliás, é a dominação que caracteriza os relacionamentos de Aileen, aos quais ela corresponde de forma complementar e recíproca, deixando-se parasitar pelo psiquismo do outro.

Aileen acaba por matar um possível ex-policial e se dá conta que não poderá utilizar seu carro, que ela está em uma grande enrascada e é preciso fugir. Retorna à hospedaria em que Selby a espera e propõelhe que partam de ônibus, mas a outra voluntariosamente recusa-se e insiste em ter um carro, ciente da forma que ela os obtinha. Totalmente dominada, Aileen sai em busca de um carro, enquanto Selby fica a sua espera, vendo televisão. Desta vez, o homem que lhe dá carona é bom, bem intencionado e não tem intenção de manter com ela relações sexuais; deseja sinceramente ajudá-la, mas acaba sendo morto – Aileen reluta, diz não poder fazer aquilo, dando-lhe a entender que não conseguiria matá-lo, o que o leva a uma momentânea e ilusória expectativa de misericórdia, para em seguida esclarecer que não poderia poupá-lo, matando-o em seguida.

Neste ínterim são veiculados pela TV a notícia dos assassinatos e os retratos falados das possíveis envolvidas, obtidos a partir de um acidente de carro conduzido por Selby, que acabou por expor as duas. Quando Aileen chega com o carro, elas tratam de se separar, e Selby embarca em um ônibus. Aileen acaba presa, vai a julgamento e é condenada, tendo sido traída por Selby, em telefonema gravado pela polícia, e depois no próprio tribunal.

Esses fatos se passaram nos Estados Unidos no final dos anos 80; Aileen foi condenada em 1990, ficou 12 anos no “corredor da morte” e foi executada em 2002, na Flórida.

 

Uma breve discussão

Impacta a figura abandonada de Aileen e a forma como ela se tratava expressa sua rebaixada auto-estima e seus profundos sentimentos de depressão e menosvalia. O que tinha para dar em troca, até mesmo em circunstâncias amistosas, era o intercâmbio sexual. Quando Tom, sujeito mais velho que demonstrava ter por ela carinho e preocupação genuínos, oferece-lhe um sanduíche ao vê-la chegar famélica e sem nada, ela o aceita com certa relutância; começa a devorá-lo, ele lhe passa também a lata de cerveja, que ela aceita já com um olhar de gratidão; e com a boca ainda cheia, pergunta-lhe se ele quer um “boquete”; ele demonstra certa surpresa e desconcerto com sua oferta e responde que não seria necessário. Na verdade, era só o que ela tinha para oferecer em retribuição, como expressão de sua gratidão.

As vivências de abandono e de abuso sexual repetitivo, desde os 8 anos de idade, serão assoladoras no psiquismo de Aileen. Há indícios que ela não encontrou em seu meio, mesmo fora do núcleo familiar, alguém em quem ela pudesse confiar e que tivesse para com ela medidas protetoras e reparatórias. O filme não faz referência à mãe, mas o pai não a protegeu e a espancou quando ela lhe contou sobre o abuso sofrido por parte do amigo dele. Perpetuam-se assim as situações de abuso sexual e espancamento. Podemos supor tratar-se de um pai extremamente perverso, com problemas sérios no que diz respeito à sexualidade, a sua relação com o feminino e à lei do incesto, transgredida de forma vicariante através do amigo. A criança não apenas se via às voltas com a realidade dos fatos, mas também com a realidade psíquica dos adultos a sua volta, particularmente a de seu pai, cheia de ódio e incompreensão, e talvez exatamente isso fosse para ela ainda mais confuso, desconcertante e brutal. Às voltas com um fato real, este era não apenas desmentido, mas também motivo de espancamento. O contato realístico com a realidade era evitado, prevalecendo a identificação projetiva maciça sobre a criança, invertendose a situação: de vítima, ela passa a ré, recaindo sobre si todas as acusações dos malfeitos. Ela se vê às voltas com adultos que percebe como não querendo compreendê-la. Toda possibilidade de simbolização lhe é retirada, e silenciosamente o trauma torna-se ativo, em ato e potência, dentro de seu psiquismo.

Os efeitos dessas vivências serão devastadores para Aileen. A violência incorporada será reproduzir intersubjetivamente, e ela parece uma bomba – ou melhor, uma mina terrestre, pronta para explodir a qualquer esbarrão. Na adolescência apresenta-se promíscua, já se utilizando do sexo como via de troca e para obtenção de favores. Quando seus irmãos descobrem sua reputação junto aos amigos, espancam-na, repetindo-se a situação já vivenciada com o pai. Aos 13 anos vai embora para não mais voltar, tornando-se prostituta. Ninguém procura saber sobre seu paradeiro. Seu abandono é total – familiar e social.

Pela vida afora irão se reproduzir as relações utensilitárias, os maus tratos e a desproteção, inclusive em sua escolha amorosa. Aileen vê em Selby uma possibilidade de resgate e reparação, achando ter encontrado uma aliada, o que na verdade ela nunca será, já que visará exclusivamente suas conveniências, utilizando-se dela conforme seus interesses. Mantém um relacionamento prevalentemente narcísico, não demonstrando empatia por Aileen, mesmo quando esta deseja deixar a prostituição, após o brutal estupro e assassinato. Mudar de vida era para Aileen uma busca de reparação, mas para Selby, a prostituição de Aileen era o meio para ela continuar a ter coisas e a usufruir de situações. Selby apresentase como uma perfeita parasita, e apesar de sua aparente passividade, é voluntariosa, prepotente e dominadora. Por suas imensas carências e esperança de reparação, Aileen aceita tudo, ainda que percebendo certas coisas. Quando vão a um parque de diversões, é ela quem paga as entradas para as duas, mas Selby se vai com quatro lésbicas, deixando Aileen de lado, sendo evidente sua intenção de seguir com essas mulheres, só retornando quando elas a descartam. Aileen desconcertase, mas não consegue reagir. Selby parece não ver nada demais na forma que Aileen passa a adquirir carros e dinheiro, com total desprezo pela vida dos outros, inclusive da própria Aileen. Infantilizada, parece ser regida pelo princípio do prazer.

A violência do estupro, à qual Aileen é submetida, remete à situação pela qual passou na infância, com o adulto abusador e com o pai espancador. Matar os homens, que a enojam e horrorizam, é reverter a situação, em uma cultura de pulsão de morte, sem possibilidade de transformação. Traída pelo pai e pelos irmãos, Aileen será também traída por Selby, em troca de imunidade, e mais uma vez pela sociedade, que a condena à morte.

A edição da revista Veja datada de 16 de junho de 2004, em matéria assinada por Isabela Boscov, acrescenta algumas informações sobre a história de Aileen: ela foi deixada pela mãe aos seis anos e, a partir dos oito consta que passou a sofrer abusos sexuais sistemáticos, possivelmente inclusive por parte de seu avô. Sua infância foi miserável e solitária. Aos treze anos teve um filho, que deu para adoção, passando a viver nas ruas e a se prostituir. Quando foi presa, vivia da prostituição praticada em beira de estrada.

Imediatamente surgem-nos algumas perguntas: o que teria levado a mãe de Aileen a abandoná-la aos seis anos? Teria a ver com a relação com seu marido? O avô referido como abusador seria o avô materno? Neste caso, teria ele também abusado sexualmente da filha? Em se tratando do avô paterno, qual teria sido a relação do pai de Aileen com seu próprio pai, e particularmente na infância? Não temos como saber. Apenas podemos hipotetizar ter se tratado de vínculos familiares permeados por violência, descaso e abandono, em todos os sentidos, inclusive o social.

 

Considerações finais

A perversão caracteriza-se por relações parciais de objeto, em que a expressão da sexualidade se dá com crueldade e destrutividade, que são muito idealizadas. O outro é visto como coisa, como utensílio, de modo desumanizado e sem consideração. Há prazer em estragar, e o dano à sexualidade se dá com triunfo. A etiologia das perversões fundamenta-se na constituição individual e nas experiências tidas com o meio, com prevalência dos aspectos destrutivos da personalidade e dos comportamentos perversos dos pais. A perversão e as dificuldades na identidade de gênero formam-se a partir da junção da erotização com as fantasias hostis da criança. O contato físico, as manipulações e carícias excessivos e contínuos por parte da mãe – e/ou do pai, reforçamos – podem excitar a criança sexualmente e de forma inconveniente, devido a sua imaturidade e à falta de recursos para exercer sua sexualidade genital (Almeida e Lerner, 1996, 1999).

Favorecer a permanência tardia no quarto dos pais, a exposição da criança à vida sexual do casal, a sua nudez, e a excessiva intimidade física estimulada entre pais e filhos denotam perturbações devidas às fantasias dos pais com relação à sexualidade, que assinalam sua imaturidade afetivo-sexual e a precariedade na integração de seu psiquismo. Nessas circunstâncias, a criança acaba sendo tratada como coisa, e como tal, é desrespeitada, envergonhada e muitas vezes humilhada. A violência, sobretudo quando extrema, promove dificuldades na identificação e na formação da identidade de gênero, e por isto mesmo, acarreta dificuldades em lidar com o outro e com o gênero do outro.

Concordamos com Khan (1963), para quem as mudanças que se deram na compreensão do funcionamento psíquico a partir da psicanálise, e que foram alterando o entendimento da ação do trauma no psiquismo, não são excludentes. Ao abandonar a concepção do trauma como decorrente de um fator ambiental (sedução sexual), considerando que as cenas de sedução jamais teriam existido realmente, Freud passou a entendê-lo a partir das fantasias inconscientes e da realidade interna. Posteriormente, a partir da segunda teoria pulsional e da segunda tópica, o trauma adquiriu uma dimensão intersistêmica e pulsional, e por fim, Freud retomou suas preocupações com as situações traumáticas, com o impacto da surpresa e a excessiva angústia que causam, e as restrições na simbolização que promovem.

A evolução dos conceitos freudianos, a partir do abandono da cena de sedução na etiologia do trauma, não faz com que eles sejam excludentes, mas se integrem, permitindo um aprofundamento da compreensão do funcionamento psíquico. Consideramos importante ressaltar o radicalismo com que muitos analistas passaram a ouvir os relatos de seus analisandos adultos sobre situações de abuso sexual sofridas na infância, como se todos eles fossem fruto da vida de fantasia, como se não tivessem ocorrido, e mais uma vez um evento real pode estar sendo desmentido, o que está na própria origem do trauma, repetidose iatrogenicamente na situação psicanalítica, com seu cortejo de solidão, desamparo, confusão e ódio. Tratar de abuso sexual na infância gera angústia, e a nosso ver a teoria acabou por favorecer uma determinada escuta, que se mostrava mais “confortável”, salvo para o analisando, é claro. Ferenczi (1933) corajosamente irá contrapor-se a tudo isso, mas por muito tempo poucas referências serão feitas a seu artigo.

Zaslavsky (2004) aborda o trauma real a partir da obra de Freud e faz referências às conseqüências de perdas traumáticas precoces na vida psíquica e no desenvolvimento. Refere-se ao impacto que a depressão e privação maternas têm sobre a criança, favorecendo a vivência de um abandono psíquico (Green, 1980), ou perdas por morte real ou abandono, que quando vividas traumaticamente pela mãe, sem que ela tenha capacidade para fazer-lhes face, leva o filho a um luto mágico, gerador de confusão da identidade sexual e de embotamento intelectual e criativo (McDougall, 1989). Diz que as circunstâncias traumáticas associam-se a fantasias e podem ficar encapsuladas ou sob a forma de um “corpo estranho”, promovendo um incremento de feridas narcísicas à personalidade. Além disso, essas circunstâncias têm reflexos sobre o sujeito em sua relação com a realidade, em como ele percebe e se situa no mundo, e como se relaciona com as pessoas.

Pois bem, de acordo com a perspectiva kleiniana, a vida de fantasia está presente desde o início, e nada se passa com o sujeito sem que haja uma representação psíquica no nível da fantasia. Há também, desde o início, um aparelho psíquico organizado, com um ego, ainda que arcaico, capaz de sentir angústia e de mobilizar mecanismos de defesa para lidar com ela. Para Klein, o complexo de Édipo, conforme apresentado por Freud, é o apogeu de um processo iniciado muito antes, a partir da posição depressiva. Com o desenvolvimento, as questões edípicas intensificam-se e a criança se verá lançada em disputas “apaixonadas”, visando suas pretendidas conquistas. A superação do complexo de Édipo favorece a integração de seu psiquismo de forma organizada e o posterior acesso à sexualidade genital. No entanto, como Ferenczi (1933) tão bem entendeu, a linguagem da ternura da criança e a linguagem da paixão do adulto podem ser confundidas.

A situação edípica não diz respeito apenas à criança, mas se dá em mão dupla, envolvendo forçosamente os pais, que se vêem mobilizados em suas próprias questões, particularmente aquelas que não foram superadas, vivenciadas com seus próprios pais. Faimberg (2001) chama de configuração edípica a identificação da criança com a solução narcísica dada por seus pais a suas próprias vivências edípicas. Diz que não é sempre um conteúdo o que se transmite, mas sim um modo narcisista de solução de conflitos. É transmitido aos filhos, pelos pais, um funcionamento narcisista ao qual eles recorreram na tentativa de resolver seus próprios conflitos intrapsíquicos, inclusive os edípicos. Vemos, portanto, como continuamente a questão da transmissibilidade entre gerações está em ação.

Os adultos com predisposições psicopatológicas, que decorrem de sua constituição pessoal (balanço pulsional) associada a fatores ambientais inconvenientes, sobretudo em sua primeira infância, conforme vistos acima, confundem as brincadeiras das crianças com seus desejos de pessoa que já atingiu a maturidade sexual, e se deixam levar ao ato sexual – Ferenczi diz que sem pensar nas conseqüências. Concordamos com Almeida e Lerner (1996), para quem a perversão resulta de impulsos destrutivos para estragar, lesar, causar danos à sexualidade, especialmente à dos pais e à cena originária. O estrago à sexualidade da criança tem como conseqüência prazer e triunfo, e isto é visado. Vemos que muitas das vítimas de hoje – mas não todas – podem se tornar os algozes de amanhã. Cremos que o mais chocante para a criança seja sua compreensão, ainda que confusamente, da hostilidade atuante no psiquismo do outro, particularmente da mãe, quando esta não a protege.

Amendola (2004) propôs uma hipótese diagnóstica para as “mães que choram”; parece-nos que ela é apropriada para as companheiras de abusadores sexuais de crianças em geral, a diferença estando nas mães que apresentam uma atitude protetora pós-trauma, isto é, após a exposição da criança à situação de abuso – são as mães que choram – e as que não apresentam. Em ambos os casos, essas mães demonstram dificuldade de entender ou utilizarem-se dos sinalizadores prévios ao abuso, os quais, a nosso ver, estão sempre presentes, mas são negados ou desconsiderados. Existem várias razões para uma mãe não proteger seu filho, como ter ela própria sido vítima de abuso sexual na infância ou de estupro, particularmente quando muito jovem, ter tido iniciação sexual demasiadamente precoce, entre outras. Mas quaisquer que sejam elas, ela entra em conluio com o abusador e passa sua própria perversão “por procuração”.

Propomos chamar de trauma ativo o que permanece no psiquismo do sujeito, ativa e repetidamente, em ato e potência, sobretudo em se tratando de abuso sexual na infância, expressando-se em termos de violência, que pode ter as mais diversas manifestações, como depressões, atuações, promiscuidade, adições, quadros psicopáticos, quadros psicossomáticos etc, e que sempre expressam a ação da pulsão de morte. A situação traumática reproduz-se nas relações estabelecidas, ainda que isto possa se dar de maneira mais sutil, como isolamento e indisponibilidade para relacionamentos, sobretudo amorosos, e entre as gerações, em uma cadeia de violências intrasubjetivas, intersubjetivas e transubjetivas. Da mesma forma que o trauma cumulativo, ele é traiçoeiro, só que em vez de agir e se fixar por toda a infância e adolescência, ele o faz por toda a vida, e além dela, já que se reedita através das gerações.

Os efeitos do trauma dependerão da constituição do sujeito, de sua história, da forma como as pessoas de seu meio reagiram, e sobretudo da possibilidade de simbolização da experiência traumática. A ausência de representação, de possibilidade de simbolização, acarreta zonas psíquicas mortas (Bokanowski, 2003). Os psicanalistas têm aí um papel muito importante. No entanto, parece-nos que precisam sempre ter em mente que não estão tratando de uma situação apenas neurótica ou fantasiosa, mas de uma situação perversa, porque o analisando se viu exposto, em um estado de despreparo e dependência, a duas realidades, a fatual e a interna dos adultos envolvidos; pessoas que eram de sua confiança, que o desmentiram e demonstraram se comprazer em estragar e em tratá-lo como objeto utensilitário. Questões técnicas muito específicas estão em causa no tratamento de adultos que foram vítimas de abuso sexual na infância, mas este assunto pretendemos tratar em outra oportunidade.

Atualmente há mobilizações de recursos legais e assistenciais para a proteção de crianças vítimas de violência física, psicológica e sexual. As dificuldades no trabalho multidisciplinar são grandes, pelo impacto que as situações a serem tratadas causam no psiquismo dos profissionais envolvidos e também por outras “confusões de línguas”, derivadas das diferentes formações, e sobretudo, das diferentes situações psicológicas de cada um, do nível de integração psíquica que tenha alcançado, ainda mais no plano da sexualidade e da identidade de gênero. De qualquer forma, não importa qual seja a formação profissional, sua história estará sempre presente em sua possibilidade de escuta, que pode ser ampliada por meio do tratamento psicanalítico.

O trauma fere e feridas precisam de tratamento – por melhor tratadas que sejam, as muito grandes deixam sempre cicatrizes.

 

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recebido em 24/09/04
versão revisada recebida em 07/04/05
aprovado em 01/06/05

 

 

1 Doutora em Psicologia Clínica; Psicóloga do Instituto de Psicologia (UERJ); Membro Associado da Associação Psicanalítica do Rio de Janeiro (Rio 3) e da IPA.
2 Professora Titular do Departamento de Psicologia (PUC-Rio); Psicoterapeuta de Família e Casal.