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Interações

versão impressa ISSN 1413-2907

Interações v.10 n.20 São Paulo dez. 2005

 

ARTIGOS

 

Um caso e uma clínica: a proposta da psicanális e em um caso de esquizofrenia1

 

Psychoanalyses’ approach to a squizophrenia case

 

 

Renata Damiano RiguiniI

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo é fruto de uma prática em um serviço de Saúde Mental substitutivo aos manicômios. Neste espaço a discussão se faz em torno de um caso de esquizofrenia hebefrênica dita crônica de um paciente, que já se instaurara no desalinho de sua psicose, tendo muitas vezes sido tratado como um animal. Assim, a proposta aqui apresentada é de uma clínica possível com esse tipo de pacientes: que não têm hora marcada para ir ao consultório, não têm endereço para suas produções delirantes, enfim não têm quase nada. Articulando a psicanálise ao caso em questão, este trabalho é uma prática acompanhada da teoria que lhe sustenta, e desta forma, traz questões e contribuições aos que aí se aventuram.

Palavras-chave: Psicanálise, Psicose, Esquizofrenia, Tratamento, Instituição.


ABSTRACT

This article derives from practice in a mental heath service which has replaced a psychiatric hospital. Here, we discuss a case of hebephrenic schizophrenia regarded as chronic. This patient was many times treated as an animal in the institution. This paper proposes a possible clinical treatment for this kind of patients. There are patients who do not have a set time to go to the consulting room, who do not have an address for their delirium, in sum, who have almost nothing. Articulating psychoanalyses and this case-study, this paper connects theory and practice and, by doing so, raises issues and contributions to the study of psychoanalysis and schizophrenia.

Keywords: Psychoanalysis, Psychoses, Schizophrenia, Treatment, Institution.


 

 

O paciente que lhes apresento, chamarei de Ivo. Sua figura interessouse desde o primeiro dia de estágio em um Cersam, serviço substitutivo ao manicômio, pois tinha um jeito muito desorganizado, posturas e comportamentos considerados bizarros, praticamente não falava, não se dirigindo a ninguém. Ivo era um paciente que se destacava dos demais pacientes em tratamento no serviço. Sua história me impressionava. Morava em uma cidade do interior de Minas Gerais – a alguns quilômetros da cidade onde se encontra o serviço acima citado – com a família: o pai, madrasta e quatro irmãs. Sua mãe faleceu quando ele tinha 14 anos, sendo o único filho desse primeiro casamento do pai. Trabalhava como garçom em sua cidade, quando se mudou para Bahia, onde ao que parece, trabalhava colhendo arroz. Voltou para sua cidade natal dizendo-se médium, e segundo a família “se envolveu com religiões”. Em 1990 deu entrada no Naps da cidade; em 1991 foi internado pela primeira das oito longas internações. Sua madrasta fazia um movimento de tirá-lo de casa, no entanto seu pai sempre fora implicado no tratamento. Em 1994 a situação familiar começou a tornar-se insustentável e o próprio Ivo quis morar fora de casa, ou mesmo ser internado.

No período de 1996 a 2000, Ivo começou a piorar de forma acelerada. A família construiu dois quartinhos nos fundos da casa: no primeiro trancaram Ivo, no outro “internaram” seu pai, que estava com câncer. O quarto de Ivo tinha apenas uma janelinha, por onde passavam a comida e as irmãs “brincavam” de cutucá-lo com uma vara. Nesse período ocorreram muitas e longas internações, sem qualquer melhora do quadro clínico, principalmente no que se refere a sua inserção social. A declaração enviada do Naps para o Cersam descreve o quadro por heteroagressividade, errância, juízo crítico comprometido, comportamento social inadequado. Diagnóstico: esquizofrenia hebefrênica.

Em janeiro de 2002 Ivo chegou ao Cersam levado pelo dono de uma “casa de repouso”, onde o paciente vivia em más condições desde dezembro de 2001. A descrição de seu estado é: “agitado, delirante, desagregado, erotizado, confuso, riso estereotipado, sem contato verbal, comportamento bizarro em relação à alimentação (Ivo come coisas do chão ou do lixo, toma água do vaso sanitário, come as próprias fezes), e ao corpo (tirando a roupa e se masturbando em público). Além disso, “cultivava” um machucado na testa e outro na cabeça.

Ivo não respondia bem à medicação, quase não falava nos atendimentos individuais. Passava seus dias acuado, delirando e alucinando. Mantinha uma postura um pouco desafiadora, ao recusar-se a falar, ao dizer que só as pessoas normais têm que andar vestidas, ao falar que a psicóloga tenta atendêlo, ou ao nos ensinar, dizendo: “a imaginação é sua, o pensamento é meu”.

 

Uma possibilidade de intervenção: uma nova clínica2

Foi este o paciente que desde minha chegada ao serviço fez-me pensar na possibilidade da clínica psicanalítica em extensão, tendo como referência teórica, principalmente, as articulações de Alfredo Zenoni (2000) e Carlo Viganó (1999). A proposta da psicanálise em instituições psiquiátricas vem sendo discutida a partir do que chamamos segunda clínica de Lacan – uma clínica referendada em seu último ensino. Tentaremos delimitar esse campo, esclarecendo a existência e os contornos dessas duas clínicas.

Na primeira clínica encontramos um Lacan que considerava a existência de uma primazia do Simbólico; isto porque modelou sua teoria da constituição do sujeito baseado na metáfora paterna. O sujeito constituir-se-ia a partir do Outro, tesouro dos significantes, dado antes do nascimento do sujeito. Assim, para existir um sujeito como articulado a um significante que o representa para outro significante, conta-se especialmente com a ordem simbólica, na medida em que a metáfora paterna e o significante Nome-do-Pai dependem de tal ordem. O Nome-do-Pai está para a neurose assim como não está para a psicose; nesta última, esse significante encontra-se foracluído, implicando em um déficit.

Tal perspectiva sofre alterações nos pressupostos da segunda clínica, ganhando corpo com a formalização do nó Borromeu, capaz de enlaçar os três registros psíquicos – Real, Simbólico, Imaginário –, garantindo ao sujeito neurótico uma sustentação na realidade. O nó Borromeu, para se constituir, valer-se-ia do Nome-do-Pai como quarto elo, reforçando essa amarração. Dessa forma, não há uma hierarquia de registros – tal como havia uma primazia do simbólico na primeira clínica – a importância é dada ao nó, uma vez que os registros só podem funcionar de maneira articulada, estruturando a realidade na neurose. A novidade consiste em perceber que há uma foraclusão que está dada para todos, pois haverá sempre um significante que não se inscreverá no inconsciente do sujeito – neurótico ou psicótico. Frente a essa impossibilidade, o sujeito se arranjará da maneira que puder, criando o que Lacan denominou Sinthoma – uma forma de o sujeito enodar os três registros disjuntos.

Vimos que a neurose vem se valer do Nome-do-Pai para garantir o bom funcionamento do nó; o sinthoma neurótico é construído a partir desse significante. O sinthoma é uma forma particular de amarrar os registros, mas na neurose estará sempre articulado ao pai. Na psicose, entretanto, o sujeito não contará com o significante neurótico, o Nome-do-Pai, tendo que se haver, da maneira que puder, com o insuportável, e assim construir uma forma única de atar os registros psíquicos em um nó particular, a partir de um sinthoma singular. Nessa clínica, portanto, a psicose sai do âmbito do déficit, ganhando uma nova orientação, uma nova clínica que supõe formas de se sustentar na realidade para todos: esta é uma mudança radical. Assim, o sinthoma só poderá ser construído e apontado pelo próprio sujeito, pois existe a certeza que há um saber do sujeito sobre seu sinthoma. Esta característica postula uma conduta essencial para a clínica da psicose – o tratamento é mais do que nunca dirigido, direcionado pelo próprio sujeito, cabendo-nos seguir seus passos em direção a uma possível estabilização.

Carlo Viganó propõe, para as instituições que trabalham com saúde mental, a Construção do Caso Clínico. Tal prática supõe um trabalho nas instituições ligadas à saúde mental em equipe interdisciplinar. Segundo esse autor, construção nesse contexto tem um sentido estritamente freudiano, pois que se compromete a “colocar o sujeito a trabalho, registrar seus movimentos, recolher as passagens subjetivas que contam, para que o analista esteja disposto a ouvir a palavra, quando esta vier” (1999, p. 56). O caso será construído a posteriori, quando poderemos, depois do ato, saber se uma intervenção foi ou não bem empregada.

A construção do caso clínico exige que o trabalho seja feito em equipe, em que todos poderão contribuir, falando sobre aquele sujeito que está na instituição, a fim de recolher pedaços de seu discurso3. Esta prática apóiase efetivamente no discurso do sujeito, entendendo que somente assim, via discurso, poderemos conduzir cada caso. Há que se notar que cada caso deverá ser conduzido de forma singular, particular, articulada às direções apontadas pelo sujeito, escutadas pela equipe. Esse trabalho se propõe a construir um diagnóstico do discurso – e não do sujeito – partindo da sua relação com o Outro, percebida na construção, para que assim se possa intervir em sua fala, a fim de construir algo novo. Portanto, a proposta de Viganó “é que seja a construção do caso a produzir uma nova autoridade, que eu chamaria autoridade clínica” (p. 58).

A clínica estaria no princípio de tudo, seria uma escuta clínica em favor do sujeito. Viganó propõe também que qualquer tentativa de “reabilitação”4 seja feita a partir da clínica, porque entende que esta só fará sentido se partir do sujeito. Tal perspectiva parte do pressuposto que qualquer sujeito sabe da direção de sua “cura”, que seus sintomas não são nada além de uma tentativa de escape, que há mesmo um “saber-fazer” com seu sintoma. Assim,

o que o laço social fornece ao sujeito para reabilitá-lo permanecerá dentro da série dos objetos fornecidos pelo Outro materno. Nunca vai deixar o sujeito sair de sua dependência. Essa afirmação tem uma conseqüência: uma reabilitação só pode ter sucesso na condição de seguir o estilo que é sugerido pela estrutura subjetiva do psicótico, por seus sintomas. Poderíamos dizer de sua espontânea reabilitação ou, mais precisamente, de sua espontânea habilitação (p. 52).

Alfredo Zenoni também propõe uma psicanálise aplicada como forma de manter uma clínica feita dentro de uma instituição de saúde mental. Ele coloca que a prática comum entre psicanalistas – atender os pacientes em horário marcado dentro de seus consultórios – não tem sido suficiente a todos os pacientes psicóticos, e é precisamente isto que Ivo vem nos apontar. A psicanálise aplicada, como já fora anunciado, está pautada na segunda clínica de Lacan, portanto deve garantir ao sujeito suporte na direção do tratamento – direção única, particular de cada sujeito. A instituição deve estar pronta a receber o saber-fazer – savoir y faire – de cada um, e trabalhar a partir daí. Zenoni entende que a prática não é de um só, e não se dá em um único momento do dia; a prática na instituição é feita por muitos, se o sujeito assim demandar.

A psicose, mais do que qualquer estrutura, coloca-nos em posição de aprendizagem – estaremos sempre aprendendo com as soluções propostas por nossos pacientes, e devemos acompanhá-las. Desta forma, a clínica ampliada, a segunda clínica de Lacan, e a clínica feita por muitos, pressupõem uma desierarquização de saber, em que seremos sempre supostos não saber. Tal posição, de não saber, vem favorecer o encontro com o sujeito psicótico:

é por isto que quando o Outro se apresenta como Outro do saber, ele pode ser encontrado como sob uma forma erotomaníaca ou persecutória. Enquanto que a posição do sujeito suposto não saber deixa principalmente ao sujeito a iniciativa de saber (Zenoni, 2000, p. 20-21).

Esse esvaziamento de saber possibilita ao sujeito encontrar suas próprias soluções. Se, ao contrário, começamos a responder pelo sujeito, a direcioná-lo para onde acharmos conveniente, tiramos do sujeito a possibilidade de se estabilizar, de encontrar uma forma consistente de se movimentar na realidade – forma que só o próprio sujeito poderá indicar. Ao analista e à equipe de saúde mental cabe, portanto, acompanhar esse trabalho singular.

Em resumo, o trabalho possível seria estar atento ao que o paciente nos diz, escutar a forma que o mesmo está elaborando a direção de seu tratamento, para apoiá-la e sustentá-la, manejando como for possível, a favor do surgimento do sujeito. Para tanto, não há espaço para interpretações; o trabalho passa a ser de um deslocamento do sujeito via sua relação com o Outro – mesmo que esse “discurso” não passe muito pela fala, como no caso em questão. A aposta apóia-se em uma escuta atenta, disponível, que ofereça um espaço onde há vazio de saber e de gozo, onde um Outro retificado possa promover uma construção por parte do paciente.

O trabalho com Ivo parece-me um bom exemplo de uma clínica possível com pacientes esquizofrênicos ditos “crônicos”, baseada nos pressupostos apontados acima. Este trabalho começou nos corredores do Cersam, onde eu parava para conversarmos, mas um diálogo quase sempre foi impossível, uma vez que era muito difícil entender o que ele falava.

Em um segundo momento procuramos levá-lo ao Horto, onde eram oferecidas atividades físicas para os pacientes. Nessa empreitada contava com uma outra funcionária do serviço, Célia, pessoa de extrema importância na construção deste caso. Juntas conseguimos progressos relevantes no quadro de Ivo. Durante o tempo que passávamos no Horto, ele fazia as atividades propostas por uns dez minutos, depois começava a andar pelo local, a explorar todos os cantos. Às vezes queria sair, ou pegar coisas no, bar e contrariado, tirou a roupa por duas vezes. Nesse período criou o hábito de tomar banho, escovar os dentes e andar de sapatos, tudo “para passear”. Ivo não suportava as atividades fáceis que eram reservadas para os pacientes, preferindo arriscar-se no jogo de basquete do time feminino das escolas, que treinava ao lado. Não suportava, também, que andássemos atrás dele; nessas ocasiões adotei a frase “me leva para passear com você”, à qual ele respondia pegando-me pela mão, arrastando-me pelos locais mais inusitados do parque. Essa intervenção estava pautada em uma inversão da posição do sujeito: Ivo, quando andávamos atrás dele, era colocado em posição de objeto, posição insuportável, peculiar à psicose. Ao contrário, quando pedia que me levasse, era ele quem comandava; conduzia-me pelos seus caminhos, o objeto era eu. Desta forma houve uma mudança operada pela escuta de sua “fala”. Com sua postura ele dizia: “não preciso de uma babá”, e eu pensei que talvez ele gostasse de ter uma companhia para um passeio.

Foi durante essas atividades no Horto que Ivo, apoiado em uma confiança e em uma relação de cumplicidade que se estabelecia entre nós três, apontou-nos uma terra firme para uma possível relação transferencial, na medida em que nos colocamos ao seu lado, como secretárias do alienado, como apontara Lacan (1955-56), um lugar vazio de querer e de saber, acompanhando o trabalho que ele mesmo fazia, e intervindo somente quando necessário. Foram poucos os passeios, que foram suspensos por outros motivos. Mas apesar de poucos, já tinham dado um resultado significativo, principalmente no que se refere a seu contato social. Os outros pacientes começaram a tentar escutar o que ele dizia, começaram a perceber que era possível manter uma relação com ele. Ivo respondia muito bem a essas manifestações, a ponto de deitar-se na grama e convidar-nos para deitar com ele.

A questão do “tirar a roupa” era especialmente incômoda no serviço, que não funciona somente como hospital-dia, mas também como ambulatório, sempre cheio de pacientes diferentes. Esse comportamento de Ivo parecia ser atuado com algum incômodo de sua parte, que apontava para um real de um gozo dado pela não extração do objeto a5. Esse objeto, mantido como excesso no corpo psicótico e no Outro, devido à não incidência da castração, impede de haver uma localização do gozo em um fora-do-corpo, sendo vivido como um gozo real insuportável, que deve ser eliminado. Ivo não suportava carregar nada, guardar nada, mesmo sua roupa agredia seu corpo invadido, corpo que já sustentava algo a mais, o próprio objeto. Podemos pensar também que Ivo sem roupa participa-nos de seu “inconsciente a céu aberto”, de uma falta de barreira e de contorno no qual está mergulhado.

Uma intervenção se fazia necessária, porém o imperativo “vista a roupa, Ivo!”, nunca surtira efeito. Restava saber se além dessas premissas teóricas, certamente pertinentes, havia algum motivo para Ivo tirar tanto a roupa, e essa foi a primeira pergunta que lhe fiz. Primeira de muitas, tentando fazer com que ele pudesse indicar algum caminho para uma intervenção. Depois de muitas tentativas, uma fala minha teve efeito: “eu não quero te ver sem roupa”, fazendo-me pensar que tal comportamento era uma resposta ao imperativo de gozo do Outro, ao qual ele se entrega nu, inteiro, entrega esse corpo para esse Outro que o invade e o submete apenas com um olhar, uma frase ou um toque.

Certamente o olhar das pessoas estava participando desse ato. “Tirar a roupa” expressa-se como uma repetição no real do ponto onde coincidem sujeito e objeto, posição mortífera à qual está condenado o psicótico. Partindo dessa premissa, outra intervenção foi pensada: o banho privado. A ele, que quando tomava banho tirava a roupa antes de entrar no banheiro, permanecia de portas abertas, recebia uma roupa de algum auxiliar, ensaiamos uma nova forma de cuidado. Primeiro perguntava se ele queria tomar banho; se quisesse, levava-o para o almoxarifado para que ele pudesse escolher suas roupas – tarefa difícil, pois lá dentro ele erotizava a situação, tirava a roupa e chegou mesmo a pedir para eu estuprá-lo, oferecendo-se como objeto para meu gozo. Depois de algumas respostas negativas a esse oferecimento, nossa permanência no almoxarifado era tempo de conversar, rir e cantar. Uma vez que estava no banheiro, eu fechava a porta antes que ele tirasse a roupa, dizendo-lhe que seria bom não deixar ninguém vê-lo tomar banho, porque era um momento de intimidade. Ivo respondeu muito bem a essas intervenções, ainda que por vezes tire a roupa, dizendo-nos de um gozo invasivo, no corpo e no Outro, insuportável, ao qual ele responde entregando o que tem, destituindo-se do excesso.

Na oficina, apesar de não ter uma participação efetiva nas atividades propostas, Ivo por muitas vezes pegou papéis e escreveu a seqüência de palavras: sim- yes- certo- possível – palavras que me pareceram ritornelos, tal como Lacan propusera no Seminário sobre as psicoses (1955-56), pois que não remetiam a coisa alguma, a não ser a seus próprios sinônimos, em uma tentativa de dar uma significação. Posteriormente ele foi aperfeiçoando, na medida em que tais palavras foram acompanhadas por seus respectivos antônimos: não- no- errado- impossível, ensaiando uma lógica binária, no estilo do jogo do Fort-Da observado por Freud em seu netinho, que poderia dar início a uma cadeia significante, uma organização para o caos da sua desestruturação psíquica. Mais tarde, Ivo tenta amenizar esse sem-sentido usando a lógica da matemática, por muitas vezes repetidas e finalizadas com um certo grau de satisfação, diferentemente das primeiras seqüências, realizadas com angústia, também amenizada pela seqüência de antônimos procedente. A matemática entra como letra onde o gozo se adensa, gozo que extingue o sentido já foracluído para ele. A matemática, segundo Lacan (1975), tal como a caligrafia, condensa um gozo que é da escrita, da letra pura, onde não advém o gozo do sentido.

Ainda em seus escritos desorganizados, começou a colocar fragmentos de seu delírio e de sua história, com muito sofrimento também. Repetemse nessas “anotações”, como costuma chamar, o Roberto Carlos, nome ao qual curiosamente liga a palavra identificação. Ivo escreve também os nomes de algumas músicas desse cantor; às vezes canta, às vezes escreve toda a letra, principalmente de uma música que se parece tanto com ele: Resumo (“Qual folha que vaga, sem rumo e sem vida...”). Perguntei quais músicas de Roberto Carlos ele gostaria de ouvir, e ele fez uma lista. Na semana seguinte eu levei uma fita com todas as músicas gravadas. Quando escutou, Ivo dançou, cantou, chorou, dizendo-se romântico, sensível e tímido. Dentro dessa série romântica, ele escreveu também um poema, Minha verdadeira esposa, de Cecília Meireles. Além disto, escreveu sobre os assassinatos que cometeu e sobre sua própria morte. Escreveu fragmentos de orações ou passagens bíblicas, que chegaram em um ponto que não avançam mais, e ele começou a repetir as últimas palavras. Talvez possamos enxergar aqui outro fenômeno psicótico, que Lacan (1955-56) chamou de Holófrase, também no seminário dedicado às psicoses. Segundo o autor, devido a não incidência da metáfora paterna, há uma fixação em um significante, impedindo o deslocamento peculiar da cadeia.

Ivo muitas vezes disse que não é uma única pessoa, que tem um bom e um ruim. Essa fala me remete a esses escritos e a algumas outras que se repetem em seu discurso, em que ele aparece ora de uma forma romântica, sustentada em uma possível identificação com Roberto Carlos, ora de uma forma assassina – ele diz que já matou 69, “talvez 70”, inclusive seu pai. Um dia falou que deveria matar um fulano novamente. Perguntei se quando matava a pessoa, ela não morria, e ele respondeu: “você é inocente como uma criança”. De outra feita, parou-me no corredor do serviço, perguntando: “oi, querida... Por que você não trouxe uma faca para eu te matar?”; pergunta à qual respondi com uma careta e saindo de perto, barrando-o como instrumento de um gozo mortífero, relacionado a um traço perverso, que tal como quando tira a roupa, faz furo ao debochar do Outro onipotente, protegendo-o.

Sua fala continua comprometida, porém não se trata de um comprometimento neurológico ou do aparelho fonador (às vezes fala perfeitamente), parecendo traduzir a exterioridade psicótica à linguagem. Ivo parece fazer dessa posição de “fora-do-discurso”, dispostas nos seus “desenganches” do Outro, uma condição concreta. Podemos pensar uma intervenção trilhando o caminho que ele mesmo tem indicado. Ele pergunta por que as pessoas não entendem o que ele fala, e alguns dias depois escreve algumas coisas, indagando: “dá pra entender?”. Logo depois, os papéis que escrevia passaram a ter um destino diferente. Antes ele jogava-os no lixo ou no chão, para depois colocá-los no livro de plantão do serviço, na sala dos técnicos. Por outras vezes escrevia no próprio livro, mostrando que sua fala tinha agora um endereço: a equipe do Cersam.

Ivo, de comportamentos tão autistas, foi capaz de estabelecer um pequeno laço com a estagiária, um pequeno “enganche” que o fazia falar. Não sabemos se esse laço pode ser chamado transferência; no entanto, ele dá alguns significantes para essa relação. Por vezes me chamava de Miriam Rios (a esposa de Roberto Carlos); em outras dizia que sou “inocente como uma criança”. Quando chegava distraída – propositalmente – no serviço, fazendo que não o tinha visto, ele me buscava sorrindo, dando voltas em torno de mim, como quem não quer nada, ou apenas olhava, olhava e sorria. Surpreendi-me quando Ivo passou a se despedir de mim quando ia embora, ou quando na despedida do final de meu estágio disse que me amava, e dando-me uma lambida. No entanto, a posição que deveria me manter ele sempre indicou: a inocência (o não saber), a distração (não querer) e o cuidado, que faz dele um ser-humano, não um objeto.

 

Referências Bibliográficas

LACAN, J. (1955-56/1992). O Seminário, livro 3: as psicoses. 2. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.        [ Links ]

LACAN, J. (1975). Seminário 23: Joyce o Sinthome. (inédito).        [ Links ]

RIGUINI, R.D. (2003). Estabilização na transferência: uma possibilidade na corda bamba. Monografia (Trabalho de Conclusão de Curso). Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Betim.        [ Links ]

VIGANÓ, C.A. (1999). Construção do caso clínico em saúde mental. Curinga. (13): 55-59. Belo Horizonte.        [ Links ]

ZENONI, A. (2000). Psicanálise e instituição: a segunda clínica de Lacan. Abrecampos. I(0): 13-32. Belo Horizonte: Instituto Raul Soares.        [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Renata Damiano Riguini
Rua Caratinga, 27 / 113 – Bairro Anchieta
30310-510 – Belo Horizonte/MG
Tel.: (31) 3225-0388
E-mail: riguini@uol.com.br

recebido em 15/08/04
versão revisada recebida em 22/05/05
aprovado em 16/12/05

 

 

Notas

I Graduada em Psicologia e com Especialização em Clínica Psicanalítica (Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais/Núcleo Betim).
1 Artigo produzido a partir do caso apresentado e discutido pela autora em supervisão do estágio de extensão em saúde mental, supervisionado pelo Prof. Renato Diniz da Silveira, em outubro de 2002.
2 Neste trabalho atenho-me aos desdobramentos do caso em questão no que concerne ao meu trabalho, e somente um pouco sobre o extenso trabalho de Célia A. Graça, auxiliar no Cersam. No entanto, é preciso esclarecer que Ivo contava na equipe com um psiquiatra, uma psicóloga e o investimento de todos os funcionários.
3 O termo discurso, tal como empregado por Viganó no texto citado, não tem a conceituação dada por Lacan no Seminário 17. Ou seja, quando falamos, com Viganó, de diagnóstico do discurso, não nos referimos aos discursos formalizados por Lacan, mas à fala do sujeito, como será apontado pelo caso.
4 O termo “reabilitação” foi colocado entre aspas devido às restrições que percebemos a seu uso. Ou seja, dizer de reabilitação é dizer que existe alguém que não está habilitado. Definitivamente, não é esta nossa postura.
5 Durante a constituição do sujeito se dá a extração – ou não – do objeto a. Ao nascer, o ser humano é como um bolo de carne, cheio de furos por onde a pulsão descoordenada circula – o que Freud chamou de auto-erotismo, fase onde estariam fixados os esquizofrênicos. No contato com o Outro, o corpo da criança é investido e vai ganhando contorno. Nesse trabalho, alguns pontos desse corpo vão ganhando um investimento diferenciado, na medida em que são tocados pelos significantes dos pais – que normalmente encarnam essa função de Outro – e pelo prazer que oferecem; desta forma vão sendo simbolizadas, tornando-se zonas erógenas, por onde a pulsão circula. Essa operação garante uma localização do gozo, outrora disperso pelo corpo, aquele que mantinha o mesmo como corpo despedaçado.A localização do gozo dar-se-á em torno do objeto a, objeto resto da cadeia significante – que aparece como impossível de dizer – e objeto causa de desejo, uma vez que o desejo procura reencontrar seu objeto perdido. Lacan formalizou quatro pulsões parciais que podem se revestir como o objeto a: pulsão escópica, oral, anal e invocante. O objeto a garante uma satisfação diferenciada do simples e puro autoerotismo das zonas erógenas, isto porque “o objeto a é algo de que o sujeito, para se constituir, se separou como órgão” (Lacan, 1964, p. 101). O sujeito barrado é o próprio furo concernente à extração do objeto. Na psicose não há a extração do objeto a; desta forma, implica em um tudo-saber, em uma multiplicação de vozes e olhares. O objeto a não se separa do corpo nem do Outro, onde se mantém o gozo (Riguini, 2003, p. 35).