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Interações

versão impressa ISSN 1413-2907

Interações v.10 n.20 São Paulo dez. 2005

 

ARTIGOS

 

Fragmentos da vida: representações sociais de doação de órgãos para transplantes

 

Life fragments: social representations of organs donation for transplants

 

 

Márcia Aparecida de Abreu Fonseca1; Alysson Massote Carvalho2

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

o presente artigo tem como objetivo central descrever as representações sociais de uma comunidade hospitalar acerca da doação de órgãos para transplantes. Foram sujeitos da pesquisa profissionais de quatro instituições hospitalares atuando em unidade de internação e pacientes e familiares pré e pós-transplante, totalizando 18 sujeitos, divididos em cinco grupos; Grupo 1 (9 profissionais de saúde); Grupo 2 (5 pacientes pré-transplante); Grupo 3 (2 pacientes pós-transplante); Grupo 4 (1 familiar pré-transplante); Grupo 5 (1 familiar pós-transplante). Os dados obtidos por meio de entrevistas semi-dirigidas foram submetidos a uma análise de conteúdo. Morte, vida e solidariedade foram as categorias finais associadas à doação de órgãos para transplantes, construídas pela comunidade hospitalar. As representações sociais da doação de órgãos para transplantes construídas expressam a necessidade de humanização das equipes de saúde e das relações entre pacientes, familiares e profissionais de saúde.

Palavras-chave: Representação social, Doação, Transplantes, Humanização, Comunidade hospitalar.


ABSTRACT

the central purpose of the article is to describe the social representations of a hospital community regarding organ donation for transplants. We interviewed professionals working in four hospitals (in in-patients awards) and patients and their relatives during pre and post transplantation. We interviewed a total of 18 people divided into five groups: Group 1 (9 health professionals), Group 2 (5 pre-transplant patients), Group 3 (2 post-transplant patients), Group 4 (1 relative of a pre-transplant patient), and Group 5 (1 relative of a pos-transplant patient). The data obtained using semi-structured underwent a content analysis. Death, life and solidarity were final categories associated to organ donation constructed by the hospital community. These social representations of organ donation for transplants show the need of a more humane relationship among patients and their relatives and health professionals.

Keywords: Social representations, Donation, Transplants, Humanization, Hospital community.


 

 

Introdução

No campo teórico das representações sociais proposto por Moscovici (1961), o termo representação social engloba aspectos cognitivos, sociais, práticos, culturais e sociológicos. Esse cruzamento denso e contínuo da noção de representação social com séries de conceitos psicológicos e de conceitos sociológicos conferiu-lhe o caráter multifacetado, que abarca uma gama de fenômenos e articulações explicativas.

Moscovici (1978) propõe a configuração da estrutura das representações sociais a partir de três dimensões: informação, atitude e campo de representação propriamente dito ou imagem. A dimensão da informação abrange a estrutura de conhecimentos que um grupo possui acerca de um determinado objeto social; a dimensão do campo da representação refere-se ao conteúdo concreto de proposições ligadas a um aspecto preciso do objeto da representação; e a dimensão da atitude focaliza a orientação global junto a esse objeto da representação, conforme Sá (1996).

Além da estrutura da representação social configurada em dimensões, a idéia de processo é constante na explicação do fenômeno. A criação das representações sociais é feita com o objetivo de tornar familiar o que a princípio se apresenta como não-familiar, e dois processos são necessários para a operação: a ancoragem e a objetivação. O primeiro relaciona-se ao movimento de classificação do desconhecido (“amarração”). Aqui está implicado um juízo de valor para a seleção de categorias possíveis para a classificação. Já a objetivação implica em tornar visível ou mais concreta a realidade, ou seja, ligar uma imagem a um conceito ou abstração. Uma espécie de materialização da palavra, resume Jodelet (1984).

As representações sociais dizem sempre de um objeto, ocupam um lugar, exercendo uma função construtiva e reconstrutiva da realidade. O social possui sua dimensão objetiva, assim como a representação que vem ocupar o espaço da distância, fazendo com que um trabalho seja tecido, aproximando sujeito e objeto. Com a representação, um jogo de ausência e presença é estabelecido, resume Jovchelovitch (2000).

É possível considerar o estudo das representações sociais a partir da perspectiva de alcançar os conhecimentos sociais gerados pelos sujeitos como seres em um mundo (contexto) onde outros coabitam, o que implica em considerar a identidade do sujeito como co-produção de sua existência em uma realidade social.

A criação de representações sociais estaria ligada à necessidade de codificar as lacunas geradas pela experiência de conviver com os outros, pela própria constatação de sermos reconhecidos somente pela presença do outro. Eis aqui a “conversação” entre dois, com suas possibilidades de sucesso ou fracasso nas significações dos códigos e sinais emitidos na vida cotidiana dos sujeitos. Por essa razão, as representações sociais assumiriam a missão básica de familiarizar o desconhecido, de tornar familiar o que é estranho.

Moscovici (1978) afirma que as representações sociais “determinam o campo das comunicações possíveis, dos valores ou das idéias presentes nas visões compartilhadas pelos grupos, e regem, subseqüentemente, as condutas desejáveis ou admitidas”. Dessa forma, a comunicação social coloca-se na base das representações sociais e também é ela própria, segundo Jodelet (1989), o instrumento de transmissão e portadora de representações sociais.

Nesse campo teórico das representações sociais, observa-se que o contexto é tomado como fundamental. Todas as pessoas estão ligadas a um determinado momento histórico, vivenciando conseqüências de decisões ou condutas tomadas por coletividades humanas que as antecederam. As representações sociais vão constituir justamente o produto simbólico dos sujeitos frente a um vivido histórico e social.

Nessa perspectiva, este trabalho foi desenvolvido tendo como referência o conceito de representação social proposto por Jodelet (1989). Para essa autora, representação social é uma modalidade de conhecimento socialmente construído e partilhado, com finalidades práticas e reconstrutivas da realidade social.

Tema atual e de mobilização progressiva, os transplantes de órgãos e tecidos vêm ocupando espaço na vida cotidiana das pessoas, visto terem deixado de ser um procedimento experimental para se estabelecer como conduta médica terapêutica. A doação de órgãos, condição fundamental para a realização de transplantes, torna-se elemento constituinte dessa complexa rede de interação social emergente.

Nesse sentido, este artigo tem como objetivo central descrever as representações sociais da doação de órgãos para transplantes em uma comunidade hospitalar, a qual é entendida como o conjunto de pessoas ligadas à instituição hospitalar pela via do trabalho ou pelo adoecer próprio ou de um familiar.

 

Transplantes e doação de órgãos

Neste tópico discutiremos aspectos ligados às questões mais gerais sobre transplante e doação. Esse processo teve início historicamente a partir de experiências com transplantes envolvendo animais, evoluindo, em um momento posterior, para sua utilização com seres humanos.

O termo transplante foi utilizado pela primeira vez por John Hunter, em 1778, quando o pesquisador descreveu sua experiência com órgãos reprodutores em animais. Desde então, uma série de tentativas marcaram a história dos transplantes, conforme descrito a seguir.

Nos primeiros anos do século XIX, os auto-transplantes de pele começaram a ser realizados. Em 1881, foi o início dos alotransplantes ósseos. O primeiro transplante de córnea data de 1905, e o primeiro transplante renal humano foi realizado em 1933 por Voronoy, cirurgião ucraniano. Em 1939, o primeiro transplante de medula óssea era feito em um paciente portador de anemia grave após exposição a sais de ouro. Em 1963, em Denver, Colorado, o Dr. Thomaz Starzl transplantou o primeiro fígado em humano. O cirurgião Barnard foi o primeiro, em 1967, a realizar um transplante cardíaco. Em relação aos transplantes de pulmão, até 1950 somente haviam sido feitas experiências em cães. Esse breve histórico dos transplantes sinaliza que a doação de órgãos passa a ser fundamental para sua realização (Pereira, 2000).

Porém, assim como outras conquistas favorecidas pela evolução da tecnologia do século XX, os transplantes de órgãos e tecidos humanos configuraram-se como questão complexa em suas dimensões sociais, legais e éticas.

Uma das razões está na demanda crescente por transplantes, em escala maior que a efetivação de doações. Com isso, as listas de espera por um órgão ampliaram-se e a doação de órgãos também caracterizou-se em um quadro complexo do ponto de vista jurídico, visto ter sido entendida como algo passível de comercialização ou de incentivos financeiros por alguns profissionais, como por exemplo, Byrne e Thompson (2001).

A Organização Mundial da Saúde não aprova tal direção e defende que as partes do corpo humano não podem constituir objeto de transações comerciais (Degos, 1994). A noção de doação de órgãos, portanto, exclui qualquer forma de pagamento ou recompensa material.

Em função da demanda crescente, observamos o número progressivamente maior de transplantes realizados em todo o mundo e também no Brasil. O interesse pela área aumentou de forma significativa nos últimos anos, marcado pela busca de transplantes por parte de um contingente maior de pessoas, pela busca de resultados por meio de pesquisas, além do aperfeiçoamento de técnicas, fármacos e da assistência ao paciente, doador e familiares. Entretanto, todos esses avanços tecnológicos não são acompanhados por posições claras ou definidas sobre os aspectos, sobretudo éticos e psicológicos, relacionados ao tema. Esse contexto constitui oportunidade para que as concepções de caráter mais geral relacionadas ao assunto possam, agora, ser relacionadas ao campo das representações sociais.

Nesse sentido, a contemporaneidade dos transplantes e da doação de órgãos caracteriza em geral uma bibliografia ainda restrita para o assunto. Especificamente sobre representações sociais dos transplantes, encontramos apenas um estudo (Moloney, 2000) e nenhum sobre a doação de órgãos para transplantes.

O estudo de Moloney (2000) traçou historicamente o desenvolvimento das representações sociais do transplante de órgãos. Pela análise de mensagens de um jornal, os resultados mostraram que a representação social do transplante emerge como um campo representacional organizado em torno de um conflito. Um dos aspectos do campo representacional é orientado pela medicina, centralizado em uma imagem (ícone) de uma cirurgia que envolve a troca de peças sobressalentes. A idéia final desse estudo nos remete à noção de corpo e a uma possível organização subjetiva visando assimilar o transplante.

As questões apresentadas pelo estudo somam-se às reflexões sobre o corpo que encontramos no texto de Bendassoli (2000), no campo da Psicologia Social, em que o tema doação de órgãos vem mobilizando suas primeiras investigações e discussões teóricas. Esse autor investiga o impacto da doação de órgãos sobre a relação que uma pessoa estabelece com seu próprio corpo. Suas conclusões colocam a doação de órgãos primeiramente como responsável pela fragmentação do corpo nas práticas e discursos, em prol do saber médico e científico, com hipótese final de que a doação de órgãos faz do corpo humano um “não-lugar”, retirandolhe os investimentos simbólicos que antes o veiculavam como instrumento de relacionamento social e vetor de identidade.

Existem diversos trabalhos de várias partes do mundo abordando aspectos como o papel dos profissionais de saúde, da abordagem da família e de fatores econômicos vinculados à doação de órgãos para transplantes.

Assim, em estudos como os de Pearson e Zurynski (1995), Molzahn (1996), Kent e Owens (2001) e Randhawa (1998), o papel do profissional de saúde (especialmente da área médica e da enfermagem) é visto como fundamental para a doação de órgãos e tecidos. Os profissionais, em sua maioria, manifestam-se favoráveis aos transplantes e à doação de órgãos, mas revelam diversas dificuldades em relação às etapas do processo de doação, que vão desde a notificação oficial de um potencial doador, a manutenção clínica desse doador, até a abordagem adequada da família para informar sobre a morte encefálica, com a solicitação da doação, culminando no consentimento ou recusa familiar. Os obstáculos aparecem em forma de conflitos psicológicos ou religiosos, que parecem interferir nas decisões ligadas à doação, à notificação oficial de morte cerebral ou à capacitação clínica frente a um potencial doador.

Em relação à abordagem da família, os trabalhos de Dixon e Abbey (2000) e de Siminoff, Arnold e Hewlett (2001) mostram que a decisão de doar é difícil, e a família deve ser estimulada a pedir ajuda de amigos e outros parentes. A opinião de que o potencial doador era contra a doação tem sido o mais forte indicador da não-doação pelas famílias, mas sabese que outros elementos também estão por trás de toda essa dificuldade. Eles envolvem desde preocupações práticas ligadas a possíveis conseqüências sobre o funeral do familiar, posições psicológicas e restrições religiosas, até questões ligadas a costumes, etnias e culturas, e fazem parte da rede complexa do processo de doação.

Os trabalhos de Lam e McCullough (2000) e de Sanner (1998) defendem a necessidade de contextualização de uma determinada produção coletiva na discussão das questões éticas relativas à doação de órgãos e transplantes em todo o mundo.

E, finalmente, abordando os aspectos econômicos ligados ao tema, há estudos como os de Byrne e Thompson (2001) e de Harris e Alcorn (2001), que falam de incentivos econômicos para solucionar a questão da escassez de órgãos. Em algumas partes do mundo, um mercado de órgãos humanos se faz presente, alertam Berlinguer e Garrafa (1996). Profissionais e pesquisadores da área médica, contrários a essa prática, esforçam-se em estimular a doação voluntária, apostando que esta seria a maneira mais saudável e segura para o ser humano lidar com a questão.

Fazendo uma avaliação dos estudos abordados neste artigo, observamos que muitas vezes apresentam um foco restrito para lidar com o assunto. Assim, entre outras ações, sugerem mais investimento em treinamento para as equipes de saúde e em educação específica para as populações. Todavia, não ampliam o contexto de abordagem do tema, considerando o coletivo de todos os atores sociais envolvidos com a doação de órgãos. Isso aponta para uma lacuna significativa no estudo sobre a doação de órgãos, espaço passível de ser ocupado por pesquisas psicológicas e pelo campo teórico das representações sociais.

 

Doação de órgãos e representações sociais

Abordando a doação de órgãos em estudos de representação social, no Brasil começam a surgir trabalhos ligados ao tema no campo teórico. Por exemplo, a pesquisa de Silva et al. (2001) acerca das representações sociais sobre a doação de sangue constituiu estudo qualitativo realizado em uma clínica de um serviço de hemoterapia do estado de Pernambuco. A entrevista estruturada foi instrumento de coleta de dados junto a trinta doadores de sangue do serviço, e baseou-se principalmente nos motivos da doação de sangue, na relação entre sangue e saúde e em como se dá a comunicação entre doador/instituição. Os resultados apresentados colocam o parentesco como a principal razão da doação. Em seguida, a solidariedade, o interesse por exames sorológicos e finalmente para “renovar” o sangue ou “substituir” a menstruação. Também constatouse que os doadores procuram o serviço de hemoterapia devido ao nãoatendimento de suas necessidades básicas de saúde por outras unidades. A idéia de fragmentação das equipes de saúde é trazida nesse estudo como fator prejudicial, reforçando uma visão estigmatizada do doador e suas intenções.

Com o presente estudo de representações sociais da doação de órgãos para transplantes, buscou-se identificar e relacionar aspectos das possíveis estratégias de assimilação e troca de informações acerca de um novo processo na vida das pessoas. Para isso, é fundamental que haja a consideração de que as concepções individuais não produzem as representações sociais, mas constituem seus meios de expressão, conforme Jovchelovitch (2000).

 

Método

A investigação caracterizou-se como descritiva e exploratória devido à contemporaneidade do tema doação de órgãos, ainda com reduzidas investigações psicossociais na área da Psicologia Social, como descrito no item Doação de órgãos e representações sociais.

A expressão “comunidade hospitalar”, conforme dito acima, é aqui entendida como o conjunto de pessoas ligadas à instituição hospitalar pela via do trabalho ou pelo adoecimento próprio ou de um familiar. Nesta pesquisa, a comunidade hospitalar foi constituída por profissionais de saúde de quatro instituições, pacientes e familiares, cuja inter-relação ocorre no contexto do espaço físico do hospital, considerando a subjetividade presente na missão típica dessa instituição, que envolve a condição de adoecimento e tratamento dos sujeitos. Torna-se relevante explorar o conhecimento gerado por esses sujeitos, o que produzem frente à doação de órgãos, como a estão assimilando e transmitindo entre si e a outros grupos.

Pela posição social privilegiada que ocupam em relação à saúde, os profissionais podem ser considerados sujeitos difusores de idéias e informações. Além disso, o saber médico, aqui representado pelo viés hospitalar, continua exercendo uma mobilização significativa no contexto social. Nas sociedades ocidentais o hospital tornou-se, por excelência, o lugar medicalizado do nascimento, da doença, da cura e da morte – esta tendendo a ser recusada, como assinala Ariès (1977).

 

Instituições

Os profissionais entrevistados pertenciam a quatro instituições hospitalares, todas se configurando hospitais de grande porte, localizados na mesma cidade.

Diferenciando as instituições, o Hospital A é um hospital geral privado, no qual há a realização de transplantes (de um a dois tipos de órgãos) em número reduzido e ocorrências isoladas. O Hospital B é uma instituição filantrópica, com grande atendimento ao Sistema Único de Saúde/SUS, realizando transplantes, especialmente de rins. O Hospital C é um hospital público universitário, com número expressivo de transplantes realizados, de vários órgãos e tecidos (fígado, rins, medula óssea, córnea e pulmão). O Hospital D é um pronto-socorro da rede pública estadual e não realiza transplantes.

 

Sujeitos

Um total de 18 pessoas, oito mulheres e dez homens, membros de uma comunidade hospitalar, foram sujeitos desta investigação, sendo nove profissionais, sete pacientes e dois familiares (Tabela 1).

TABELA 1
Sujeitos da pesquisa

Sujeito

Sexo

Idade

Escolaridade

Profissão

Instituição

Profissional

M

46

Ensino superior

Médico clínico

Hospital A

Profissional

F

32

Ensino superior

Enfermeira

Hospital B

Profissional

F

31

Ensino superior

Nutricionista

Hospital B

Profissional

M

29

Ensino superior

Médico clínico

Hospital A

Profissional

M

45

Ensino superior

Médico psiquiatra

Hospital C

Profissional

F

42

Ensino superior

Médica clínica

Hospital B

Profissional

M

29

Ensino superior

Médico residente

Hospital C

Profissional

F

27

Ensino superior

Médica residente

Hospital C

Profissional

F

47

Ensino superior

Psicóloga

Hospital D

Paciente
pré-transplante (medula óssea)

F

19

Ensino médio

Estudante e
vendedora

Hospital C

Paciente
pré-transplante (pulmão)

M

41

Ensino fundamental
incompleto

Auxiliar de
cozinha

Hospital C

Paciente
pré-transplante (fígado)

F

39

Ensino fundamental
incompleto

Aprendiz de
instrumentação

Hospital C

Paciente
pré-transplante (medula óssea)

F

22

Ensino médio

Dobradeira de meias

Hospital C

Paciente
pré-transplante (fígado)

M

56

Ensino fundamental
incompleto

Soldador
aposentado

Hospital C

Paciente
pós-transplante
(rim)

M

40

Ensino superior

Engenheiro

Hospital C

Paciente
pós-transplante
(rim)

M

37

Ensino fundamental

Vendedor

Hospital C

Familiar
pré-transplante (medula óssea)

M

19

Ensino fundamental

Banconista

Hospital C

Familiar
pós-transplante
(rim)

M

46

Ensino fundamental
incompleto

Motorista e vendedor

Hospital C

Pacientes e familiares foram escolhidos aleatoriamente dentre aqueles que se encontravam na sala de espera do ambulatório de transplantes do Hospital C. Já os profissionais foram indicados por colegas do Hospital C, não pertencentes ao campo de conhecimento pessoal da pesquisadora. Dentre os profissionais entrevistados, três foram do próprio Hospital C e os seis restantes das outras três instituições hospitalares (Hospitais A, B e D).

A idade dos participantes variou entre dezenove e cinqüenta e seis anos, sendo trinta e seis anos a média de idade entre os profissionais; igualmente de trinta e seis anos a média entre os pacientes e de trinta e dois anos a média entre os familiares. A distribuição por sexo entre os profissionais foi de quatro homens e cinco mulheres; entre os pacientes foi de quatro homens e três mulheres; e entre os familiares de dois homens e nenhuma mulher, conforme descrito na Tabela 1. Quanto à escolaridade, todos os profissionais eram de nível superior. Entre os pacientes e familiares, alguns possuíam ensino fundamental incompleto ou completo; outros, ensino médio; e um paciente, ensino superior.

 

Procedimentos de coleta

A entrevista individual semi-dirigida foi utilizada como instrumento de coleta. Foram elaborados cinco roteiros para a entrevista: a) Profissional; b) Paciente pré-transplante; c) Paciente pós-transplante; d) Familiar pré-transplante; e) Familiar pós-transplante. Foi realizado um pré-teste com três participantes, que não foram incluídos como sujeitos do estudo: uma psicóloga, um médico e uma paciente prétransplante, para verificar a adequação das questões.

Os roteiros utilizados nas entrevistas foram constituídos por perguntas envolvendo a doação de órgãos e transplante, relacionadas aos seguintes aspectos: doação de órgãos (na família, em vida e após a morte), morte cerebral, expectativas frente ao transplante, experiência com equipe de saúde ou de transplante, mudanças na vida levando a mudanças de opinião sobre doação de órgãos e transplantes.

Assim, algumas questões foram feitas para todos os grupos de sujeitos (profissionais, pacientes e familiares), como: associação livre (“três primeiras palavras que lhe ocorrem quando escuta doação de órgãos para transplantes”); opinião sobre doação (em vida e após a morte); se possui familiar que teve algum órgão efetivamente doado; o significado de morte cerebral; descrição da experiência em equipe(s) de transplante ou saúde.

Para os grupos paciente pré-transplante, paciente pós-transplante, familiar pré e familiar pós-transplante foram feitas outras perguntas, como: se a opinião sobre doação mudou após ter necessitado de um transplante (ou o familiar ter necessitado); expectativa (antes e depois) frente ao transplante (ou de seu familiar); como estavam se sentindo naquele momento de suas vidas, lidando com um transplante, para pacientes e familiares. Foi perguntado ainda a esses quatro grupos sobre o que eles acham que os profissionais pensam sobre doação de órgãos para transplantes.

Já os profissionais foram indagados, entre outros aspectos, sobre o que muda na vida do paciente e de sua família após um transplante.

Finalmente, a todos os sujeitos no encerramento da entrevista, foi perguntado se gostariam de acrescentar algo, dando oportunidade de exporem mais idéias, que tenham sido suscitadas por ocasião da entrevista.

Apesar de sua heterogeneidade, em função dos diferentes tipos de formação profissional e filiação institucional (Tabela 1), os profissionais foram agrupados pelo traço do trabalho na área de saúde, por vivenciarem a rotina de unidades de internação, acolhendo pacientes portadores de diversas patologias, algumas delas culminando em transplantes.

Já os pacientes configuraram grupos pela via do adoecimento próprio, experiência de um transplante ou espera dele. Os familiares foram diferenciados em dois sub-grupos, em função da especificidade da experiência de se ter um parente que já se submeteu ou daquele que lida com outro paciente que aguarda a realização de um transplante.

As entrevistas com os profissionais foram realizadas em horário de trabalho, nos consultórios particulares ou nos hospitais. Já os pacientes e familiares entrevistados foram abordados aleatoriamente, na sala de espera do ambulatório de transplantes do Hospital C. Os pacientes pré e póstransplante aguardavam a chegada de seus médicos para consultas de rotina. As entrevistas com pacientes e familiares realizaram-se em um dos consultórios do próprio Hospital C. Em quatro dias de abordagem foram entrevistados sete pacientes e dois familiares ligados às equipes do hospital, de transplante de fígado, medula, rim e pulmão. Os entrevistados assinaram termo de consentimento livre e esclarecido, de acordo com a Resolução 196/96 para pesquisas com seres humanos.

 

Análise e discussão dos resultados

Os grupos de sujeitos foram classificados da seguinte forma: Grupo 1= Profissional de saúde; Grupo 2= Paciente pré-transplante; Grupo 3= Paciente pós-transplante; Grupo 4= Familiar pré-transplante; Grupo 5= Familiar pós-transplante.

Para a análise e discussão dos resultados foi utilizada a análise de conteúdo (Bardin, 1988). Essa técnica foi definida para a abordagem do material textual das entrevistas, considerando que no estudo das representações sociais, as técnicas de análise usualmente empregadas são aquelas que almejam alcançar as associações de idéias ou sentidos ligados ao tema de interesse.

Após a transcrição, as falas dos participantes foram organizadas em matrizes por grupos de sujeitos, de acordo com cada questão dos roteiros da entrevista. No processo de categorização das falas obtidas nas dezoito entrevistas, utilizou-se a análise de conteúdo com a classificação dos elementos a partir da procura de uma organização das mensagens. Ainda não era possível saber quais elementos configurar-se-iam como categorias significativas. As leituras e releituras das falas dos sujeitos conduziram à inferência dos temas.

Foi feita uma comparação das categorias apresentadas pelos grupos entre si, conduzindo aos elementos finais. Tal processo seguiu a ordem das questões de cada roteiro de entrevista, observando-se que algumas perguntas foram feitas para todos os grupos de sujeitos, enquanto outras não, conforme dito acima.

Assim, o estudo de cada questão culminou na definição de categorias, alguns temas-chave, que puderam ser enumerados como unidades de referência para a discussão das categorias finais, como por exemplo: conceito de doação de órgãos; a opinião sobre doação de órgãos; expectativas e mudanças frente ao transplante; doação em vida; doação após a morte; conceito de morte cerebral; experiência com equipe de transplante ou saúde; e propostas para a área de saúde.

Doação de órgãos e transplante na família, experiência com a equipe de transplante ou saúde e propostas para a área de saúde constituíram categorias ligadas às representações finais encontradas.

Avaliando a produção dos sujeitos, observamos que do total de dez homens e oito mulheres entrevistados, não houve grandes variações por gênero para as questões dos roteiros.

Já levando em consideração a escolaridade, os sujeitos com escolaridade de nível superior (profissionais e um paciente) apresentaram maior riqueza na comunicação e diversidade de idéias, de informações e associações ligadas à doação e ao transplante, se comparados aos outros sujeitos com escolaridade de nível médio e abaixo. Entretanto, pontos envolvendo conflitos ou contradições nos discursos frente à doação de órgãos ocorreram tanto nos sujeitos com escolaridade superior como também nos outros níveis.

No discurso dos profissionais, em geral também observamos algumas diferenças em relação aos outros grupos acerca da expectativa em relação ao transplante. Profissionais de saúde tendem a projetar nos pacientes e familiares resultados considerados ideais (renascimento, melhor qualidade de vida, melhor vida afetiva e sexual, bem como melhoria do quadro financeiro). Os temores ou conflitos dos profissionais concentram-se em resultados técnicos e preocupação de que problemas dos pacientes, antes ofuscados pelo contexto da doença, sejam trazidos à tona no pós-transplante.

Para pacientes e familiares, a expectativa frente a um transplante traduz-se de forma marcante pela idéia de angústia. O objetivo final dirigese para a cura, uma das categorias intermediárias obtidas na análise.

 

Doação de órgãos e transplante na família

Nas entrevistas, seis profissionais relataram experiências de vida marcadas pela doação e/ou pelo transplante, com ocorrência de doação de algum órgão ou tecido e de indicação de transplante em suas famílias. Um dos profissionais havia sido submetido a um transplante. Alguns relacionaram o acontecimento familiar com sua escolha ou interesse de atuação na área de transplantes.

Para pacientes e familiares, a doação de órgãos passa a ser presente na experiência de vida que relatam quando ocorre a demanda, para um familiar ou para si mesmos, de ser submetido a um transplante. Afirmam que nunca haviam pensado no tema doação, mas após a necessidade, passaram a se informar mais, buscando entendimento e definição de posição, que em sua maioria passou a ser favorável à doação.

Tanto profissionais como pacientes e familiares associaram a doação de órgãos a idéias de morte, acidentes, susto. Apesar da consideração dos riscos com o transplante, os pacientes e seus familiares assumem uma tentativa de resgate da vida.

Todavia, é importante observar que essa evolução no sentido de um posicionamento favorável à doação tem um percurso marcado por dúvidas em relação ao assunto, envolvendo até mesmo questões legais.

Nossa legislação acerca da doação reflete esse processo. A lei brasileira 9.434/97 (Cardoso, 2000), que dispõe sobre a remoção de partes do corpo para fins de transplantes, gerou polêmica quando instituía o doador presumido, ou seja, todo cidadão era doador exceto se no documento de identidade estivesse ressaltado o contrário. O estudo de Roza et al (2001) sobre essa Lei ressalta o papel da família no processo brasileiro de doação de órgãos. No ano seguinte foi necessário um decreto devolvendo às famílias a decisão sobre a doação. Os autores observam que a tendência geral é a dos profissionais respeitarem o parecer familiar.

 

Experiência com a equipe de transplante ou saúde

Limitações, estresse, acolhimento e desafio foram as idéias mais presentes na experiência com a equipe de transplante ou de saúde. Tanto profissionais quanto pacientes e familiares manifestam a presença de tensões, conflitos e limitações coexistindo com sentimentos de vitória, superação das dificuldades e envolvimento profissional e afetivo.

O desgaste emocional, a decepção e o estresse confrontam-se com o desafio da busca da perfeição e da vitória. Além disso, o individualismo e a competição são apontados como algumas características do envolvimento com o trabalho (Tabela 2).

Experiência em equipe de transplante ou saúde – profissionais

CATEGORIAS EXEMPLOS
LIMITAÇÕES

“Atraso global do desenvolvimento humano e médico” (médico, Hospital A).“Comunidade médica pouco esclarecida” (idem). “Instituições médicas com poucos recursos de divulgação correta” (idem).“Criado um ideal de equipe fora da realidade” (nutricionista, Hospital B).“Ambiente de grande estrelismo e individualismo” (residente, Hospital C).

ESTRESSE

“O ambiente hospitalar é difícil, o trabalho é pesado” (enfermeira, Hospital B).“Muita competição e desconfiança, com prejuízo para os pacientes; fica todo mundo muito tenso” (médico, Hospital C). “Grande parte das experiências é triste” (médica clínica, Hospital B).“Altos e baixos, conflitos quanto ao transplante” (médico, Hospital A).“Você fica revoltado com certas coisas” (médica, Hospital B).

ENVOLVIMENTO

“Aí, quando você vive aquilo ali, que você vê o sofrimento das pessoas, aí você muda, você cresce muito” (nutricionista, Hospital B).“Você vê que você tem valor, que eles precisam de você” (enfermeira., Hospital B).“Há busca de contato, de troca de informações” (nutricionista,Hospital B).“Ocorre muito trabalho solitário” (psiquiatra, Hospital C).“O trabalho em equipe é fundamental nos transplantes” (psiquiatra, Hospital C).

DESAFIO

“Uma curiosidade de avançar, de ir atrás!” (clínico, Hospital A).“Da perfeição, da (...) possibilidade da terapêutica de máximo sucesso, é até um vício, né?” (médico clínico, Hospital A).“É uma vitória de todo mundo quando dá certo” (enfermeira, Hospital B).

Para os pacientes, geralmente o foco da experiência está centrado na relação paciente-médico. Idéias de desconhecimento, acolhimento e necessidade de contato com outros transplantados foram as principais. Por outro lado, com os familiares a idéia de distância surgiu expressando que alguns membros das famílias nem sempre conseguem estabelecer vínculo com as equipes de saúde. Para pacientes e familiares, a insegurança em relação ao tratamento, riscos e ameaça vividos, aliados à perplexidade frente ao surgimento da doença, aparecem como obstáculos ao relacionamento e convívio com os profissionais de saúde.

As respostas dos pacientes e familiares também trazem expectativas de atuação dos profissionais. Com freqüência, idéias de responsabilidade, suporte e envolvimento aparecem, indicando que a conduta dos profissionais deve ser coerente com o contexto em que trabalham (acolher, tratar, curar), apoiando as iniciativas e procedimentos da área.

Resposta de pacientes e familiares sobre o pensamento dos profissionais

SUJEITOS CATEGORIAS EXEMPLOS
Grupo 2 (Pacientes pré-transplante)

SUBJETIVIDADE
SUPORTE
ENVOLVIMENTO

“Depende da vivência de cada um, de cada profissional”.“Eles cuidam da gente, eles querem o melhor”.“(...) acho que passa na cabeça deles é que podia ter uma outra, um outro meio de fazer o paciente voltar ao normal, a fazer tudo voltar a funcionar direitinho”.

Grupo 3 (Pacientes pós-transplante)

SUPORTE
ENVOLVIMENTO

“Todo mundo que trabalha na área quer ver a pessoa bem, ele quer ajudar, então ele pensa, ele deve pensar em resolver o problema daquela pessoa, daquele doente”.

Grupos 4 e 5 (Familiares pré e pós-transplante)

SUPORTE
ENVOLVIMENTO

“Eu acho que eles se dispõem mais pra doar, sim”.“(...) elas faz o máximo que pode, por exemplo, pra agradar a pessoa, têm que dar uma força pra ele”.

Há a percepção de que cada profissional pode pensar de forma diferente: “cada um tem uma cabeça”. Mas o fato de trabalharem em um setor de suporte, de acolhimento de pacientes e de familiares pode favorecer a suposição de uma homogeneidade ou concordância frente aos posicionamentos ligados à doação de órgãos, o que não ocorre na realidade.

 

Propostas para a área de saúde

Na fala dos sujeitos destacou-se a ocorrência de sugestões ou propostas para a área de saúde em geral e para a área da doação de órgãos e transplantes, por meio de queixas ou exposição de conflitos de ordem ética (Tabela 4).

Propostas de maior informação e capacitação surgem pela constatação de um desconhecimento da população e da própria comunidade hospitalar em relação à doação e aos transplantes.

As denominações religiosas também aparecem como geradoras de posições resistentes frente à doação de órgãos, demarcando um campo para maiores estudos. Propostas ligadas à humanização vieram de manifestações acerca do sofrimento não só físico mas psicológico vivido pelos pacientes e familiares, sendo que os profissionais também são atingidos por tal sofrimento, na medida em que centralizam um esforço de superar limitações, de atingir metas ideais ou perfeccionistas.

Propostas para a área de saúde

CATEGORIAS EXEMPLOS

INFORMAÇÃO

CAPACITAÇÃO

“As campanhas de sensibilização são muito fracas” (médico, Hospital A).“Falta informação e as pessoas se acomodam” (nutricionista, Hospital B).“As religiões influenciam muito e não entendem o que que é a morte, ou a morte cerebral ainda tá pouco esclarecida em campanhas” (médica, Hospital B).“Seriam propostas, sugestões, desde a formação curricular, informação e reciclagem da comunidade médica em atuação” (médico, Hospital A).

HUMANIZAÇÃO

“O sofrimento emocional ou psicológico dos pacientes candidatos a um transplante nem sempre é considerado”.“As pessoas candidatas a um transplante vivem uma angústia muito grande, um estresse” (enfermeira, Hospital B).“O insucesso do transplante mexe com a equipe todinha. A gente não aceita, não aceita perder, né?” (enfermeira, Hospital B).“Às vezes aqui na fila, esperando prá ser atendido, aí eu converso com um, converso com outro, pergunto o que que é, e tal... Isso também veio me dar bastante ânimo...” (paciente pré-transplante, Hospital C).

POLÍTICAS PÚBLICAS ESPECÍFICAS PARA A DOAÇÃO E OS TRANSPLANTES

“Um trabalho institucional com a imprensa que tem prestado um desserviço enorme à questão do transplante à população” (médico, Hospital A).“Você vê o tamanho da fila... é pensando na parte sócioeconômica, política, sem dúvida” (médico, Hospital A).“Precisou ser lei prá todo mundo conscientizar. Porque eu sou doador, sou doador, doador, mas ninguém procura, ninguém vai”

IGUALDADE DE OPORTUNIDADES

“Não vou, não consigo ver tanta injustiça junto. Eles jogaram muita córnea fora lá em São Paulo” (paciente pré-transplante, Hospital C).“a gente vê muitos acidentes, pessoas ali que vamos supor... tá vendo que vai morrer mesmo, e a família não doa os órgãos, entende? Eu acho que devia doar, porque através disso vai salvar vidas, é muitas vidas” (familiar, Hospital C).

O estresse ocorre especialmente quando as condições humanas não são consideradas. Se os profissionais não conseguem lidar com suas aflições, de seus colegas ou da equipe em geral, tendem a não acolher os pacientes e familiares no contexto no qual estão inseridos.

O desgaste emocional apresentado pela comunidade hospitalar envolve questões amplas, que dizem de conflitos em relação à ameaça de morte, de decisões éticas ligadas aos procedimentos e às instituições de saúde, mas em última análise dizem do individualismo presente nas práticas e experiências.

A leitura de que há necessidade de humanização também pode estar relacionada à noção de solidariedade, associada com freqüência à doação de órgãos para transplantes, e que passa por toda a temática da assistência em saúde.

Propostas ligadas às políticas públicas remetem à necessidade de maior estruturação para as instituições de saúde em geral. Em relação à doação para transplantes, devem-se considerar aspectos específicos dos procedimentos envolvidos, e as legislações ou iniciativas devem acompanhar a evolução das técnicas médicas, bem como as mudanças subjetivas que podem ocorrer nos grupos sociais.

Para tanto, estudos não só de natureza biotecnológica devem ser empreendidos, mas também aqueles que favoreçam visões mais amplas do processo coletivo e suas construções frente à doação e aos transplantes.

A igualdade de oportunidades é assimilada como uma necessidade, e lançada como proposta para reflexão e prática no processo de doação de órgãos. No Brasil, as diferenças observadas entre as regiões, tanto do ponto de vista econômico como de oportunidade de capacitação, podem aumentar ou não as chances dos cidadãos candidatos a um transplante.

Dessa forma, a desigualdade em relação à doação e aos transplantes também pode ser pensada como tradutora da própria realidade brasileira de desigualdade social.

 

Conclusões

No Brasil, a prática de transplantes, e portanto de doação de órgãos, teve início há mais de duas décadas, exigindo elaboração, por parte da sociedade, de suas concepções formadas ao longo do tempo e de sua realidade diária no campo da saúde. O tema da doação de órgãos para transplantes parece-nos marcado por conflitos.

E pelo estudo das mensagens trazidas pela comunidade hospitalar estudada, as intervenções propostas, dentro do complexo processo da doação de órgãos para transplantes, devem considerar a dimensão subjetiva. As leituras do material obtido apontaram-nos alguns direcionamentos acerca do tema. Dentre as idéias associadas à doação de órgãos para transplantes, inicialmente observamos que a morte aparece como uma das representações possíveis, agrupando noções de perda e sofrimento. A idéia de corpo dividido ou despedaçado colocouse como pertinente na direção dos transplantes, o que pode favorecer um sentimento de fragmentação frente à doação.

Mas a doação também está ligada a idéias relacionadas à vida. Vida como representação que agrupa noções de cura, de resgate da qualidade de vida por meio dos transplantes, que por sua vez só ocorrem com as doações.

A noção de fragmentação descrita acima também aparece nessa construção focalizada na vida, pois com a doação, um corpo doente, deficitário e funcionando de maneira precária pode ser novamente “integrado” e funcionar plenamente com todas as suas partes juntas. Para isso, um outro corpo deixou de permanecer “inteiro”.

A noção de corpo proposta por Bendassoli (2000) de “não-lugar”, de um corpo desinvestido simbolicamente, pode ser discutida nessa representação. Se um outro corpo dividiu-se, “desinteirou-se”, o corpo de qualquer ser humano pode ser igualmente partido. A composição de um organismo com uma parte de outro, mesmo que resgate a ilusão de unidade anterior, vai ainda abranger uma falha ou um corte.

Na doação de órgãos para transplantes, os apelos à sociedade envolvendo a dor e o sofrimento vividos pelos pacientes e familiares podem gerar alguma mobilização quando favorecem um processo de identificação, de reconhecimento de algo similar no outro. Em uma coletividade que não partilha seus afetos e condutas, não é possível pensar na ocorrência de solidariedade.

A solidariedade surge como uma terceira representação associada à doação de órgãos, como noção que abrange qualquer movimento dos sujeitos de “colocar-se no lugar do outro”. Solidariedade como um desafio de humanizar a prática da doação de órgãos e dos transplantes.

A morte faz parte da vida, são faces de um mesmo plano; afirmação, porém, nada fácil de assimilar. Um grande obstáculo à doação de órgãos para transplantes parece ser esse: de as pessoas lidarem com a imagem de seus corpos literalmente fragmentados, tanto em vida quanto após a morte. Somente um movimento de humanização para tornar o contexto vigente, criado pelo próprio ser humano, mais integrado e compreensível.

No processo de doação de órgãos, o sentimento de solidariedade aparece como um apelo da comunidade hospitalar, não só porque sem doação não há transplantes, mas porque a solidariedade envolvendo um movimento de humanização é fundamental para a manutenção das relações internas dos grupos sociais em questão.

Mais que desejar partes do corpo do outro como objetos ou fragmentos de vida a serem possuídos ou dominados, também os sujeitos ligados aos transplantes – pacientes, familiares e profissionais – necessitam construir relações nas quais doar e receber possa promover a “troca” de algo com o poder de consolar a angústia inerente à existência humana.

 

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recebido em 29/09/03
versão revisada recebida em 25/04/05
versão revisada recebida em 19/10/05
aprovado em 16/12/05

 

 

1 Mestre em Psicologia Social (FAFICH/UFMG).
2 Pós-doutor em Psicologia (UNCG-USA);UFMG.