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Interações

versão impressa ISSN 1413-2907

Interações v.11 n.21 São Paulo jun. 2006

 

ARTIGOS

 

Trauma, vida nua e estado de exceção: notas sobre clínica e política

 

Trauma, bare life and the state of exception: notes on clinic and politics

 

 

Carlos Augusto Peixoto Junior1

Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O artigo tem como objetivo principal refletir sobre algumas relações possíveis entre clínica e política. Neste sentido, partimos primeiramente da análise das concepções ferenczianas a propósito do trauma, cotejando-as de forma concisa com o modelo freudiano. Em seguida, passamos a discussão dos conceitos de vida nua e estado de exceção, tal como abordados por Giorgio Agamben, supondo que eles possam servir de paradigma para pensar os aspectos traumáticos da política contemporânea. Por último, procuramos avaliar a incidência destas experiências traumáticas considerando o modo de produção de subjetividade vigente no mundo atual, buscando ainda refletir sobre os seus aspectos clínicos na prática psicanalítica cotidiana. Abordando esta ultima por um viés político acreditamos ser possível analisar o sofrimento contemporâneo como uma forma de resistência às estratégias do poder, fundadas prioritariamente na serialização das subjetividades.

Palavras-chave: Trauma, Vida, Clínica, Política, Subjetividade.


ABSTRACT

This article intends to consider some possible relations between clinic and politics. With this purpose in mind, first we start from the analysis of ferenczi’s conceptions about trauma, comparing them concisely with the Freudian model. After that we pass to the discussion about the concepts of bare life and state of exception, as approached by Giorgio Agamben, supposing they can be used as paradigms to think about the traumatic aspects of contemporary politics. Last, we try to evaluate the incidence of these traumatic experiences considering the way of subjectivity’s production present nowadays, also searching to think about their clinical aspects in daily’s psychoanalytical practice. Approaching this practice in a politicalway we believe it is possible to analyze contemporary suffering as a form of resistance to power’s strategies, grounded mainly in subjectivity’s serialization.

Keywords: Trauma, Life, Clinic, Politics, Subjectivity.


 

 

De acordo com Pierre Fédida, “a psicanálise também tem a ver com esta mentira absoluta produzida pelos sistemas totalitários mesmo na vida cotidiana das sociedades liberais” (Fédida apud Landa, 1998). Desde o Holocausto, termos como trauma, catástrofe e mentira passaram a estar revestidos de novas ressonâncias, o que impõe aos psicanalistas uma reconsideração das relações entre fantasia e realidade. Ferenczi, para quem a mentira é um fator decisivo no trauma, foi um dos principais porta-vozes destes termos, destacando os seus efeitos mais marcantes no domínio afetivo. Segundo Arendt (1990), depois de Auschwitz, a mentira absoluta – o fato de que um sistema totalitário tenha conseguido se servir da mentira para se impor e dominar sua população – fez com que a condição humana nunca mais fosse a mesma. Numa perspectiva próxima, Giorgio Agamben estabeleceu o campo de concentração como paradigma do biopoder moderno, e tomou a vida nua por ele produzida como referência maior para pensar a política contemporânea. O objetivo deste trabalho é esboçar algumas reflexões a propósito da noção ferencziana de trauma para, a partir de considerações sobre a vida nua, buscar uma compreensão do estado de exceção em que vivemos, o qual, ainda segundo Agamben, tornou-se na verdade a lei fundamental que rege as sociedades atuais. Partindo desta perspectiva, desenvolveremos algumas articulações entre clínica e política, as quais nos permitem repensar nossa prática tendo em conta algumas das questões mais prementes deste modelo de produção de subjetividade, o qual se caracteriza como uma das principais estratégias do poder na contemporaneidade.

Neste sentido, nos colocamos do ponto de vista que supõe que a clínica também possa ser pensada como uma prática política, o que, ao nosso ver, implica em levar adiante e ampliar uma proposta formulada por Freud no final dos anos vinte. Em “Mal Estar na Cultura” (1929), atento às transformações sociais do seu tempo, ele já deixava claro que os sintomas são históricos e mudam com o tempo. Nestas condições, o analista teria necessariamente que estar atento a tais mudanças, as quais o forçam a mudar também sua prática. A partir daí, a clínica também pode se constituir num espaço de potenciação que afirma diversas dimensões da singularidade, as quais se mostram resistentes ao violento e traumático modelo de serialização homogeneizador que tenta se impor no presente de forma cada vez mais peremptória, o que torna a dor de existir ainda mais insuportável.

 

O trauma na perspectiva ferencziana

Vejamos então inicialmente, em linhas gerais, como a Psicanálise se colocou diante deste problema. Em “Além do princípio do prazer” (Freud, 1920) e “Inibição, sintoma e angústia” (Freud, 1926), Freud define o trauma como resultante de um excesso pulsional para o qual a subjetividade não está preparada. O trauma seria prioritariamente de ordem interna, pulsional, e os estímulos externos apenas desencadeiam uma excitação endógena. Ferenczi, todavia, considerou o fator exógeno não somente do ponto de vista quantitativo, pois para ele foi importante definir a qualidade dos estímulos externos. Na constituição catastrófica da subjetividade, o traumatismo representa uma exigência de trabalho para o psiquismo que, por isso, deve produzir ligações e representações. Como nem sempre é possível fazer estas ligações, em razão de certas experiências traumáticas terem efeito psíquico desestruturador, retomar o tema do trauma psíquico implica pôr em questão o recalcamento como forma predominante de defesa na neurose. Segundo Ferenczi, a vivência traumática leva a subjetividade à comoção psíquica, que funciona como um estado psicótico passageiro em que se rompe a continuidade do processo identificatório por meio do qual alguém se reconhece. De acordo com Reis (2004), a repetição traumática revela um caráter inexorável conferido pela subjetividade à sua posição nas tramas do desejo. Ela é sempre presente, não há passado, e mesmo quando há memória subjetiva de dois momentos, esta não serve para distingui-los em uma rememoração, mas sim para reafirmar a identidade existente entre os dois. A clivagem se caracteriza pela predominânciada ação sobre a imaginação. O corpo toma conta da cena, seja pelo agir compulsivo, seja por hábitos irredutíveis ou pelo adoecer corporal. (Reis, 2004, pp. 69-70).

“Confusão de línguas entre adultos e crianças” (Ferenczi, 1931b) apresenta questões contundentes sobre o papel do trauma patogênico na etiologia das neuroses. Nele Ferenczi afirma que a sexualidade infantil se organiza como “linguagem da ternura”, sistema em que a fruição ocorre por um princípio de saciedade das pulsões parciais auto-eróticas. O prazer infantil é lúdico, um faz-de-conta que representa a compreensão que a criança pode ter da sexualidade dos adultos. É nesse registro que ela interpreta as demandas do amor adulto. Já a sexualidade adulta, sujeita ao recalque e às interdições culturais, organiza-se no registro da “linguagem da paixão”, organização libidinal caracterizada pelo agir compulsivo e pelo não-reconhecimento da existência subjetiva do outro. Isso é o que faz com que o adulto seja capaz de se deixar dominar por seus desejos, impondo-os violentamente à criança. O adulto que deveria mediar a recepção da realidade pela criança, põe-se fora de seu alcance e a deixa no abandono, decorrendo daí a construção do fantasma do agressor por parte da criança. Nem a confusão de línguas nem o trauma psíquico se reduzem à ocorrência contingente de uma violência sexual exercida por um adulto sobre uma criança, aí estando implicada fundamentalmente a dimensão paradoxal da comunicação humana. Em “Adaptação da família à criança”, Ferenczi afirma que “o que escapa precisamente aos pais é o que para as crianças é óbvio; e o que as crianças não percebem é claro como o dia para os pais”, (Ferenczi, 1928, p. 08). Tanto o amor excessivo quanto os castigos exagerados e sem razão podem deixar a marca de um abuso. Os cuidados dispensados à criança tornarão mais ou menos acolhedor aquele ambiente original das primeiras marcas subjetivas e formas de organização de sentido, cuja direção mapeará sua história. Como nos mostra Reis, “o não acolhimento à estranheza infantil viola a alma da criança, impede que ela aceda à polissemia do desejo pela introjeção das possibilidades sensórias de prazer e desprazer que ela apreende em diferentes momentos de sua subjetivação. Embora isso possa resultar de um ato violento e sexual no sentido estrito, também ocorre quando o adulto não cumpre o seu papel de intérprete e desmente e desqualifica não só o prazer ou o sofrimento da criança, como também seu modo de ver e significar o mundo” (Reis, 2004, p.71). “Análise de crianças com adultos” indica que o desmentido incide sobre o desamparo infantil, produzindo a desarticulação do sentido e a não-inclusão de certas vivências em uma ordem associativa de significações (Ferenczi, 1931a). Segundo Monique Schneider, tendo havido um desmentido que impediu a produção de sentido e a subjetivação, o fato traumático não tem consistência como representação psíquica (Schneider, 1992).

O efeito surpresa também constitui um fator fundamental em todos traumas. Em “Confusão de línguas”, Ferenczi mostra como há inicialmente a surpresa da criança diante de uma linguagem que não conhece e que se exprime com toda a sua complexidade. Tal complexidade pode ser observada no caso da introdução do sentimento de culpa do adulto na relação estabelecida com a criança, a qual será posteriormente introjetada por ela. Num segundo momento, há a surpresa face à reação do outro adulto quando a criança conta o que aconteceu. Segundo Pinheiro, em “Além do principio do prazer” (1920), Freud também não deixará de dar algum destaque ao efeito surpresa no trauma, considerando-o uma das chaves para a compreensão do traumatismo, como se, dependendo de sua intensidade e sua quantidade, tivéssemos aí o elemento de base de todo traumatismo (Pinheiro, 1995). No caso do trauma, o que bascula e não corresponde à representação prévia do ego é a confiança. É assim que a relação afetiva estabelecida com o adulto é posta à prova para a criança.

Cabe aqui inserir uma citação mais longa do texto ferencziano, a qual descreve de forma detalhada o mecanismo da traumatogênese:

em primeiro lugar, pela paralisia completa de toda a espontaneidade, logo de todo o trabalho de pensamento, inclusive estados semelhantes ao de choque, ou mesmo de coma, no domínio físico, e, depois, a instauração de uma situação nova – deslocada – de equilíbrio (...) A criança que se sente abandonada, perde por assim dizer, todo o prazer de viver, ou, como se deveria dizer com Freud, volta a agressão contrasua própria pessoa. Isso chega às vezes tão longe que o paciente começa a sentir-se como se fosse perder os sentidos e morrer; o rosto cobre-se de palidez mortal e surgem estados próximos do desmaio, assim como um aumento geral do tônus muscular, podendo chegar aos opistótonos. O que se desenrola aí diante dos nossos olhos é a reprodução da agonia psíquica e física que acarreta uma dor incompreensível e insuportável (Ferenczi, 1931b, p. 79).

Nesta descrição nota-se que os movimentos corporais e psíquicos resultantes do trauma, tais como a dor, a intensidade daquilo que se passou e a incompreensão do fenômeno vivido, são mensuráveis pelo abatimento da subjetividade, a posteriori. As modificações corporais e psíquicas são a expressão da agonia, termo freqüentemente empregado por Ferenczi. Para ele, o vivido do trauma é a experiência mais próxima da morte que a subjetividade pode sentir sem que haja razões físicas que a justifiquem. Com o fracasso do sistema de defesa surge o vivido de um desprazer insuportável ao qual o ego permanece preso (Pinheiro, 1995).

Em “Reflexões sobre o trauma”, Ferenczi desdobra o tema do choque traumático fazendo-o equivaler à aniquilação do sentimento de si, da capacidade de resistir, agir e pensar com vistas à defesa do “self”. Segundo ele, uma comoção pode ser puramente física, puramente moral ou então física e moral. No entanto, toda comoção física sempre implica numa comoção psíquica a qual pode, aliás, sem qualquer interferência física, engendrar o choque. Neste último caso, a tentativa de defesa momentânea e transitória revela-se tão frágil que logo é abandonada. Apesar disso, Ferenczi sublinha este aspecto, ainda que débil, da resistência subjetiva indicando que não se trata de uma ausência absoluta de defesa ou reação: “abandonar sem resistência é, mesmo no nível da representação, inaceitável” (Ferenczi, 1934, p. 110). Ainda assim, a subtaneidade da comoção causa um enorme desprazer que, não podendo ser superado, tem como conseqüência imediata a angústia, a qual consiste num sentimento de incapacidade para se adaptar à situação de desprazer evocada. O crescimento do desprazer passa a exigir uma válvula de escape que pode ser encontrada na autodestruição. Enquanto fator que liberta da angústia, ela pode ser preferida ao sofrimento no mundo. O mais fácil de destruir seria a consciência, a coesão das formações psíquicas numa entidade: assim nasce a desorientação psíquica característica dos acontecimentos traumáticos, na qual a unidade corporal não obedece tão prontamente ao princípio de autodestruição. Do ponto de vista ferencziano, esta desorientação ajudaria:

(1°) imediatamente, como válvula de escape, como sucedânea da autodestruição; (2°) pela suspensão da percepção mais ampla do mal, em particular do sofrimento moral, mais elevado – eu não sofro mais, quando muito uma parte do meu corpo; (3°) por uma formação nova de realização de desejo a partir dos fragmentos, no nível do princípio do prazer (Ferenczi, 1934, p. 111).

Estas formulações permitem notar que, no fundo, o trauma também faz um apelo momentâneo, ainda que premente, ao corpo. Um de seus principais objetivos é o de apagar para sempre o acontecimento, cavando um buraco na própria história, afastando das trocas psíquicas uma parte do próprio ego. Quem sofre um trauma mata uma parte de si próprio. O trauma pratica sobre a subjetividade um assassinato em que ela é, ao mesmo tempo, assassina e vítima. A comoção psíquica é o estado em que essa subjetividade se encontra depois do acontecimento traumático. Este vivido da comoção, Ferenczi o descreve tanto em termos físicos quanto psíquicos no seu “Diário Clínico”, numa anotação a propósito da “afirmação do desprazer”: Trata-se de um “estar fora de si”, de um “ausentar-se”, mas

esse ‘ausentar-se’ não é forçosamente ‘não estar’, mas apenas um ‘não estar lá’. Mas, então, estar onde? Aprende-se algo como: eles partiram para longe, no universo voam com uma rapidez enorme entre os astros, sentem-se tão delgados que passam, sem encontrar obstáculos, através das substâncias as mais densas; lá onde estão não existe tempo; passado, presente e futuro estão presentes para eles ao mesmo tempo, numa palavra, têm a impressão de ter superado o espaço e o tempo. Vista desta perspectiva, a importância do próprio sofrimento desaparece... (Ferenczi, 1932, p. 65).

O sofrimento provocado pelo trauma é tão intenso que desperta a necessidade de um “dispositivo de urgência” para fazer face à catástrofeque se deixa anunciar. Como único meio para superar este desprazer, a criança recorre “aos estados de exceção” para reencontrar o equilíbrio reinante antes do trauma.

Todas essas observações ferenczianas sobre o trauma, as quais destacam o momento em que uma criança sente que os adultos não acreditam no seu testemunho, indicam que aí reside a maior ferida. E não se deve esquecer, para além do aspecto subjetivo, o alcance jurídico-politico deste fato, ao qual pretendemos dar destaque neste trabalho: em Robert Antelme, Primo Levi, Simone Weill e tantos outros, a grande ferida era constituída justamente pelo fato de que, depois do retorno dos campos de concentração, ninguém queria escutá-los ou acreditar neles (Landa, 1998). Diante disto, só nos restaria salvar aqueles testemunhos e validá-los.

 

O traumatismo de um ponto de vista histórico político

Passemos, portanto, agora a uma discussão mais detalhada destes aspectos políticos do trauma. Para isso vamos nos servir aqui principalmente de algumas reflexões de Giorgio Agamben, o filósofo contemporâneo que nos parece ter pensado de maneira mais apurada estes problemas. Com essa estratégia de análise nos colocamos de acordo com o filósofo Slavoj Zizek que, apesar de sua inspiração lacaniana, afirma que se deve seguir Agamben e recusar a interpretação dada por Lacan ao Holocausto, fundada no antigo significado judeu do termo, a qual o vê como um sacrifício a deuses obscuros, destinado a satisfazer sua terrível exigência de gozo (Lacan, 1979). Para Zizek, os judeus aniquilados devem ser encarados como pertencentes à espécie do que os antigos romanos chamavam de homosacer – categoria que retomaremos e desenvolveremos logo adiante – isto é, aqueles que, apesar de humanos, estavam excluídos da comunidade humana, razão pela qual eles podem ser mortos impunemente, e, por essa mesma razão, não se pode sacrificá-los (na medida em que não são uma oferenda sacrificial digna). Ainda segundo Zizek, o termo “holocausto”, apesar de um tanto equivocado, ganhou grande aceitação tanto entre judeus quanto não-judeus porque suaviza o núcleo traumático da aniquilação do povo judeu, fazendo com que esta seja concebida justamente como uma operação sacrificial perversa, mas ainda assim, em última instância, significativa: “melhor ser o objeto precioso sacrificado do que o homosacer cuja morte nada significa” (Zizek, 2003, p. 163).

Vejamos então a argumentação de Giorgio Agamben, partindo de suas formulações sobre o campo de concentração e o estado de exceção, para chegarmos às suas teses sobre o homosacer e a vida nua. Na sua opinião, Auschwitz, o campo maior do Holocausto, é o lugar onde o estado de exceção coincide perfeitamente com a regra, onde a situação extrema torna-se o próprio paradigma do cotidiano. É exatamente esta tendência paradoxal a se transformar em seu contrário que torna tal situação limite interessante. Enquanto o estado de exceção e a situação normal se encontram ou se mantém separados no tempo e no espaço – como geralmente é o caso – eles permanecem opacos, ainda quando se nutrem secretamente um do outro. “Mas, logo quando mostram abertamente sua conivência – como ocorre a cada dia mais freqüentemente – eles se esclarecem um ao outro, por assim dizer, do interior” (Agamben, 1998, p.60).

No entanto, há um outro paradigma que projeta uma nova luz sobre o extermínio e o torna, caso possível, ainda mais atroz: antes mesmo de ser o campo da morte, Auschwitz é o teatro de uma experimentação sempre impensada na qual, para além da vida e da morte, o homem se vê transmutado em não-homem.

Imaginemos então o habitante do campo na sua mais extrema figura, a qual Primo Levi descreveu como aquele que, no jargão do campo era chamado de “o muçulmano”: um ser em que a humilhação, o horror e o medo haviam ceifado toda consciência e toda personalidade, até a mais absoluta apatia (daí sua irônica denominação).

Ele não apenas era excluído, como seus companheiros, do contexto político e social ao qual havia outrora pertencido; não apenas, como vida hebréia que não merece viver, ele era votado em um futuro mais ou menos próximo à morte; ele não faz mais parte de maneira alguma do mundo dos homens, nem mesmo daquele, ameaçado e precário, dos habitantes do campo, que o esqueceram desde o início (Agamben, 2002, p.190).

Mudo e absolutamente só, ele passou para um outro mundo, sem memória e sem consideração. Nestas condições, o que seria a vida do muçulmano? Pode-se dizer que ela seja pura vida nua? Certamente sim, na medida em que nua é a vida humana matável e insacrificável do homem sacro, objeto de uma violência que excede tanto a esfera do direito quanto a do sacrifício (Agamben, 2002). O muçulmano se move exatamente numa zona de absoluta indistinção entre fato e direito, entre vida e norma, entre natureza e política. Justo por isso, às vezes, diante dele, os guardas do campo pareciam repentinamente impotentes, como se duvidassem por um momento se aquela resistência – de um ser que não consegue mais distinguir as ordens externas de suas próprias sensações internas – não seria por acaso uma forma radical e inaudita de resistência. Uma lei que pretende fazer-se integralmente vida encontra-se aqui diante de uma vida que se confundiu em todos os pontos com a norma, e é exatamente esta indiscernibilidade que ameaça a lei animada do campo. (Agamben, 2002).

O que Agamben nos mostra é que os sobreviventes dos campos não são comparados apenas aos melhores, àqueles cujas virtudes os tornaram menos adaptados, mas também à massa anônima dos engolidos cuja morte mesma não tem mais nome. Pois esta é a aporia ética fundamental de Auschwitz: um lugar onde é indecente permanecer decente, onde aqueles que acreditaram conservar sua dignidade e seu respeito por si só experimentam vergonha diante daqueles que a perderam nos campos. (Agamben, 1998).

A expressão “fabricação de cadáveres” supõe que não se trata mais de morte no sentido próprio do termo, sugere que a morte nos campos não é mais a morte, mas alguma coisa de infinitamente mais escandaloso. Em Auschwitz não se morre, produz-se cadáveres. Cadáveres sem morte, não-homens cujo falecimento é rebaixado ao grau de produção em série. E esta degradação da morte constituiria justamente, segundo uma interpretação possível e bastante difundida, o escândalo específico de Auschwitz, o nome próprio de seu horror (Agamben, 1998). Entretanto, que o problema ético dos campos de concentração seja o do aviltamento da morte não é assim tão simples.

O campo é, com efeito, o lugar em que qualquer distinção entre próprio e impróprio, entre possível e impossível, se apaga radicalmente. Pois aqui, o princípio segundo o qual o único conteúdo do próprio é o impróprio é verificado exatamente pelo seu contrário, que quer que o único conteúdo do impróprio seja o próprio. No campo, os deportados também existem cotidianamente e anonimamente para a morte. A apropriação do impróprio não é mais possível porque o impróprio se encarrega integralmente do próprio e os homens vivem facticiamente, a cada instante, para a morte. Isso significa que em Auschwitz não se pode mais falar de distinção entre a morte e o simples óbito, entre morrer e “ser liquidado”. “Ali onde o pensamento sobre a morte foi materialmente realizado, onde a morte é ‘vulgar, burocrática e cotidiana’ (Levi), a morte e o morrer, o morrer e seus modos, a morte e a fabricação de cadáveres tornam-se indiferentes” (Agamben, 1998, pp.97/8).

Procuramos tornar compreensível o ultraje de Auschwitz assentando-o sobre categorias, ao mesmo tempo, as mais extremas e as mais familiares: vida e morte, dignidade e indignidade. Entre elas, a verdadeira marca de Auschwitz – o muçulmano, “nervo do campo”, que “ninguém quer ver” e que inscreve em qualquer testemunho uma lacuna – flutua sem encontrar lugar definido. Ele é literalmente o incontornável com o qual devemos acertar contas, nos diz Agamben. De um lado, ele se apresenta como o não-vivo, o ser cuja vida não é verdadeiramente a vida; de outro, como aquele cuja morte não pode ser dita morte, somente fabricação de cadáveres. Dito de outro modo trata-se de algo como a inscrição na vida de uma zona morta, e, na morte, de uma zona viva. Em ambos os casos é a própria humanidade do homem que se encontra colocada em questão. O muçulmano é o não-homem que se apresenta obstinadamente como homem, e o humano que é impossível distinguir do inumano. (Agamben, 1998).

Sobre esta degradação da morte em nossos tempos, Foucault propôs uma explicação em termos políticos, que a liga a transformaçãodo poder no seio do Estado moderno (Foucault, 1992). Em sua figura tradicional – a da soberania territorial –, o poder se define essencialmente como direito de vida e de morte. Por sua natureza, este poder é, no entanto, assimétrico, no sentido em que ele se exerce, sobretudo do lado da morte e não encara a vida senão indiretamente, como abstenção do direito de matar. Por isso Foucault caracteriza a soberania pela fórmula: fazer morrer e deixar viver. Quando a partir do século XVII, com o nascimento da ciência policial, o cuidado com a vida e a saúde humanas ganha um lugar cada vez maior nos mecanismos e cálculos dos estados, o antigo poder soberano se transforma pouco a pouco no que Foucault chama de um “biopoder” médico. O antigo direito de fazer morrer e deixar viver cede lugar a uma figura inversa, que define a biopolítica moderna, e que se resume na fórmula: fazer viver e deixar morrer. Donde a desqualificação progressiva da morte, que perde seu caráter de rito público no qual participavam não apenas os indivíduos e famílias, mas, num certo sentido, a coletividade inteira; ela se torna uma coisa a esconder, uma espécie de vergonha privada. (Agamben, 1998).

Ainda de acordo com Foucault (1992), estes dois poderes permanecem essencialmente heterogêneos e sua separação se traduz numa série de oposições conceituais (corpo individual/população, disciplina/mecanismo de regulação, homem-corpo/homem-espécie), as quais definem na aurora da modernidade a passagem de um sistema ao outro. Naturalmente, Foucault sabia que os dois poderes com suas técnicas podem em certos casos se associar estreitamente, ainda que permaneçam conceitualmente distintos. No entanto, esta heterogeneidade se torna problemática quando se trata de analisar os grandes Estados totalitários de nosso tempo e, em particular, o Estado nazista.

Porque nele, a absolutização sem precedentes do biopoder de fazer viver se conjuga com uma generalização não menos absoluta do poder soberano de fazer morrer, de modo que biopolítica e thanatopolítica se confundem já de saída. Esta coincidência representa, na perspectiva de Foucault, um paradoxo que exige explicação (Agamben, 1998, p.108).

Procurando explicá-lo, Agamben recorre a um acontecimento jurídico-politico. Em fevereiro de 33, o Estado nazista de Hitler promulgou um “Decreto para a proteção do povo e do Estado”, que suspendia os artigos da constituição de Weimar relativos as liberdades pessoais, e que nunca mais foi revogado. Ainda assim, todo o Terceiro Reich pode ser considerado, do ponto de vista jurídico, como um estado de exceção que durou doze anos. Neste sentido, o totalitarismo moderno pode ser definido como a instauração, através do estado de exceção, de uma guerra civil legal, que permite a eliminação física não apenas dos adversários políticos, mas de categorias inteiras de cidadãos que, por uma razão ou outra, pareçam não se integrar neste sistema político. Desde então, a criação voluntária de um estado de emergência permanente (mesmo não declarado no sentido técnico) tornou-se uma das práticas essenciais dos Estados contemporâneos (Agamben, 2003). Diante da irresistível progressão do que se definiu como uma “guerra civil mundial” – expressão cunhada por Hannah Arendt em seu livro Sobre a revolução (Arendt, 1961), no qual se discute a distinção entre um estado de sítio real ou efetivo e um estado de sítio fictício –, o estado de exceção tende cada vez mais a se apresentar como o paradigma de governo dominante na política contemporânea, confirmando a perspectiva benjaminiana de que a violência da exceção se tornaria a regra (Benjamin, 1921). E é nesta perspectiva que este estado se apresenta como um limite de indeterminação entre a democracia e o absolutismo (Agamben, 2003).

A significação imediatamente biopolítica do estado de exceção se caracteriza pelo fato de ele se constituir numa estrutura original onde o direito inclui em si o vivo através de sua própria suspensão. Com isso, pode-se promulgar uma ordem que anula radicalmente qualquer estatuto propriamente jurídico do individuo, criando um ser juridicamente inominável e inclassificável, tal como foi feito por Bush com os talibãs – capturados nos campos do Afeganistão – os quais não são senão os novos homens sacros da vida nua da atualidade. Nem prisioneiros nem acusados, mas apenas detidos, eles são objeto de uma pura soberania de fato, de uma detenção indefinida, não somente no sentido temporal, mas quanto a sua própria natureza, na medida em que estão totalmente subtraídos à lei e ao controle judiciário. Evidentemente, a única comparação possível seria a situação jurídica dos judeus nos camposde concentração nazistas, que perderam com a cidadania qualquer identidade jurídica e mantiveram apenas a de judeus. Como mostrou Judith Butler, citada por Agamben, com os detidos de Guantanamo a vida nua encontrou a sua indeterminação maior (Agamben, 2003).

Diante disso, se algo distingue a democracia moderna da democracia antiga, é que ela se apresenta, desde o início, como uma reivindicação e uma liberação da vida nua, e que ela procura constantemente transformar a própria vida nua em uma forma de vida a fim de encontrar, por assim dizer, o que haveria de qualificável na vida nua. “Daí também a sua aporia específica, que consiste em colocar em jogo a liberdade e a felicidade dos homens no próprio lugar – a vida nua – que marcava a sua submissão” (Agamben, 1997, pp.17-18).

Tomar consciência dessa aporia não significa subestimar as conquistas e esforços da democracia, mas tentar compreender, de uma vez por todas, porque no momento mesmo em que ela parecia haver definitivamente triunfado sobre seus adversários e atingido o seu apogeu, ela se mostrou incapaz de salvar de uma destruição sem precedentes aquela vida nua a cuja liberação e felicidade havia consagrado todos os seus esforços. A decadência da democracia moderna e seu progressivo deslocamento para os Estados totalitários nas sociedades pós-democráticas do espetáculo se enraízam talvez na aporia que marca o inicio da democracia, e que a liga por uma cumplicidade secreta ao seu inimigo mais aguerrido. Encontra-se aqui a tese de Agamben a propósito de uma solidariedade profunda entre democracia e totalitarismo, e da necessidade de inventar uma nova política (Agamben, 1997).

Cumprindo a tarefa metafísica que a levou a assumir cada vez mais a forma de uma biopolítica, a política não conseguiu construir a articulação entre as vidas nua e qualificada, que deveria recompor a sua fratura de base. A vida nua continua presa a ela sob a forma da exceção, isto é, como alguma coisa que é incluída somente através de uma exclusão. Como se poderia “politizar” a “doçura natural” desta vida nua? E, antes de tudo, tem ela verdadeira necessidade de ser politizada, ou o político já está incluído nela como o seu núcleo mais precioso, pergunta-se Agamben. A biopolítica do totalitarismo moderno de um lado, a sociedade de consumo e o hedonismo de massa de outro, constituem certamente, cada uma a seu modo, uma resposta para estas questões (Agamben, 1997).

O paciente ferencziano, o “muçulmano” do campo nazista e o prisioneiro afegão em Guantánamo são diferentes imagens da vida nua do homem sacro, disseminadas na sociedade contemporânea, na qual vivemos uma espécie de trauma difuso e generalizado. Daí talvez se possa compreender também o tipo de sofrimento existencial que caracteriza o nosso tempo, no qual se produz um tipo de subjetividade submetida a um estado de comoção psíquica subliminar e constante, fruto da violência que se propagou nesta sociedade em que a política de exceção tornou-se a regra. Neste sentido, criar novas formas de viver o comum a partir de múltiplas diferenças que se dispõem radicalmente ao acolhimento do estranho, e fundar novos espaços de liberdade em que a singularidade do desejo possa ser afirmada em toda a sua potencia de criação, talvez sejam as tarefas de uma nova política que nos permitirá superar esta violência traumática que nos tem sido imposta pela contemporaneidade.

 

Algumas articulações possíveis entre clínica e política

Considerando ainda estes traumas dos nossos tempos, uma das principais questões que se coloca é como poderíamos resistir a essas formas de violência que procuram se impor a nós. Daí talvez a relevância da interface aqui proposta entre clínica e política, no que ela destaca modos de produção ou modos de subjetivação e não apenas sujeitos, modos de experimentação ou construção e não mais a pura e simples interpretação, modos de criação de si que não podem se realizar em sua função autopoiética sem o constante risco de experiências de crise. Neste sentido, a articulação da clínica com os processos de produção de subjetividade implica, necessariamente, que nos arrisquemos numa experiência de crítica/análise das formas instituídas, em benefício das possibilidades instituintes, o que nos compromete politicamente.

Como mostram Benevides e Passos a partir de Marx, “a produção não somente produz um objeto para o sujeito mas também um sujeito para um objeto” (Marx, 1857, apud Benevides e Passos, 2004, p. 167). Assim, quando se afirma que nas subjetividades produção e consumo aparecem como movimentos de um único e mesmo ato, ressalta-se o fato de que ambos aparecem como movimentos de um processo no qual a produção é o verdadeiro ponto de partida como também o movimento predominante. Assumindo a imanência da produção no produto pode-se também reavaliar a posição das subjetividades em termos de processos ou planos de subjetivação e de criação de si, na medida em que elas se tornam efeito de um processo de produção. A forma subjetiva torna-se então um produto resultante de uma produção inconclusa e heterogenética sem que haja um esgotamento total da energia potencial criadora de novas formas. Com isso torna-se possível pensar a subjetividade em termos plurais, polifônicos e sem qualquer instância dominante de determinação.

Destacar este aspecto da produção de subjetividade nos abre a possibilidade de pensar nas separações entre subjetivação e sujeito, produção e produto como efeito historicamente determinado das modulações da política contemporânea. A principal conseqüência desta separação é a captura da realidade sob uma forma dada e supostamente natural, mas que deve ser entendida como forma-sintoma a ser analisada. Considerando estes pressupostos, certas operações analíticas presentes em algumas intervenções clínicas passam a poder ser vistas como uma desestabilização destas formas, a qual favorece o surgimento do plano de forças de produção a partir do qual tal realidade se constituiu (Benevides e Passos, 2004).

É assim que a experiência clínica também pode implicar na devolução da subjetividade ao plano de subjetivação e de produção, os quais constituem um plano coletivo, entendido não como uma soma de indivíduos ou resultante de um contrato entre os mesmos, visão reducionista, mas como uma multidão, no sentido dado a este termo por Antonio Negri: o coletivo como composição potencialmente ilimitada de seres tomados na proliferação das forças. “Multidão é o nome de uma imanência. A multidão é um conjunto de singularidades” (Negri, 2004, p.15). Neste plano de produção, plano coletivo das forças, lidamos com o que é de ninguém, com o que diz respeito ao impessoal, ou seja, as singularidades quaisquer (Agamben, 1990). Num tal coletivo não há nada privado, nenhuma propriedade particular ou pessoal, já que todas as forças se encontram disponíveis para serem experimentadas. Aí então, a experiência clínica torna-se também experimentação num plano coletivo, a qual pode ser retomada como plano de produção de novas formas de subjetivação que resistem às formas de equalização ou serialização próprias a uma política que impõe a experiência traumática da vida nua e da exceção como regra.

Se a política traumática dos nossos dias se caracteriza pela sujeição da vida dos homosacer, há que se apostar nas formas de resistência que daí devem advir. As transformações da subjetividade contemporânea exigem, portanto, que façamos da nossa clínica um espaço de recriação dos campos do possível. Assim a transferência pode ser pensada como um território não apenas de experimentação, mas também de acolhimento e de luta para criar, no embate com a ordem do mundo, em busca de um modo singular de existência. Os sintomas ganham, então, uma positividade denunciando as falhas e desgovernos na produção de subjetividades padrão ou prêt-a-porter. Eles são tentativas de solução de impasses, criação de linhas de fuga ou de resistência aos projetos de homogeneização nos quais se alicerçam os imperativos universais de normalização. Apesar disso, tais sintomas logo podem ser recapturados, controlados e re-incluídos na nova ordem mundial, a qual recorre a táticas que se renovam constantemente – tais como os medicamentos e classificações psiquiátricas – para se fortalecer. Ainda assim, o sofrimento implicado nos sintomas instaura pequenos intervalos de liberdade, com os quais é possível exercer um trabalho clínico que visa formas de subjetivação fundadas em outras estratégias de existência (Gondar, 2003).

Contrapondo-se ao agir a qualquer preço, para além de qualquer escolha singular que forneceria ao ato uma consistência desejante, a escolha de um modo de padecer age como uma espécie de protesto, como um sinal de vida sofrido e sofrível, o qual indica uma manutenção paradoxal do desejo, a despeito da violência dos imperativos. Um exemplo dessas tentativas paradoxais de singularização no mundo contemporâneo pode ser encontrado no pólo oposto ao de um tipo de subjetividade tal como aquela que caracterizamos através dos traumatizados de Ferenczi ou do campo político. Nos referimos ao caso das subjetividades compulsivas, as quais, na esteira da economia do excesso de iniciativa característica do capitalismo atual, exacerbam o seu dispositivo para construir uma estratégia de persistência, como se qualquer transformação só fosse possível através da radicalização extrema daquele modo de vida imposto pela cultura do consumo. Na clínica de nossos dias, a acolhida deste tipo de sofrimento, desta linha de fuga, faz-se necessária porque é concomitante ao esvaziamento dos imperativos, o que leva a criação de um outro campo de possibilidades diante do sufocamento em que vivem as subjetividades contemporâneas. Trata-se de transformar a tentativa singular de subjetivação através do sofrimento numa alternativa consistente e constituinte de produção desejante. Neste sentido, cabe lembrar que acolher o sofrimento é uma ação que se situa para além da escuta e da interpretação, tal como tradicionalmente concebidas na psicanálise, posto que se trata de um tipo de dor que ainda não teria encontrado palavras apropriadas para se expressar. A mera desconstrução ou desterritorialização produzidas por uma intervenção analítica clássica só favoreceria o fortalecimento dos imperativos de controle.

Portanto, faz-se necessário apostar na brevidade de um desejo original que às vezes brota de uma pequena percepção, de um simples gesto, de um tom de voz ou de uma breve cintilação no olhar. Assim, a transferência se constitui não apenas como um campo de experimentação de signos e afetos, mas também como um território de espera que possibilita ao paciente acreditar na legitimidade de sua apreensão singular de si e do mundo. Neste espaço de espera, passa a haver tempo para que os breves lampejos de desejo encontrem uma oportunidade de expressão, articulação e reconhecimento, ganhando, conseqüentemente, maior densidade e consistência (Gondar, 2003). Com isso, a sofrida estratégia de resistência pode se tornar uma forma de vida original no mundo, tal como aquela que nos foi legada pelos pacientes de Ferenczi, pelo muçulmano do campo ou pelos prisioneiros de Guantanamo aos quais se refere Agamben.

Mas, afinal, o que se poderia depreender destas reflexões no que se refere à posição da Psicanálise na contemporaneidade? No mínimo, que ela precisa de uma crítica que não se restrinja apenas ao seu próprio campo, mas que se amplie pelos planos da cultura e da sociedade, em interlocução contínua com outras formas do pensar. Quem sabe assim, torne-se realmente possível lidar, também na clínica, com as múltiplas formas de subjetivação e de resistência, que surgem incessantemente num mundo cada vez mais desencantado no que diz respeito ao acolhimento do estranho. Estranho cujo nada de vontade possui, no fundo, uma força desintegradora, e do qual o muçulmano do campo talvez constitua o personagem emblemático: o resistente por excelência, ou mesmo o sobrevivente. Personagem no qual coincidem “o mínimo e o máximo de vida: sobre-vida, como Nietzsche fala de um super-homem” (Zourabichvili, 2000, p. 346). Resistindo de modo radicalmente singular, o muçulmano recusava o regime das alternativas ou disjunções exclusivas que asseguravam o fechamento das situações. Favorecendo em si mesmo e no meio o crescimento de um nada de vontade, ele resgatava o potencial, ou a situação como potência de encontro, ao ver algo que excedia os dados da situação e que tornava qualquer reação não apenas inadequada como também insuportável. O estranhamento do muçulmano no campo talvez o fizesse ver não apenas a situação, mas também todos os esquemas monótonos que nos ligam habitualmente ao mundo, todas as nossas respostas absolutamente prontas para situações de sofrimento sempre singulares, que nos dotam de uma capacidade cada vez maior de nos adaptarmos ao que é odioso. Assim, o “estranho” muçulmano, os pacientes traumatizados de Ferenczi e os de nossa clínica contemporânea podem ser vistos como aqueles que não reagem muitas vezes, não por insensibilidade, mas, como dizia Deleuze, porque não chegam a saber o que todo mundo sabe, ou negam modestamente o que se presume que todo mundo reconhece (Deleuze, 1988).

 

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Endereço para correspondência
Carlos Augusto Peixoto Junior
Rua Timóteo da Costa, 266 / 302 – 22450-130 – Leblon – Rio de Janeiro/RJ
tel: (21) 2239-3873
E-mail: cpeixotojr@terra.com.br

recebido em 27/09/04
versão revisada recebida em 07/04/05
aprovado em 25/10/2005

 

 

1Psicanalista; Doutor em Saúde Coletiva (Instituto de Medicina Social/UERJ); Membro do Espaço Brasileiro de Estudos Psicanalíticos; Professor do Programa de Pós-graduação em Psicologia Clínica da PUC-RJ; Pesquisador do CNPq.