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Interações

versão impressa ISSN 1413-2907

Interações v.11 n.21 São Paulo jun. 2006

 

ARTIGOS

 

Sermões quaresmais e conhecimento de si mesmo

 

Lent sermons and knowledge of self

 

 

Marina MassimiI

Universidade de São Paulo. Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O estudo da oratória sagrada no Brasil colonial é um campo heurístico de grande interesse para a história cultural, sendo os sermões uma importante fonte de transmissão doutrinária e de modelos de comportamento numa sociedade na qual a palavra era a modalidade comum de transmissão do conhecimento. Este artigo aponta para a importância e a finalidade da pregação quaresmal no contexto do Brasil colonial dos séculos XVII à XVIII. O artigo mostra entre as funções assumidas por esta prática, a de contribuir ao auto –conhecimento e à reforma dos costumes dos ouvintes e dos pregadores.

Palavras-chave: História das idéias psicológicas, Conhecimento e dinamismo psíquico, Pregação, História da psicologia, Psicologia e cultura.


ABSTRACT

The study of sacred oratory in colonial Brazil is a heuristic field of great interest to cultural history, being that sermons were a very important source of doctrine transmission and of behavior modeling in a society in which speech was the main mode of knowledge diffusion. This article points to clear evidence of the importance and the scope of Lent preaching activities in the context of Brazil in the 16 th to 17 th century. The article also enlightens the functions taken by these activities: the knowledge of self of the listeners, and the reform of customs of emitters and receivers.

Keywords: History of psychological ideas, Knowledge and psychic dynamism, Preaching, History of psychology, Psychology and culture.


 

 

Quaresma: tempo para o conhecimento de si mesmo

O objetivo do presente trabalho é delinear a articulação de conhecimentos psicológicos e antropológicos através da transmissão oral de conceitos e práticas culturais proporcionados pela pregação quaresmal, no contexto do Brasil colonial1.

 

A pregação como prática de transmissão e de elaboração cultural

As atividades da pregação, muito freqüentes no Brasil colonial, e amplamente valorizadas pela população, assumiram uma função importantíssima de transmissão cultural de conceitos, práticas e crenças da tradição clássica, medieval e renascentista ocidental, visando a mudança dos hábitos e da mentalidade dos indivíduos e dos grupos sociais pela força da palavra.

A confiança no poder da palavra enquanto instrumento de persuasão e modificação dos comportamentos baseava –se no conhecimento e na prática da arte retórica e de suas influências no dinamismo psíquico, proporcionados pela psicologia filosófica aristotélico –tomista. Sem dúvida, foi reforçada também pela importância assumida pela palavra e pelo discurso na tradição cultural dos índios brasileiros. Com efeito, notícias e descrições acerca das atividades de pregação realizada seja, pelos missionários seja, pelos povos nativos da Terra de Santa Cruz são dadas em relatos e cartas de viajantes e missionários, desde os primeiros tempos da colonização.

Uma das informações mais antigas a respeito, aparece numa narrativa de 1593 do padre visitador da Companhia de Jesus, o português Fernão Cardim (1548-1625): curiosamente, porém, refere-se não à pregação dos missionários e sim às atividades oratórias dos próprios índios, na ocorrência da visita pastoral dos padres missionários. Inclusive, as cartas dos missionários jesuítas destacam que a pregação dos chefes indígenas foi necessária para criar a confiança de suas tribos na palavra pregada pelos padres2. A familiaridade das populações com o uso da fala para persuadir e ensinar, é talvez um dos motivos da relevância atribuída pelos religiosos à pregação como meio decristianização das populações brasileiras. Cardim relata que, na aldeia do Espírito Santo, após a recepção pelos “principais3, ele, juntamente com outros dois visitadores, o padre Cristóvão de Gouveia e o irmão Barnabé Telho, foram levados em procissão à Igreja pelos índios com danças e músicas de flautas. Citamos esse relato mantendo seu estilo e escrita originária:

Feita a oração, lhes mandou o padre fazer uma falla na língua, de que ficaram muito consolados e satisfeitos; aquela noite os índios principais, grandes línguas, pregavam da vida do padre a seu modo, que é da maneira seguinte: começam a pregar de madrugada deitados na rede por espaço de meia hora, depois se levantam, e correm toda a âldea, pé ante pé muito devagar, e o pregar também é pausado, freimatico, e vagaroso; repetem muitas vezes as palavras por gravidade; contam nestas pregações todos os trabalhos, tempestades, perigos de morte que o padre padeceria, vindo de tão longe para os visitar, e consolar, e juntamente os iniciam a louvar a Deus pela mercê recebida, e que tragam seus presentes ao padre, em agradecimento. Era para os ver vir com suas cousas, etc., patos, galinhas, leitões, farinha, beijús com algumas raízes e legumes da terra (1980, p. 146).

Cardim (1980, p.152-153) continua o relato, afirmando que entre os índios principais e pregadores, “há alguns velhos antigos de grande nome e autoridade entre elles, que têm fama por todo o sertão, trezentas e quatrocentas léguas, e mais”. Reitera que os nativos estimam tanto “um bom língua que lhe chamam o senhor da fala. Em sua mão tem a morte e a vida, e os levará por onde quiser sem contradição”. Quando eles querem testar se um indivíduo possui esta capacidade, “ajuntam-se muitos para ver se o podem cansar, falando toda noite em peso com ele, e ás vezes dois, três dias, sem se enfadarem” (1980, p. 152-153).

A descrição do jesuíta deixa transparecer sua surpresa diante da importância atribuída ao uso da palavra pelos índios brasileiros. Era um inesperado ponto de convergência entre a cultura desconhecida destas populações e o imenso esforço de comunicação da cultura européia daquela época. Este esforço evidencia-se na criação de novos instrumentos como a imde novos povos, novas culturas e novas línguas e como veremos neste livro, no grande desenvolvimento da arte retórica e das suas infinitas possibilidades enquanto meio pedagógico e doutrinário.

A função da palavra, nos sermões dos missionários dirigidos aos indígenas, como meio para suscitar os afetos e conduzir à mudança de costumes, é evidenciada também pelo capuchinho francês D’Abbeville, autor de um relato acerca da missão desses religiosos nas terras do Maranhão, da qual ele mesmo participou, em 1614: “Com tal atenção ouviram os índios essas palavras que a emoção que lhes ia na alma transparecia em suas fisionomias” (1985, p. 72).

Do ponto de vista de sua significação enquanto prática cultural, a pregação deve ser considerada como uma relação dinâmica de intercâmbio entre pregadores e destinatários, marcada pela intervenção da “invenção criadora no próprio cerne dos processos de recepção” (Chartier, 1988, p. 136). Os conceitos e os textos recebidos, são submetidos pelos ouvintes, à interpretações e empregos diversos, dependendo das circunstâncias que caracterizam a comunidade dos receptores em seu conjunto, ou pelos grupos diversificados que a compõem. Assim, os usos e as representações induzidas pela pregação nos destinatários, nunca podem ser reduzidos univocamente aos objetivos e motivações dos produtores do discurso ou aos conteúdos transmitidos: ocorre sempre um processo criativo cujos atores são os próprios ouvintes.

Além disto, a transmissão de conhecimentos é mediada pela apropriação que desses realiza o próprio pregador – o qual utiliza de modo próprio métodos retóricos e conteúdos doutrinários, num processo criativo que inicia com a elaboração do texto, ou da estrutura do sermão e termina na ocasião de sua apresentação diante do público. As modalidades desta apropriação dependem seja da personalidade e formação de cada orador, seja de sua pertença a comunidades religiosas, sócio-culturais e políticas. No preparo do sermão, o pregador considera a existência de diversas pertenças dos ouvintes, sendo que tal consideração orienta-o na escolha entre dois diferentes tipos de pregação: a oração erudita, destinada aos ouvintes letrados; e a pregação popular, direcionada para ouvintes analfabetas, ou de contextos sócio-culturais e lingüísticos muito diferentes.

Já que os sermões associam palavra, escrita e gestos, a prática da pregação implica também uma imbricação entre formas derivadas de vários gêneros: formas orais e gestuais (utilizadas, sobretudo, no âmbito da pregação popular) e formas escritas (manuscritas e impressas). Majorana (1997) insiste acerca do fato de que a pregação foi uma prática que acarretou também um grande esforço de adaptação pelos missionários e pregadores, tendo o objetivo de induzir um processo interativo. Com efeito, era preciso criar as condições para que os ouvintes desenvolvessem a disponibilidade de colocar o conteúdo ouvido no centro da própria experiência, não apenas meditando sobre o tema proposto, mas também inspirando neste as ações. Desse modo, aos ouvintes era solicitado um papel ativo no processo de conversão. Evidentemente, este consenso não era óbvio, nem automático, e o pregador encontrava resistências. As dificuldades e reprovações sofridas, porém, solicitavam o pregador a dinamizar sua atividade retórica, sendo o uso da palavra acompanhado pelos gestos e por toda uma teatralização do comportamento. A assim chamada “acomodação” (acomodatio) às circunstâncias do público, era algo muito importante no trabalho do pregador, implicando uma verdadeira e constante experimentação. Desse modo, segundo Majorana, na ação teatralizada da pregação, através do recurso à imagens agentes (ou seja capazes de provocar processos de comoção, ou de memória, ou de imaginação, nos espectadores), como por exemplo, uma estátua de Cristo, ou de um santo, o conteúdo não era evocado apenas verbalmente, mas tornava-se inclusive figura animada e participe: a imagem era ela mesma personagem.

Sendo verdade que diversificados e estratificados eram os destinatários, por outro lado, a pretensão do pregador era de, através de sua palavra, reduzi-los a Um – na medida em que o modelo seguido era o do Sacramento Eucarístico, em que o Verbo se faz carne, criando o Corpo místico na história4.

As peças oratórias, posteriormente impressas, constituíram-se em textos, cujo objetivo não foi tanto a codificação de um discurso escrito quanto a difusão de modelos inspiradores para futuros usos no campo da oralidade.

De qualquer modo, sejam as peças pregadas sejam as escritas, visavam produzir, na prática, comportamentos ou convicções tidos por legítimos, úteis, “edificantes”. Com efeito, a finalidade principal de um sermão era a de persuadir os ouvintes: pretendia-se tocar a inteligência, de modo a atingir a vontade, conforme o percurso traçado pela teoria do conhecimento de cunho aristotélico – tomista. O objetivo era, através do visível e do sensorial, chegar à compreensão intelectual, num percurso que alcançara o espírito, passando pela sensibilidade anímica5. Exigia-se, para tanto, a coerência intelectual do discurso e uma ordem a ser seguida, seja na fala, seja nos gestos. À valorização das expressões corporais do afeto suscitado pelas palavras, implicava a correspondência da experiência do ouvinte, aos conteúdos evocados pela palavra. A palavra – entendida em suas dimensões doutrinária, persuasiva, evocativa e revelativa, era considerada o verdadeiro pharmacon, em poder do homem, para aprender a bem viver e a bem morrer.

 

O conhecimento de si mesmo através dos tempos litúrgicos

Na perspectiva da tradição judaico-cristã, o homem, por ser um ser histórico conhece a si mesmo no tempo. A partir da vinda de Deus no mundo humano pela Encarnação de seu Filho, o tempo humano torna-se também divino, pois nele profano e sagrado se entrelaçam continuamente. Os tempos litúrgicos, estabelecidos pela Igreja Católica com o objetivo de proporcionar aos fieis a memória do acontecimento histórico de salvação da humanidade em Cristo, são, portanto, uma ocasião privilegiada para o conhecimento de si mesmo – abordando, em cada ‘tempo’, aspectos diferentes da existência humana – sendo que os sermões pregados nestas ocasiões, acompanham tal movimento.

Além do Tempo Comum, quando o fiel é convidado e refletir sobre o valor do cotidiano e sobre a eternidade presente em casainstante, existem tempos especiais que marcam alguns eventos fundamentais da história da redenção do homem e ao mesmo tempo apontam passos importantes em seu caminho rumo ao destino último.

Trata-se dos tempos litúrgicos do Advento, Natal e Epifania – dedicados à meditação da espera da humanidade pela sua salvação (Advento), do mistério da concepção e da encarnação de Cristo (Natal) e de seu reconhecimento como Salvador da história e de todos os homens (Epifania). Em seguida, tem-se o tempo da Quaresma, que sucede o do Carnaval, o qual induz o homem a refletir acerca do mistério de sua própria liberdade, sendo sua condição existencial marcada pelo pecado original e destinada à caducidade e à morte, devido à misteriosa possibilidade inerente à sua condição de ser livre, de negar o Autor da vida e de conceber-se como ser autônomo. Na Semana Santa, contemplam-se os efeitos mortais desta opção, na vida individual e social, que conduz por fim à negação de Deus e à destruição do próprio homem (Sexta feira santa); o mistério do Amor divino que em sua liberdade decide permanecer junto ao homem para sempre, materializando-se no Corpo místico da Igreja e no Sacramento da Eucaristia (Quinta feira Santa); a ressurreição de Cristo e a sua permanência na história humana como condição para a plena redenção do homem e para seu caminho histórico de realização de si mesmo (Páscoa, e Tempo Pascal).

No contexto cultural do Brasil colonial, profundamente moldado pela tradição católica, realiza-se grande número de pregações dedicadas a estes tempos litúrgicos, sendo inclusive explicita a permissão dada aos pregadores de desenvolver suas atividades em tais ocorrências, nas normas das Constituições6.

 

O tempo da Quaresma

O tempo privilegiado para a consideração da origem, do sentido e do destino da existência humana, é o da Quaresma: nesta ocasião, os fiéis são convidados a refletir e discernir o que é essencial e permanente, do que é aparente e contingente – na condição humana. Trata-se, portanto, do período mais propício para que as enfermidades espirituais do homem sejam desveladas e a Medicina da Alma atue com maior eficácia. Entende-se por Medicina da Alma a longa tradição que, iniciada por Platão, Demócrito, Hipócrates, Cícero, Sêneca e Galeno, consolidou-se ao longo da Idade Média, sendo retomada e ampliada no Humanismo e na Renascença. Baseada na analogia entre a alma e o corpo, pressupõe a existência das enfermidades da alma, concebidas como objeto de cuidados médicos, pois trata-se de uma doença, mas cuja natureza seria espiritual e, portanto, demandando abordagem filosófica e religiosa, sendo a alma o objeto acometido pela moléstia. Na mentalidade ocidental, a Medicina da Alma corresponde à “ciência” ou à “arte de viver”: teologia, filosofia e medicina encarregam-se de construir seu domínio,cada uma com suas competências e perspectivas próprias, abarcando assim um conjunto de conhecimentos de várias naturezas, desde as teorias médicas até aos conselhos sugeridos pela sabedoria dos Padres do deserto, da antiga tradição da Patrística cristã.

 

Primeiro movimento: Quaresma – tempo de desengano

A Quaresma, nesta perspectiva “terapêutica”, é o tempo oportuno para dar-se conta de que as riquezas materiais e mundanas não dão consistência ao homem, nem diferenciam qualitativamente a natureza humana que é única e “uma”, em qualquer condição social. Eis, por exemplo, o que prega a este respeito, na Catedral de Mariana, José de Araujo Lima no quarto domingo de Quaresma, diante da imagem de Nossa Senhora da Porta7. Recordamos que o sermão é pregado no auge de um período de grande enriquecimento na região aurífera e por isto os questionamentos colocados por Lima assumem uma dimensão muito concreta e grave:

He qualquer dos homens, que logrão cabedades, e possuem riquezas, hum animado quadro de vangloria, ou huma viva estampa de soberba: e como cego não repara, que na mesma tarja, em que o pincel da natureza humana lhe delineou os triunfos da vida, ao mesmo passo lhe imprimio as sombras do seu desengano; porque o mesmo rasgo com que lhe soube gravar os enleyos da sua pompa, lhe servio para descubrirlhe os despojos da sua miseria (Lima, 1749, p. 4).

Esta “cegueira”, induzida pela fixação do olhar na aparência (“as riquezas) e não na substância, é a origem da “tragédia”, pois o mesmo “cabedal que deveria ser afirmação de grandeza, acaba servindo como instrumento de desgraça. O problema, porém, não é o de possuir as riquezas e sim de saber usá-las em favor não apenas do benefício pessoal, mas também para ajudar aos fracos e aos pobres. Por sua vez, o homem pode tornar-se capaz de usar os bens segundo esta orientação, na medida em que tiver consciência de qual seja a verdadeira consistência de si mesmo. Pois esta consideração revela à sua consciência a relação de substancial unidade que une-o aos seus semelhantes: “Repara que a natureza humana he toda huma; não houve hum Adão para os pobres humildes, e outro para os ricos soberbos, mas hum Adão só que se levantou filho da terra” (1979, p. 3). Por isto, ocorre realizar um verdadeiro percurso do conhecimento de si mesmo e do outro, que inicia pela “abertura dos olhos”, pelo aprender a “ver” a realidade na sua essência, e a este trabalho convida a exortação do pregador: “Abre os olhos, ó homem cego!” (1979, p. 3).

O pregador detém-se no falso culto da exterioridade, que esconde a essência do homem atrás das aparências: refere-se especialmente às “modas” importadas da França, pois estas enfatizam as diferenças econômicas e sociais entre as pessoas, conforme o poder aquisitivo de cada um. Ironicamente e um tanto profeticamente, Lima imagina que um dia o homem poderá ser escravo das modas, não só quanto ao cuidado do corpo, mas também da alma:

Valha-me Christo! Não ha de haver hum dia em que entre a moda de tratar da alma; não ha de haver gala para a alma, só para o corpo ha de haver moda, e gala? As galas da moda publicão, qual pode ser quem as veste: e pelo modo de andar pelas ruas (que também por moda andão bailando) patenteão o seu interior os homens (1979, p. 7).

A Quaresma é o tempo do cuidado da alma, é a “botica” dos remédios para as suas enfermidades, conforme prega o grande orador carmelita Eusebio de Mattos, no sermão do terceiro domingo de Quaresma. Ela é o tempo oportuno para que os pregadores – “médicos da alma” – apliquem aos “doentes” sua Medicina. Pois, o tempo litúrgico que precede a Páscoa é, conforme indicado na teologia paulina, um “tempo de remédio”, sendo o Domingo da pregação “dia de saúde”. Na verdade, porém, “em todo o tempo deverão os Pregadores pregar ao mundo matéria que o nosso descuido reduziu a este só tempo(Mattos, 1694, p. 129). Com efeito, retomando a analogia entre medicina do corpo e da alma, que já afirmamos ser recurso freqüente entre os pregadores, Mattos questiona: “se todo o tempo he de enfermidade, porque não seria todo o tempo de remédio?” Com efeito, “a todo o tempo, e todos os dias estamos caindo no mal da culpa”. Observa-se que “nas enfermidades do corpo todas as vezes que padecemos o mal, procuramos logo o remédio”; todavia, “quanto mayores males são as enfermidades da culpa, que os achaques da natureza?”. Sendo assim, “se todas as vezes que padece enfermidades o corpo, lhe buscamos o remédio, porque não trataremos do remédio todas as vezes que sentimos enfermidades da alma?”. Pois, a todo o tempo, dias, horas e instantes que for preciso, deveríamos buscar os “pharmacos” salutares do espírito, sendo que – no texto do sermão – sugere-se que o mais eficaz é o sacramento da confissão. Todavia, deixamos de faze-lo por um doentio “descuido da humana natureza” (p. 130). De modo que o ser humano, apesar de procurar ansiosamente os remédios das enfermidades do corpo, ao mesmo tempo, “se descuida e se dilata no remédio da sua mayor enfermidade!” (p.130).

O tempo da Quaresma é instituído, então, pela Igreja como supremo “remédio” deste universal descuido: pois ela, conhecendo e considerando esta situação, “applicou ao menos para o remédio da Confissão este tempo santo da Quaresma e o dia que os Pregadores escolheram para persuadir este remédio he o dia de hoje” (p. 130).

Retomando as leituras próprias da liturgia do terceiro domingo de Quaresma, Mattos estabelece um paralelismo entre o relato evangélico do demônio mudo que faz emudecer um homem e que é expulso por Cristo, e a “mudez” espiritual dos homens que não conseguem confessar suas culpas no sacramento da confissão. Esta analogia baseia-se na definição de pecado como “enfermidade da alma”, conforme declara o pregador: “que cousa he o peccado senão enfermidade da alma?” a qual se manifesta como “hum peso, huma carga, huma oppressão” e cujos efeitos são mortais: “teu peccado te tira a vida, e te mata para toda a eternidade” (p. 137). Trata-se de uma doença incurável pela lei moral da própria consciência (o “preceito”) pois, esta “te accusa” e, então, “como esperas pelo preceyto para te livrar de quem te accusa?” (p. 138). O “largar esse pezo” causado pela doença espiritual somente será possível não em virtude do esforço da própria consciência, mas pela intervenção de um fator transcendente à consciência humana, a Graça divina, que age através do sacramento da confissão. Nisto, a medicina da alma proposta por Eusebio de Mattos, distancia-se consideravelmente da medicina espiritual dos estóicos, os quais consideravam o esforço ético do sujeito como o pilar do cuidado de se mesmo e do restabelecimento da saúde anímica e espiritual (Pigeaut, 1989). Se, portanto, “a confissão he o remédio desta enfermidade, e o alivio desse pezo, o livramento de quem te accusa, e a defensa de quem te mata”, a dilação do “alívio, do livramento e da defesa” é algo não razoável (p.138).

A Quaresma é o tempo da memória e se é verdade que, conforme prega o jesuíta Antônio de Sá no sermão das cinzas de 1669, “o esquecimento é a morte da affeiçam” (Sá, 1750, p. 2), é também o tempo do amor, pois “quem quer amar, lembra-se; quem se esquece, não quer amar.” Com efeito, uma estranha “moléstia” torna o ser humano esquecido de si mesmo, apesar de atento ao que lhe é exterior. A memória de si mesmo, em sua essência pessoal, e a lembrança do mundo, são opostos: ficar com a atenção e o afetos voltados para o mundo acarreta desconhecimento e descuido de si mesmo: “lembrem-se de si, que logo se esquecerão do mundo; da falta, que temos, do conhecimento próprio, nasce o engano, com que procedemos no amor alheyo” (1750, p. 3).

Desse modo, o homem ama enganosamente porque não possui o verdadeiro conhecimento de si próprio, conhecimento este que nasce na memória (conforme a doutrina de Agostinho). O conteúdo desta memória é o “desengano” acerca de si mesmo: a lembrança da própria condição mortal: “Memento homo que pulvis es: Lembra-te homem, porque es pó” (1750, p.3). Na mentalidade jesuítica, isto remete imediatamente à mudança na consideração das relações sociais e políticas: a exortação do pregador diz respeito a todos, sem distinção: “assim diz aos Monarchas mais soberanos, assim diz aos vassallos mais humildes, nenhuma distinção faz de homens a homens; tão homem e tão pó chama aos que reinão, como aos que servem” (1750, p.3). Pois, “nisto que toca ao ser, não ha differença nem ainda do cetro ao cajado, tudo he cinza com mais, ou menos precioso disfarce; hum Rey he cinza coberta de purpura, hum pastor he cinza cuberta de sayal”. As diferenças de nível social, ou político são portanto contingentes e aparentes: “só a vaidade dos tempos pode introduzir desigualdade nas apparencias da pompa”, pois a natureza humana é a mesma em qualquer condição, assim como a terra que possui a mesma natureza, seja estando no cume dos montes ou na profundidades dos vales. A “altura” de sua posição não deve induzir engano: trata-se da mesma terra! E como a terra é a base do composto humano, conclui Sá, “não vos engane a humildade, em que vedes a outros, e a grandeza em que vos vedes a vos, porque nem os outros por humildes tem mais de terra, nem vós por grandes tendes de terra menos” (1750 p. 4). Nesta mortalidade, pois, fundamenta-se a igualdade entre os homens, pois todos são constituídos pelo mesmo barro, conforme atestam os relatos bíblicos da criação, no livro do Gêneses.

Semelhante consideração da condição humana permanece ao longo dos séculos XVII e XVIII: norteia, por exemplo, o sermão das Cinzas, pregado pelo Agostiniano Descalço Bento da Trindade, do fim do século XVIII. Dirigindo-se a um homem poderoso, Bento lhe recorda sua mortalidade: “Senhor, por muito grande que seja a distincção, a grandeza, que vos eleva sobre nós todos, enfim, somos mortaes, todos devemos morrer. Lembra-vos que, por grande e poderoso que sejais, não deixais de ser mortal, e de ser homem” (Trindade, 1841, p. 124). Através da celebração da quarta feira de Cinza, a Igreja, fazendo-nos conhecer o nada que somos nesta vida terrena, nos mostra o muito que devemos ser na existência celeste: “a morte, e o fim do nosso corpo, e a immortalidade e o destino de nossa alma: o que seremos na morte, e o que seremos depois della”. Trata-se, pois de “duas importantíssimas verdades de que devemos lembrar-nos” (1841, p. 125). Aliás, a consideração delas deve induzir o fiel à reforma de seus costumes, de modo que a lembrança da fragilidade do nosso corpo que será reduzido à “cinza e pó” pela morte, deve fazer os fieis, “virtuosos na vida”. Desse modo, através do “justo desapego dos bens, que acabão com o tempo” e da “lembrança dos bens da immortalidade da nossa alma”, estes tornar-se-ão “possuidores dos bens da eternidade” (1841, p. 25).

Trindade descreve os efeitos ‘terapêuticos’ deste exercício de desapego e de memória: a consideração atenta (“contemplação”) destas características da condição humana, “manifestando ao homem o que é e há de ser” evidenciará o engano da imagem que ele de faz de si mesmo, pois “humilhará a sua soberba, destruirá sua ambição, reprimirá os impulsos de suas ira e vingança, e extinguirá nelle todo o fogo das paixões” (1841, p. 128). Inculcará nele as virtudes e o discernimento do que é real e do que é aparente.

Noutro sermão, pregado na Bahia, na Igreja de Nosso Senhor dos Aflitos, Trindade detém-se na contemplação do espetáculo universal da desgraça humana: diante das “misérias e catástrofes do mundo”, percebemos que este é uma espécie de “desterro”, uma “terra espinhosa” em toda e qualquer condição, “desde a cabana até o throno, desde o estado mais abatido, e deprezível, até o mais elevado, e respeitável”. Isto é evidente também ao longo do tempo, pois “estendei as vossas vistas por toda a história dos séculos, vós achareis evidente esta bem triste verdade” (Trindade, 1841, p. 114). Conseqüência da recusa originária do homem diante de seu Autor, esta condição atinge de modo universal a todo ser humano na terra: “em vão procurais algum lugar, estado, ou condição, que seja isenta de afflicções e de miserias” (1841, p. 114).

Nesta “enfermidade universal”, infeliz conseqüência da escolha da liberdade humana contra seu Criador, Cristo vem ao encontro ao homem, como “remédio”: “o Bom Senhor a todos remedêa, consola e favorece” (1841, p. 119). Neste sermão, Trindade compara a condição terrena do homem a uma prisão: “Nesta cadeia de penas, Cristo é o único lugar de refúgio e consolação” (1841, p. 120).

A analogia entre a condenação eterna e a prisão aparece também nos sermões de Ângelo de Sequeira que, para descrever melhor este tipo de pena, utiliza-se inclusive de seu conhecimento da condição de vida dos presos na colônia, em Portugal e no mundo. Desse modo, aproveita da exigência de correção inerente a pregação quaresmal, para denunciar a condição desumana das prisões. Descreve, entre outros, o calabouço existente na fortaleza da Vila de Santos, “terror da Capitania e Bispado de S. Paulo” (Sequeira, 1758, p. 16), para onde são remetidos os delinqüentes que cometeram crimes mais graves e cuja condição é tão terrível que, em muitos casos, os detentos preferem ser sentenciados do que lá viver. Desse modo, Sequeira afirma ser aquela masmorra “figura do inferno” e serem “aquelles pobres encarcerados, figura dos condenados, que para mayor tormento, lhes cresce a dor e a afflicção á vista de santos” (1758, p. 16). Não menos infernal é a condição das prisões no Rio de Janeiro: na Ilha das Cobras, por exemplo, existe uma fortaleza, uma das maiores do Reino, onde há várias prisões subterrâneas e para onde, segundo uma tradição antiga, eram remetidos e degredados os Judeus, sentenciados pelo Tribunal do Santo Oficio. Em lugar de serem queimados, comutavam-se-lhes a sentença para o degredo na Ilha das Cobras. Sequeira acha que tratava-se de uma “comparação muito proporcionada á prizão do Inferno, onde os condenados são lançados para eternamente serem queimados, comidos, devorados e não consumidos pelas cobras, e serpentes infernaes” (1758, p. 17). Neste caso, a aparência é representação que vislumbra os traços de uma condição duradoura.

Diante desta terrível perspectiva eterna, que encontra sua atualização temporal no presente, na realidade das prisões brasileiras, o pregador aconselha a conversão imediata, pois não há tempo a perder: uma vez entrado definitivamente no inferno, a condição de doença provocada pelo pecado, tornar-se-á definitiva e incorrigível: “quem já se não rende, está já prescrito, e incurável” (1758, p. 23). Este processo, segundo Sequeira, é totalmente conforme às práticas médicas: recorrendo a Hipócrates e seus Aforismos, cita os conselhos acerca da cura dos enfermos, onde se sugere que “quando curarem aos enfermos, lhes appliquem medicinas brandas, e suaves, mas se a enfermidade for crescendo, lhes appliquem medicinas mais violentas, e senão sararem, passarão a ferro, e senão melhorarem, lhes appliquem fogo, e quando este lhe não sarar, fiquem certos, que he incurável a enfermidade”8. Nesse ponto, o pregador, referendo-se a Cristo, recorda aos ouvintes que “há muitos séculos, anos, meses, semanas, dias, horas, minutos, e instantes”, que o “divino Medico” assumiu a condição mortal de homem, “para curar as nossas almas, e enfermidades do corpo” (1758, p. 23).

Visando melhor fundamentar o argumento da Divina Medicina, Sequeira continua o sermão com a narração de todas as curas que Jesus fez, recorrendo aos Evangelhos: Cristo “pondo as mãos nas cabeças das criaturas, curava e sarava a todos” (p. 25). E conclui com a afirmação de que o definitivo remédio inventado por Deus para a cura do homem é o sacramento eucarístico:

Finalmente applicou-nos Deos o remedio, e curou as nossas enfermidades espirituaes com medicinas brandas, saborosas, e suaves, dando-se-nos por verdadeira comida e bebida: Caro meo vere est cibus, et sanguis meus vere est potus, e dando-nos a vida com esta iguaria sagrada, e Pão dos Anjos (p. 25).

Em outro sermão, Sequeira descreve a vida humana como uma navegação num mar tempestuoso: compara as almas que “caminhão nos corpos” e que atravessam o “mar procelozo deste enganozo mundo”, aos navios que “experimentando tufoens de ventos, contratempos, e horríveis tempestades”, buscam superar as dificuldades, até chegar ao “porto da eternidade” (1758, p. 28). Portanto, quem souber atravessar os perigos e fugir dos enganos, chegará ao porto seguro da glória e quem se meter em trajetos perigosos e não souber governar o leme da sua embarcação, naufragará e será tragado pelas ondas até o “porto da eternidade do inferno”.

Em suma, ao viver o tempo de nossa existência, não devemos nos esquecer de que o dia do juízo chegará “todo cheio de melancolia”, “afligindo aos nossos corações e penetrando de summa tristeza as nossas almas” (1758, p. 58). O pregador confessa seu pessoal sentimento de desconforto e de medo ao representar-se aquele definitivo instante:

Eu confesso, que quando entro a considerar neste último dia, e nas suas circunstâncias, fico tão penetrado de tristezas, tão assustado, e entrado de pavor, e horror, e tão esmorecido de pasmo, e tremor, e enfiado de medo, que logo se me esfria o sangue nas vêas, e vigor se me congela nos ossos, o coração se me demaya, as forças se me desfaleccem, o alento me falta, a voz se me immudece, (...) só de cuida-lo (1758, p. 59).

A seguir, Sequeira retrata em palavras eloqüentes, o quadro da chegada de Cristo com seu exercito, a luta contra o Anti-Cristo, a destruição da terra, de todos os poderes mundanos pela mão do Anjo exterminador: imaginem – diz- que vos tome pela mão um Anjo; perguntai-lhe pelos Monarcas da Europa, da Espanha, da Asia e da América. Ele responderá: “Cecidit, cecidit: tudo se acabou” (1758, p. 97). Perguntai-lhe “pelo nosso Portugal, Brazil, e Índia, e pelos seus Conquistadores, e descobridores, e responderá: Cecidit, cecidit, tudo se acabou” (1758, p.97). Desse modo, muitos poderosos, incluindo reis, príncipes, ministros, bispos, e até pontífices e cardeais, devido à suas más ações, serão “mal resuscitados” no dia do juízo: e “que importa haver nascido venturosos se ressuscitais desaventurado?” (1758, p. 97).

O relato prossegue narrando o momento próprio do juízo: cada categoria será julgada pelas suas ações (estudantes, médicos, religiosos, mulheres, etc.). Dentre outros, os estudantes preguiçosos serão duramente repreendidos pelo Divino Juiz: “porque não gastaveis o tempo applicados nos estudos, porque gastastes os dinheiros dos vossos pays em superfluidades, porque gastando o tempo nas ruas, de dia e de noite, e dormindo os livros, acordaveis o pecado” (1748, p. 143). Quanto aos estudantes de medicina, Ele os repreenderá especialmente, devido à responsabilidade de sua função profissional: “Porque não estudastes? e se a terra cobrio os vossos erros, e descuidos, agora se publicão as vossas ignorancias” (1758, p. 145).

A seguir, Sequeira relata o juízo final de Cristo e a condenação dos pecadores, incluindo a trágica despedida do condenado de sua vida terrestre, mal aproveitada e por isto perdida. Os cinco sentidos foram dados ao homem para serem utilizados tendo em vista o verdadeiro conhecimento das coisas. Todavia, quando em vida não foram aplicados para atingir o entendimento da essência da realidade, na morte tornar-se-ão introdução ao reconhecimento do nada e do mal. Desse modo, ao despedir-se deles, o pecador reconhecerá sua culpa no mal emprego destes. De fato, os olhos que nunca choraram os pecados e somente ofenderam o Criador “procurando vistas formosas”, agora terão a visão do inferno com seus “monstros horríveis, e infernaes”. Os ouvidos empregados na escuta de “muzicas profanas, e deshonestas, e murmuraçoens” e não das palavras dos pregadores na ocasião das missões populares, agora ouvirão apenas o que nunca quisera ouvir. O nariz e o olfato aliciados com cheiros de perfumes dispendiosos, agora serão para sempre estimulados por um “fedor intollerável”. O “sentido do gosto, e da lingua, e do beber” que nunca gostou em vida do Corpo e do Sangue de Cristo e sempre gosaram com comidas e bebidas, ahora serão alimentados com “fel de dragoens e peçonha de viboras peçonhentas”. O sentido do tato que “só apalpava as honras, cabedaes, estendendo as mãos para os furtos, e roubos, e em corpos delicados” agora provará os tormentos do fogo infernal (1758, p. 208).

 

Segundo movimento: Quaresma – tempo para contemplar a glória.

Os sermões do tempo de Quaresma apresentam um duplo movimento: após a parte “negativa” onde são apontados os elementos para induzir no ouvinte o “desengano” do mundo, os pregadores detém-se na consideração da verdadeira glória do homem, na afirmação da dignidade de sua natureza. O reconhecimento da fragilidade humana, com efeito, não acarreta uma antropologia niilista ou pessimista, sendo que, como já observamos, esta fragilidade não é inerente à ontologia do homem, mas conseqüência de um posicionamento de sua liberdade, que pode ser superado e transformado por meio da conversão. A ênfase na mortalidade tem, portanto, o objetivo de suscitar no fiel o desejo e a busca da imortalidade. É o que Bento da Trindade realiza na Segunda parte do já citado sermão das Cinzas, refutando os posicionamentos niilistas, cépticos e reducionistas acerca do homem, próprios da filosofia da segunda metade do século XVIII. Considera estas concepções uma expressão da mesma hostilidade da liberdade humana contra Deus, de que Cristo foi vitima em sua vida terrena. Ao referir-se à “nova filosofia deste século”, a saber, o iluminismo em sua vertente materialista e sensista, afirma que, no que diz respeito à concepção do homem, esta “pertende disputar-te a glória de uma alma immortal, e reduzir-te à mesma classe dos brutos”, tratando o ser humano “automato, e máquina”. Considera-o inclusive como “miserável sem esperança, e virtuoso sem prêmio”, uma vez que retirou –lhe a condição de ente somato-psíquico-espiritual, sendo o espírito fundamento da imortalidade, liberdade e filiação divina. Trindade afirma que o homem cristão que vive no meio deste ambiente culturalmente hostil, não deve ressentir-se nem estranhar, pois ele não pode ser poupado e isentos dos “golpes” “cruéis hostilidades, e horríveis attentados” dos quais o próprio Cristo gozou na sua vida terrena e na morte. Esta consideração deve consolar o cristão e torná-lo agradecido por merecer participar das mesmas perseguições: “alegra-te do teu destino, e reconhece sem vaidade a tua verdadeira grandeza” (Trindade, 1841, p. 132). Em que consista a grandeza e o destino do homem, Trindade proclama no trecho, logo a seguir, que merece ser citado na integra:

Apesar do que se chama systema da natureza, Espírito libertado da escravidão da crença, Filosofia da razão, e outros infelizes monstros, e produções de impiedade, tu es hum ente immortal, hum ser eterno. Deos o disse, e isto basta. Este corpo, que he de terra, irá para o seu pó; mas o espírito, que vem de Deos, voltará para o seu princípio. Esta alma, imagem da Divindade, não poderá ser anniquilada, nem ornará o império, e o triunfo da morte. Hum ser simples, espiritual, intelligente, não pode ser dissolvido em parte, nem anniquilado em todo (1841, p. 133).

Trindade afirma que esta visão do homem está gravada em cada pessoa e pode, portanto, ser reconhecida por cada um, na medida em que se propõe a alcançar o verdadeiro conhecimento de si mesmo. Apesar da cultura contemporânea pretender induzir o esquecimento dessas verdades, elas são tão profundamente enraizadas na alma humana, a qual “no pressentimento vivo de sua immortalidade, he, a despeito deste dogma, naturalmente christã”. Define-o como “o grito da humanidade”, pois este pressentimento ou sentido religioso inerente a cada homem é uma espécie de “fé universal da natureza” (1841, p. 134).

Nesta ótica, a contemplação das cinzas transfigura-se em reconhecimento do resplendor de que goza a natureza humana em sua condição originária e em sua restauração por Cristo. Consideradas nesta perspectiva, as cinzas emanam um “brilhante resplendor”:

Eu diviso, senhores, ao homem, não já como hum ser fraco, e desprezível, mas como uma nova creatura, pouco inferior aos Anjos, coroado de honra e de gloria, e superior às obras das mãos de Deos.

Eu vejo ao mesmo pó reanimado, e mesmo immortalizado na ressurreição gloriosa, e as ternas complacências do seu mesmo Creador. Eu o vejo em fim resplandecer, em huma luz inextinguível entre os espíritos celestes junto ao Throno do Altíssimo (1841, p. 134).

Os filósofos que pretendiam “limitar na morte toda a duração” do homem, diante desta sua exaltação definitiva, deverão reconhecer os erros e enganos de suas doutrinas, “pois aquelle homem que se dizia ser tão vil e desprezível, máquina de pó e cinza, immediato ao nada”, será revelado em seu verdadeiro ser. As conseqüências da negação da concepção cristã da pessoa humana no plano social são evidenciadas com todas as letras por Trindade:

He este aquelle ser, que se julga tão pouco considerável, cujo destino se esquece, cuja vida se despreza, cujos direitos se atropellão, cujas virtudes se combatem, cujo sangue se espalha, cujas lagrimas se promovem, cujas salvação se arrisca, e muitas vezes se embaração? He este aquelle pó, que havendo sido destinado para hum fim tão glorioso, se cala, e se atropella injusta e impunemente? (1841, p. 135).

 

Conclusão

O tempo da Quaresma, em suma, compõe o conhecimento do homem a partir de um duplo movimento: um momento crítico (o “desengano”), no qual se considera a condição histórica do homem e apontam-se seus desvios, individuais e sociais; e um segundo momento, onde se aborda a possibilidade da perfectibilidade do homem, do ponto de vista ontológico. O conhecimento de si mesmo é concebido como parte da Medicina da Alma, sendo a palavra pregada, terapêutica, seja no sentido de apontar a etiologia das doenças espirituais, seja no sentido de indicar os remédios necessários. Neste dinamismo, as potências psíquicas concorrem de várias maneiras: o entendimento, a memória, a sensibilidade e os afetos são mobilizados em função de um único objetivo: a conversão do ouvinte.

 

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Endereço para correspondência
Marina Massimi
Rua 7 de setembro, 799 / 91 – 14010-180 – Ribeirão Preto/SP
tel: (16) 3941-3668
E-mail: mmassimi3@yahoo.com

recebido em 24/11/04
versão revisada recebida em 10/11/05
aprovado em 07/02/06

 

 

Notas

IPsicóloga (Universidade de Pádua, Itália); Mestre e Doutora (USP); Livre Docente (Departamento de Psicologia e Educação da FFCLRP-USP); Professora Associada (FFCLRP-USP).
1Serão estudadas peças de oratória sagrada brasileira menos conhecidas dos que a de Antônio Vieira, tendo sido este tema de análise anteriormente desenvolvidas.
2Vários documentos atestam o fato: por exemplo, na carta enviada por José de Anchieta à Laínez, de São Vicente, no dia 8 de janeiro de 1565, relata-se que Pindobuçu, poderoso chefe dos Tamóios, começou a pregar pelas casas, dizendo: “Si nosostros tenemos miedo de nuestros hechizeros, quánto más lo devemos de tener de los Padres, que deben ser sanctos verdaderos, y ternán poder para nos hazer venir cámaras de sángue, tosse, dolor de cabeça, fiebres y otras enfermidades de que todos moriremos!”. (em: Anchieta, J, Cartas, fragmentos históricos e Sermões, Cartas Jesuíticas, n. 3, Belo Horizonte, Editora da Universidade de São Paulo/ Itatiaia, Coleção reconquista do Brasil, 2 série, vóls. 149, 1988, pp. 133-134).
3Expressão utilizada nos relatos missionários da época para indicar as autoridades políticas das populações nativas.
4O modelo sacramental está na origem da maneira de conhecer a realidade do catolicismo da Idade Moderna: a essência do sacramento da Eucaristia é a presença da divindade sob as espécies do pão e do vinho que se transubstancializam no corpo e no sangue de Jesus Cristo. A Eucarística, constitui –se assim na presença oculta sob espécie, do divino em plano terreno.
5Este persuadir pode ser entendido de várias maneiras: adotando parâmetros, um tanto anacrônicos e presentistas, poder-se-ia observar que a pregação pretenda incorporar, nos indivíduos, atitudes, crenças e gestos considerados convenientes – objetivo este realizado através de apelos intensamente emotivos e teatrais, mais do que pela convicção racional. A tese historiográfica de que a oratória sagrada popular poderia ser interpretada apenas em termos de uma prática de domesticação das populações, concebidas como receptores passivos, foi colocada já no fim da Idade Moderna por um crescente número de cronistas, eclesiásticos e intelectuais, influenciados pelo Iluminismo. Esta visão encontra ainda hoje respaldo na tese de alguns eminentes historiadores da cultura como R. Chartier (1990) e Maravall (1997). Todavia, outros historiadores, especialistas na área da oratória sagrada medieval e moderna, tais como Majorana (1997) e Châtellier (1995), afirmam não ser este o significado do persuadir vivenciado pelo pregador: por exemplo, o desejo de provocar a comoção não seria a única finalidade das encenação piedosa realizada tendo o objetivo de teatralizar a prática oratória. Se, conforme afirma Châtellier, o vasto movimento das missões no século XVIII, foi “suscitado simultaneamente pela atividade apostólica dos religiosos e pelo desejo ardente das multidões que a acolheram, nela participaram, e com ela cooperaram”, devemos admitir que o referido movimento “transformou-se porventura no século XVIII e em certas regiões, na forma privilegiada escolhida pelas populações para viverem a sua religião”. Pois, “à medida que a instituição eclesial se consolidava, aí se descobria um espaço de liberdade para o qual o indivíduo isoladamente considerado era solicitado, tinha uma decisão a tomar, e uma tarefa a desempenhar” (1995, p. 106).
6Das Constituições Primeyras Do Arcebispado Da Bahia. 1720 citamos o capítulo normativo acerca das atividades de pregação na Quaresma, no Brasil. ART 417 p. 174-5: “O direyto obriga, sob pena de peccado mortal, aos Pregadores que exhortem e persuadão nos sermões que fizerem no primeiro, quarto e ultimo domingo de Quaresma, e nas festas da Ascençaõ de Christo, Pentecostes, Assumpção e Nascimento da Virgem nossa Senhora, nas domingas de outubro”.
7Como diz o título do sermão, o culto à Nossa Senhora da Porta do Céu é importado de Portugal, sendo porém já praticado na Igreja oriental, visando propiciar a ajuda de Maria para alcançar a entrada na Porta do Paraíso, mas também para auxiliar na compra ou na locação de imóveis. Relata Megale que no Brasil, o culto iniciou-se na Igreja do Carmo em Salvador, “este título mariano já existia em Portugal, pois frei Agostinho de Santa Maria refere-se à milagrosa imagem deste orago de Maria, muito querida pela população de Lisboa. Dizia ele que o príncipe D. João de Candia, mais conhecido como “Príncipe Negro”, por ser da ilha de Ceilão, edificou um convento na capital portuguesa para os irmãos franciscanos enfermos, dedicando sua igreja a Nossa Senhora das Portas do Céu, “para obrigar a Rainha dele lhe conceder o poder de entrar por suas portas. (...) De Portugal, este original título de Maria passou para o Brasil, trazido, segundo dizem, por Pascoal Marques de Almeida” (2001, pp. 403).
8Quaecumque medicamentis non curantur, ferrum curat, que ferrum non crat, curat ignis, que igne non curantur, ea existimare oportet inmediabilia.