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Interações

versão impressa ISSN 1413-2907

Interações v.11 n.21 São Paulo jun. 2006

 

ENTREVISTA

 

Entrevista com o Prof. Alberto EiguerI

 

Realizada por Maria Consuêlo Passos, em Paris, primavera de 2005

 

 

Ent. – Para o Sr. quais os grandes impasses vividos pela família hoje?

Prof. Eiguer – Uma resposta a esta questão pode ser sempre incompleta, mas vamos tentar. Um primeiro problema é a questão da autoridade dos pais diante dos filhos. Os pais estão cada vez mais desautorizados, com dificuldades de exercer a posição de proteção. Há várias posições a este respeito, mas, a que domina o panorama é a que mostra que os filhos estão cada vez mais precoces e têm cada vez mais a possibilidade de assimilar rapidamente as informações, o que os coloca como mais conhecedores e com ímpetos de enfrentar os pais. Associado a isto – porque todas estas questões estão interligadas – há uma melhoria das condições econômicas das famílias que permite que os filhos tenham mais objetos. Nas diferentes classes sociais as famílias têm mais possibilidades de oferecer mais coisas aos filhos e muitas vezes isto serve como meio de compensação daquilo que eles não podem oferecer aos filhos, como tempo e atenção. Isto parece ser um grande problema, pois, principalmente em algumas classes sociais, o trabalho dos pais, para que estes obtenham mais recursos, impede o cuidado às crianças.

Então, os objetos ocupam o lugar do tempo da educação e do amor que estes pais não podem dar aos filhos.

Ent. – Lacan afirmou que a família é um mal necessário, o Sr. concorda com esta afirmação?

Prof. Eiguer – É um mal necessário, mas, temos também que entender o que ela proporciona como apoio, como fonte de delegação dos valores e de conhecimentos. Isto ela tem que oferecer para que mais tarde a criança possa seguir seu próprio rumo.

Ent. – A que o Sr. atribui um certo enfraquecimento da família como referência na sociedade atual? Seria só a autoridade paterna que declina ou a mãe também vem perdendo seu poder?

Prof. Eiguer – Do meu ponto de vista as duas coisas estão interligadas. Isto é, de modo geral, uma questão social com facetas diferentes. A primeira é a decadência, se assim podemos dizer, da função do pai. Por que não se encontra ainda uma transformação total da posição autocrática da família patriarcal para uma posição democrática onde o pai continua sendo pai e representando segurança para a criança. Ainda não há na nossa sociedade um papel paterno que não seja sustentado pelo poder patriarcal. Em segundo lugar, o aumento de divórcios, as recomposições e outras formas de expressão familiar têm contribuído para que haja esse declínio do poder paterno.

Ent. – O Sr. acha que a sociedade francesa ainda é fortemente patriarcal?

Prof. Eiguer – Todas as sociedades ocidentais são patriarcais.

Ent. – Aqui na França como está o interesse dos jovens pelo casamento? Eles estão procurando constituir família?

Prof. Eiguer – Depois de muitos anos em que o número de casamentos estava reduzindo, agora está voltando a subir. Eu penso que o casamento está gerando uma nova dinâmica conjugal. São novas motivações, os jovens hoje necessitam estar juntos para vencer e para combater um grande problema da sociedade que é a solidão, o desemprego e uma tremenda insegurança. Então começam a redescobrir formas novas de se ama, de se ajudar, para fazer frente, juntos, a esta situação.

Ent. – Na França, como de resto em muitas partes do mundo, existem hoje muitos arranjos familiares, muitas modalidades de ser família. Temos a família recomposta, a monoparental, a homoparental etc. Poderíamos dizer que as pessoas querem se unir, desde que seja à sua moda?

Prof. Eiguer – Sim, se a sociedade é democrática, o ser humano assume mais o seu destino e trata de dar-lhe uma perspectiva pessoal. Na sociedade patriarcal há menos possibilidades desta criação. Há alguns estudos que mostram como nas transformações sociais, os tipos de pai e de mãe estão vinculados à democratização que impõe que o ser humano se assuma só e crie novas formas de funcionamento.

Ent. – O Senhor acha que estas novas formas de família e, mais especificamente a homoparental acarretarão problemas na constituição psíquica dos filhos?

Prof. Eiguer – Eu penso que os estudos hoje são ainda incipientes para que possamos responder a esta pergunta. Muitos estudos são feitos por pessoas que estão convencidas que a família homoparental é semelhante à heteroparental, ou seja, há interesse nestes estudos de que não apareçam as eventuais dificuldades. É mais ou menos o que acontecia com as primeiras experiências com inseminação artificial com doador. Já existem pesquisas de vinte, trinta anos, mas no começo havia, inclusive, uma dificuldade de ordem ideológica. Havia o temor de que se evidenciasse que as crianças apresentavam problemas, principalmente biológicos, pois assim as pesquisas não progrediriam. Nestas mudanças todas que vêm se processando existem outros fenômenos que precisam ser observados, por exemplo, uma maior infertilidade do casal. Segundo, há mais prematuridade, entende? A gravidez tem sido mais curta, em muitos casos. Isto tem a ver com o fato de que hoje as mulheres vivem muito mais tensões, inseguranças, vivem muito mais sozinhas para dar conta de todas as suas tarefas. Não têm mais uma família ampliada que possa lhes dar suporte, ajuda. Muitas mulheres vivem conflitos no mundo do trabalho, enfim, todas estas coisas fazem com que a gravidez seja mais problemática.

Ent. – Quais são as problemáticas de família que chegam com maior frequência ao seu consultório?

Prof. Eiguer – Eu recebo com frequência famílias de adolescentes com problemas, em primeiro lugar, de adicção, depois problemas na relação de autoridade com os pais, problemas de violência, transtornos alimentares e muitos casos de incesto. Cada vez mais aumentam os casos de abuso sexual, internos à família e externos, como a pedofilia.

Há um artigo meu que trata da terapia familiar e outros tipos de terapia nos casos de perversão. Nesses casos é muito importante a terapia de casal. Hoje existem muitos problemas em torno da violência sexual.

Ent. – Isto se dá em qualquer tipo de família ou existiria alguma relação entre este tipo de violência e uma modalidade específica de família?

Prof. Eiguer – Isto é preciso estudar. Ainda em relação ao adolescente, têm surgido muitos casos de suicídio. É preciso estudar estes casos cada vez mais. O adolescente e sua família são as balizas da sociedade. É na adolescência onde há mais confrontação com o ambiente familiar e social. Então se uma família vive inseguranças e desorganizações, isto repercute no adolescente que apresenta aqueles problemas que dissemos acima.

Ent. – Estas devem ser as preocupações dos estudiosos de família, ou seja, é este caminho que deve seguir os trabalhos de família na atualidade?

Prof. Eiguer – Eu venho estudando já há algum tempo as famílias do perverso, perverso moral e o que chamo novela familiar do negativo. Procuro compreender porque em uma família surgem tantos problemas de psicopatia, tantos problemas de adicção, de delinqüência. E vejo que há muitos problemas relacionados à ausência dos pais, digo, pai e mãe. Não é só ausência, mas muitas mudanças nas figuras parentais, muitos traslados, as crianças vivem em uma casa, outra casa, em um lugar, em outro, com figuras muito confusas e distintas do pai e da mãe. Isto dificulta a formação dos vínculos.

O que sabemos é que a criança normal ou neurótica imagina uma novela familiar, mas há duas variantes. Na primeira, ela imagina que seus pais lhe adotaram e, na segunda variante, ela imagina que sua mãe teve relações com outro senhor. No caso da novela familiar do negativo, a criança não chega a imaginar, a fantasiar uma novela familiar, quer dizer, como não pode imaginar que os pais o adotaram de outra família, eles têm que roubar coisas, já que lhe roubaram uma parte de sua infância, que lhe roubaram o pai e a mãe. Como não pode imaginar que sua mãe lhe teve com outro senhor, então mente em relação a sua própria identidade, o que dá lugar a diferentes variações de imposturas. No caso da delinqüência, as duas situações estão presentes. Tanto as dificuldades em constituir uma identidade como a idéia de que foi lesado, roubado em sua infância.

Ent. – Prof. me ocorreu agora o seguinte: seria plausível pensar que há uma correlação entre os novos tipos de família e a criação, pelo filho, da novela familiar? Em outros termos, como poderíamos pensar nesta novela considerando uma família monoparental em que não há a presença de um pai?

Prof. Eiguer – Penso que pode haver uma relação sim. Todo estudo sobre a subjetividade deve se aproximar da questão da constituição do vínculo familiar. Não há ainda muita segurança quanto à relação existente entre o tipo de família e o tipo de vínculo.

Voltando à questão anterior, é preciso estarmos atentos a esta problemática da criança roubar e mentir. Isto não significa que ela se tornará necessariamente um adolescente psicótico. Há que se estudar a relação entre estas questões e adoções mal assumidas, rupturas, descontinuidades nas relações pais-filhos etc.

Ent.- Poderíamos pensar mais precisamente que não é o tipo de família, mas o modelo identificatório que ela oferece às crianças. O tipo de filiação que permite a criação da novela familiar. Assim, não importaria o tipo de família, se mono, homo, mas como cada uma cria seu espaço de filiação e de identificação recíproca. É isto?

Prof. Eiguer – Talvez seja isso. Toda esta discussão nos leva a entender que é muito importante a criança sentir-se identificada com o pai, sentir que o pai a identifica como filho(a) e que este(a) identifica o pai e a mãe como pai e mãe.

Penso que a base do sentimento filial está presente em todos os problemas que estamos falando e que tem a ver com uma crise dos vínculos de filiação.

Ent. – Poderíamos dizer que, de um modo geral, há uma crise na família contemporânea?

Prof. Eiguer – Sim, mas penso que o fato de haver crise não quer dizer que há uma catástrofe. Diz sim de um momento de transformação da sociedade patriarcal para uma sociedade democrática, como já disse. No entanto, este último modelo não terminou de constituir-se. É preciso, nisso tudo, considerarmos o papel que está sendo representado pelos irmãos. Porque estes têm um papel importante para assegurar à família, uma certa solidez.

Ent. – Infelizmente o tempo que tínhamos terminou. Muito obrigada, professor.

 

 

I Professor Alberto Eiguer é psicanalista, docente da Université Paris V – Sorbonne e Presidente da Societé de Thérapie Familiale Psychanalytique d’Ile-de-France