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Estudos de Psicologia (Natal)

versão impressa ISSN 1413-294Xversão On-line ISSN 1678-4669

Estud. psicol. (Natal) vol.22 no.1 Natal mar. 2017

http://dx.doi.org/10.22491/1678-4669.20170007 

PSICOLOGIA SOCIAL COMUNITÁRIA E SAÚDE MENTAL

 

Habilitação psicossocial de pessoas em sofrimento psíquico: Um trabalho com produção de blog

 

Psychosocial habilitation of people in psychological distress: A job with blog production

 

Habilitación psicosocial de personas en sufrimiento psíquico: Un trabajo con la producción de blog

 

 

Ivanise Gomes de Souza BittencourtI; Deise Juliana FranciscoII

IUniversidade Federal de Alagoas
IIUniversidade Federal de Alagoas

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A intervenção na saúde mental tem construído trabalhos sintonizados com autonomia e escuta dos sujeitos. Neste relato de experiência profissional discutem-se oficinas terapêuticas informatizadas, com o objetivo de analisar a produção em blog quanto ao seu potencial de habilitação psicossocial. Foram realizadas 12 oficinas em um Centro de Atenção Psicossocial de Maceió com quatro usuários. Analisou-se as postagens no blog e entrevistas com usuários, sendo construídas categorias, a partir da análise de conteúdo: aprendizagem, domínio dos recursos tecnológicos e avaliação da oficina. Como resultados, aponta-se que a produção em blog proporcionou aprendizagem de recursos, progressos na comunicação e interação.

Palavras-chave: saúde mental; habilitação psicossocial; tecnologia.


ABSTRACT

The intervention in mental health has built works tuned with autonomy and listening to the subjects. In this report of professional experience, computerized therapeutic workshops are discussed, with the objective of analyzing the blog production regarding its potential for psychosocial habilitation. Twelve workshops were carried out at a Psychosocial Care Center in Maceió with four users. The blog posts and interviews with users were analyzed, and categories were constructed, based on content analysis: learning, mastery of technological resources and evaluation of the workshop. As results, it is pointed out that the production in blog provided learning resources, progress in communication and interaction.

Keywords: mental health; psychosocial habilitation; technology.


RESUMEN

La intervención en la salud mental ha construido trabajos sintonizados con autonomía y escucha de las personas. En este informe de la experiencia profesional discute talleres terapéuticos computarizados, con el fin de analizar la producción el blog por su potencial de cualificación psicosocial. Ellos se llevaron a cabo 12 talleres en un Centro de Atención Psicosocial de Maceió con cuatro usuarios. Se analizaron las producciones del blog y entrevistas con los usuarios, siendo construidas categorías a partir del análisis de contenido: aprendizaje, ámbito de los recursos tecnológicos y evaluación del taller. Los resultados muestran que la producción en blog proporciona recursos de aprendizaje, los avances en la comunicación y la interacción.

Palabras clave: salud mental; habilitación psicosocial; tecnología.


 

 

A intervenção em saúde mental no Brasil tem-se pautado, nos últimos anos, por trabalhos voltados à inclusão e à discussão sobre preconceito e discriminação com relação às pessoas diagnosticadas com algum tipo de sofrimento psíquico, tendo em vista que estes acabam levando à exclusão social dos sujeitos que os vivenciam. É um processo que, ao mesmo tempo em que não nega o sofrimento nem diminui seu significado na vida das pessoas, o qualifica de outra forma.

Salienta-se que os formatos das intervenções são bastante diferenciados e, neste artigo, busca-se a articulação com modos de trabalho em saúde mental com o apoio de tecnologias. Dessa forma, proporcionar o desenvolvimento de oficinas terapêuticas informatizadas nos serviços de atenção à saúde mental torna-se uma possibilidade para os sujeitos reconstruírem suas vidas através do uso e das potencialidades das Tecnologias Digitais da Informação e Comunicação (TDIC) e da ferramenta blog. As TDIC podem participar dos projetos terapêuticos de forma articulada com outros dispositivos constantes no trabalho coletivo, centrado na autonomia do usuário dos serviços. Os cuidados com relacionamentos virtuais, vírus, perda de arquivos, vício na rede, cyberbulling, por exemplo, são temas relevantes para serem discutidos nas intervenções, pois fazem parte do cotidiano da Internet. Além disso, o blog é um campo de interações, no qual podem surgir diversas reações quanto às postagens e torna-se relevante que os envolvidos na intervenção possam refletir e trabalhar com isso no cotidiano do trabalho. Como qualquer trabalho, há limites e cuidados a serem tomados, sendo que a intervenção com TDIC deve ser balizada pela ética e conhecimento técnico.

Partilhando dessa perspectiva, o presente estudo aponta algumas potencialidades das TIC para o campo da saúde mental e pretende contribuir com reflexões que possam fazer compreender como a produção em blog pode ser relevante para a habilitação psicossocial e promoção da saúde mental para pessoas em sofrimento psíquico.

Habilitação Psicossocial e as Possibilidades de Novos Modos de Vida

O conceito de reabilitação tem sido operado em várias e variadas práticas em saúde mental, nem sempre construídas sobre as mesmas bases teóricas e compromissos clínico-políticos. Neste sentido, Gruska e Dimenstein (2015) apontam três eixos de divergências:

tais eixos ou categorias de análise dizem respeito à função e alcance da reabilitação, à definição dos cenários reabilitativos e à conceituação e operacionalização do construto autonomia (Guerra, 2004). A articulação das respostas produzidas para essas categorias configuram os territórios a partir dos quais os diferentes modelos (1) concebem o ambiente social do usuário e seu grau de influência no processo reabilitativo, (2) problematizam as interações entre o contexto de vida do usuário, sua família e a relação terapêutica, estabelecidas na reinserção social, bem como (3) identificam as linhas prioritárias de ação, as habilidades e competências a serem desenvolvidas e os recursos terapêuticos para desenvolvê-las (p. 104).

A busca pela normalização do usuário, a adaptação do mesmo às condições que, muitas vezes, propiciaram a emergência dos sintomas e a regulação dos sintomas mais disruptivos não é a base para a reabilitação como tratada neste trabalho. A busca pela singularização e a construção de potencialidades advindas do diálogo com o usuário tem sido o mote do pensar a reabilitação. Para Saraceno (1999), é importante conceder crédito às pessoas para que autonomia e capacidade possam encontrar uma ocasião de expressão e crescimento, que consigam se tornar empreendedoras com respeito a si mesmas.

Por outro lado, alguns autores utilizam-se do mesmo termo (reabilitação), alterando sua significação tradicional e partilhando dos pressupostos acima e, para diferenciar a perspectiva, denominam tais ações como habilitação psicossocial. Torna-se necessário não perder de vista que a reabilitação psicossocial se fundamenta na ideia de que a pessoa em sofrimento psíquico constrói a si mesma com as experiências sociais. Com o passar do tempo, ela introjeta o sentimento de inutilidade que a sociedade lhe confere, com graves reflexos sobre sua autoestima. O retraimento da vida social é destacado por Fontes (2010), provavelmente como uma das sequelas mais significativas dos que enfrentam o sofrimento psíquico, pois há perda dos laços de sociabilidade provocando estigma e exclusão social.

A noção básica do processo de habilitação psicossocial remete a um problema ético e de cidadania (Gruska & Dimenstein, 2015). Os mesmos autores explicam que a ética surge como princípio norteador das ações de combate à exclusão, à violência e ao estigma da pessoa em sofrimento psíquico, enquanto que a cidadania compreende o processo que envolve a luta pelos direitos civis, políticos e sociais. Portanto, precisa contemplar a casa, o trabalho e o lazer, na perspectiva de resgatar a singularidade e o respeito à pessoa em sofrimento psíquico, proporcionando-lhe melhor qualidade de vida. Esses autores dizem que ajudar a pessoa em sofrimento psíquico a resgatar o elo perdido com a vida significa uma demonstração de valorização do ser humano e respeito a sua história de vida.

Nesta perspectiva, a habilitação psicossocial se apresenta no intuito de neutralizar os efeitos iatrogênicos e cronificadores da doença e do internamento. Essas atividades ou estratégias devem ser orientadas, como afirma Saraceno (1999), a aumentar as oportunidades de trocas de recursos e de afetos para que seja realmente criado um efeito "habilitador". Esta perspectiva é partilhada na presente pesquisa quando se advoga a cidadania e o aumento de trocas entre sujeitos, equipe, comunidade, família através de oficinas. A promoção da habilitação psicossocial pode ser constituída nos espaços das oficinas terapêuticas desenvolvidas nos serviços de atenção à saúde mental e, como proposta de atividades para essa promoção, apresentam-se possibilidades e contribuições do uso das TDIC neste processo.

O Blog e suas Contribuições para o Campo da Saúde Mental

Blog é uma abreviação da palavra weblog, sendo que a partícula web refere-se ao que permite a navegação através do uso de interfaces, e log refere-se aos registros no formato de um diário de bordo, tal como descrito por Neves e Boeira (2010). Para Castro e Santos Júnior (2015), é possível escrever sobre qualquer coisa, experiências, histórias, convicções, o que o autor desejar compartilhar como o mundo. Sendo um espaço para expressão pessoal, os sujeitos podem utilizá-lo para escrever sobre o seu dia-a-dia, fazer desabafos e confissões. Com isso, pode representar uma importante ferramenta aos profissionais de saúde mental, pois, através da análise desses registros, é possível conhecer ainda sobre os sujeitos e estabelecer as intervenções mais indicadas. Através do blog, os sujeitos encontram um espaço para subjetivação, revelado através das suas escritas. E tal escrita prevê o leitor, como se pode depreender das palavras de Castro e Santos Júnior (2015, p. 493):

Para os blogueiros, a audiência pode afetar a decisão sobre o que escrever, o quanto escrever e como escrever. Ainda que o visitante não comente publicamente na página sobre suas expectativas, a sua presença e as suas ações (e.g., confiar no escritor) podem influenciar a ação gerencial do blogueiro quanto ao volume, à variação e às características dos textos produzidos.

O blog pode contribuir para a promoção da saúde mental e constituir-se em um importante recurso de atenção ao sofrimento psíquico, em que a pessoa pode desenvolver, divulgar e compartilhar todas as suas potencialidades ao utilizar os recursos disponibilizados e discutidos acima sobre blog.

Uma experiência utilizando as TDIC para pessoas em sofrimento psíquico foi realizada em 2007 em um serviço de saúde mental no município de Porto Alegre, tendo como foco a análise da construção compartilhada de um blog e as possibilidades de exercício de autoria. Nesse estudo, a ferramenta blog foi oferecida enquanto um espaço de encontros múltiplos e compartilhamento das produções dos sujeitos, os quais tinham a liberdade para se expressar individualmente, em dupla, trios ou através de confecções grupais (Capella, Maraschin, Maurente, & Rickes, 2008).

Os resultados apontaram principalmente para uma posição de autoria e trocas de produções reforçando a relevância de explorar modalidades terapêuticas não tradicionais no enfrentamento dos problemas mentais. As oficinas tecnológicas possibilitaram a criação de novas redes de convivência e comunicação para as pessoas em sofrimento psíquico que acabam se afastando das suas redes sociais e afetivas, em que a troca de experiências pode ser fundamental para a sua habilitação psicossocial. De acordo com Bittencourt, Francisco e Mercado (2013), oportunizar a autoria em blog, nesse campo, proporciona aos sujeitos um ambiente de expressão, comunicação e construção do conhecimento, com produções significativas para a sua vida.

O blog permite momentos de interação, estreitamento de laços e a convivência com as diferenças. Pode representar uma forma diferente de aprender através do compartilhamento de saberes, proporcionando a valorização dos sujeitos, sua autoestima, crescimento individual e coletivo, e como um meio de inserção social, cidadania e desenvolvimento da autonomia.

As diversas possibilidades de uso da ferramenta blog no campo da saúde mental, conforme mencionado, apontam para a necessidade de exploração das suas contribuições para pessoas em sofrimento psíquico. Este estudo teve como objetivo analisar a produção em blog quanto ao seu potencial de habilitação psicossocial para pessoas em sofrimento psíquico.

 

Método

Este estudo é de caráter qualitativo. Envolveu uma pesquisa-intervenção e foi realizado em um CAPS localizado no município de Maceió, no período de agosto a dezembro de 2011, totalizando 12 oficinas. Envolveu a participação da pesquisadora proponente, alunos de graduação em Psicologia e Pedagogia, assistente social do serviço e usuários. Com frequência semanal, às quintas-feiras, duração de duas horas, foram coletadas informações quanto ao objetivo da pesquisa. Os grupos foram coordenados pela pesquisadora desse estudo, permitindo que os usuários e equipe interagissem, utilizando-se das TDIC.

As oficinas terapêuticas informatizadas se constituíram em momentos de interação com o computador e de criação de atividades para o blog. Os recursos computacionais foram utilizados e procurados na medida em que iam sendo solicitados pelas atividades construídas com os usuários no grupo.

A pesquisa foi realizada mediante a aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de Alagoas. Foi realizada com quatro usuários, sendo um do sexo feminino e três do sexo masculino, com idades entre 21 e 34 anos e um membro da equipe do CAPS, sendo respeitados os procedimentos éticos, estabelecidos na Resolução 196/96 - que estava em vigor quando da realização da pesquisa. Os usuários assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) e o Termo de Cessão de Direitos de Uso e Divulgação referente à autorização da publicação das produções no blog. Para fins de não identificação da identidade dos participantes, houve a decisão por nomes fictícios tais como: Hades, Maria, Adele e Liga dos Campeões.

Para a produção dos dados foram utilizadas entrevistas semiestruturadas e as produções na página do blog (http://www.criandolacosufal.blogspot.com.br). As entrevistas semiestruturadas foram realizadas com os usuários durante a etapa de reflexão através do levantamento das informações necessárias para o alcance do objetivo da pesquisa.

A análise dos dados foi realizada a partir da análise de conteúdo das entrevistas a partir do proposto por Bardin (2011), das proposições teóricas mencionadas, tendo como foco os objetivos da pesquisa. As categorias construídas a partir da leitura das entrevistas e das postagens no blog foram: aprendizagem na oficina, domínio dos recursos tecnológicos e avaliação da oficina de blog.

A primeira categoria (aprendizagem na oficina) traz relatos sobre o que foi aprendido, na perspectiva do usuário durante o processo da oficina. A segunda categoria refere-se ao domínio dos recursos tecnológicos, incluindo os aplicativos utilizados. A terceira categoria refere-se à avaliação feita da oficina, em termos gerais, incluindo os afetos referenciados pelos usuários.

 

Resultados

Os dados serão apresentados a partir do percurso de cada usuário, sendo que as categorias serão citadas ao longo da apresentação individual dos participantes.

Hades

É um usuário do serviço e contava com 21 anos, no período da pesquisa, sendo que possuía como grau de escolarização o ensino médio incompleto. No início da pesquisa, apresentava dificuldade de raciocínio. Para o blog "Criando Laços", escolheu o nome fictício "Hades" que é um dos personagens do desenho animado Cavaleiros do Zodíaco, do qual gosta muito. Foi adquirindo habilidades nos recursos que mais tinha curiosidade, tais como: Word, PowerPoint, internet e e-mail. Quanto ao que aprendeu através das oficinas informatizadas e do blog, respondeu na entrevista:

Aprendi a digitar mais rápido, desenhar no computador e trabalhar em equipe. Aprendi a mexer melhor no computador, coisa que eu não sabia muito. Isso ajudou a melhorar o meu raciocínio, a lógica, conviver melhor com as pessoas. Assim, fiz amizade. Aprendi a baixar vídeos e músicas e criar propaganda sobre drogas para os adolescentes. Está sendo boa a experiência do blog, me sinto bem, estou acompanhando o blog em casa também. Está ótimo! (Hades).

A participação nesse grupo foi importante para a sua socialização e formação de outras redes de convivência, além de contribuições para a sua forma de comunicação, à semelhança do que Castro e Santos Júnior (2015) encontraram em sua pesquisa.

Quando viu o blog estruturado, Hades relatou "Fiquei muito feliz". Para ele, o blog "Representa união. É como o nome do blog diz, criando laços" (Hades). Enquanto produtor desse blog, Hades revelou como se sentia: "Feliz por um sonho realizado e adorei a criação de cada página dos meus amigos".E quando interrogado quanto às contribuições do blog na sua vida, declarou de forma emocionada: "Melhorei o meu raciocínio, o blog representa tudo".Para Hades, o blog se constituiu em um recurso de escrita e cognição, possibilitando o desenvolvimento sociocognitivo. Destaca-se que houve achados semelhantes em Capella et al. (2008), quando jovens usuários de um serviço de saúde mental realizaram uma construção compartilhada de um blog e o exercício de escrita foi potencializador enquanto trocas internas entre os participantes e às pessoas externas à instituição.

Maria

Jovem com 34 anos à época da pesquisa, possui ensino superior incompleto. No início do nosso estudo apresentava mudança de comportamento e de humor, dificuldade de interação e relatava sentimento de inutilidade e baixa autoestima. Para o blog "Criando Laços" escolheu o nome fictício "Maria", por ser bastante religiosa e ligada à igreja. No decorrer das oficinas, Maria foi adquirindo habilidades nos recursos que mais tinha interesse, tais como: Word e internet. Referente à aprendizagem dos recursos, respondeu: "Hoje eu olho a minha irmã no computador dela, olho o meu irmão no computador dele e já não me sinto tão inferior, já me sinto no mesmo patamar, quase igual, não me sinto tão cega como antes". Quanto ao que realizou, declarou: "Redigi, pesquisei, naveguei".

As declarações de Maria revelam os significados da pesquisa na sua vida. Houve sua aproximação e conhecimento da informática, o que a fez sentir-se mais presente no mundo porque podia e sabia utilizar as ferramentas, o que a aproximou da família, à semelhança do que foi verificado no estudo de Capella et al. (2008) em que as tecnologias digitais mudaram a relação dos participantes com os artefactos técnicos e com os outros humanos.

Enquanto escritora do blog sentiu-se útil, sendo que o blog foi significado por ela como espaço de conquista e resgate do sentimento de utilidade, proporcionando elementos para auxiliar na diminuição de sua baixa autoestima - relacionada principalmente ao sofrimento pela experiência de interrupção de seu curso superior. Desse modo, o projeto partiu da falta para a possibilidade de constituição de outros modos de vida para Maria.

Liga dos Campeões

Jovem com 24 anos no período da pesquisa, contava com ensino fundamental incompleto. No início do nosso estudo, apresentava problemas no discurso. Para o blog "Criando Laços", por sugestão dos demais participantes, concordou como nome fictício "Liga dos Campeões" devido ao seu assunto preferido no momento, sendo que o nome permaneceu no decorrer de todas as oficinas.

Foi adquirindo habilidades nos recursos que mais tinha interesse, tais como: Word e internet. Produziu sua página pelo prazer de compartilhar as informações do mundo futebolístico. O blog se constituiu em um espaço para sua escrita e cognição, como um meio para a sua comunicação, democratização de ideias e informações. Estas questões sobre o blog foram destacadas no trabalho de Neves e Boeira, 2010.

Quanto ao que sentiu enquanto um dos produtores do blog, respondeu: "Gosto porque digitei". Quanto ao que o blog representava para ele declarou: "Eu me sinto alegre". As atividades do projeto e do grupo viabilizaram oportunidades para um trabalho com o discurso, na medida em que houve um significativo incremento na sua forma de comunicação.

Adele

Era um jovem de 26 anos, com diploma de ensino médio completo. No início da pesquisa, apresentava pouca interação e mostrava-se introspectivo. Para o blog "Criando Laços", escolheu como nome fictício "Adele" que é o nome de uma cantora internacional da qual gosta muito. Para estruturar a sua página no blog, utilizou os recursos: Word para digitação dos textos, PowerPoint para desenhar, Internet para pesquisas e capturação de imagens, entre outros. Sua participação no grupo lhe proporcionou uma interação satisfatória com as atividades e com os outros participantes, sendo que desenvolveu a comunicação, possibilitando a emergência de uma postura menos introvertida.

Quando perguntado como se sentia participando das oficinas informatizadas, escreveu: "Bem. I Feel Cool :)". Sobre o que sentia com o blog, revelou: "Feliz que o blog se iniciou". Quanto às suas produções, escreveu: "É legal pôr as coisas que você gosta no blog :)".

Após a apresentação individual dos participantes, pode-se concluir que, no tocante às categorias elencadas na pesquisa, que:

  • na primeira categoria, os participantes da oficina relatam ter aprendido efetivamente a desenvolver tarefas e a relacionar-se com os outros usuários;
  • na segunda categoria, foram citados recursos, tais como: editor de texto, internet, PowerPoint, e-mail;
  • a terceira categoria, os participantes apontaram efeitos positivos da oficina em sua vida, apontando elementos para pensarmos na habilitação psicossocial.

 

Considerações finais

A inserção digital de pessoas em sofrimento psíquico constitui-se em uma alternativa para a habilitação psicossocial e reinserção social. A sua aplicação e incorporação possui relevância política (essas propostas têm consonância com os ideais da reforma psiquiátrica), social (promove o resgate da cidadania, habilitação psicossocial e reinserção social), tecnológica (a inclusão digital possibilita inserir a diferença no campo social e formar novas redes de convivência) e terapêutica (por constituir alternativas de intervenção em saúde mental permitindo atividades expressivas, autonomia, melhoria da autoestima e resgate das potencialidades do sujeito). Como toda intervenção, deve ser balizada pelos pressupostos ético-políticos-metodológicos e inseridos na dinâmica do projeto terapêutico de cada usuário. Apesar de se mostrar as potencialidades desta ferramenta, há cuidados a serem tomados com relação aos modos de relacionamento desenvolvidos na internet e situações de cyberbulling e de violência na rede, por exemplo.

Através das oficinas propostas, os usuários obtiveram conhecimento sobre a ferramenta blog e suas formas de manuseio, além da aprendizagem dos recursos informatizados. O exercício da produção proporcionou o reconhecimento das suas potencialidades, por eles mesmos, por seus familiares e pelos profissionais da equipe do CAPS. As atividades proporcionaram uma aprendizagem compartilhada, troca de experiências, socialização, interação, companheirismo, satisfação e o fortalecimento dos laços entre todos os participantes. Promoveram novos modos de vida, novas relações com eles mesmos, com os demais integrantes e uma nova maneira de se relacionar com a sua própria família.

Atuar no campo da saúde mental exige o desafio de avançar na invenção de novas estratégias de intervenção, para a recuperação do uso da atividade como um valioso recurso na habilitação psicossocial. A ferramenta blog se insere em uma dessas estratégias como um instrumento efetivo para expressões e construções, um elemento para a reconstrução da própria vida daqueles que enfrentam todos os obstáculos do sofrimento psíquico. O blog contribui para a promoção da saúde mental e se constitui em um importante recurso de atenção ao sofrimento psíquico, no qual a pessoa pode desenvolver, divulgar e compartilhar as suas potencialidades. Os resultados mostram como o blog representa uma forma diferente de intervenção no campo da saúde mental, proporcionando além da inclusão digital, possibilidades significativas para a habilitação psicossocial. As produções podem proporcionar o reconhecimento e valorização desses sujeitos tão incompreendidos, excluídos e discriminados pela sociedade.

Este estudo poderá contribuir para reflexões quanto à importância da utilização de dispositivos tecnológicos nas oficinas terapêuticas dos serviços de atenção à saúde mental. E abre novas perguntas de pesquisa sobre a relação entre tecnologia e saúde mental e sobre as possibilidades da relação universidade e CAPS. Neste sentido, a realização de outros estudos torna-se relevante para problematização do campo e construção de intervenções com TDIC.

 

Referências

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Endereço para correspondência:
Ivanise Gomes de Souza Bittencourt
Universidade Federal de Alagoas, Escola de Enfermagem e Farmácia (ESENFAR). Av. Lourival Melo Mota, s/n, Tabuleiro dos Martins, Maceió-AL. CEP: 57.072-900. Telefone: (82) 3214-1154/ 99302-5210.
E-mail: ivanisegsb@gmail.com

 

 

Recebido em 12.Fev.15
Revisado em 13.Nov.16
Aceito em 15.Mar.17

 

 

Ivanise Gomes de Souza Bittencourt, Mestre em Educação pela Universidade Federal de Alagoas (UFAL) e Doutoranda em Educação pela Universidade Federal de Alagoas (UFAL). Enfermeira, é Docente do Curso de Enfermagem da Universidade Federal de Alagoas (UFAL). E-mail: ivanisegsb@gmail.com
Deise Juliana Francisco, Doutora em Informática na Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), é Psicóloga e Docente do Centro de Educação da Universidade Federal de Alagoas (UFAL) e dos Programas de Pós-Graduação em Educação (PPGE) da UFAL e de Pós-Graduação Interdisciplinar em Cognição, Tecnologia e Instituições (PPGCTI) da Universidade Federal Rural do Semi-árido (UFERSA). E-mail: deisej@gmail.com

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