SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.22 número1Programa de prevenção para manejo de estresse e Síndrome de Burnout para bombeiros: Relato de experiência de uma intervenção índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Estudos de Psicologia (Natal)

versão impressa ISSN 1413-294Xversão On-line ISSN 1678-4669

Estud. psicol. (Natal) vol.22 no.1 Natal mar. 2017

http://dx.doi.org/10.22491/1678-4669.20170012 

A PSICOLOGIA E A ATUAÇÃO DO PSICÓLOGO NAS POLÍTICAS SOCIAIS, DIREITOS HUMANOS E RELAÇÕES PESSOA-AMBIENTE

 

Família matrifocal: A experiência das crianças

 

Matrifocal family: A children's experience

 

Familia matrifocal: La experiencia de los niños

 

 

Jacira da Silva BarbosaI; Sonia Maria Rocha SampaioII

IUniversidade Federal da Bahia
IIUniversidade Federal da Bahia

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

As crianças, como sujeitos e membros que compõem a família, sofrem conseqüências provenientes das mudanças que afetam a estrutura e a dinâmica das relações familiares. Interessado nessas mudanças, o presente estudo objetivou investigar a forma como as crianças de famílias matrifocais pobres vivenciam esta realidade. Trata-se de uma pesquisa qualitativa, ancorada na Teoria Bioecológica do Desenvolvimento Humano de Urie Bronfenbrenner e que considerou as crianças como atores sociais plenos e ativos. Foram realizadas entrevistas e aplicado, entre crianças atendidas numa instituição de serviços psicoterapêuticos, o instrumento Desenho de Família com Estórias (DF-E). Os resultados indicam uma distância entre a representação simbólica da família e a situação vivida pelas crianças e expõe as diversas dificuldades vivenciadas por esta forma singular de configuração familiar.

Palavras-chave: crianças; família; parentalidade; desenvolvimento humano.


ABSTRACT

Children, as subjects who constitute the family unit, are subject to the consequences of the changes that have been taking place in structure and dynamics of kinship relations. Focusing on those changes, the present study aimed at investigating the way that children from matrifocal poor families have been dealing with this scenario. The study constitutes a qualitative research, based upon Urie Bronfenbrenner's Bioecological Theory of Human Development, and took children as fully-fledged and active social actors. Interviews were conducted, as well as, among children taken into care by an institution for psychotherapeutic services, Walter Trinca's Drawing-Story technique was applied. Results suggest some distance between the symbolic representation of the family and the actual situation faced by the children. They also reveal several difficulties which this singular form of family configuration has to cope with in the daily life.

Keywords: children; family; parenthood; human development.


RESUMEN

Los niños, como sujetos que hacen parte de la familia, sufren las consecuencias de las mudanzas que afectan la estructura y la dinámica de las relaciones familiares. Interesado en estas mudanzas, el presente estudio objetivó investigar la forma como estos niños de familias matrifocales pobres viven esta realidad. Se trata de una pesquisa cualitativa, anclada en la Teoría Bioecológica del Desarrollo Humano de Urie Bronfenbrenner y que consideró los niños como actores sociales plenos y activos. Fueron realizadas entrevistas y aplicado, entre niños atendidos en una institución de servicios psicoterapéuticos, el instrumento Dibujo de la Familia con historias. Los resultados indican una distancia entre la representación simbólica de la familia y la situación vivida por los niños, y expone las diversas dificultades vividas por esta forma singular de configuración familiar.

Palabras clave: niños; familia; parentalidad; desarrollo humano.


 

 

A família é um grupo humano que desfruta de uma posição singular na organização da vida afetiva dos indivíduos e em que se identifica uma trama de relacionamentos, emoções e sentimentos, qualquer que seja a forma de organização e a classe social a que pertença. Lugar privilegiado de afeto, a família configura-se como unidade de reprodução social responsável pelos cuidados e pela socialização dos seus membros, e se posiciona como uma instituição fundamental para desencadear os processos evolutivos dos indivíduos, atuando como propulsora ou inibidora do seu crescimento. Bronfenbrenner (2005/2011), por sua vez, concebe a família como "a estrutura mais eficiente e econômica para nutrir e sustentar a capacidade dos seres humanos, funcionando eficazmente em todos os aspectos da atividade humana, intelectual, social, emocional e fisiológica" (p. 266).

É no interior das contradições vivenciadas pelas sociedades que a família vive e se modifica. A partir das transformações estruturais tornam-se notáveis, ao longo do tempo, as alterações em algumas das funções da família. No mundo contemporâneo, o tradicional modelo nuclear-conjugal de família está em franco declínio e, com isso, diversas outras configurações familiares têm surgido. Diferentes padrões de institucionalização de relações afetivas e sexuais passaram a coexistir de maneira legítima, havendo hoje uma pluralidade de tipos de união e, consequentemente, formas alternativas de famílias. Essa realidade evidencia a fragmentação que ocorre no território familiar de forma ampla, decorrente de fenômenos sociais, demográficos, culturais, políticos e ideológicos, bem como da instabilidade e fluidez dos laços amorosos e da disseminação do individualismo. Esses fatores, quando associados, podem oferecer a falsa impressão de que as famílias estão desaparecendo quando, de fato, demonstram sua enorme capacidade de adaptação e de mudança (Goldani, 2002; Nascimento, 2013).

Neste novo panorama, a família de progenitor único é um arranjo familiar cada vez mais comum. As três últimas décadas testemunharam um significativo crescimento desse fenômeno em todos os estratos sociais (Bronfenbrenner, 2005/2011; Lhommeau & Raynaud, 2015; Neyrand & Rossi, 2014; Vitale, 2002) e, consequentemente, o aumento de sua visibilidade social (Macedo, 2007). Esse crescimento é devido, principalmente, ao incremento na quantidade de separações e divórcios em âmbito mundial, mas também têm sido registradas circunstâncias de abandono dos filhos por parte de um dos genitores e pelo fato de a mulher ser mãe solteira, por opção ou não. A expressão "famílias monoparentais" foi utilizada, segundo Nadine Lefaucheur (1991), na França, por sociólogas feministas, desde meados dos anos de 1970, para designar as unidades domésticas em que pessoas vivem sem cônjuge, com um ou vários filhos com menos de 25 anos e solteiros. Mas é importante sublinhar que as famílias monoparentais sempre existiram, ganhando maior visibilidade apenas nas últimas décadas e, por força das transformações que atingiram a condição feminina e os padrões familiares de classe média, a chefia feminina de grupos domésticos deixou de ser algo restrito às camadas pobres (Woortmann & Woortmann, 2004). Quando se trata de famílias pobres, a monoparentalidade pode ser uma dificuldade a mais que sobrecarrega, na maior parte dos casos, a figura feminina. Para as mulheres dessas famílias matrifocais, o custo e a desvantagem social parecem ser maiores, pois vivem num contexto em que, muitas vezes, as adversidades exigem um esforço contínuo de compatibilizar as demandas que sua posição de mãe sozinha lhe impõe.

A matrifocalidade é geralmente associada às condições de vida mais difíceis, do ponto de vista material – recursos da família, habitat, etc, e/ou do ponto de vista social ou mesmo psicológico – o isolamento da mãe, o assumir sozinha o papel parental em termos afetivos, financeiros ou de organização familiar. Há relatos na literatura (Algava, Le Minez, Bressé, & Pla, 2005; Di Nicola, 2003; Moraes, 2014; Neyrand & Rossi, 2014; Vitale, 2002) de que ocorrem, nas famílias de progenitor único, sérios problemas de ordem financeira e emocional que podem afetar, significativamente, o desenvolvimento infantil. Amato (citado por Montandon, 2001) afirma que crianças de famílias monoparentais possuem relativa desvantagem quando comparadas a crianças de outras configurações familiares. Neste particular, e de forma mais contundente, os achados das pesquisas realizadas em famílias uniparentais por Bronfenbrenner (2005/2011) indicam que mesmo nas famílias que dispõem de uma boa situação financeira, os filhos de mães ou pais solteiros, para os quais nenhuma outra pessoa atua de forma confiável no papel de "terceiro responsável", estão em maior risco de experimentar problemas de desenvolvimento e estão em maior risco para a chamada "síndrome adolescente. No entanto, como afirma Montandon (2001), esta desvantagem não é um fenômeno universal uma vez que varia segundo o contexto em que vivem as crianças, ideia que também é propalada pela Teoria Bioecológica do Desenvolvimento Humano (doravante TBDH).

A TBDH, abordagem proposta pelo psicólogo Urie Bronfenbrenner (1917-2005), compreende que o desenvolvimento ocorre no contexto de sistemas interligados. Nesta perspectiva, as capacidades humanas e sua realização dependem, em grau significativo, do contexto social e institucional mais amplo da atividade individual. Com esta convicção, Bronfenbrenner construiu um esquema teórico que permite a descrição e a análise sistemáticas desses contextos, de suas interconexões e dos processos através dos quais essas estruturas e vínculos podem afetar o curso do desenvolvimento, direta e indiretamente.

Bronfenbrenner (2005/2011) define o desenvolvimento como fenômeno de continuidade e de mudança das características biopsicológicas dos seres humanos como indivíduos e grupos (p. 43). Este modelo de desenvolvimento é composto por quatro dimensões que estão inter-relacionadas: processo, pessoa, contexto e tempo (PPCT).O processo de desenvolvimento envolve a fusão e a dinâmica de relação entre o indivíduo e o contexto. Bronfenbrenner chama de processos proximais os padrões duradouros de interação no contexto imediato que é o microssistema. Esses processos são caracterizados pelas interações que ocorrem entre o ser humano ativo, biopsicológico, e as pessoas, objetos e símbolos que se encontram no ambiente imediato. A pessoa é vista com seu repertório individual de características biológicas, cognitivas, emocionais e comportamentais, constituídas através do contato com o ambiente. Bronfebrenner (1979/1996) situa três características da pessoa que atuam no desenvolvimento: força, recursos bioecológicos e demandas. A força ou disposições podem ativar os processos proximais. Os recursos bioecológicos de capacidade, experiência, conhecimento e habilidade são necessários para o funcionamento efetivo destes processos. Por fim, as características de demanda convidam ou desencorajam reações do contexto social que podem fomentar ou interromper a operação dos processos proximais. O contexto do desenvolvimento é definido como níveis ou sistemas entrelaçados, interdependentes e dinâmicos. O microssistema é o contexto imediato de desenvolvimento e Bronfenbrenner (1979/1996) o define como um padrão de atividades, papéis e relações interpessoais experienciado pela pessoa nos contextos nos quais estabelece relações face a face. O mesossistema é o sistema de microssistemas e engloba as inter-relações entre dois ou mais ambientes nos quais a pessoa está inserida e participa ativamente. Já o exossistema diz respeito a um ou mais ambientes que não envolvem o ser humano como um participante ativo, mas nos quais ocorrem eventos que afetam, ou são afetados, por aquilo que acontece no ambiente contendo a pessoa em desenvolvimento. O macrossistema se refere às consistências, na forma e conteúdo de sistemas de ordem inferior – micro, meso e exo – que existem, ou poderiam existir, no nível da subcultura ou da cultura como um todo. Este nível também envolve as macroinstituições como o governo central e as políticas públicas.

O tempo, por sua vez, envolve as múltiplas dimensões da temporalidade, como o tempo ontogênico, o tempo familiar e o tempo histórico. O tempo constitui o cronossistema que modera as mudanças ao longo do ciclo de vida.

Crianças e TBDH: Breves Considerações

A TBDH reconhece as crianças como "pessoas em desenvolvimento", considerando esse desenvolvimento "no-contexto" e enfatizando as particularidades desenvolvimentais vivenciadas pelos meninos e pelas meninas. Sendo assim, o modelo bioecológico mostra-se útil à compreensão da influência dinâmica de múltiplos fatores no desenvolvimento da criança. O desenvolvimento psicológico da pessoa nos seus primeiros anos de vida é, consoante Bronfenbrenner (2005/2011), impulsionado pelo seu envolvimento em padrões duradouros progressivamente mais complexos de interação recíproca com pessoas com quem estabeleceu um apego emocional mútuo e permanente. O estabelecimento deste apego emocional conduz à internalização das atividades e dos sentimentos de afeto expressados pelos pais. Assim, esta relação diádica, estabelecida entre a criança e seus pais, exerce poderosa influência na aprendizagem e no desenvolvimento, visto que a díade constitui um contexto crítico para o crescimento e também porque ela atua como bloco construtor básico do microssistema. Nesta fase da vida os pais atuam como os principais cuidadores e fonte de apoio emocional dos filhos, mas a possibilidade de eles apresentarem um desempenho efetivo em seus papéis na educação da prole depende, na perspectiva bioecológica, dos estresses e dos apoios oriundos de outros ambientes que atuam, de forma sincrônica, no processo de desenvolvimento humano.

Esta concepção integrada do desenvolvimento contempla ainda a possibilidade da interferência, na dinâmica familiar, de mudanças previsíveis ou imprevisíveis, como é o caso dos rompimentos, abandonos e mortes, que levam à situação de monoparentalidade. Bronfenbrenner (2005/2011) salienta que o incremento na proporção da monoparentalidade é uma mudança que, juntamente com as consequências sociais das alterações na estrutura e no papel da família, têm alguma incidência sobre o desenvolvimento da criança. O autor afirma que nem sempre a separação ou famílias uniparentais comprometem o desenvolvimento futuro dos filhos. Em alguns casos, esses modelos de família levam a novos relacionamentos e estruturas que possibilitam uma mudança construtiva no curso do desenvolvimento infantil. Mas, uma avaliação feita pelo autor em pesquisas com famílias de grupos culturais e classes sociais diversas, revela que a ausência completa e/ou provisória do pai traz resultados deletérios no desenvolvimento psicológico da criança. Bronfenbrenner, contudo, concluirá, através de estudos posteriores, que nem todas as famílias de pais solteiros manifestam relações e efeitos disruptivos sobre o desenvolvimento da prole, pois quando a criança, a mãe ou o pai sozinhos recebem apoio de outros adultos e também assistência de profissionais e/ou de instituições, as crianças de pais solteiros ou separados ficam menos propensas a experienciar problemas de desenvolvimento humano.

Ao mesmo tempo em que considera o contexto mais amplo como primordial para o desenvolvimento infantil, Bronfenbrenner considera a criança enquanto partícipe nesse processo que tem seu princípio no microssistema familiar. Nesta perspectiva, a TBDH concebe a criança como ser ativo, uma vez que a sua participação nos processos de interação ao longo do tempo gera a capacidade, a motivação, o conhecimento e a habilidade para exercer essas atividades com outras pessoas e consigo mesma. Desta forma, o desenvolvimento infantil ocorre conforme a criança se envolve ativamente com o ambiente físico e social no qual está inserida, assim como ela o compreende e o interpreta (Martins & Szymanski, 2004).

Entretanto, apesar do consenso atual sobre a criança como agente, ainda são raros os estudos que se dirigem à própria criança como fonte de dados descritivos a respeito da família, pois, na maior parte das pesquisas, a mãe é a pessoa mais investigada (Carvalho, Moreira, & Rabinovich, 2010). No âmbito da psicologia, encontramos poucos estudos sistematizados acerca das diferentes formas de configurações familiares e seus contextos, sendo raras as investigações que abordam sua funcionalidade e implicações para o desenvolvimento da criança. Nos estudos psicológicos há, de forma geral, uma tendência a tratar as questões do desenvolvimento humano a partir da ótica dos adultos e, assim, a criança acaba como um ser passivo nas investigações. Estudiosos do desenvolvimento infantil falam sobre as crianças, sem considerar seu ponto de vista, experiência e cultura construída com seus coetâneos (Sarmento & Gouveia, 2008). Assim, ganha relevo um estudo que focalize a vivência de meninos e meninas, a partir de sua própria perspectiva, acerca de suas experiências e significações por eles atribuídas às suas famílias. O objetivo principal desta pesquisa foi conhecer e caracterizar a vivência e significados de família das crianças de lares matrifocais, identificando suas expectativas de família.

 

Método

A questão de pesquisa e os objetivos definidos neste estudo exigem uma compreensão dinâmica e sistêmica, compatível com a investigação qualitativa. De acordo com Bogdan e Biklen (1994), os investigadores qualitativos estabelecem estratégias e procedimentos que lhes permitam tomar em consideração as experiências do ponto de vista do informador e, neste processo, esta investigação reflete uma espécie de diálogo entre os investigadores e os respectivos sujeitos.

Contexto da Pesquisa

A pesquisa foi realizada numa instituição sem fins lucrativos e que oferece tratamento especializado em psicoterapia individual e em terapia familiar e de casal a pessoas e a famílias pobres. A instituição é formada por profissionais voluntários que atuam na triagem, encaminhamento e atendimento de pessoas que buscam atendimento especializado para si, para seus filhos e/ou para suas famílias.

Participantes

Conforme o item III da Resolução nº 466 do Conselho Nacional de Saúde (CNS) de 12 de dezembro de 2012, Aspectos Éticos da Pesquisa envolvendo Seres Humanos, § 1, sobre o processo de Consentimento Livre e Esclarecido da população-alvo, os participantes foram informados sobre os objetivos e procedimentos da pesquisa e assinaram o TCLE (Termo de Consentimento Livre e Esclarecido). As crianças também foram informadas acerca da investigação em causa, e, posteriormente, indagadas se desejavam ou não participar da pesquisa. Os sujeitos desse estudo foram definidos por conveniência e selecionados dentre a clientela que buscou apoio psicológico para seus filhos e/ou sua família, por iniciativa própria ou de terceiros.

Participaram do estudo três meninas, entre 10 e 11 anos, dois meninos, de 7 e 11 anos, e suas respectivas mães que, pela primeira vez, tiveram contato com uma profissional de psicologia. As famílias investigadas estão inseridas num contexto de pobreza econômica, com renda de até pouco mais de dois salários mínimos. Nas residências moram somente as mães e sua respectiva prole, sem outros agregados. A idade das mulheres variou de 29 a 44 anos e a quantidade de filhos de um a cinco crianças. Estas co-habitaram com os pais entre 2 e 9 anos de vida. À exceção de uma menina, as crianças eram estudantes de escola pública, do 3º ao 6º ano do ensino fundamental e apenas os meninos apresentavam baixo desempenho escolar e dificuldade na leitura e escrita, sendo essa situação um dos motivos para a busca do atendimento psicoterapêutico. De forma geral, as dificuldades no exercício da parentalidade e no âmbito do comportamento das crianças foram as maiores demandas para os serviços da instituição, com destaque para a "desobediência" e a "teimosia da prole". Os dados da pesquisa foram coletados na fase de triagem, procedimento adotado com o objetivo de acolher a demanda e fazer os devidos encaminhamentos dentro dos serviços terapêuticos disponíveis na instituição. Após a coleta dos dados, as mães e as crianças foram conduzidas para o atendimento terapêutico propriamente dito.

Instrumentos e Procedimentos de Coleta e análise de Dados

Os dados foram coletados em duas etapas: a primeira consistiu na realização de entrevistas semiestruturadas, com o objetivo de conhecer o motivo da busca por atendimento psicológico e a realidade familiar, bem como observar a interação mãe-criança(s). Na segunda etapa foi feita uma entrevista individual com a mãe e outra com a criança. Em seguida foi aplicado, individualmente a cada criança, o Desenho de Família com Estórias (DF-E), criado por Walter Trinca (1997), instrumento que revela a experiência da criança sobre a vida familiar. Foi solicitada a elaboração de uma série de quatro desenhos de família, com uma instrução definida pelo autor e uma ordem regular no processo de aplicação, que são as seguintes: desenho de uma família qualquer; desenho de uma família que gostaria de ter; desenho de uma família onde alguém não está bem; desenho de sua própria família. A cada desenho se seguiu o relato de uma história contada oralmente pela criança, um "inquérito" e, por fim, o título. O "inquérito" destina-se à obtenção de esclarecimentos e novas associações gráfico-verbais no sentido de ampliar as informações transmitidas nas histórias. Vale destacar que o DF-E não foi aqui utilizado com fim diagnóstico, e sim como veículo de comunicação que favorece a expressão e narrativa dos meninos e meninas acerca de seu cenário familiar.

As entrevistas e as histórias foram gravadas em equipamento digital, transcritos e, posteriormente, examinados através de análise de conteúdo, orientada pelos objetivos da pesquisa. O tratamento do material coletado deu-se, inicialmente, a partir da leitura flutuante das entrevistas e, a seguir, por uma análise dos desenhos das famílias com histórias, levantando os temas que se apresentaram, agregando-as a algumas questões do roteiro de avaliação proposto por Trinca (2003) e Lima (como citado em Trinca & Tardivo, 2003) para o procedimento de DF-E. Nos DF-E foi observado o que as crianças comunicavam sobre a dinâmica das famílias, as figuras reproduzidas e/ou ausentes, o tamanho das famílias, as figuras desenhadas em primeiro lugar, os desejos e as necessidades expressas.

 

Resultados e discussão

O Contexto de Desenvolvimento

Para discutir a experiência das crianças, é necessário, primeiro, compreender o funcionamento de suas famílias, observando contexto, tempo e condições de vulnerabilidade, a partir da TBDH. As entrevistas realizadas com as mães corroboraram dados da literatura no que se referem à sobrecarga que recai sobre a mulher no interior de um microssistema familiar quando esta vive uma situação monoparental. A análise dos resultados obtidos nesta pesquisa expõe uma realidade socioeconômica difícil, com apenas uma das mães inserida no mercado formal de trabalho e três delas com escolaridade inferior ao ensino médio. Foram relatados diversos eventos estressores que influenciam a convivência familiar, como o desemprego e a violência intrafamiliar que era promovida pelo genitor, quando este habitava no ambiente doméstico, e também é praticada por parte de três das mães na lida diária com a prole. Além disso, foi registrado o alcoolismo por parte dos pais de três das crianças estudadas, o que provocava inúmeros conflitos no cenário familiar. Eventos estressores como esses podem ser indicadores de risco, que predispõem as famílias à vivência de situações que podem desencadear doenças ou conflitos familiares, a depender da duração, frequência, intensidade e severidade do risco (De Antoni, Barone, & Koller, 2006).

O relato das mulheres também traz à tona os problemas que as famílias uniparentais enfrentam e que estão relacionados à dificuldade em disciplinar, controlar e educar os filhos. Nesta mesma direção, Di Nicola (2003) salienta que, quando isolada e com poucos recursos, a mãe sozinha também pode ser empobrecida instrumentalmente, e tende a ficar mais cansada e a ser mais capacitada a dar afeto do que limite e disciplina à prole.

A ausência da participação e do apoio da figura paterna no cuidado e educação dos filhos é outro fato recorrente no discurso das mães. Quatro delas afirmaram que os pais de suas crianças não tinham participação relevante no exercício da paternidade enquanto conviviam: "Eu já era sozinha mesmo com ele morando em casa", diz uma das mulheres. Sendo assim, a ruptura do relacionamento conjugal só agravou esse afastamento. Essa ausência paterna na vida da prole após a separação conjugal e até mesmo o total abandono da função parental, tem registro frequente na literatura que aborda o tema (Hack & Ramires, 2010; Thurler, 2006). Em muitos casos os pais passam a enquadrar as suas crianças na categoria de "ex-filhos". Em nossa pesquisa, apenas os pais de duas das meninas cumprem o papel de provedor, pagando a pensão alimentícia das filhas com regularidade. Porém somente o pai de uma delas mantém contato, por telefone, com a filha.

Sem a participação efetiva e afetiva dos pais dos meninos e das meninas, as mães estudadas precisam decidir sozinhas tudo o que se refere à educação, cuidado e subsistência de suas crianças. "Eu decido tudo", afirma uma delas ao informar que não conta com os pais de nenhum de seus filhos no exercício da parentalidade. Nesse contexto o homem se desobriga das responsabilidades familiares a partir do desenvolvimento de laços mais tênues e menores compromissos na manutenção econômica do domicílio e da criação dos filhos. O enfraquecimento e a deserção da figura paterna ressaltam o poder arbitrário do homem de suspender, a qualquer tempo, o reconhecimento social e afetivo das crianças. Em todas as situações das crianças não foram mencionadas outras figuras que assumissem esse papel. Porém, na perspectiva bioecológica, o par mãe e filhos (as) exige uma terceira pessoa para funcionar efetivamente.

Na dinâmica interacional destas famílias também foi observada, no que concerne às práticas educativas e aos estilos parentais, a existência de problemas de comunicação entre mães e filhos de forma geral; de disciplina inconsistente e sem eficiência, com atitudes punitivas por parte das mães, principalmente no caso de três das crianças.

O mesossistema inclui os vínculos e as inter-relações entre a família e os outros ambientes em que a pessoa em desenvolvimento se movimenta. Essa rede de apoio parece funcionar como um fator de proteção diante do enfrentamento das adversidades presentes na vida das famílias foco desta análise. As conexões entre casa e escola estão presentes no universo de todas as crianças. Além disso, observou-se a presença de uma rede diferenciada de apoio para cada família em estudo, sendo que a colaboração é, predominantemente, na esfera do cuidado. Contudo apenas uma das mulheres conta com apoio regular de parentes na lida diária com as crianças. Nos demais casos elas ficam sozinhas em algum período do dia, notadamente quando não estão na escola.

Quando nos referimos ao exossistema, ambientes nos quais a pessoa em desenvolvimento não está presente, mas cujas decisões influenciam a sua vida, encontramos, na conjuntura das famílias em estudo, os problemas financeiros decorrentes dos baixos salários, do desemprego e da fragilidade dos vínculos de trabalho. O local e as condições de trabalho dos pais também podem gerar tensão nas relações familiares e é o que acontece no caso de uma das meninas, quando, ao falar da sua convivência com sua mãe, declara que "os meninos da escola deixam ela muito agitada e com raiva e ela desconta tudo em mim". Na análise do macrossistema, observamos a influência das crenças, dos valores e dos aspectos socioeconômicos, políticos e culturais nas relações familiares. Assim podemos apontar a naturalização e a banalização da violência, o machismo, a baixa escolaridade e a pouca qualificação profissional, a deficiência de políticas sociais e públicas verificada, por exemplo, na área de assistência à infância e também na falta de planejamento familiar, em quatro das cinco famílias estudadas, além da pobreza.

De acordo com Bronfenbrenner (2005/2011) as políticas públicas exercem efeitos indiretos, reais e potenciais sobre os processos de desenvolvimento. Além da ineficiência das políticas governamentais, o sistema de apoio frágil concernentes a parentes, amigos, vizinhos e também no que tange à comunidade repercute na unidade familiar, ocasionando estresse que as mães acabam por transferir para suas relações com os filhos e, quiçá, para seu ambiente social mais amplo.

A Experiência das Crianças

O significado de famílias para as crianças.Por meio da análise dos DF-E observou-se que quatro das cinco crianças conceituaram a família de forma tradicional uma vez que os desenhos apresentam a tendência na representação do microssistema familiar como formado por pai, mãe e filhos, ainda que as crianças morem apenas com a mãe, de forma consolidada, já há alguns anos. Esta representação de família nuclear como padrão de arranjo familiar, constatada nos DF-E, embora não faça parte da realidade vivenciada por elas, pode ser encontrada também em outros estudos como, por exemplo, em Polli e Arpini (2010, 2012). A representação de família matrifocal, realidade das crianças aqui estudadas, foi vista em poucos desenhos, sendo que, na produção de uma das meninas, esta forma de família aparece em três das quatro consignas, com a mãe colocada como a figura principal. Esta criança vivencia dificuldades no relacionamento com o pai e foi preterida pelos parceiros de sua mãe, que prestavam algum tipo de assistência apenas aos seus respectivos filhos, enquanto moravam no lar. Neste caso específico, devemos também considerar as peculiaridades das dissoluções e sucessivas uniões de mulheres, o que torna a presença do homem/pai um elemento transitório na família e como isso pode repercutir no desenvolvimento dos vínculos das crianças e nas relações familiares.

Além de ser predominantemente nuclear, a família também acaba por ser definida como um grupo de pessoas ligadas somente por laços genéticos, pois nenhuma das crianças incorporou, no seu microssistema, pessoas de outros círculos, como parentes, vizinhos ou amigos. Isto pode ser indicador da restrição da rede de solidariedade destas famílias, dado que contrasta com outros estudos com famílias pobres (Amazonas, Damasceno, Terto, & Silva 2003; Müller, 2010; Vitale, 2002) que destacam a rede de parentesco e a vizinhança como importantes recursos para ajudar na manutenção da prole nesta camada social.

À exceção de um dos meninos, que percebe o padrão familiar pautado nos papéis tradicionais de pai/provedor e de mãe/dona de casa, as crianças concebem os pais como pessoas que precisam trabalhar, sendo necessário à mulher/mãe ir além do exercício das funções domésticas e de cuidado com os filhos. Um fator que antagoniza com a realidade dos participantes é a baixa incidência de divisões nos desenhos, apesar da alta ocorrência de fragmentação no microssistema familiar destas pessoas. Na maior parte dos desenhos os membros da família estão ora muito próximos, ora ligados uns aos outros como se fossem uma entidade única.

O lugar da mãe no microssistema familiar.O pai aparece na maior parte dos desenhos, mas a mãe está presente em todas as produções realizadas pelas crianças. Todavia, se considerarmos a posição por elas atribuída às figuras parentais, a mulher é aqui desenhada em primeiro lugar em poucos desenhos. Este fato confere à mãe uma menor valorização, o que vai de encontro a outras pesquisas realizadas com crianças por Amazonas et al. (2003) e Polli e Arpini (2010, 2012), que apontam um maior investimento na mãe quando comparada aos demais membros da família, uma vez que esta é desenhada em primeiro lugar ou consideravelmente maior que as demais figuras. A mãe foi desenhada em último lugar em seis dos vinte desenhos e menos ainda aparece o pai nessa mesma posição – apenas dois desenhos no total. O menino de 11 anos, Silvio, foi a criança que mais registrou a mãe como a última figura a ser colocada no cenário familiar – três dos quatro desenhos, atribuindo, assim, maior importância a si próprio, à irmã e ao pai ausente, respectivamente. Afora o pouco contato existente entre pai e filho, algumas dificuldades foram constatadas na convivência da díade mãe-filho a partir das entrevistas de ambos e nas estórias contadas por Silvio. Além do relativo abandono que vive por parte dos pais, o garoto declara a forma diferenciada como a mãe trata os filhos, o que cria atritos na relação dos irmãos.

O conflito na relação mãe-criança também é visto, de forma marcante, na experiência familiar de uma das meninas, também de 11 anos. Mas essa criança, ao contrário de Silvio, posiciona a mãe como figura principal em três dos quatro desenhos. Embora afirme ter um bom relacionamento com a mãe, Leila é frequentemente vítima de violência física por parte da genitora, além de conviver com a ameaça constante de ser enviada novamente para a casa do pai, experiência que a menina afirma não querer repetir em função dos sofrimentos que lhe trouxe. No caso específico de Silvio e Leila, parece existir o que Sousa (2006) chama de pluralidade de práticas que evidenciam como os adultos desistem dos seus filhos, quando seus respectivos pais não exercem a função paterna, ficando alheios à vida da criança, e as mães, com quem residem, adotam diferentes práticas violentas em sua direção.

De qualquer forma, a mãe, em sua atuação como figura central pela sua condição de matrifocalidade, aparece, junto às crianças, como cuidadora e educadora dos filhos e como a pessoa que se ocupa de tudo na família. Alice foi a única das participantes a expressar a necessidade de aprender a viver num lar somente com a mãe, o que constitui sua realidade familiar. Para ela é preciso "saber viver em dois", título dado ao desenho de sua família. Apesar de admitir que a família precisa de um pai e de ter alguns embaraços na relação com a mãe, Alice declara: "Eu tenho relação de paz com minha mãe. A gente sai, se diverte, não tem mais aquele clima pesado na minha família (...). Na situação que estava ele [o pai ] e minha mãe, eu acho melhor assim [mãe e filha]."

A ausência-presença do pai no ambiente familiar.O pai surge como mais marcante para as crianças desta pesquisa uma vez que é a primeira figura a ser desenhada em nove dos vinte desenhos, contra quatro das mães nesta mesma posição. Esta força paterna contrasta com a literatura, quando estudiosos que lidam com a temática de famílias populares, como Amazonas et al. (2003), Polli e Arpini (2010, 2012) e Silva, Melo e Appolinário. (2007), relatam que a figura do pai é pouco valorizada ou até esquecida, sendo representada pelas crianças como fragilizada, o que é decorrente de situações como desemprego, alcoolismo, uso de drogas, prisão e também pelo estabelecimento de vínculos frágeis com a família.

Embora nos casos aqui estudados quatro dos pais tenham sido apresentados como pessoas que atuavam, e ainda atuam, com atitudes violentas e indiferença, com uso excessivo de álcool e/ou de forma ausente nas relações familiares e no cuidado da prole, é expressiva sua representação junto a três das crianças estudadas. No caso específico do menino mais novo e que menos conviveu com o pai, este é representado de forma mais marcante do que a mãe, que o cria sozinha desde os dois anos. No "inquérito" ele diz que "sem o pai os filhos não era nada". Há mais de um ano o pai não mantém contato com Júlio, mas as histórias por ele construídas evidenciam a forte presença paterna para o menino, pois em todos os desenhos o genitor foi a primeira figura a ser desenhada. O pai também está presente em todos os desenhos de Silvio, embora o relato da criança tenha revelado uma possível rejeição mútua na relação pai-filho, uma vez que este afirma não querer ir à casa do pai, nem este vai ao encontro do filho. Entre as meninas, Débora foi a única a colocar a figura paterna em todos os desenhos. No caso dela, torna-se importante registrar uma imagem da figura paterna preservada, pois, de forma diferenciada das outras crianças que viveram situação similar, não menciona nas entrevistas, nem nos DF-E as atitudes violentas do pai, apesar de testemunhar os momentos em que ele agredia fisicamente a mãe.

Esta expressiva representação da figura paterna talvez se deva a uma idealização do pai, já que há indicadores da omissão das figuras paternas de suas funções parentais. Outra possibilidade seria um grande desejo das crianças de conviverem com seus pais no dia a dia familiar. Esta forma idealizada de ver a família e o pai, identificada nas estórias, deixa evidente que as meninas e os meninos, ao se expressarem, o fazem a partir de suas características que são construídas através do contato com os ambientes em que se desenvolvem. Esta representação idealizada lançada no papel parece refletir uma percepção interna das crianças, além de retratar não apenas o vivido por elas, mas o experienciado por outros e também seu imaginário simbólico acerca das temáticas discutidas.

De forma geral, as expectativas de ordem afetiva e emocional estão entre as de primeira importância para os meninos e meninas analisados. As crianças, de forma unânime, manifestam a necessidade que têm de cuidado e proteção e, para isso, desejam uma família estruturada no formato nuclear, com a mãe, o pai e os filhos morando sob o mesmo teto. Esta família, no dizer das participantes, precisa ser "alegre", "feliz", "unida", "sem brigas", "com entendimento, paz, harmonia e amor". Essa representação da família corresponde àquela disseminada pela cultura através, principalmente, da mídia, igrejas e escolas como sendo o formato ideal e que se torna, em todo lugar, importante para a consolidação de um imaginário que não leva em consideração o que é efetivamente vivenciado pelas crianças e por uma parcela da população cada vez mais crescente.

 

Considerações finais

As famílias matrifocais aqui estudadas apresentam uma situação de vida permeada por dificuldades que comprometem o atendimento das necessidades e cuidados dos filhos. Contribuem para isso a violência sofrida no seio da família, acrescida da experiência não-normativa da separação dos pais, do impacto cumulativo de outros fatores psicossociais – como a pobreza, do crescimento das tensões vividas por suas mães, da fragilidade do vínculo mantido com o pai das crianças e da escassez de políticas públicas direcionadas às famílias.

A experiência da criança neste cenário de pertencimento permite a construção do seu universo de sentido, a partir das situações que ali vivencia, o que fica evidenciado nesta pesquisa, pois, como afirma Sarti (2004), a família é a primeira instituição através da qual atribuímos significado ao mundo, um processo que se inicia ao nascer e se estende ao longo da vida. Assim, parece ser possível afirmar, a partir das estórias desenhadas e relatadas, que o ponto de vista das crianças traz elementos indispensáveis à compreensão de sua experiência e é importante levá-lo em consideração no âmbito das estruturas sociais e nos contextos particulares onde se movimentam como crianças.

Através da aplicação da técnica do DF-E, pôde-se perceber que, para os meninos e meninas desta investigação, a família é um lugar em que pai e mãe cuidam dos filhos em união e de forma funcional, mesmo que este padrão não faça parte de sua realidade, já que reconhecem a vivência de situações não desejadas como a separação e algum tipo de conflito entre os pais, relatados pela maioria das crianças. As funções atribuídas ao pai e à mãe pelos meninos e meninas – como sustentar a família, cuidar, dar amor e educar, trazem, em parte, uma concepção própria da criança de como as figuras parentais devem atuar, o que, provavelmente, é reforçado pelas instituições sociais, principalmente a escola, a igreja, e outras estruturas disponíveis na comunidade. Nesses significados parece existir uma mistura de elementos que se referem à vida cotidiana e outros que estão relacionados à fantasia e ao desejo infantis, principalmente aqueles que correspondem à figura paterna. Nesse aspecto, as meninas e os meninos indicam que o pai faz parte da identidade deles, assim como expressam o quanto querem e precisam de um relacionamento contínuo e de qualidade tanto com a figura paterna quanto com a materna. Ressaltam ainda que o pai permanece uma pessoa significativa, mesmo se não existe um contato sistemático entre eles.

Os resultados obtidos, junto às crianças que elegemos, são ricos em termos de conhecimento da infância e permitiram uma maior aproximação do seu mundo pelo estabelecimento de condições propícias e que favoreceram a sua expressão. Essa expressão, em seus diferentes formatos, é muitas vezes não reconhecida pelos profissionais ou pelas famílias e, podemos arriscar, pelo mundo adulto em geral. Nesses segmentos, prevalece a concepção dominante da criança como "aquele que não fala", que "não tem querer". No sentido inverso dessa concepção, o que obtivemos das crianças abre para sua própria realidade esquecida, a partir de sua própria ótica, que resulta de sua vida concreta no seio de sua família possível. O que disseram / expressaram fala, igualmente, desse mundo e dessa sociedade adulta onde suas vidas se fazem.

A partir do que foi observado neste estudo, sublinhamos a importância de proporcionar um espaço de escuta para a criança em que a expressão de suas experiências seja possível e bem acolhida. Esta conclusão destaca o valor da realização de pesquisa com crianças para conhecer como elas significam aspectos e elementos que integram o seu mundo e diferentes ambientes, e sobre os quais recai o interesse da psicologia. É fundamental e urgente reforçar a garantia dos direitos universais da infância; prover, a meninos e meninas, condições nas quais se sintam protegidos e estimulados a prosseguir em seu desenvolvimento como seres ativos. Da mesma forma, considerando o significado psicológico do ambiente posto em relevo pela abordagem ecológica, intencionamos contribuir com o desenvolvimento desse estudo para uma maior inserção da psicologia na pesquisa e na atuação junto às famílias, especialmente aquelas que se estruturam em torno de mulheres sozinhas e que resultam em um contexto peculiar de desenvolvimento social e psicológico característico de muitas crianças contemporâneas.  A psicologia alcança sua destinação política quando se disponibiliza para a escuta, acolhimento e orientação de populações vulneráveis e que, no cotidiano, recusam as condições de existência em que lhes foi dado viver. Não fosse assim, não buscariam atendimento em uma instituição dessa natureza e, tampouco disponibilizariam uma parcela de suas vidas para a pesquisa científica.

 

Referências

Algava, E., Le Minez, S., Bressé, S., & Pla, A. (2005). Les familles monoparentales et leurs conditions de vie. Études et Résultats - DREES, (389). Recuperado de http://drees.social-sante.gouv.fr/IMG/pdf/er389.pdf.         [ Links ]

Amazonas, M. C. L., Damasceno, P. R., Terto, L. M. S., & Silva, R. R. (2003). Arranjos familiares de crianças das camadas populares. Psicologia em Estudo, 8, 11-20. doi: 10.1590/S1413-73722003000300003.         [ Links ]

Bogdan, R. C., & Biklen, S. K. (1994). Investigação qualitativa em educação – uma introdução à teoria e aos métodos. Porto, Portugal: Porto Editora Ltda.         [ Links ]

Bronfenbrenner, U. (2011). Bioecologia do desenvolvimento humano – tornando os seres humanos mais humanos. Porto Alegre: Artmed. (Obra original publicada em 2005)        [ Links ]

Bronfenbrenner, U. (1996). A ecologia do desenvolvimento humano: experimentos naturais e planejados. Porto Alegre: Artmed. (Trabalho original publicado em 1979).         [ Links ]

Carvalho, A. M. A., Moreira, L. V. C., & Rabinovich, E. P. (2010). Olhares de crianças sobre a família: um enfoque quantitativo. Psicologia: Teoria e Pesquisa, 26(3), 417-426. doi: 10.1590/S0102-37722010000300004.         [ Links ]

De Antoni, C., Barone, L. R., & Koller, S. (2006). Violência e pobreza: um estudo sobre vulnerabilidade e resiliência familiar. In D. D. Dell'Aglio, S. H. Koller, & M. A. M. Yunes (Orgs.), Resiliência e Psicologia Positiva: interfaces do risco à proteção (pp. 141-171). São Paulo: Casa do Psicólogo.         [ Links ]

Di Nicola, V. (2003). Uma psicologia para cada um. Viver Psicologia, 128, 6-8.         [ Links ]

Goldani, A. M. (2002). Família, gênero e políticas brasileiras nos anos 90 e seus direitos como fator de proteção. Revista Brasileira de Estudos de População, 19(1), 29-48. Recuperado de http://www.abep.nepo.unicamp.br/docs/rev_inf/vol19_n1_2002/vol19_n1_2002_2artigo_29_48.pdf        [ Links ]

Hack, S. M. P. K., & Ramires, V. R. R. (2010). Adolescência e divórcio parental: continuidades e rupturas dos relacionamentos. Psicologia Clínica, 22(1), 85-97. doi: 10.1590/S0103-56652010000100006.         [ Links ]

Lefaucheur, N. (1991). Les familles dites monoparentales. In F. de Singly (Org.), La famille l'état des saviors (pp. 67-74). Paris: Éditions La Découverte.         [ Links ]

Lhommeau, M. A. C. S., & Raynaud, É. (2015). Les familles monoparentales depuis 1990 – Quel contexte familial? Quelle activité professionnelle? Dossiers Solidarité et Santé. In DREES, (67). Recuperado de http://drees.social-sante.gouv.fr/IMG/pdf/dss67.pdf        [ Links ]

Macêdo, M. S. (2007). Gênero, família e chefia feminina: algumas questões para pensar. In A. Borges & M. G. Castro (Orgs.), Família, gênero e gerações – desafios para as políticas sociais (pp. 135-177). São Paulo: Paulinas.         [ Links ]

Martins, E., & Szymanski, H. (2004). A abordagem ecológica de U. Bronfenbrenner em estudos com famílias. Estudos e Pesquisas em Psicologia, 4(1), 63-77. Recuperado de www.revispsi.uerj.br/v4n1/artigos/Artigo%205.pdf        [ Links ]

Montandon, C.(2001). Sociologia da infância – balanço dos trabalhos em língua inglesa. Cadernos de Pesquisa, 112, 33-60. doi:10.1590/S0100-15742001000100002        [ Links ]

Moraes, P. M. (2014). Arranjos familiares monoparentais e chefiados por mulheres: pobreza e sobrecarga. In Universidade Estadual de Londrina (Org.), III Simpósio Gênero e Políticas Públicas. Londrina, PR. Recuperado de http://www.uel.br/eventos/gpp/pages/arquivos/GT2_Patricia%20Maccarini%20Moraes.pdf        [ Links ]

Müller, F. (2010). Um estudo etnográfico sobre família a partir do ponto de vista das crianças. Currículo sem Fronteiras, 10(1), 246-264. Recuperado de www.curriculosemfronteiras.org/vol10iss1articles/muller.pdf.         [ Links ]

Nascimento, M. R. (2013). Famílias líquidas: desafios para as políticas sociais. In M. A. R. Alcântara, E. Rabinovich, & G. Petrini (Orgs.), Família, natureza e cultura – cenários de uma transição (pp. 163-89). Salvador: EDUFBA.         [ Links ]

Neyrand, G., & Rossi, P. (2014). Monoparentalité précaire et femme sujet. Toulouse: Érès.         [ Links ]

Polli, R.G., & Arpini, D. M. (2010). O lugar da mãe e do pai no contexto familiar no olhar de crianças de grupos populares. In Centro Universitário Franciscano, 3ª Jornada Interdisciplinar em Saúde – Promovendo Saúde na Contemporaneidade: desafios de pesquisa, ensino e extensão. Santa Maria, RS. Recuperado de www.unifra.breventos/js2010/trabalhos/29pd         [ Links ]

Polli, R.G., & Arpini, D. M. (2012). O olhar de meninos de grupos populares sobre a família. Estudos de Psicologia, 29(4), 531-540. Recuperado de http://www.scielo.br/pdf/estpsi/v29n4/v29n4a08.pdf        [ Links ]

Resolução nº 466, de 12 de dezembro de 2012 (2012). Diretrizes e normas regulamentadoras de pesquisas envolvendo seres humanos. Brasília: Ministério da Saúde.         [ Links ]

Sarmento, M. J., & Gouvêa, M. C. S. (Orgs.). (2008). Estudos da Infância: educação e práticas sociais. Petrópolis: Vozes.         [ Links ]

Sarti, C. A. (2004). A Família como ordem simbólica. Psicologia USP, 15(3), 11-28. Recuperado de http://www.scielo.br/pdf/pusp/v15n3/24603.pdf.         [ Links ]

Silva, M. A. M., Melo, B. M., & Appolinário, A. P. (2007). A família tal como ela é nos desenhos de crianças. Ruris, 1(1), 105-145. Recuperado de file:///C:/Users/DSLIB/Downloads/645-1857-1-SM.pdf        [ Links ]

Sousa, A. M. B. (2006). O sentido institucional de acolher: por uma gestão do cuidado com as crianças violentadas. In A. M. B. Sousa, A. Vieira, & P. M. Lima (Orgs.), Ética e gestão do cuidado: a infância em contextos de violências (pp. 21-46). Florianópolis: CED/UFSC.         [ Links ]

Thurler, A. L. (2006). Outros horizontes para a paternidade brasileira no século XXI? Sociedade e Estado, 21(3), 681-707.         [ Links ]

Trinca, W. (1997). Apresentação e aplicação. In W. Trinca (Org.), Formas de investigação clínica em psicologia (pp. 11-34). São Paulo: Vetor.         [ Links ]

Trinca, W. (2003). Investigação clínica da personalidade. São Paulo: E.P.U.         [ Links ]

Trinca, W., & Tardivo, L. S. L. P. C. (2003). Desenvolvimento do procedimento de Desenho-Estórias (D-E). In J. A. Cunha et al. (Orgs.), Psicodiagnóstico V (pp. 428-438) Porto Alegre: Artmed.         [ Links ]

Vitale, M. A. F. (2002). Famílias monoparentais: indagações. Serviço Social & Sociedade, 71, 45-79.         [ Links ]

Woortmann, K., & Woortmann, E. (2004). Monoparentalidade e chefia feminina: conceitos, contextos e circunstâncias. Série Antropologia, (357). Recuperado de www.abep.nepo.unicamp.br/XIIIencontro/woortmann.pdf.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência:
Jacira da Silva Barbosa
Rua dos Bandeirantes, 720, edf. Pacífico, apto 1406 - Bairro: Matatu - Salvador, Bahia - CEP 40.260-001. Telefones: (71) 33263883 / 999419559 / 992987575.
E-mail: jacirasbarbosa@uol.com.br

 

 

Recebido em 07.Set.16
Revisado em 06.Jan.17
Aceito em 20.Fev.17

 

 

Jacira da Silva Barbosa, Mestra em Psicologia do Desenvolvimento Humano pelo Instituto de Psicologia da Universidade Federal da Bahia (UFBA), é Doutoranda em Psicologia do Desenvolvimento Humano pelo Instituto de Psicologia da Universidade Federal da Bahia (UFBA), Psicóloga do Centro de Orientação Familiar (COFAM) e Assistente Social da Prefeitura Municipal de Salvador. E-mail: jacirasbarbosa@uol.com.br
Sonia Maria Rocha Sampaio, Doutorado em Educação pela Universidade Federal da Bahia (UFBA) e Pós-doutorado em Ciências da Educação na Universidade de Paris 8, é Professora Titular do Instituto de Humanidades, Artes e Ciências Prof. Milton Santos e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal da Bahia (UFBA). E-mail: sonia.sampaio@terra.com.br

Creative Commons License