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Estudos de Psicologia (Natal)

Print version ISSN 1413-294XOn-line version ISSN 1678-4669

Estud. psicol. (Natal) vol.22 no.2 Natal June 2017

http://dx.doi.org/10.22491/1678-4669.20170015 

PSICOBIOLOGIA E PSICOLOGIA COGNITIVA

 

Dos modelos às políticas: O papel da representação nas Ciências Cognitivas

 

From models to politics: The role of representation in Cognitive Sciences

 

De modelos a las políticas: El papel de la representación en Ciencias Cognitivas

 

 

Póti GavillonI; Carlos BaumII;Cleci MaraschinIII

IUniversidade Federal do Rio Grande do Sul
IIUniversidade Federal do Rio Grande do Sul
IIIUniversidade Federal do Rio Grande do Sul

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Neste artigo discutimos diferentes concepções de representação em algumas produções científicas relacionadas aos estudos da cognição. Nossa análise é produzida a partir dos contrastes criados entre a produção de modelos de processamento de informação - objetivo comum das pesquisas experimentais em psicologia cognitiva - e a construção de políticas cognitivas (Kastrup, 1999). Partimos da distinção entre representação forte, na qual a relação entre sujeito e objeto é dada a partir da reconstrução interna do segundo pelo primeiro, e representação fraca indicando apenas uma referência e não necessariamente uma correspondência entre sujeito e objeto (Varela, Thompson, & Rosch, 2003). Buscamos apontar que o modo como a representação é concebida define a forma como explicamos a cognição e essas explicações, por sua vez, contribuem para definir os modos de existência da cognição no mundo.

Palavras-chave: modelos; políticas cognitivas; representação; objetividade; cognição.


ABSTRACT

In this paper we discuss the different roles that representation can play in scientific productions related to studies of cognition. Our analysis is produced from the contrast created between the production of models of information processing, common goal of experimental research in cognitive psychology; and the construction of cognitive politics (Kastrup, 1999). We start from the distinction between strong representation, where the relationship between subject and object is given from the internal reconstruction of the later by the former; and weak representation indicating only a reference - not necessarily a match - between subject and object (Varela et al., 2003). We seek to point out that the way the representation is thought defines the way cognition is explained and those explanations, in turn, contribute to define the modes of existence of cognition in the world.

Keywords: models; cognitive politics; representation; objectivity; cognition.


RESUMEN

En este trabajo se discuten los diferentes papeles que la representación puede desempeñar en producciones científicas relacionadas con los estudios de la cognición. El análisis se produce a partir del contraste creado entre la producción de los modelos de procesamiento de la información, el objetivo común de la investigación experimental en psicología cognitiva; y la construcción de las políticas cognitivas (Kastrup, 1999). Partimos de la distinción entre una fuerte representación, donde la relación entre sujeto y objeto se da desde la reconstrucción interna de la tarde por el anterior; y representación débil indicando sólo una referencia - no necesariamente una coincidencia - entre sujeto y objeto (Varela et al., 2003). Buscamos a señalar que la forma en que se piensa la representación define la forma en la cognición se explica y esas explicaciones, a su vez, contribuyen a definir los modos de existencia de la cognición en el mundo.

Palabras clave: modelos; políticas cognitivas; representación; objetividad; cognición.


 

 

Desde a organização do campo das Ciências Cognitivas, na segunda metade nos anos 1970, o desenvolvimento de modelos de processamento de informação é considerado o principal objetivo da psicologia experimental (Gardner, 1995). O periódico Cognitive Sciences, publicação da Sociedade de Ciências Cognitivas, ao eleger os 10 artigos de maior impacto e importância coloca em primeiro lugar The Mental Models in Cognitive Science, de Johnson-Laird (1980). Na mesma lista, cinco dos 10 artigos estão diretamente relacionados com o desenvolvimento de modelos1.

Como alternativa à composição de modelos, Kastrup em "A invenção de si e do mundo" (1999) propõe o conceito de políticas cognitivas sugerindo que desloquemos o foco das pesquisas do funcionamento e estrutura da cognição para as práticas que a configuram e lhe dão forma. Entre essas, destacamos a prática científica, que, ao produzir explicações, produz também diferentes condições de existência para a cognição. Nesse artigo buscamos explicitar a relação que o conceito de políticas cognitivas estabelece com a noção objetividade, tal como proposta por Maturana (2001), e a distinção entre representação forte e fraca prospota por Varela et al. (2003). Essa especificação é através da discussão a respeito do lugar que a representação ocupa nas duas propostas: modelos e políticas.

Construímos a discussão a partir dos contrastes que estabelecemos entre a construção de modelos e a produção de políticas cognitivas, utilizando a estratégia metodológica de criação de contrastes proposta por Despret (2004) como forma de dar visibilidade ao modo como um elemento, a representação, participa da produção de conhecimento sobre a cognição. A produção de contrastes (que podem não ser divergências) possui um caráter inventivo, pois permite ao pesquisador estabelecer novas conexões e relações entre diferentes práticas. Com isso, os contrastes constituem nós problemáticos que permitem acompanhar processos heterogêneos em diferentes abordagens científicas.

Buscamos apontar que o modo como a representação é pensada define a forma como explicamos a cognição. Essas explicações, por sua vez, contribuem para definir os modos de existência da cognição no mundo, o que nos força a reconhecer que a construção dessas explicações envolve um trabalho político inserido em um coletivo onde se produzem critérios de aceitação das explicações.

Para refletir sobre as noções de representação partimos da diferenciação proposta por Varela et al. (2003). Para os autores, existe uma representação forte e uma fraca. A representação fraca tem relação com o uso mais cotidiano do termo, utilizado para definir qualquer coisa que possa ser interpretada como se referindo a outra, um exemplo de representação fraca é um mapa. O mapa se refere a uma determinada área e representa alguns de seus aspectos, assim interpretando esta área como sendo de certa forma. A representação fraca pode ser entendida como baseada na interpretação, pois quando algo se refere a outra coisa sempre envolve uma tradução, e não há preocupação com a definição da origem do significado como na representação forte. O sentido de representação é denominado de fraco quando não tem um comprometimento epistemológico ou ontológico entre representante e representado. Se generalizarmos essa ideia, entretanto, para todo o funcionamento da cognição, teremos uma representação forte, por ter implicações ontológicas e epistemológicas fortes: assumimos que o mundo é preexistente à cognição e que essa acontece através da operação de símbolos que se referem a esse mundo preexistente. Enquanto a representação fraca se propõe a explicar um aspecto da cognição, a representação forte generaliza e explica toda cognição a partir da representação. A segunda assume, por necessidade, a existência dos polos preexistentes sujeito-objeto e explica sua relação (o que é construído na cognição seria somente a relação, a mediação de termos dados anteriormente). Este processo de representação se configura como recuperação ou reconstrução de características ambientais extrínsecas, em vez da interpretação da representação fraca.

A seguir, retomamos a constituição do movimento cognitivista, destacando a importância da construção de modelos para a definição das práticas experimentais e suas relações com a representação forte. Em seguida, discutimos como o conceito de políticas cognitivas ajuda a recolocar o problema da representação. Por fim, consideramos algumas implicações das duas posições a partir dos contrastes que podemos produzir entre ambas.

 

Modelos na Ciência e na Cognição

Diversos autores (Dupuy, 1996; Gardner, 1995; Teixeira, 1998; Varela, 1994) situam a origem da ciência cognitiva no movimento cibernético da década de 1950. Tal movimento resultou do encontro da teoria da comunicação de Shannon (1948), que apresenta uma abordagem matemática da comunicação em detrimento dos aspectos semânticos, com o trabalho sobre retroalimentação (feedback) de Wiener (1948), por sua vez fortemente influenciado pela formalização matemática da máquina de Turing. A máquina de Turing é um objeto teórico constituído por um mecanismo, um leitor e uma fita infinita dividida em células. Cada célula pode estar vazia ou marcada por um símbolo (0 ou 1) e a máquina tem capacidade de ler, escrever ou apagar esses símbolos. Em determinado momento, apenas uma célula pode estar na posição que permite ser lida ou alterada pela máquina (no leitor). As operações que a máquina pode realizar são escrever um símbolo, apagar um símbolo e mover a fita uma casa para a direita ou esquerda. As ações da máquina são determinadas por seu estado interno e pelo estado da célula no leitor. As células no resto da fita não podem determinar diretamente as ações da máquina sem serem movidas para o leitor. Este mecanismo faz com que a organização interna da máquina determine um cálculo específico a ser realizado sobre a fita, ou que a máquina possa ser criada para retirar da própria fita as informações necessárias ao cálculo. A tese de Church-Turing é que toda função calculável pode ser computada por uma máquina de Turing (Hofstadter, 2001).

A hipótese central do cognitivismo é que as principais funções da mente podem ser descritas em termos de manipulação de símbolos de acordo com regras explícitas, tal como a máquina acima descrita (Gardner, 1995; Teixeira, 1998; Varela, 1994). Os três elementos que se destacam nessa proposta são representação, formalismo e a manipulação baseada em regras. O conceito de representação ocupa uma posição de destaque: as representações tomam forma em símbolos, entidades discretas, simultaneamente físicas e semânticas, cuja articulação é baseada em um conjunto de regras lógicas.

Apesar de o paradigma cognitivista ter se desenvolvido em torno da "metáfora do computador", Dupuy (1996) afirma que a comparação é, desde o princípio, produto do desenvolvimento conceitual do paradigma e não sua origem. Para o autor, as ciências cognitivas fazem do modo científico ou racional de conhecimento o único modo de conhecimento possível. "Para elas todo o 'sistema cognitivo' se relaciona com o mundo como o cientista se relaciona com o seu objeto" (p. 27).

Quando lançamos mão do conceito de política cognitiva, propomos questionar dois pontos: primeiro, o modo de compreender a relação entre a cognição e o mundo. Segundo, o tipo e objetivo da relação entre cientista e objeto. Esses pontos remetem diretamente ao problema da representação tal como proposto por Varela e seus colaboradores.

Compreender o fazer científico dos precursores do cognitivismo nos ajuda a compreender também o modo como a própria cognição é descrita por eles. Para flagrar a prática científica dos cibernéticos um importante documento é o artigo de 1945 de Rosenblueth e Wiener intitulado The Roles of Model in Science. A primeira frase do artigo já é reveladora: "A intenção e o resultado de uma investigação científica é obter uma compreensão e um controle de alguma parte do universo" (Rosenblueth & Wiener, 1945, p. 316). Essa proposição pode ser compreendida como uma política cognitiva específica, como veremos na sessão seguinte.

O modo representacional de fazer ciência parte da convicção de só podermos conhecer a partir do ponto de vista de um criador. Só é possível conhecer aquilo que nós mesmos fazemos e só podemos conhecer aquilo que o homem não fez reproduzindo as condições que conduziram à sua existência. "Representar, imitar, repetir, reproduzir: é realmente o que faz a experiência científica, há de se convir" (Dupuy, 1996, p. 22).

Para Dupuy o fazer mais universal da atividade científica é justamente a fabricação de modelos. Esses, por sua vez, possuem uma relação de simplificação de uma realidade sempre mais complexa e inapreensível em sua totalidade. De acordo com Rosenblueth e Wiener (1945), conscientemente ou não, todo o pesquisador está envolvido na produção de modelos, que podem ser de dois tipos, materiais e abstratos. O primeiro existe apenas a serviço do segundo, que por sua vez é sempre de ordem mais elevada. O modelo científico é uma forma abstrata que se encarna nos fenômenos. Campos muito diferentes da realidade fenomenal podem ser representados por modelos idênticos, estabelecendo entre eles uma relação de equivalência.

Quanto mais abstrato e complexo for um modelo, mais difícil é sua manipulação e sua observação, de modo que é preciso dividi-lo em termos mais objetivos e traduzi-los em procedimentos experimentais. Tal processo e seu inverso, a construção de teorias complexas a partir de dados experimentais, envolvem duas operações qualitativamente distintas. A primeira consiste em mover-se para cima ou para baixo na escala de abstração (os chamados modelos bottom-up e top-down). A segunda, em traduzir a abstração em experimento ou o experimento em abstração. A habilidade dessa tradução é o pré-requisito do bom experimentador, capaz de intercambiar símbolos e eventos facilmente. O teórico, por outro lado, seria aquele capaz de navegar nos "vários níveis do reino da abstração" (Rosenblueth & Wiener, 1945, p. 317).

Modelos materiais, nessa abordagem, são representações concretas e simplificadas de sistemas complexos que possuem propriedades similares às selecionadas para serem estudadas no modelo original. Eles podem ser úteis em duas situações: 1) ajudando um cientista a substituir um fenômeno de um campo pouco conhecido por outro que pertença a um campo mais familiar; 2) conduzindo experimentos em condições mais favoráveis do que as do sistema original. Essa tradução, em particular, presume uma similaridade entre as duas situações; pressupõe, portanto, a posse de um modelo formal adequado com uma estrutura similar aos dois modelos materiais. O modelo formal não precisa ser plenamente compreendido ou estar completamente desenvolvido, uma vez que o sistema material serve como suplemento ao sistema formal (Rosenblueth & Wiener, 1945).

Modelos materiais podem desempenhar um papel importante na produção científica. É preciso destacar, porém, que podem rapidamente tornar-se estéreis e irrelevantes se um sistema formal sugerir que são fracos ou inconsistentes. Para ser útil, um modelo material deve ser capaz de sugerir experiências cujos resultados não poderiam ser facilmente deduzidos de um sistema abstrato. O progresso científico, de modo mais amplo, se daria através do aumento da complexidade de modelos, partindo de versões relativamente simples na direção de estruturas teóricas mais completas e formais (Rosenblueth & Wiener, 1945).

O modelo subverte a relação tradicional entre descrição e explicação, pois coloca no mesmo nível hierárquico os efeitos e as circunstâncias que o geraram. As funções ou "leis" do modelo tornam-se coerções que fazem de cada circunstância um novo caso. A simulação é como um roteirista que coloca em cena uma multiplicidade de elementos heterogêneos e os distribui do modo "se, então", de forma narrativa e temporal. A simulação conduz o modo como esses elementos atuam em conjunto e acompanha as histórias que essa matriz narrativa é capaz de gerar. Coloca em prática os enunciados sem nos permitir intervir, modificar a narrativa na direção que nos interessa ou consideramos plausível. As ciências do modelo pretendem se eximir de qualquer relação de poder na tentativa de simular os fenômenos sem pretender penetrar em seu sentido (Stengers, 2002). O modelo abstrai da realidade o conjunto de relações funcionais que considera pertinentes, colocando entre parênteses tudo o que não depende desse sistema, é assim que o mesmo modelo pode representar o sistema solar e o átomo (Dupuy, 1996). O modelo pode adquirir uma posição suplantar, tal como a ideia platônica, a partir da qual o real não seria mais do que uma pálida cópia das formas puras.

A compreensão de modelos, segundo os cognitivistas, se aplica simultaneamente à prática científica e ao funcionamento da cognição. Assim como o cientista deve reproduzir partes do mundo e operar sobre ela para conhecer seu funcionamento, as representações mentais também podem ser consideradas reproduções informacionais do mundo sobre as quais devemos operar um conjunto finito de procedimentos para que possamos obter um pensamento ou um comportamento. É esta visão de conhecimento decorrente do emprego de modelos que equivalemos ao conceito de representação forte. Os modelos são considerados representação forte, pois tentam colocar à mostra as relações necessárias para a explicação do fenômeno que pretendem representar, tratando-o como pré-existente e possuidor de características que devem ser reconstruídas através do método científico. O cognitivismo computacional, uma versão atual do modelo da representação, trata a cognição como processamento simbólico de informações por regras lógicas. Cognição seria uma relação intencional entre sujeito e objeto. Esta concepção de cognição pressupõe sujeito e objeto preexistentes e busca as normas invariantes que os relacionam. Os objetos, sendo prévios ao ato de conhecê-los, constituem uma natureza objetiva a ser acessada através da representação, sendo os símbolos seus correlatos mentais, mediadores da relação.

 

Objetividade nas Políticas Cognitivas

Para compreender a diferença que propomos entre a construção de modelos e a produção de políticas cognitivas cabe aprofundar nossa discussão sobre os modos de compreender a representação. Em congruência com Varela et al. (2003), Maturana (2001) separa duas formas de lidar com a cognição: objetividade entre parênteses e objetividade sem parênteses. A primeira considera que utilizamos uma linguagem de objetos, mas reconhecendo (assim como na representação fraca) que não temos "nenhum fundamento para supor que [ essa linguagem] possa fazer referência a seres que existiriam independentemente" (Maturana, 2001, p. 33). A objetividade sem parênteses, como a representação forte, assume que quando falamos de objetos fazemos referência a um ente independente. Assumir a postura da objetividade entre parênteses implica que "toda explicação é uma reformulação da experiência com elementos da experiência" (Maturana, 2001, p. 34), e está, assim, sujeita a novas reformulações. O autor defende que as explicações científicas não exigem a objetividade sem parênteses se as pensarmos em termos de aceitação através de critérios coletivos de validação. Não se utilizaria um critério de proximidade a uma suposta realidade objetiva, mas os critérios de aceitação das explicações em uma comunidade de observadores que constituem regras compartilhadas de aceitação das explicações. Os observadores, na comunidade científica, tendem a resolver controvérsias estabilizando alguns consensos, mesmo que temporários.

O fato de o critério de validação das explicações científicas constituir a ciência como um domínio explicativo, que surge na operação recursiva do observador-padrão dentro das coerências operacionais de seu domínio de experiências, torna operacionalmente impossível a referência científica a algo concebido como uma realidade objetiva e independente (Maturana, 2001, p. 146).

Maturana coloca que os dois caminhos explicativos, com ou sem parênteses, têm consequências nas relações humanas, correspondendo a diferentes modos de ser. Assumindo a objetividade sem parênteses, a realidade objetiva dá sustento e condição de verdade ao que dizemos; no outro caminho, é preciso um contexto no qual aquilo que dizemos seja aceito como uma boa explicação. Há diferentes explicações que geram distintas formas de estar no mundo e cuja validade depende dos critérios de aceitação utilizados em determinado contexto. Se considerarmos a objetividade entre parênteses, podemos afirmar que essas formas efetivamente criam diferentes mundos através de suas explicações, pois modificam as experiências que temos.

A realidade é sempre um argumento explicativo.

(...) Na objetividade entre parênteses há tantas realidades quantos domínios explicativos, todas legítimas. Elas não são formas diferentes da mesma realidade, não são visões distintas da mesma realidade. Não! Há tantas realidades — todas diferentes, mas igualmente legítimas — quantos domínios de coerências operacionais explicativas, quantos modos de reformular a experiência, quantos domínios cognitivos pudermos trazer à mão (Maturana, 2001, p. 37).

Kastrup et al. (2008) chamam essa posição defendida por Maturana de construtivismo radical e partem dela para sua definição do conceito de políticas cognitivas. Este artigo propõe o uso do conceito de políticas cognitivas como alternativa à ideia de modelo cognitivo, mais especificamente aos modelos que descrevem o funcionamento da mente em termos de representações mentais e procedimentos computacionais que atuam sobre tais representações. Como discutido, para esses modelos, os procedimentos atuariam a partir de um sistema ou estrutura de regras invariantes que constituiriam uma imagem transcendente da cognição. Para contrapor essa proposta recorremos ao conceito de política cognitiva, destacando uma dimensão processual da cognição em que existe um primado das práticas que a engendram e dos processos que lhe dão forma, reconhecendo sua dimensão temporal e sua transformação permanente. O que se obtém são fluxos híbridos (Latour, 1994) compostos por sujeitos, técnicas, objetos e instituições. Pesquisar a cognição se trata, assim, de acompanhar, através de suas práticas, o modo como uma inteligibilidade se constrói. Assumir essa posição implica uma postura ética de recusar um mundo dado do qual somos capazes de fazer representações modelares, uma aposta na ideia de um mundo como efeito da prática cognitiva e, simultaneamente, um compromisso com a criação de novas formas de existência.

O si e o mundo são co-engendrados pela ação, de modo recíproco e indissociável. Encontram-se, por sua vez, mergulhados num processo de transformação permanente. Pois ainda que sejam configurados como formas, estas restam sujeitas a novas perturbações, que forçam sua reinvenção (Kastrup, 2005; p. 1276).

Políticas cognitivas são modos de estar no mundo, de estabelecer relações. O conhecer envolve uma atitude em relação ao mundo e a si mesmo e, por isso, é um problema teórico e também político, não puramente epistemológico. A explicação sobre o funcionamento da cognição guia ações concretas.

Falar em políticas da cognição significa afirmar que a distinção entre uma concepção de cognição como representação de um mundo preexistente e aquela que define a cognição como um processo de invenção de si e do mundo não se restringe a uma diferença entre modelos teóricos (Kastrup, Tedesco, & Passos, 2008, pp. 11-12).

Os autores definem essas duas políticas cognitivas como a da representação e a da invenção. Mais do que uma crítica à representação, a política cognitiva inventiva é um convite a outras práticas. Práticas que propõem pensar uma cognição inventiva, como alternativa às descrições da cognição ligadas à resolução de problemas e à representação. A alternativa não é excludente, não se nega a existência da recognição, mas se atenta ao fato de que diferentes enfoques se ligam a distintas políticas cognitivas. Assim, se constitui uma controvérsia nos campos teórico e político sobre a cognição. Podemos dizer que a recognição (o reconhecimento representacional e não a produção de algo) existe como parte de uma representação fraca, sendo um aspecto da cognição, mas não sua forma irredutível de funcionamento.

A discussão sobre política cognitiva se articula ao entendimento de conhecimento proposto pelo grupo de autores que Teixeira (1998) chama de Escola Chilena (Maturana, 2001; Maturana & Varela, 2001; Varela, 1994; Varela et al. 2003), a qual traz a posição do observador como central para o entendimento da produção de conhecimento. Varela coloca o seguinte:

A faculdade mais importante de qualquer cognição viva é precisamente, em larga medida colocar as questões pertinentes que surgem a cada momento da nossa vida. Estas não são pré-definidas mas en-agidas, nós fazemo-la emergir sobre um pano de fundo, sendo os critérios de pertinência ditados pelo nosso senso-comum sempre de maneira contextual (Varela, 1994, pp. 72-73).

A política cognitiva inventiva é uma proposta política que não se propõe necessariamente a uma explicação ontológica da cognição, mas a uma política que aponta possibilidades interessantes de viver. Não existe, portanto, o interesse em substituir o modelo da recognição, mas criar novas possibilidades de invenção. Em vez de pensar apenas que quanto mais se sabe, mais se tem (conhecimento), acreditamos ser importante acrescentar que quanto mais se sabe, mais se pode (aprender), atentando para o aspecto produtivo e inventivo do aprendizado, por exemplo. Em uma política cognitiva inventiva pensamos que conhecer não é apenas representar a partir de regras invariantes, conhecer é criar e produzir realidades e a si mesmo, em coletivos de fazer-saber. A própria cognição é processo produtivo e também seu principal produto, os dois polos (sujeito e objeto) são efeitos e não condição da cognição.

Varela et al. (2003) explicam que há o que eles chamam de ansiedade cartesiana, que nos leva a buscar uma base absoluta para o conhecimento, sob a ameaça do niilismo. A base a que se referem deveria, então, ser a mente ou o ambiente, e para resolver esta relação a ciência cognitiva contemporânea utilizaria a representação forte. A ciência cognitiva deslocou a discussão de uma preocupação com representações a priori (que possam fundamentar de forma não contingente o nosso conhecimento sobre o mundo) para representações a posteriori (cujos conteúdos derivam de interações causais com o ambiente). A referida mudança, apesar de parecer resolver o problema da base do conhecimento no que se refere à relação sujeito-mundo, precisa assumir um mundo totalmente instrutivo sobre a mente e continua inserida na representação forte. Os autores afirmam que, ao contrário do que nos indica a ansiedade cartesiana, é possível explicar o conhecimento sem uma base absoluta na mente ou no ambiente, se pensarmos o mundo como inseparável de um processo de auto modificação da mente. Assim, nem o sujeito nem o mundo seriam a origem do conhecimento, mas, ao contrário, sujeito e mundo seriam resultado de um processo circular de experiência, o qual possibilita tanto a permanência quanto a mudança.

 

Considerações finais

Ao longo do artigo examinamos o papel da representação em duas explicações do funcionamento cognitivo. A construção de modelos de processamento da informação, de modo geral, trata a cognição como representação forte, o sujeito reconstrói internamente o objeto cognoscível seguindo regras computacionais. As políticas cognitivas, por sua vez, tratam a representação como representação fraca, onde há apenas uma referência e não necessariamente uma correlação entre sujeito e objeto. Nossa intenção foi criar um contraste entre as duas proposições, destacando que a primeira compreende a cognição, bem como o resultado das pesquisas em cognição, como a reconstrução de um mundo pré-estabelecido em que a ação de conhecer tem quase nenhum efeito sobre o mundo conhecido. Na segunda, o desenvolvimento do conhecimento sobre o mundo está interligado com o desenvolvimento de um mundo em que o conhecimento faz sentido.

Esse contraste fica ainda mais evidente quando organizamos os conceitos apresentados ao longo do artigo em dois grupos que os articulam. No primeiro grupo estão representação forte (Varela et al., 2003), objetividade sem parênteses (Maturana, 2001) e recognição (Kastrup, 1999). No segundo, representação fraca (Varela et al., 2003), objetividade com parênteses (Maturana, 2001) e cognição inventiva (Kastrup, 1999). Os conceitos do primeiro grupo são utilizados para definir uma concepção de cognição (conhecimento e aprendizagem), assumindo que exista objetividade no conhecimento de um mundo externo, transcendental, e que leva a modelos baseados no (re)conhecimento através de representações internas e resolução de problemas. Sua eficácia é medida através da adequação das representações ao mundo. O segundo grupo de conceitos busca ampliar o conceito de cognição e diversificar as abordagens possíveis ao objeto, considerando a diversidade como mais produtiva do que a busca ou disputa por uma verdade única.

Apesar de nossa ênfase no contraste entre modelos e políticas da cognição, é importante destacar que não há oposição direta entre as duas abordagens. Se consideramos as diferentes políticas de produção da cognição, não é possível negar a existência dos processos descritos no primeiro grupo. A abordagem do segundo grupo apenas retira a hegemonia explicativa dos modelos de processamento da informação, dando-lhes o papel de mais um dentre vários modos de conhecer (Kastrup, 1999), ou de uma descrição mais explicativa do que gerativa do próprio conhecimento. Maturana e Varela (1997) entendem que a representação como forma de conhecimento é uma metáfora explicativa de um observador, não constitutiva da ontogenia de quem conhece. Essa metáfora ajuda a explicar a contínua correspondência entre conduta e ambiente para o observador, mas não consiste em uma condição sine qua non da correspondência, a qual se define a partir da própria experiência, no co-engendramento entre sujeito e mundo.

A diferença entre as ideias representadas nos dois grupos é que as do primeiro se assumem ontológicas, universais, enquanto as do segundo assumem a multiplicidade de explicações, incluindo as ideias do primeiro grupo como uma das explicações possíveis. A ideia de cognição inventiva, além de realizar esta crítica, se constitui numa proposta específica de explicação da cognição (assim como a enação e a autopoiese, propostas pelos outros autores). Quando situamos esse grupo como representação fraca, nos referimos apenas ao caráter crítico que visa a negar a exterioridade objetiva do mundo na produção de conhecimento.

O esforço de aproximar os conceitos apresentados tem por objetivo ampliar suas possibilidades tanto explicativas quanto propositivas. Além disso, a própria ideia de uma representação fraca assume que diversos caminhos explicativos possam ser trilhados no mesmo campo. Cabe ressaltar que há especificidades nas propostas explicativas dos autores; a crítica à representação forte, entretanto, é uma constante. Assim, torna-se possível, por exemplo, utilizar a descrição de Varela de representação para pensar o papel dos modelos na construção do conhecimento sem necessariamente assumir os pressupostos da cognição inventiva. A articulação entre esses conceitos não é inesperada, visto que Maturana e Varela trabalharam e escreveram juntos sobre a cognição (Maturana & Varela, 1997; 2001) e que Kastrup utiliza estes autores na construção de suas explicações. Tendo clareza de que a cognição inventiva é uma de várias possibilidades explicativas, podemos utilizá-la como ponto de partida para uma proposta política.

Em síntese, política cognitiva é um conceito que explica a diferença entre modos de entender a cognição, a partir da postura da representação fraca, ressaltando a relação imanente entre entendimento teórico e prático. Determinada política cognitiva é uma forma específica de entender o mundo associada a uma forma de estar no mundo. O termo é utilizado aqui para tratar de um conjunto coeso que chamamos de teoria, mas implica a ideia de que toda ação (incluindo a produção da própria teoria) é negociada de forma local. Assim, não se pode encontrar uma forma "pura" da teoria, mas sim um conjunto aceito como guia e que sempre desempenha papéis diferentes nos modos de ser de cada um, em cada situação. As teorias, por sua proximidade com a prática, devem ser pensadas politicamente, visto não haver formas de validação externas ao próprio uso da teoria nas práticas (científicas ou cotidianas) relacionadas a ela. Nossas explicações e seus critérios de aceitação criam formas de estar no mundo e, consequentemente, novos mundos (Maturana, 2001). Ou seja, as explicações científicas não são referentes a uma verdade única, mas tampouco são relativas, elas são construídas dentro da comunidade científica. Isso quer dizer que, por um lado, não somos donos da verdade e, por outro, somos responsáveis pelas experiências que surgem a partir de nossas explicações. Deslocamos, então, o desafio do cientista de se aproximar da verdade para o de produzir formas mais interessantes de explicar e viver o mundo, coletivamente. A controvérsia que se abre no campo de estudos da cognição, quando a tomarmos em um regime político e não em um regime abstrato (dos modelos), se atualiza em diferentes domínios do conhecimento a partir de seus conteúdos próprios.

 

Referências

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Endereço para correspondência:
Póti Gavillon
Rua Ramiro Barcelos, 2600
Santa Cecília, Porto Alegre – RS.
Telefone: (51) 3308-5066.
E-mail: poti_gavillon@yahoo.com.br

 

 

Recebido em 04.Nov.15
Revisado em 31.Out.16
Aceito em 28.Jun.17

 

Póti Gavillon, Mestre em Psicologia Social e Institucional pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), é Doutorando em Psicologia Social e Institucional pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). E-mail: poti_gavillon@yahoo.com.br
Carlos Baum, Doutor em Psicologia Social e Institucional pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), é Professor Substituto no Departamento de Psicologia Social e Pós-Doutorando em Informática na Educação, ambos pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). E-mail: baum.psico@gmail.com
Cleci Maraschin, Pós-doutorado em Educação pela Universidade de Winsconsi-Madison (UW), Doutora em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), é Professora Titular do Departamento de Psicologia Social e Institucional da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Docente e orientadora dos PPGs de Psicologia Social e Informática na Educação e Pesquisadora do CNPq. Coordenadora do Núcleo de Estudos em Ecologia e Políticas Cognitivas (NUCOGS). E-mail: cleci.maraschin@gmail.com
1. Os demais artigos são: Chi, Feltovich e Glaser, 1981; Elman, 1990; Feldman e Ballard,1982; Jacobs, Jordan e Barto,1991.

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