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Estudos de Psicologia (Natal)

versão impressa ISSN 1413-294Xversão On-line ISSN 1678-4669

Estud. psicol. (Natal) vol.22 no.2 Natal jun. 2017

http://dx.doi.org/10.22491/1678-4669.20170022 

PSICOLOGIA SOCIAL COMUNITÁRIA E SAÚDE MENTAL

 

A infância na berlinda: Sobre rotulações diagnósticas e a banalização da prescrição de psicofármacos

 

Childhood in the hotseat: On diagnostic labeling and the trivialized practice of psychotropic prescriptions

 

La infancia en la línea de fuego: Sobre etiquetas diagnósticas y la banalización de la prescripción de psicofármacos

 

 

Luana Paula VizottoI; Daniele de Andrade FerrazzaII

IUniversidade Estadual de Londrina
IIUniversidade Estadual de Maringá

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A presente pesquisa teve como objetivo estudar, por meio da análise de prontuários, a trajetória percorrida por crianças e adolescentes de um serviço de saúde mental da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) de um município do sudoeste paulista, com especial atenção a determinação da prescrição de metilfenidato, principalmente, em casos diagnosticados com Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH). Os dados mostram que, apesar da ausência do diagnóstico psiquiátrico em 20% dos prontuários, todas as crianças foram submetidas à prescrição psicofarmacológica, salvo um único caso que não retornou à consulta médica. Conclui-se que são raríssimos os casos daqueles que conseguem escapar das artimanhas da lógica medicalizante propulsionada pelas relações de interesse entre psiquiatria e indústria farmacêutica, cujas armadilhas químicas promovem o controle e a contenção da subjetividade na contemporaneidade.

Palavras-chave: infância; saúde mental; medicalização.


ABSTRACT

This research intends to discuss, through the analysis of medical files, the journey made by children and adolescents through the mental health service offered by the RAPS (Psycho-social Care Network) of a city located in the south-west region of the state of São Paulo, particularly focusing on the motivations behind the prescription of methylphenidate, especially for patients diagnosed with Attention Deficit Hyperactivity Disorder (ADHD). Data shows that, despite the absence of any medical diagnosis in 20% of the medical files, every single child was prescribed psychotropic medications, except for one patient, who didn't come back for their medical appointment. The conclusion was that only a few manage to avoid the maneuvers of the medicalization logic promoted by the common interests between psychiatry and pharmaceutical industry, whose chemical traps lead to subjectivity control and restraint nowadays.

Keywords: childhood; mental health; medicalization.


RESUMEN

El objetivo de la presente investigación era estudiar, con la ayuda de análisis de historias clínicas, la trayectoria recorrida por niños y adolescentes de un servicio de salud mental de la Red de Atención Psicosocial (RAPS), de un municipio del estado de São Paulo, prestando una atención especial a la determinación de la prescripción de metilfenidato, principalmente en casos diagnosticados con Trastorno de Déficit de Atención e Hiperactividad (TDAH). Los datos muestran, que a pesar de la ausencia del diagnóstico psiquiátrico en 20% de las historias clínicas, todos los niños fueron sometidos a la prescripción psicofarmacológica, salvo un único caso que no volvió a la consulta médica. Se concluyó que son poquísimos casos de aquellos que logran escapar de las artimañas de la lógica medicalizante impulsada por relaciones de interés entre psiquiatra y industria farmacéutica, cuyas trampas químicas promueven el control y la contención de la subjetividad en la contemporaneidad.

Palabras clave: infancia; salud mental; medicalización.


 

 

A incorporação do discurso e das práticas médicas é algo que se naturaliza de modo frequente no atual contexto social, um processo que dissemina a concepção relacionada à necessidade de recorrer a intervenções medicamentosas como estratégias para abranger e apaziguar inúmeros sofrimentos e mal-estares entrelaçados às incompreensões humanas. Conforme Freitas e Amarante (2015), atualmente, corre-se o risco de que toda a complexidade da existência humana seja reduzida às denominadas psicopatologias explicadas e compreendidas pela psiquiatria tradicional como da ordem essencialmente orgânica, baseada em desequilíbrios neuroquímicos e disfunções genéticas.

Nessa perspectiva, discursos e intervenções da medicina psiquiátrica também atingem a infância, submetida de modo progressivo, especialmente no âmbito educacional, a criação de novas psicopatologias que justificam dificuldades de aprendizagem e comportamentos considerados inadequados (Boarini & Borges, 1998; Collares & Moysés, 2014). Dentre as psicopatologias da infância, o Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH) pode ser considerado como um dos diagnósticos mais determinados às crianças e adolescentes na contemporaneidade (Bianchi & Farone, 2015; Brzozowski, Brzozowski, & Caponi, 2010; A. M. Rocha & Cavalcanti, 2014). A psiquiatria contemporânea, ainda que tenha dificuldades de comprovar cientificamente as bases biológicas e cerebrais do diagnóstico de TDAH (Viégas & Oliveira 2014), perscruta minuciosamente gestos, atitudes e comportamentos da infância que escapem dos padrões estabelecidos por instituições disciplinares e normativas. E se apresenta em âmbitos educacionais com o intuito de transformar queixas relacionadas ao mau desempenho escolar da criança em sintomas patológicos e quadros diagnósticos que culminam frequentemente em prescrições medicamentosas (Caliman, 2009).

Especificamente naqueles casos diagnosticados com TDAH, o medicamento mais recomendado é o cloridrato de metilfenidato, vendido no Brasil com os nomes comerciais de Ritalina® (Novartis) e Concerta® (Janssen-Cilag) (Itaborahy & Ortega, 2013). O metilfenidato é uma substância do grupo das anfetaminas que age como um psicoestimulante no organismo dos indivíduos e que, comumente, tem sido comercializado como o "solucionador dos problemas de hiperatividade e da falta de atenção". (Viégas & Oliveira, 2014, p. 53).

Denise Barros (2014), em recente pesquisa de compilação de dados dos relatórios de substâncias psicotrópicas da Junta Internacional de Controle de Narcóticos das Nações Unidas, divulgou que no Brasil foi registrado um aumento de aproximadamente 6.322% na comercialização do metilfenidato entre os anos de 1996 a 2012, período no qual a produção passou de 9kg para a marca de 578kg. Informações equivalentes foram reveladas também pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária Brasileira - ANVISA que divulgou um boletim que mostra um aumento de 75% na venda de metilfenidato, entre os anos de 2009 a 2011, prescrito para crianças e adolescentes brasileiros com idades que variavam entre 6 a 16 anos (ANVISA, 2014).

Apesar dos altos índices de venda e consumo do metilfenidato no Brasil, colocado em segundo lugar no ranking dos maiores consumidores mundiais de psicoestimulantes, atrás apenas dos Estados Unidos da América (EUA) (Moysés, 2013; Viégas & Oliveira, 2014), não há pesquisas que comprovem clinicamente que aquela substância realmente promova melhorias e benefícios. Inclusive não há indícios de que supere os efeitos colaterais produzidos na vida de sujeitos medicados com o metilfenidato (Collares & Moysés, 2014).

No entanto, na justificativa para supostos fracassos e situações consideradas inconvenientes e problemáticas, especialmente no âmbito educacional e familiar, se engendram discursos psiquiátricos que cooperam para a proliferação e banalização de diagnósticos de TDAH e para o consequente aumento das prescrições medicamentosas de Ritalinas®, Concertas® e Venvanses®. Inúmeros autores comentam que a multiplicação de diagnósticos psiquiátricos e o aumento de prescrições psicofarmacológicas estão intrinsecamente relacionados à venda e o alto faturamento das indústrias farmacêuticas na atualidade (Barros, 2014; Bianchi & Farone, 2015; Freitas & Amarante, 2015).

A partir do cenário apresentado, o presente trabalho teve como principal objetivo pesquisar, por meio da análise de prontuários, a trajetória percorrida por crianças e adolescentes de um serviço de saúde da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) de um município paulista, com especial atenção a determinação da prescrição de metilfenidato, principalmente nos casos diagnosticados com TDAH.

Em conformidade com o objetivo geral, foram determinados os seguintes objetivos específicos: a) verificar a determinação da prescrição de psicofármacos às crianças e aos adolescentes que deram entrada ao atendimento no serviço de saúde e analisar suas relações com o estabelecimento de diagnósticos psiquiátricos, com especial atenção aos casos de TDAH; b) investigar os medicamentos psicofarmacológicos prescritos, o tempo de uso das medicações estabelecidas e o momento da consulta médica em que houve a prescrição medicamentosa; c) examinar as alternativas terapêuticas oferecidas diante da medicação, com atenção aos encaminhamentos à psicoterapia; d) investigar a evolução dos casos, com especial destaque à determinação de alta do tratamento medicamentoso.

 

Método

Considerações Éticas

O método utilizado na pesquisa está em conformidade com as normas e princípios estabelecidos na Resolução CNS 196/96. O projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, com todas as garantias de confidencialidade e sigilo das informações coletadas nos prontuários dos usuários analisados no decorrer da pesquisa.

Amostra

Para a pesquisa empírica foram selecionados os 121 prontuários de crianças e adolescentes que foram encaminhados ao serviço de saúde com queixas relacionadas ao mau desempenho escolar, problemas de comportamento e dificuldades de aprendizagem e que se encontravam em atendimento no serviço durante os anos de 2013 e 2014. Os dados mostram que as crianças e adolescentes estavam na faixa etária entre 6 a 15 anos de idade e eram tanto do gênero feminino quanto masculino. Os dados foram coletados durante o período de março de 2015 a maio de 2015.

Procedimentos e Análise de Dados

A pesquisa foi realizada em uma Unidade Básica de Saúde (UBS) inserida na Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) de uma cidade no interior do Estado de São Paulo e que apresentava na época uma equipe de saúde composta por: dois médicos pediatras, três clínicos gerais, dois ginecologistas obstetras, dois enfermeiros, seis auxiliares de enfermagem, seis agentes comunitários, dois auxiliares de farmácia e dois assistentes técnicos. Na coleta de dados observou-se que todos os prontuários selecionados eram de crianças e adolescentes que frequentavam as escolas municipais e estaduais do determinado município.

Nos prontuários foram analisadas informações referentes ao tratamento realizado no serviço de saúde pesquisado: determinação de diagnóstico psicopatológico, tipo de tratamento determinado, medicação prescrita, tempo de uso de medicação, encaminhamento a outros tratamentos e alta do tratamento medicamentoso.

O plano de análise da pesquisa consistiu na análise exploratória das informações coletadas e no cálculo das frequências percentuais relativas, dos quais foram realizados os cruzamentos e comparações concernentes aos objetivos do estudo. Utilizou-se o método quanti-qualitativo para análise dos dados, a fim de compreender a relação do fenômeno estudado com o âmbito social (Paulon, 2005; Turato, 2005). Nesse sentido, os dados coletados foram interpretados a partir da análise da literatura relacionada ao tema pesquisado, com objetivos de proporcionar uma melhor compreensão sobre o processo de medicalização da infância e que envolve o município pesquisado.

 

Resultados

Sobre a Prescrição Psicofarmacológica e a Classificação Diagnóstica

Levantamos dados sobre a prescrição de psicofármacos e os diagnósticos determinados às crianças e aos adolescentes, com atenção especial aos casos de TDAH. Dos 121 prontuários examinados, a despeito das mais diversas queixas e sintomas registrados, praticamente a totalidade dos casos recebeu a determinação de prescrição de uma droga psicofarmacológica. Ao total foram 120 crianças e adolescentes submetidos à receita medicamentosa e em apenas um único caso do total de prontuários analisados pode-se verificar que não houve a prescrição de qualquer medicação psicofarmacológica.

Os dados mostram que 97 crianças receberam a rotulação diagnóstica de TDAH e foram submetidas à prescrição de psicofármacos, nos outros 23 casos analisados pode-se constatar a inexistência de qualquer registro diagnóstico, o que não impediu a determinação da prescrição psicofarmacológica frequentemente receitada para os supostos transtornos de aprendizagem. Naquele único prontuário, sem registros de indicação psicofarmacológica, também não foi possível localizar a determinação de uma classificação diagnóstica, no entanto, deve-se destacar que a criança e sua família foram submetidas a uma única consulta médica e não compareceram ao retorno marcado pelo pediatra.

Sobre Medicamentos Prescritos e Tempo de Uso da Medicação

Coletamos dados sobre os medicamentos psicofarmacológicos prescritos às crianças e aos adolescentes em atendimento no serviço de saúde analisado. Os dados, já descontado o único caso que não recebeu prescrição medicamentosa, podem ser observados na Tabela abaixo:

 

 

Os dados mostram, conforme a Tabela 1, que para a maioria dos casos (89%) foi prescrito o psicoestimulante denominado comercialmente de Ritalina®. Em 2% dos prontuários analisados, as crianças receberam a prescrição do medicamento de nome comercial Venvanse® e em 5% dos casos não constavam no prontuário dados sobre o tipo de medicamento psiquiátrico prescrito. Considera-se relevante que para quatro crianças foi prescrito conjuntamente ao metilfenidato um antipsicótico de nome comercial Risperidona®.

A partir dessas informações, considerou-se necessário verificar e distribuir os casos de crianças que receberam a determinação diagnóstica e que foram medicadas já na primeira consulta médica.

Os dados mostram que praticamente todas as crianças medicadas no serviço de saúde pesquisado foram submetidas à prescrição psicofarmacológica já na primeira consulta com o médico pediatra (97%), apenas três crianças não receberam a prescrição psicofarmacológica na primeira consulta médica.

Levantamos dados sobre a faixa etária, na qual a clientela atendida recebeu a primeira prescrição medicamentosa e iniciou o consumo de drogas psicofarmacológicas.

Os dados mostram que o uso do medicamento psicofarmacológico geralmente é prescrito a partir dos 6 anos de idade e possui maior incidência entre crianças na faixa etária dos 7 aos 8 anos (45%), período que coincide com o momento de princípios de escolarização e alfabetização.

Investigamos o tempo de uso da medicação psicofarmacológica prescrita às crianças usuárias do serviço de saúde, calculando o ano de início do uso do medicamento psicofarmacológico prescrito no serviço e a data e ano da última consulta médica. É necessário ressaltar que para constituição do período de utilização do medicamento prescrito foi considerado nas amostras analisadas a data da última consulta e/ou retirada do medicamento.

Os dados mostram que a maioria (84%) das crianças e adolescentes é submetida à prescrição psicofarmacológica por um período de um a quatro anos de consumo do medicamento. Destaca-se que existem 18 crianças submetidas ao diagnóstico e tratamento medicamentoso por um período de 5 a 8 anos de uso da medicação psicofarmacológica e em quatro casos não havia registros sobre o período de uso do medicamento psiquiátrico.

Encaminhamento à Psicoterapia

Levantamos dados sobre o encaminhamento das crianças a outros tratamentos de atenção à saúde, além do encaminhamento à consulta médica, com especial atenção às informações sobre aquelas crianças e adolescentes que realizam e/ou realizaram atendimento psicoterápico em conjunto com o tratamento medicamentoso.

Os dados mostram que raríssimos são os casos de crianças encaminhadas e submetidas ao tratamento psicoterápico. Somente uma única criança foi encaminhada à psicoterapia, quatro crianças estavam em processo psicoterapêutico, duas já haviam passado pelo processo terapêutico e a grande maioria, composta por 114 crianças e adolescentes, não recebeu encaminhamento e nunca havia sido submetida ao processo psicoterápico.

Alta do Tratamento Medicamentoso

Coletamos dados sobre a evolução dos casos das crianças e adolescentes atendidos no serviço de saúde e submetidos à prescrição psicofarmacológica, com a finalidade de identificar a determinação de altas do tratamento medicamentoso, conforme pode ser observado na Tabela abaixo.

 

 

Das 120 crianças que receberam a prescrição de psicofármacos, praticamente todas permaneceram em tratamento medicamentoso, salvo um único caso no qual foi indicada a alta médica e a suspensão do tratamento psicofarmacológico. No entanto, deve-se destacar que constava no prontuário que aquela criança, especificamente, apresentava comportamentos "regredidos" após a pausa no uso do metilfenidato e necessitava de uma nova avaliação médica.

 

Discussão

Os dados coletados mostram que no referido serviço, invariavelmente, todas as crianças foram submetidas à prescrição de uma medicação psicofarmacológica, salvo um único caso que não recebeu a prescrição médica, possivelmente pelo fato da criança, junto a sua família, não ter retornado à consulta médica marcada. Constata-se que a ausência de um profissional de psiquiatria naquele serviço não impossibilitou diagnósticos psiquiátricos e prescrições de psicofármacos, que foram amplamente promovidas pela atuação de um pediatra destinado a sanar queixas relacionadas ao mau comportamento na escola e aos problemas de aprendizagem. Nesse sentido, a medicina psiquiátrica e, atualmente, a pediátrica tende a prescrever psicofármacos como principal e, na maioria das vezes, exclusiva alternativa terapêutica de tratamento para os mais diversos tipos e estilos de problemas educacionais, sociais, existenciais e emocionais (Barros, 2014; Freitas & Amarante, 2015).

Destaca-se que, mesmo para os casos de crianças e adolescentes não submetidos à classificação diagnóstica de TDAH, as possibilidades de escaparem da prescrição da medicação psicofarmacológica foram inexistentes. Nessa perspectiva, a psiquiatria contemporânea, sem ter que cumprir necessariamente a elaboração de quadros diagnósticos, dissemina tratamentos exclusivamente relacionados ao manejo farmacológico de sinais e sintomas (Galindo, Lemos, & Rodrigues, 2014). Conforme comentou Dupuy e Karsenty (1980, p. 101): "a ausência frequente de diagnóstico pesará cada vez menos nas exigências dos médicos em relação à sua própria prática. A memória médica é pouco a pouco substituída pela memória farmacêutica".

Os dados mostram, ainda, que para 89% das crianças em atendimento, no período analisado, foi prescrito o psicofármaco denominado comercialmente de Ritalina®, que possui como princípio ativo o cloridrato de metilfenidato. Conforme a nota técnica disponibilizada pelo Fórum sobre medicalização da educação e da sociedade, o Estado de São Paulo, principalmente a região do interior, esteve em primeiro lugar no ranking de maior comprador de Ritalina®, no período entre os anos de 2007 a 2014, o que representa 16% do território nacional, totalizando 951.108 unidades físicas de caixas distribuídas no interior do Estado (Harayama, Gomes, Barros, Galindo, & Santos, 2015).

Nota-se que para quatro crianças houve a prescrição de Risperidona® em conjunto com a Ritalina®, um medicamento antipsicótico receitado, geralmente, com o objetivo de auxiliar na contenção dos sintomas dos alunos considerados mais indisciplinados (Morais, Silva, & Andrade, 2007). O medicamento denominado Risperidona® possui como principal função a sedação e é utilizado, em especial, em casos de diagnósticos de autismo para conter comportamentos considerados agressivos (Blake-Trace, 2016; Untoiglich, 2013). No entanto, no campo pesquisado, observou-se que é um medicamento utilizado em concomitância ao metilfenidato com objetivos de intensificar os resultados referentes à "contenção" dos comportamentos incomodativos da criança no espaço escolar (Nikolov, Jonker, & Schahill, 2006; G. P. Rocha, Batista, & Nunes, 2004).

Deve-se destacar que aquelas crianças medicadas com Risperidona® estavam na faixa etária entre 6 a 10 anos de idade e, conforme alertado por Gisela Untoiglich (2013), embora na bula do Risperidona® existam informações sobre a inexistência de testes e experiências clínicas em crianças na faixa etária abaixo de 15 anos, aquele antipsicótico é frequentemente prescrito para crianças cada vez mais jovens, sem que os riscos e perigos da administração precoce sejam informados aos pais e responsáveis. Dentre as polêmicas que envolvem a prescrição daquele antipsicótico, no ano de 2012, a empresa Janssen Pharmaceuticals, subsidiada pela Johnson&Johnson, foi processada e obrigada a pagar multas milionárias nos EUA por ocultar os riscos relacionados aos efeitos colaterais do Risperidona® em crianças e adolescentes (Associated Press, 2012; DrugReporter, 2014).

Nossos dados mostram que praticamente a totalidade dos sujeitos medicados, 97% das crianças em atendimento, receberam prescrição psicofarmacológica já na primeira consulta com o médico do serviço pesquisado. Das 120 crianças em atendimento e submetidas à prescrição medicamentosa, apenas quatro não foram medicadas na primeira consulta, com a proposta de observá-las após o período das orientações médicas. Entretanto, posteriormente, no retorno à consulta pediátrica todas foram submetidas ao tratamento psicofarmacológico. Em relação à única criança não medicada no dispositivo de saúde, é necessário ressaltar a inexistência de anotações de novos retornos médicos no prontuário analisado, fato que nos levou a questionar se a ocorrência de um retorno consequentemente proporcionaria a prescrição de medicação psicofarmacológica.

Percebe-se, assim, que na contemporaneidade os saberes psiquiátricos e também pediátricos, desinteressados dos discursos e histórias de vida singular de pacientes e famílias, deixaram de investir na clínica da observação e na escuta do sofrimento psíquico e emocional para investir em pesquisas, argumentos e explicações sobre fenômenos humanos traduzidos por desequilíbrios neuroquímicos que venham justificar intervenções psicofarmacológicas.

Chama a atenção também o fato da maioria das crianças receberem a prescrição de psicofármacos por períodos de um a quatro anos e, especificamente, 18 crianças serem submetidas à prescrição e uso do metilfenidato por um período de cinco a oito anos. Além disso, destaca-se a inexistência de crianças medicadas por um período inferior a um ano. Dessa forma, os dados mostram que o uso do medicamento pode se estender por vários anos, sem considerar os prejuízos e efeitos colaterais produzidos por uma substância psicoativa, denominada por pesquisadores como "droga da obediência" (Moysés, 2001; Souza, 2013).

Não obstante, o cenário se agrava em decorrência dos efeitos colaterais que o metilfenidato poderá provocar por longos períodos em sujeitos em desenvolvimento cognitivo, motor e emocional. Os efeitos colaterais mais comuns do metilfenidato são: insônia, enxaqueca, dor de estômago, tonturas, euforia, "olhar parado", desinteresse, irritabilidade. Podem ocasionar ainda consequências mais graves, como: cefaleia, comportamento agressivo, anorexia, função anormal do fígado, efeito cardiovasculares, possível diminuição do crescimento, dependência, entre outras graves condições (Itaborahy & Ortega, 2013; Ortega et al., 2010).

O metilfenidato é uma substância psicoativa do grupo das anfetaminas e pode causar dependência, conforme alerta a Associação Médica Brasileira e o Conselho Federal de Medicina, (Itaborahy & Ortega, 2013). De acordo com Brant e Carvalho (2012), aquele medicamento encontra-se na lista de substâncias entorpecentes que podem implicar, dentre vários problemas, na dependência física e psíquica.

Dessa forma, crianças ainda em desenvolvimento cognitivo e motor ao utilizarem o medicamento com a finalidade de adequarem sua performance escolar às exigências normativas, poderão apresentar em seu organismo a identificação e sensação de que a nova substância composta por anfetamina se faz indispensável e, consequentemente, tenderão a depender daquela nova ação química após um período prolongado de uso do metilfenidato (Itaborahy & Ortega, 2013).

Collares e Moysés (2010) afirmam que a consequência do uso de metilfenidato é um tipo de "dessensibilização do cérebro" diante dos momentos de prazer da vida, pois aquele medicamento possui formação química similar à função da cocaína, substância ilícita que aumenta os níveis de dopamina no cérebro e é o neurotransmissor responsável pelo prazer.

Maria Aparecida Moysés, importante pesquisadora e ativista brasileira contra o uso do metilfenidato em crianças, em entrevista realizada recentemente, comenta sobre um efeito químico do psicoestimulante denominado de "zombie like", considerado um estado no qual a criança é amarrada pela ação da anfetamina e entra em estado de zumbi, como se fosse um fantoche das consequências da reação do medicamento em seu organismo, ou seja, é pressionada a principalmente conter-se (Moysés, 2013). Na mesma entrevista, a pesquisadora ainda apresenta dados de uma pesquisa, realizada pela Food and Drug Administration, em 2009, no qual se estabelece uma relação relevante entre o uso daquele medicamento e as mortes súbitas, principalmente em pacientes que já possuem problemas cardíacos.

Outro aspecto relevante dos efeitos colaterais da medicação refere-se à tendência ao suicídio que pode acometer crianças que utilizam metilfenidato (Moysés, 2013). O medicamento causa oscilações comportamentais, uma vez que em determinados momentos a criança percebe-se contida por efeitos colaterais químicos e em outros se percebe impulsionada. O Centro de Vigilância Sanitária da Secretaria Estadual de Saúde de São Paulo analisou notificações recebidas, no período de dezembro de 2004 a junho de 2013, referentes às suspeitas de efeitos colaterais relacionados ao uso do metilfenidato e descobriu que: "na faixa etária de 14 a 64 anos os eventos graves envolveram acidente vascular encefálico, instabilidade emocional, depressão, pânico, hemiplegia, espasmos, psicose e tentativa de suicídio" (Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo, 2013, p. 1).

Além dos inúmeros efeitos colaterais químicos referentes à ação do medicamento no organismo, questiona-se sua função e seus efeitos na constituição psíquica. Ao cair na armadilha medicalizante, composta pela rotulação diagnóstica e a prescrição psicofarmacológica, a criança poderá conceber todos os mal-estares e sofrimentos psíquicos como passíveis de intervenções medicamentosas ou relacionados à sua doença. Nesse aspecto, estamos inserindo-a em uma lógica na qual poderá considerar os medicamentos como essencial à constituição humana e, principalmente, poderá julgar como alternativa indispensável para se adequar aos padrões estabelecidos socialmente.

Ademais, o tratamento prolongado poderá representar exatamente o período pelo qual a criança carregará o rótulo diagnóstico. Nesse sentindo, ao permitir que aquele rótulo acompanhe aquelas crianças de forma prolongada, há um favorecimento de que este sujeito, em constituição e desenvolvimento, futuramente não escape à adoção de novas classificações diagnósticas com objetivo de representar sua identidade, e que poderão forjar "sua subjetividade vida afora". (A. M. Rocha & Cavalcanti, 2014, p. 243).

Destaca-se que grande quantidade de crianças e adolescentes, em atendimento no período analisado, foi submetida à prescrição medicamentosa no ano de 2013, aproximadamente 40%. Exatamente naquele ano a grande expansão da comercialização de Ritalina® (981.754 caixas), Concerta® (238.647 caixas) e Venvanse® (57.775 caixas) alcançou recordes de venda, o que levou a falta do psicoestimulante Ritalina® por alguns meses no mercado brasileiro (Harayama et al., 2015). As informações sobre a comercialização nacional daqueles psicofármacos é ainda mais grave quando se compara os dados totais do ano de 2013 com as informações referentes aos primeiros seis meses de 2014, quando foram comercializadas 609.047 caixas de Ritalina®, 134.067 caixas de Concerta® e 44.468 de Venvanse® (Harayama et al., 2015). Tais preocupações devem-se, principalmente, ao fato de que a comercialização dessas substâncias chega a dobrar no segundo semestre do ano, período em que as exigências escolares e as avaliações de recuperação e reprova se intensificam (Souza, 2013).

Itaborahy e Ortega (2013) analisaram, em uma pesquisa recente, reportagens relacionadas ao TDAH e observaram que nos artigos de psiquiatria há um predomínio de publicações referentes ao uso do metilfenidato como a melhor, mais adequada e única intervenção para o tratamento do TDAH. No entanto, deve-se destacar, conforme apontado por Barros (2014), que a maioria daqueles artigos e pesquisas publicados em revistas científicas nacionais e internacionais fora custeada e financiada por laboratórios farmacêuticos sintetizadores do metilfenidato no país. Dessa forma, o apoio e financiamento dos laboratórios farmacêuticos nas pesquisas sobre o TDAH não podem ser considerados como aspectos irrelevantes para que resultados e discussões sejam manipulados conforme interesses que estão além de qualquer preocupação relacionada à saúde e bem-estar de crianças e adolescentes com dificuldades de aprendizagem (Itaborahy & Ortega, 2013). Diante desse panorama, compreende-se que os laboratórios farmacêuticos estão diretamente vinculados à produção de "material científico" e informações que justifiquem e propaguem, para âmbitos médicos e, consequentemente para o público em geral, o uso do metilfenidato como necessário no processo de intervenção de comportamentos escolares considerados inadequados ou problemas de aprendizagem, traduzidos frequentemente pelo diagnóstico de TDAH.

Nota-se o quanto é vantajoso investir em pesquisas e apoiar entidades e associações médicas e psiquiátricas que tecem argumentos em defesa dos supostos direitos dos "portadores de TDAH", pois a margem de lucro dos laboratórios farmacêuticos muito supera qualquer gasto relacionado ao apoio financeiro de pesquisas que venham confirmar a existência do transtorno e o insubstituível tratamento (Barros, 2014; Viégas & Oliveira, 2014). A propósito, conforme Garrafa e Lorenzo (2010), os conglomerados farmacêuticos estão entre as quatro atividades mais lucrativas no mundo, competindo com a indústria bélica/armamentista, a indústria petrolífera e os grandes bancos internacionais.

Banzato e Pereira (2014) comentam sobre a relação de laboratórios farmacêuticos no financiamento e patrocínio não apenas de pesquisas científicas que apresentem defesas sobre o uso do metilfenidato para o tratamento do suposto transtorno, mas também no investimento com premiações de médicos, com promoções para "educação continuada" de psiquiatras e com a distribuição de presentes, "amostras grátis" e brindes que demonstram a aplicação daquelas indústrias na disseminação de seus produtos (Camargo Jr., 2010). Aquela prática comum e debatida inclusive por órgãos internacionais (Angell, 2012), também foi regulamentada pela ANVISA no Brasil, em seu artigo 5º da Resolução 96/2008, que veda à Indústria Farmacêutica de oferecer benefícios, brindes e vantagens aos profissionais responsáveis pela prescrição de medicamentos ao consumidor (Resolução 96/2008).

Ao estender a medicação como alternativa de lidar com os problemas relacionados ao processo educacional e à pluralidade em sala de aula, se deixa de lado a possibilidade de reflexões críticas a respeito da recorrente prescrição de medicamentos e determinações diagnósticas, como se fosse natural crianças em fase escolar apresentarem, de forma demasiada, aspectos psicopatológicos.

Dessa forma, pode-se compreender a prescrição psicofarmacológica como estratégia de contenção química que funciona como um dispositivo disciplinador ao atuar no sentido de adequar aos padrões àqueles que são considerados desajustados, inadequados e inconvenientes (Foucault, 1979). Compreende-se, assim, que diversos aspectos vinculados aos discursos e práticas do movimento higienista de princípios do sec. XX, no Brasil (Boarini & Borges, 1998), ainda desempenham estratégias atuais e modeladoras de comportamentos considerados como impróprios às exigências da sociedade normativa, que na atualidade, sob novas roupagens químicas, enquadram, disciplinam e modulam subjetividades.

Depender de intermédios químicos para alavancar o nível educacional ou para maquiar determinados conflitos institucionais, caracteriza a presença de uma sociedade imediatista que recorre ao medicamento como uma rápida estratégia de ação (Luengo, 2010). No entanto, a intervenção possui soluções ilusórias, marcadas pela ausência de pesquisas que demonstrem resultados sobre o uso constante de medicamentos psicofarmacológicos em crianças, ainda que sejam levantadas hipóteses de que seus efeitos causam problemas e marcas ainda mais intensas naqueles que estão em pleno período de constituição subjetiva, emocional e cognitiva (Barros, 2014).

Nossos dados mostram que, da totalidade de crianças medicadas, raríssimos foram os casos encaminhados e/ou submetidos ao atendimento psicoterápico em conjunto com o tratamento medicamentoso. Somente quatro crianças estavam em processo psicoterápico no momento analisado. Tal aspecto revela que os encaminhamentos para outras intervenções e tratamentos das queixas relacionadas aos problemas emocionais na infância e as dificuldades de aprendizagem são limitadas.

Ao deixar de lado outras possibilidades de cuidado e tratamento, desconsideram-se outras formas de olhar para dificuldades e sofrimentos relacionados a novas estratégias de compreensão da situação vivenciada pela criança. Retira-se a oportunidade de demonstrar aquilo que permeia suas vivências, visto que o medicamento pode apenas exercer a função de "sufocar" algumas questões por determinado período a partir de sua função química, em um processo relacionado ao "tamponamento da subjetividade". (Ferrazza, 2013).

A psicoterapia como estratégia de cuidado e atenção aos mais diferentes problemas e dificuldades de aprendizagem, além de outras questões relacionadas aos sofrimentos existenciais, pode ser considerada como um método de tratamento que promove um novo olhar sobre aquelas crianças e adolescentes, visto que oportuniza um momento para que a criança represente sua subjetividade, angústias e sofrimentos (Alberto, 2012; Barone & Coelho Jr., 2005). No entanto, Itaborahy e Ortega (2013) argumentam que a maioria dos artigos publicados sobre o TDAH no Brasil apresenta o uso do medicamento isoladamente como a melhor forma de tratamento e alguns manuscritos abordam, ainda, que a ação da terapia em conjunto ao psicofármaco poderia reduzir o efeito do medicamento. Conforme os autores, apenas em algumas publicações leigas há a sugestão da combinação entre o uso do psicoestimulante e a psicoterapia.

Foram observadas, nos prontuários analisados, informações referentes à alta médica do tratamento medicamentoso. Destaca-se que todas as crianças, invariavelmente, continuaram sob a determinação da prescrição psicofarmacológica, salvo uma única criança que recebeu alta do tratamento medicamentoso. No entanto, aquela única criança, após um determinado período, recebeu nova solicitação realizada pela escola para outra avaliação médica, com propósito de ser prescrito novamente o uso de metilfenidato.

Desse modo, compreende-se que a escola busca soluções rápidas com intuito de sanar aspectos da infância considerada problemática, por consequência apoia-se em laudos e diagnósticos psiquiátricos e neuropediátricos na tentativa de desviar-se das dificuldades institucionais que marcam a realidade educacional pública na atualidade brasileira. Por conseguinte, os processos que envolvem a banalização desse diagnóstico estão presentes em diversos âmbitos sociais, contudo, destaca-se que principalmente nas escolas se intensificam os fenômenos de patologização e medicalização da infância (Cruz, Okamoto, & Ferrazza, 2016).

Percebe-se, a partir dos dados apresentados, que esses diagnósticos diversas vezes são realizados de modo precipitado, sem fundamentação e critérios. Assim, a escola, como estratégia de contornar a indisciplina e a não submissão às normas de comportamento, encaminha o aluno, porém desconsidera alternativas de compreensão e avaliação dessa problemática.

As raras determinações de alta do tratamento psicofarmacológico, naquele serviço de saúde que atende crianças e adolescentes, sugerem ainda uma tendência preocupante relacionada à cronificação e que tende a vincular a infância aos psicofármacos com todos os desdobramentos relativos aos efeitos colaterais e às dependências químicas e psicológicas que aquelas drogas podem provocar.

Nessa perspectiva, o olhar configurado naquele espaço, condensa ainda mais ferramentas de vigilância e punição para problemas comportamentais e de desempenho escolar, no qual as crianças encaminhadas já possuem um destino traçado que é a contenção química, sistematizada por meio de psicofármacos como o metilfenidato que age como um dispositivo que amordaça subjetividades consideradas fora dos padrões.

 

Considerações finais

Como uma brincadeira de criança, a infância encontra-se na berlinda ao ser submetida constantemente à lógica medicalizante. A psiquiatria e, mais especificamente, a pediatria e a neuropediatria demonstram que, diante de qualquer demanda ou queixa, há a determinação da prescrição de medicação psicofarmacológica. Fato que nos leva a problematizações sobre as atuais relações de interesse existente entre a indústria farmacêutica e a medicina, a qual acaba por reforçar esse contexto medicalizante ao cooperar com a expansão de um mercado extremamente rentável que é a venda de medicamentos psicofarmacológicos. Há uma construção de um discurso proposital, um artifício da indústria farmacêutica, que gera a noção de tratamento químico como uma necessidade interventiva e, em determinados momentos, até vitalícia, na qual se consideram determinadas subjetividades como sofrimentos psíquicos que devem ser corrigidos a partir da contenção química.

Diante do cenário apresentado, compreende-se que medicar a criança é uma forma de silenciá-la para que ela possa ser inserida em um meio, no caso a escola. De um ambiente que deveria constituir-se para o desenvolvimento de potencialidades, a escola assume a função de asfixiadora de subjetividades, pois não considera a diversidade enquanto pluralidade da existência humana, mas como diferença anormal que deve ser medicada a fim de ser enquadrada e ajustada aos demais.

Envolvido nas armadilhas da lógica medicalizante, o mercado cria estratégias que disseminam a concepção de que a medicação é algo comum também na infância e os efeitos do processo de medicalização da vida já podem ser constatados quando se identifica o medicamento como mais um componente dos acessórios observados no material escolar. Conforme comenta Monteiro (2007, p. 71): "atualmente, não é raro encontrar em mochilas escolares uma caixa de Ritalina® dividindo o espaço com o lanche, os cadernos e as canetas, dandonos a impressão de que, naturalmente, fazem parte do material escolar." Fato que acaba provocando a concepção de que a medicação é algo natural ao demonstrar como é possível remediar situações indesejadas e naturalizar no indivíduo desde sua infância a possibilidade de esconder mal-estares psíquicos, sofrimentos e problemas emocionais por meio do uso de medicamentos psicofarmacológicos.

 

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Endereço para correspondência:
Luana Paula Vizotto
Rua Padre Osnir, 1084 Vila Santana
Cambará/PR CEP: 86390-000.
E-mail: luana_vizotto@hotmail.com

 

 

Recebido em 30.Ago.16
Revisado em 20.Dez.16
Aceito em 26.Abr.17

 

 

Luana Paula Vizotto, Graduação em Letras pela Universidade Estadual do Norte do Paraná (UENP), Graduação em Psicologia pelas Faculdades Integradas de Ourinhos (FIO), Bolsista de Iniciação Científica pela Fundação de Amparo à Pesquisa (FAPESP), Especialização em Saúde Mental pela Universidade Estadual de Londrina (UEL) (conclusão setembro/2017), é Professora de Língua Portuguesa no Colégio "O Caminho" (Cambará/PR) e Professora de Psicologia Organizacional e Social no Colégio Estadual Rui Barbosa (Jacarezinho/PR). E-mail: luana_vizotto@hotmail.com
Daniele de Andrade Ferrazza, Doutora e Mestre em Psicologia pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Faculdade de Ciências e Letras, pela Universidade Estadual Paulista (UNESP/Campus de Assis-SP), é Docente da disciplina de Psicologia Social na Universidade Estadual de Maringá (UEM). E-mail: daferrazza@uem.br

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