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Estudos de Psicologia (Natal)

versão impressa ISSN 1413-294Xversão On-line ISSN 1678-4669

Estud. psicol. (Natal) vol.23 no.1 Natal jan./mar. 2018

http://dx.doi.org/10.22491/1678-4669.20180008 

ASPECTOS PSICOSSOCIAIS DAS INTERAÇÕES ENTRE PESSOAS E DIVERSOS CONTEXTOS SOCIOAMBIENTAIS

DOI: 10.22491/1678-4669.20180008

 

Estudos em psicologia e áreas interdisciplinares sobre a população em situação de rua

 

Studies in psychology and interdisciplinary areas on the street population

 

Estudios en psicología y áreas interdisciplinares sobre la población en situación de calle

 

 

Felipe Mattiello; Wilsa Maria Ramos

Universidade de Brasília

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A pesquisa teve como objetivo analisar a produção científica sobre a população em situação de rua referente às pesquisas realizadas no Brasil por psicólogos e outros profissionais publicadas entre 2006 e 2015. Utilizando-se a base de dados SciELO, identificaram-se 31 artigos que cumpriram os critérios e que foram classificados em três categorias: (1) relações familiares e processos identitários; (2) experiências, modo de vida e estratégia de superação; e (3) políticas públicas, agentes e agências de apoio psicossociais. Foram analisados os objetivos, os participantes das pesquisas, os resultados, as conclusões e recomendações. Concluiu-se que há um número pouco expressivo de artigos publicados, embora abordem o tema a partir de múltiplos olhares e áreas do conhecimento. É fundamental tratar o tema de forma articulada com questões referentes às políticas públicas, saúde, educação para que haja efetividade das ações de sensibilização e mobilização social da sociedade civil, dos gestores e formuladores de políticas.

Palavras-chave: população em situação de rua; psicologia do desenvolvimento humano; políticas públicas; interdisciplinaridade.


ABSTRACT

This research aimed to analyze the scientific production referring research developed in Brazil regarding populations who live in street context. We focused on articles done by Psychologists along with other professionals published between 2006 and 2015. The library SciELO was used. We identified 31 papers that met the criteria and split them into three categories: (1) family relationships and identity process; (2) experiences, lifestyle and overcoming strategies; (3) public policies, public agents and agencies of psychosocial support. In this paper were analyzed goals, the participants, the results, the conclusions and the recommendations. It was concluded that there are a few expressive number of published articles although they approach the theme from multiple perspectives and areas of knowledge. It is essential to address the issue in an articulated way with issues related to public policies, health and education so that the actions of awareness and social mobilization of civil society, managers and policy makers are effective.

Keywords: homeless; developmental psychology; public policies; interdisciplinarity.


RESUMEN

La investigación tuvo como objetivo analizar la producción científica sobre la población en situación de calle referente a las investigaciones realizadas en Brasil por psicólogos y otras profesionales publicadas entre 2006 y 2015. Utilizando la base de datos SciELO, se identificaron 31 artículos que cumplieron los criterios y que fueron clasificados en tres categorías: (1) las relaciones familiares y procesos de identidad; (2) experiencias, modo de vida y estrategia de superación; Y (3) políticas públicas, agentes y agencias de apoyo psicosociales. Se analizaron los objetivos, los participantes de las encuestas, los resultados, las conclusiones y recomendaciones. Se concluyó que hay un número poco expresivo de artículos publicados. Es fundamental tratar el tema de forma articulada con cuestiones referentes a las políticas públicas, salud, educación para que haya efectividad de las acciones de sensibilización y movilización social de la sociedad civil, de los gestores y formuladores de políticas.

Palabras clave: población en situación de calle; psicología del desarrollo humano; políticas públicas; interdisciplinariedad.


 

 

A população em situação de rua tem crescido nos últimos anos, fruto do aumento das desigualdades sociais no mundo capitalista e globalizado. Problemas estruturais como a recessão econômica, o desemprego, o fenômeno urbano da migração, as questões relacionadas às fragilidades das políticas públicas na área de desenvolvimento social e saúde têm resultado em condições precárias de vida nos grandes centros urbanos e nos municípios de menor porte (Brito, 2006). A inexistência de uma política intersetorial de saúde e educação integrada a outros serviços de suporte às famílias de populações carentes em situação de vulnerabilidade e risco social também compõe o cenário.

Esse artigo trata da revisão de literatura de estudos sobre a pessoa em contextos de desenvolvimento não normativos, no caso específico, da população em situação de rua. A pesquisa teve início com a preocupação de pesquisadores da área de Psicologia do Desenvolvimento Humano em ampliar e aprofundar a compreensão sobre as questões de desenvolvimento em contextos atípicos. Na fase inicial da pesquisa de levantamento bibliográfico, identificou-se como aspecto relevante que os estudos em Psicologia são realizados de forma interdisciplinar, articulados com as áreas de Serviço Social, Sociologia, Medicina, Saúde Pública e outras. Partindo dos múltiplos olhares sobre o tema, indagamos: como as investigações no campo da Psicologia e áreas afins têm retratado essa população? Em que medida os estudos abrangem as diversas causalidades que produzem e envolvem a pessoa em situação da rua? Por último, questionamos se os estudos realizados têm dado visibilidade às questões críticas vivenciadas pela população em situação de rua.

 

Caracterização da população em situação de rua

No Decreto Presidencial nº 7.053, de 23 de dezembro de 2009, a população em situação de rua é caracterizada por um grupo populacional heterogêneo, que tem em comum a pobreza, os vínculos familiares quebrados ou interrompidos, a vivência de um processo de desfiliação social pela ausência de trabalho assalariado e das proteções derivadas ou dependentes dessa forma de trabalho, sem moradia convencional regular e tendo a rua como o espaço de moradia e de sustento.

Nota-se que a caracterização da população em situação de rua adota conceitos e enfoques diversos se tomarmos como origem as pesquisas ou as políticas públicas. Por exemplo, os pesquisadores Cirino e Alberto (2009) caracterizam a rua como: lócus laboral, meio de sustento, onde as famílias trabalham de dia e à noite retornam para suas casas; lócus moradia de famílias, onde famílias inteiras vivem, embaixo de viadutos, em áreas desocupadas; e lócus de vida para indivíduos que já romperam os laços familiares ou estão em processo de rompimento. Para Neiva-Silva, Koller e Noto (2012), crianças e adolescentes em situação de rua, em sua maioria, não vivem integralmente na rua, mas passam o dia trabalhando e dormem na casa de pais ou parentes.

Percebe-se que a caracterização dessa população tem uma tênue variação dependendo do foco de análise de quem as define. As primeiras definições de Cirino e Alberto (2009) e Neiva-Silva et al. (2012) focam principalmente na relação laboral, ou mesmo utilitária, da rua, apesar de considerar-se também como espaço de ocupação de famílias ou de indivíduos em situações de extrema pobreza e desfiliação familiar. As definições apresentadas pelo Ministério da Saúde (MS) e pelo Ministério de Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS), por sua vez, incluem outras características, tais como a heterogeneidade do grupo, o nível socioeconômico e o uso de abrigos e de moradias provisórias. É importante ter um olhar crítico sobre as variações conceituais, pois, determinada definição pode incluir ou excluir grupos sociais que também estão em situação de vulnerabilidade social e demandam recursos e apoios governamentais, por exemplo, poderiam ser excluídos da política pública aqueles que não dormem na rua, mas que dela extraem o seu sustento.

Os estudos demonstram que a pobreza tem efeitos devastadores em todos os sentidos da vida da população em situação de rua (Rosa, Secco, & Brêtas, 2006). As situações de vulnerabilidade social, principalmente, relacionadas ao fenômeno da pobreza, afetam o desenvolvimento biopsicossocial da pessoa em situação de rua (Bellenzani & Malfitano, 2006), tendo forte impacto na vida de crianças e de adolescentes que estão em formação de seu caráter e de sua personalidade. As condições de pobreza e de miséria estão imbrincadas em histórias de ruptura de vínculos da pessoa com as instituições família, rede sociais de apoio, escola formal e mercado de trabalho (Alcantara, Abreu, & Farias, 2015). Outras questões como estereotipias, preconceitos e estigmas da sociedade e dos agentes do Estado que rotulam essa população como marginais, doentes, drogados, loucos, sujos, mendigos e delinquentes também são aspectos agravantes que restringem de forma drástica as possibilidades de reintegração à sociedade (Alcantara et al., 2015; Simon & Helena, 1996). Como colocam Moura Jr., Ximenes e Sarriera (2014), esses símbolos dos estigmas anulam quaisquer outras formas de representação do Eu destas pessoas, prejudicando a imagem que o indivíduo tem de si. Para os autores, estes estigmas têm impactos negativos profundos no bem-estar psicológico destas pessoas, acarretando em perdas qualitativas no exercício de atividades como estudo ou trabalho. Além disso, essa negação à condição de cidadão leva a um profundo sofrimento psíquico, que influencia de forma negativa a formação da identidade dessas pessoas (Alcantara et al., 2015). De acordo com Moura Jr. e Ximenes (2016), esse reconhecimento de si com adjetivos negativo acaba por propiciar comportamentos autodestrutivos, como o abuso de substâncias, ocorrendo uma manutenção do Eu desta pessoa em situação de rua como alguém que é definido apenas pelos seus estigmas. Essas questões devem ser colocadas no âmbito da formação dos vários atores que compõem a rede de saúde, abordando o tema nas dimensões social e cultural, e não apenas culpando o indivíduo. Sobre o uso de substâncias lícitas, Rosa et al. (2006) colocam que o álcool é figura presente nas narrativas destas pessoas e, inclusive, dos profissionais de saúde que os atendem. O uso do álcool é visto como um elemento determinante de entrada e de permanência na rua, tornando necessário um olhar das políticas públicas para esse aspecto. A pesquisa realizada pelo então Ministério de Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS, 2009) também problematiza a questão do álcool para essa população destacando o agravante de ser usado como "anestésico" necessário para amenizar o frio ou mesmo fazer esquecer as realidades adversas.

A presente pesquisa parte da perspectiva teórica da Psicologia do Desenvolvimento Humano (Bronfenbrenner, 2005; Dessen & Bissinoto, 2014), a qual, por definição, é uma ciência que articula diferentes áreas do conhecimento, tais como a Psicologia, a Biologia, a Educação, a Sociologia, entre outras, e propõe estabelecer diálogos e discussões para a construção de conhecimentos de forma multidisciplinar, sem se fechar em uma única verdade. De base conceitual ampla, tem como pressupostos básicos que "o comportamento se desenvolve em um contexto e não pode ser separado deste e que, em qualquer nível de análise, uma unidade de atividade não pode ser entendida à parte do sistema em que está inserida" (Dessen & Bissinoto, 2014, p. 27-28). As pesquisas em Psicologia do Desenvolvimento (Papalia & Feldman, 2006) concebem os eventos incomuns na vida das pessoas como não normativos: são eventos que causam grande impacto nos indivíduos por perturbar a sequência esperada do ciclo de vida.

No estudo, adota-se uma visão prospectiva do desenvolvimento humano, compreendendo que em contextos não normativos, também há desenvolvimento humano por meio das relações proximais entre pares e díades onde podem ocorrer transformações e escolhas que modificam as trajetórias de vida.

Considerando a relevância do tema, o objetivo geral consiste em analisar a produção científica sobre a população em situação de rua referente às pesquisas realizadas no Brasil por psicólogos e áreas afins publicadas no período de 2006 a 2015, e os específicos são: (1) elaborar as categorias e unidades de análise 2) identificar os objetivos, os participantes das pesquisas, os principais resultados e as recomendações para futuras pesquisas. A escolha do ano base de 2006 justifica-se por ter sido o ano em que foi instituído o Grupo de Trabalho Interministerial responsável pela elaboração de propostas de políticas públicas para a População em Situação de Rua. A revisão de literatura pretende dar organicidade à rede de conhecimentos produzidos e constituídos pelos múltiplos olhares dos pesquisadores das áreas citadas anteriormente.

 

Método

O método foi a revisão de literatura. A revisão de literatura é um estudo que parte da análise da produção bibliográfica de outros autores de uma determinada área temática, considerando um interstício temporal, e produz uma visão geral ou um relatório do estado-da arte sobre um tópico específico. Essa produção pode contemplar novas proposições, métodos bem como os temas e subtemas de maior ou menor frequência de estudo na literatura selecionada (Noronha & Ferreira, 2000). Esse tipo de método permite uma análise da literatura baseada em publicações, que atendem às perguntas e aos objetivos da pesquisa, e gera como produto final uma análise crítica e pessoal do pesquisador.

A busca foi realizada no banco de dados Scielo, o qual foi escolhido por ser uma das bases mais difundidas no ambiente acadêmico, além de contar com várias revistas de renome no cenário da Psicologia nacional.

O método contempla três etapas: triagem inicial, secundária e categorização.

Triagem Inicial por Critérios de Seleção

Na fase de levantamento bibliográfico, optamos por fazer a busca usando a palavra "rua" para obter o maior número de artigos. Os critérios de seleção de inclusão dos artigos foram: 1) ano de publicação (2006 a 2015); 2) formação acadêmica dos autores que deveriam ter, pelo menos, um da Psicologia; 3) o objetivo da pesquisa que deveria ter como foco central a população em situação de rua e os eventos e episódios que marcam sua trajetória. Os artigos excluídos abordavam a temática "população em situação de rua" como tema secundário. Não se incluiu na busca teses e dissertações para garantir-se a coerência da pesquisa de campo interdisciplinar da psicologia e áreas afins. Também, limitou-se à seleção de artigos de periódicos nacionais, embora pudesse aceitar artigos em outro idioma desde que a pesquisa tivesse sido realizada no Brasil. Baseando-se nos resumos e palavras-chave, foram selecionados 34 artigos que, a princípio, se encaixavam nos critérios e nos objetivos da pesquisa.

Triagem Secundária

Os 34 artigos foram lidos integralmente e resumidos em uma tabela, incluindo todos os dados da pesquisa: ano de publicação, perspectiva teórica, categoria e subcategoria, objetivos, fatores de análise, método e participantes da pesquisa, resultados, conclusões e recomendações. Entre estes, ainda foram excluídos três por não cumprirem os critérios de seleção, permanecendo 31. Para a elaboração deste artigo, selecionamos somente os itens objetivos, categorias de análise, participantes, resultados, conclusões e recomendações.

Categorização

Nesta etapa foi realizada a classificação dos artigos por categorias e unidades de análise, possibilitando a organização da informação de forma sintética e apropriada para a continuidade do trabalho. Esta atividade faz parte dos objetivos da pesquisa.

 

Análise e discussão dos resultados

Foram identificadas três categorias e suas respectivas unidades de análise, a saber: (Cat. 1) Relações familiares e processos identitários, compreendo como unidades de análise os eventos de ruptura de laços familiares, elementos da construção ou desconstrução da identidade social e da personalidade, interação mãe-filho; (Cat.2) Experiências, modo de vida e estratégias de superação, compreendendo como unidades de análises os relatos de experiências sobre o modo de vida, hábitos, rotinas, práticas sociais e saberes tecidos no contexto de rua; (Cat.3) Políticas públicas, agentes e agências de apoio psicossociais, compreendendo as políticas públicas, governança, direitos e instituições sociais que formam a rede de proteção e de apoio e intervenção psicossocial. O processo de categorização possibilitou gerar a tabela síntese dos artigos por categoria (Figura 1).

 

 

Cat. 1 – Relações Familiares e Processos Identitários

Na categoria 1 foram classificados nove artigos que incluem as unidades de análise relacionadas à: relações familiares, eventos e episódios de ruptura com os laços familiares, elementos da construção/desconstrução da identidade social e da personalidade, interação mãe-filho.

Maciel e Rosemburg (2006) estudaram a relação mãe-bebê e suas implicações no desenvolvimento da personalidade da criança e do jovem. A pesquisa foi realizada com cinco jovens que viveram nas ruas. Os resultados mostraram uma influência da rua na formação da personalidade dessas pessoas, que apresentaram características de negação e de idealização e sentimento de rejeição.

Brito (2006) buscou caracterizar um personagem e discutir quem são os moradores de rua e suas origens, o lugar dessas pessoas no espaço da miséria e o projeto de saúde mental de Belo Horizonte. O sujeito estudado foi um homem em situação de rua de Belo Horizonte. Considerou-se a cidade como local de tensão e a pessoa em situação de rua como figura excêntrica e bizarra. O caso em análise apontou que as pessoas em situação de rua produzem subjetivação e que o seu atendimento é um desafio para os serviços de saúde.

Paludo e Koller (2008) visaram descrever as características familiares de 17 jovens em situação de rua a partir da percepção destes. Analisaram-se as diferentes configurações familiares, o contato com a família e os motivos para saída deste contexto. Os resultados apontaram que 6% relataram não conhecer nenhum familiar, 29% relataram ir para casa dormir todos os dias e os demais alegaram ter contato esporádico com a família. Recomenda-se que haja atendimento e apoios social e afetivo para essas famílias por parte das instituições de apoio, de tratamento e de acolhimento. O estudo de Barros, Lima, Frej e Melo (2009) também analisou as dinâmicas familiares que impactam na escolha da rua como moradia e as estratégias de intervenção a serem realizadas junto à família. Os resultados apontaram que a falta de uma família com estruturas básicas de apoio tem impacto significativo na trajetória e nas escolhas de vida dessas pessoas. Recomenda-se a criação de espaços de conversa mediado por profissionais qualificados envolvendo todos os membros da família. Espíndula, Trindade e Santos (2009) analisaram as representações de 11 mães, atendidas pelo Conselho Tutelar, sobre seus filhos que estão em situação de rua e suas estratégias para lidar com a situação. Analisaram-se as relações familiares e suas influências no desenvolvimento de princípios éticos e morais, o controle parental e os modos de socialização. Para as mães, o que leva os filhos à rua está relacionado às características pessoais ou internas, às amizades e ao meio de convívio, à falta de controle, à necessidade de obter bens e às questões religiosas.

Minervino, Dias, Silveira e Roazzi (2010) analisaram o desenvolvimento de competências emocionais em 67 crianças, que exercem trabalho informal nas ruas de cidades do Nordeste brasileiro. Investigaram-se fatores como o reconhecimento das emoções baseando-se nas expressões faciais, a compreensão de causas externas da emoção, a compreensão das emoções baseadas em crenças, a compreensão de emoções conflitivas e a compreensão de emoções morais. Os resultados apontaram facilidade em compreender emoções provocadas por causas externas em detrimento às provocados por desejos internos.

Matias (2013) analisou os processos de construção de identidade de jovens em situação de rua. A observação foi realizada em uma rua da cidade de Natal, frequentada por 14 jovens. O principal fator de análise foi o self como construído dentro das relações sociais. A identidade construída pelos jovens tem estreita dependência da avaliação do seu próprio papel na produção de circunstâncias em sua vida. Recomendam-se ouvir e valorizar a fala desses jovens nos ambientes de pesquisa. Ferreira, Littig e Vescovi (2014) analisaram a perspectiva de futuro entre crianças e adolescentes abrigados após sua vivência em situação de rua e o que os conduziu à rua. Participaram 14 crianças e adolescentes de instituições públicas de Vila Velha. A análise apontou o contexto institucional como aversivo para o desenvolvimento dessas crianças. Alguns dos motivos de separação da família foram a exposição às violências física e moral e o abuso de drogas lícitas e ilícitas. Recomendam-se melhor acesso à qualificação profissional e educacional, investimento em moradias populares e em infraestrutura básica nos bairros menos favorecidos e em projetos sociais e educacionais.

Montiel, Bartholomeu, Carvalho e Pessotto (2015) investigaram a prevalência de tendências de personalidade patológicas entre moradores de rua em comparação com outros grupos. Um questionário foi aplicado em 72 pessoas em situação de rua, 74 pacientes psiquiátricos e 250 estudantes universitários não psiquiátricos. Os resultados apontaram que a população em situação de rua possui tendência para desconfiança, impulsividade, necessidade de atenção e comportamentos excêntricos. Esse grupo ainda teve pontuação maior que os outros dois nas escalas Paranoide, Antissocial, Histriônico e Esquizotípico. Recomendam-se ações governamentais que integrem Serviços de Assistência Social, Psicologia e Psiquiatria na busca de um cuidado integral.

Discussão da Cat. 1 - Relações Familiares e Processos Identitários.Entre os estudos encontrados nessa categoria, destacam-se pesquisas de abordagem clínica no atendimento às pessoas em situação de rua, utilizando-se de análise da subjetividade e a psicanálise, a psicologia clínica e a psicologia do desenvolvimento. Também foi estudado as relações familiares, as características de famílias em situação de rua e suas dinâmicas. Outros estudos incluídos nessa categoria foram o desenvolvimento de competências emocionais, a noção de identidade e lugar das pessoas em situação de rua e como se relacionam com os moradores locais, a situação atual e as perspectivas de futuro, também discutem os fatores que levaram as pessoas às ruas e características de personalidade.

Conforme mostra o estudo, é marcante a amplitude dos estudos abrangendo desde aspectos de formação da personalidade da criança e dos jovens até as relações destes com algumas instituições, como por exemplo o Conselho Tutelar.

Cat. 2: Experiências, Modos de Vida e Estratégias de Superação

Na Categoria 2, foram classificados 11 artigos que abordam relatos de experiências sobre o modo de vida, hábitos, rotinas, práticas sociais e saberes tecidos no contexto de rua.

Roazzi, Dias e Roazzi (2006) investigaram como, em crianças e em adolescentes, se desenvolve a representação das desigualdades socioeconômicas. A pesquisa foi aplicada em 30 crianças de classe média e 55 de classe baixa e analisou-se a experiência sociocultural na representação da desigualdade econômica. Os resultados demonstram que as crianças de diferentes contextos constroem mundos consensuais diferentes no que diz respeito às representações de status social e de remuneração das profissões.

Mizoguchi, Costa e Madeira (2007) tiveram como objetivo relacionar a posição dos moradores de rua com a lógica capitalista em três instâncias: espaço urbano, mídia e consumo. O estudo analisou a estigmatização das pessoas ditas socialmente improdutivas. A existência do espaço urbano é a maneira da pessoa ocupar a cidade, a midiática se dá por meio de meios de comunicação alternativos aos de massa e a do consumo se dá no deslocamento da posição de pedinte para a de prestador de serviço, que acaba por ser uma forma de inserção social.

Sousa e Alberto (2008) visaram compreender as condições sócio históricas e culturais subjacentes à relação do trabalho precoce com o processo de escolarização das crianças e dos adolescentes. Foram entrevistadas 21 crianças e adolescentes de 10 a 14 anos, analisando-se gênero, idade, escolaridade, trabalho e perspectivas de futuro. Os resultados apontaram maior presença de meninos no contexto de trabalho de rua, sendo que mais de 50% estava fora da idade-série. A idade de ingresso variou de 5 a 14 anos e a jornada média foi de 5 a 6 horas por dia, chegando até a 8 horas. Sobre o mesmo tema, Cirino e Alberto (2009) identificaram os fatores que motivam o uso de drogas entre trabalhadores precoces em condição de rua. Foram entrevistadas seis crianças e adolescentes trabalhadores precoces de João Pessoa, com foco em aspectos macro e microestruturais da pessoa trabalhando nas ruas, a complementação da renda como motivo para o trabalho infantil e as políticas públicas. Apontou-se que as crianças e adolescentes têm uma visão de futuro que é intangível para elas.

Matias e Francischini (2010) relataram o processo de entrada em campo de uma pesquisa etnográfica realizada com a observação-participante de 11 jovens. Analisaram-se os processos de socialização e práticas sociais. Aponta-se que a pesquisa etnográfica com base na observação-participante é pertinente para estudos que buscam o pensar das relações sociais. Matias (2011), em outro artigo decorrente do primeiro, estudou a relação entre jovens em situação de rua, as suas formas de ocupação espacial e as condições de sociabilidades decorrentes. O autor considera a rua como portadora de história, de condição social e como espaço de produção de formas de existência. Os signos produzidos pelos jovens parecem não ter espaço no contexto de interação com a comunidade local visto que não conseguem produzir confiança e familiaridade aos moradores locais.

Alvarez, Alvarenga e Rina (2009) investigaram o processo de "encontro transformador" entre dois moradores de rua e uma professora. Analisaram a resiliência, o encontro transformador, o morar na rua como situação excludente, os modos do morar na rua e a relação dos moradores e da professora como ponto de apoio. Os simbolismos dos desenhos e colagens feitos durante a pesquisa remetiam às mudanças ocorridas a partir do encontro transformador. Recomenda-se que haja maior envolvimento de outros segmentos da sociedade brasileira nessa causa. Outro estudo de Alvarez, Alvarenga, Sommerman e Rina (2011) teve por objetivos construir e aplicar um recurso metodológico denominado "encontro transformador", abordando o ágape, ou amor ao próximo e a resiliência. A pesquisa foi realizada com cinco pessoas que eram ou foram moradores de rua, cinco pessoas que atuam em albergues ou casas de convivência de instituições governamentais ou ONG's e cinco técnicos da Secretaria de Assistência Social de São Paulo. Aponta-se que tanto os moradores de rua quanto os outros participantes da pesquisa puderam, por meio do encontro transformador, revisitar suas próprias histórias de vida, se tornando agentes ativos na reconstrução de sua própria história.

Neiva-Silva et al. (2012) investigaram os fatores associados ao uso frequente e pesado de drogas entre crianças e adolescentes em situação de rua. Foram analisadas 2.807 respostas de crianças entre 10 a 18 anos de idade de 27 capitais do Brasil. Os resultados apontaram que 47,7% das crianças usam drogas de modo frequente. Os fatores que predisseram o não-uso foram: ter idade entre 9 e 11 anos, estar na rua há menos de um ano, passar de uma a oito horas por dia na rua com a presença de um membro da família, não dormir na rua, ter laços familiares, ir à escola e não sofrer violência doméstica.

Kunz, Heckert e Carvalho (2014) visaram compartilhar análises sobre os modos de vida da população em situação de rua, evidenciando as estratégias de vida. As análises incluíram a construção de territórios existenciais, o campo micropolítico e os modos de vida como fruto das relações sociais na forma de táticas, de astúcias e de estratégias. Os resultados apontaram que essas pessoas reinventam espaços e objetos no contexto da rua, quebram barreiras ao ressignificá-los, porém, vivem sob condições de vulnerabilidades onde imperam as práticas de intolerância, de violência e de violações de direitos humanos e políticos.

Cardoso e Becker (2014) realizaram uma pesquisa sobre adolescentes em situação de rua com potencial para altas habilidades/superdotação, analisaram os fatores como motivação, criatividade, liderança, entre outros. Os adolescentes mostraram potenciais para altas habilidades e superdotação, mas não se veem como talentosos, o que pode ser resultado da influência das desvantagens econômicas e da percepção negativa de si e da sociedade. Para os autores, torna-se necessário que se rompa o pensamento estereotipado e marginalizado, que não considera os aspectos saudáveis desse grupo social.

Discussão da Cat. 2 - Experiências, Modos de vida e Estratégias de Superação. Uma das abordagens observada na categoria 2 diz respeito ao estudo dos saberes sociais construídos no contexto da rua, posição que assume que a rua é um contexto oportuno para o desenvolvimento de estratégias de enfrentamento das mais variadas naturezas. Estes aspectos também estão aliados com as formas de resistência de ocupar o espaço urbano que, muitas vezes, vai contra os contratos sociais estabelecidos, tomando para si um espaço ignorado por outros. Outro aspecto importante é a quantidade de jovens usuários de drogas neste contexto, o que acaba se tornando uma porta de entrada para atos infracionais, representando um sinal de alerta aos gestores educacionais e para o sistema socioeducacional.

Outro fator que amplia a caracterização da população em situação de rua é o perfil de pessoas com superdotação e altas habilidades, apontando que a rua é um local onde diversos perfis de jovens transitam, mesmo que não se reconheçam como tal. (Cardoso & Becker, 2014) Todo esse potencial pode ser convertido em novas formas de aprendizado e desenvolvimento de estratégias de enfrentamento, frente aos mais variados desafios impostos pelas condições de vida na rua.

Cat. 3: Políticas Públicas, Agentes e Agências de Apoio Psicossociais

Na Categoria 3, foram classificados 11 artigos que abordam as temáticas políticas públicas, governança, direitos e instituições sociais que formam a rede de proteção e de apoio e intervenção psicossocial.

Bellenzani e Malfitano (2006) apresentaram o relato de uma experiência de intervenção psicossocial com 18 jovens em situação de exploração sexual do Projeto Rotas Recriadas, em Campinas. Analisaram as vulnerabilidades sociais e psíquicas, redes de apoio psicossocial, contexto da exploração sexual comercial e políticas intersetoriais. Os resultados apontaram precariedade de equipamentos sociais nas zonas periféricas e identificaram vulnerabilidades relacionadas à exploração sexual e à exposição à violência. Recomenda-se implantação de políticas públicas e de diálogos permanentes com a sociedade para a criação de estratégias de enfrentamento.

Cerqueira-Santos et al. (2006) analisaram a opinião de 12 policiais militares de Porto Alegre sobre crianças em situação de rua. Tiveram como focos o preconceito, a violência, o uso de drogas, a família e a educação dessas crianças. Os resultados apontaram que os critérios que os policiais utilizam para reconhecer uma criança em situação de rua são a aparência, as atividades desenvolvidas na rua, o comportamento, a freqüência com que as crianças estão na rua, o local de permanência e a relação da criança com a família.

Souza, Silva e Caricari (2007) realizaram um diagnóstico das instituições públicas e privadas e as entidades sociais que têm como público-alvo as pessoas adultas em situação de rua na cidade de São Paulo. Analisaram a exclusão como transição entre integração e vulnerabilidade, a promoção da saúde e o controle social do SUS. Os resultados apontaram que as instituições e a população de modo geral veem a pessoa em situação de rua como um ser desprovido de história, de vontades, de valores e de costumes. Recomendam-se melhores parcerias, ações integradoras e intersetoriais entre os vários atores.

Macerata e Passos (2007) investigaram a prática em um serviço de "abordagem de rua" da política de assistência social com jovens que frequentam a Rodoviária central de Porto Alegre. Analisaram a relação entre a sociedade e sua margem e os efeitos de cuidado e controle na relação com esses jovens. Os resultados mostraram que os jovens correm de policiais presentes no local, com medo, mas não correm dos assistentes do serviço, sendo que ambos pertencem a instituições públicas de cuidado. É necessário buscar entender essas relações multifacetadas e dinâmicas do contexto, e isso só pode ser feito por meio do contato direto, visto que a linha entre o cuidado e o controle é tênue.

Morais et al. (2010) discutiram a temática da promoção de saúde e de seus conceitos e relataram uma intervenção em um serviço de saúde com adolescentes em situação de rua em Porto Alegre. Foram abordadas características do atendimento, rotina, objetivo, relacionamento com os adolescentes, concepções de saúde e doença, encaminhamentos, adesão ao tratamento, percepção sobre o papel das instituições na vida dos adolescentes. Houve descrição da relação entre os agentes e os pacientes como algo positivo. Os atendimentos oferecidos referem-se a AIDS, DSTs, doenças de pele, respiratórias, acidentes e vermes, bem como problemas de dependência química, transtorno de humor e de conduta e deficiência mental.

Macerata, Soares e Ramos (2014) analisaram a temática do apoio e do cuidado em saúde, do território como ambiente vivo, de pessoas como seres relacionais, não isolados, e de políticas públicas. Os resultados apontaram que as equipes de Consultório na Rua ajudam o SUS a prevenir e a promover saúde pelas características territoriais. Nas políticas públicas, lógicas hegemônicas para determinado meio urbano mantém poucas vias de comunicação com a rua. Levar em conta as subjetividades e as territorialidades dessa população, buscando articular as várias dinâmicas presentes no território existencial, deve ser o desafio.

Botelho, Silva, Kassab e Leite (2008) analisaram a afirmação de que os meninos vão para as ruas em busca de saúde mental. Apresenta-se como foco da análise a visão de que o adolescente que vai para as ruas está fugindo de um contexto, como condições de moradia precárias, insalubridade, casa cheia, violência doméstica, fome. Essa situação o leva a fugir do ambiente provocador de danos físicos e psicológicos visando a sua saúde mental. Recomenda-se que sejam ampliados o olhar e a escuta dos profissionais que trabalham no campo da saúde.

Morais e Koller (2012) analisaram a situação atual de nove egressos referente à trajetória de vida e de vinculação institucional de uma instituição de atendimento para crianças e adolescentes em situação de rua. Os resultados apontaram que o momento atual da vida foi avaliado como satisfatório e a instituição frequentada foi avaliada como positiva. Os jovens mostraram forte vinculação não apenas com a instituição estudada, mas também com outras da rede de atendimento que frequentavam.

Pacheco (2014) discute a sociedade moderna na perspectiva de Bauman e Giddens, com um recorte para a temática das drogas. São tratados os conceitos de capital social e habitus, além das características do SUS e do Projeto Consultório na Rua. Argumenta-se que a droga e seu uso não estão relacionados apenas à substância em si, mas a aspectos socioculturais da contemporaneidade, como razões, crenças e valores. Recomenda-se que o Projeto Consultório na Rua busque parcerias, reelaboração da identidade, desmistificação do estigma da pobreza e combate à exclusão.

Costa et al. (2015) investigaram o cotidiano de gestantes em situação de rua e sua relação com políticas públicas em Santos – São Paulo. Os focos de análise foram a vida na rua, o cuidado e a gestação, os projetos futuros e a rede pública de serviços. Os resultados apontaram que as gestantes não conseguem transformar o desejo em projeto de vida e que conhecem os serviços de saúde, mas acessam-no apenas em casos de urgência. Recomenda-se a construção de políticas intersetoriais que atendam a essa população, criando-se novas formas de atuação, que tenham como foco não apenas o bebê, mas também a mulher, adequando os serviços ao modo de vida dessas pessoas.

Discussão da Cat. 3 - Políticas Públicas, Agentes e Agências de Apoio Psicossociais. A categoria 3 apresentou questões relacionadas a exploração sexual comercial de jovens e adolescentes, trazendo aspectos envolvidos tais como os direitos humanos, saúde mental dessas pessoas e uma análise do contexto social de prática dessa atividade. Outro assunto tratado nessa categoria aborda a relação bilateral estabelecida entre os agentes do estado e/ou instituições públicas ou privadas e a população de rua, na qual se percebe uma percepção construída a partir das formas de relações estabelecidas por ambos. Isso se ilustra na problematização colocada por Cerqueira-Santos et al. (2006), que demonstram uma linha tênue entre o cuidado e o controle, identificada na atuação de Policiais Militares e agentes da rede de serviço de saúde. A saúde mental e políticas públicas, as metodologias de intervenções e seus resultados também foram objeto de análise. Também foram abordadas questões relativas aos abrigos quanto às perspectivas de futuro de seus egressos.

A análise de artigos revelou que as perspectivas teóricas da psicologia e áreas afins têm trazido subsídios importantes para o estudo da população em situação de rua. Os resultados obtidos demonstram que os estudos têm avançado na tentativa de convergir para o fortalecimento das políticas públicas de forma integrada e intersetorial.

 

Conclusões e recomendações

Concluiu-se que há um número pouco expressivo de artigos publicados, embora abordem o tema a partir de múltiplos olhares e áreas do conhecimento, enriquecendo o campo de pesquisa. Ainda assim, se faz necessário ampliar a produção na área visando mobilizar a sociedade para fortalecer as políticas públicas na área. Em termos de visibilidades às causas e problemas vivenciados por essa população, os artigos propiciam ao pesquisador outras leituras e compreensões que buscam evidenciar os preconceitos e estereótipos sobre a população em situação de rua.

Destacamos os artigos que abordam o papel da família no processo de ruptura da criança e apontam a relação mãe-filho como preponderante. Os estudiosos demonstram que há vários fatores que interferem nessa escolha, e que a família não deve ser vista como a vilã que leva as pessoas a quererem ir para as ruas, mas, sim, também, como vítima de um sistema de desigualdades sociais e políticas sociais em construção. Também se ressalta a representação das instituições que acolhem as crianças e os jovens que foram identificadas como restritivas e rotuladoras, retirando a voz dessas crianças e o direito de escolha, fato que se apresenta como um desafio para os gestores públicos.

Embora alguns autores critiquem o papel da escola que não acolhe os jovens em suas necessidades e demandas, não encontramos estudos com o foco no ambiente escolar, nos seus agentes ou nas políticas educacionais. Também não encontramos estudos sobre o papel das igrejas e das religiões no cuidado dessa população, sobre os movimentos sociais e sua relação com os veículos públicos de saúde e nem sobre a questão do racismo vivido por essas pessoas. Houve somente um artigo que estuda as ONGs e seu papel (Alvarez et al., 2011).

Uma questão fundamental para os estudos em psicologia do desenvolvimento humano refere-se aos distintos olhares sobre as concepções do viver e estar na rua para os seus moradores. Alguns estudos demonstram que a situação de rua apresenta um conjunto severo de impossibilidades e de restrições ao desenvolvimento, resultando em sofrimento psíquico e em outras consequências drásticas para a população que ocupa ou vive neste território. Sousa e Alberto (2008) demonstram como o trabalho precoce leva ao cansaço, à exaustão corporal, à adultização precoce, ao prejuízo ao tempo de estudo e ao lazer, e, sobretudo, à violação dos direitos fundamentais de cidadania. Por outro lado, a rua também se mostra, para alguns autores, como um lócus com potencial para o desenvolvimento, como espaço de aprendizagem e construção de saberes. Nos estudos de Cardoso e Becker (2014) sobre adolescentes em situação de rua e altas habilidades, encontramos os sentimentos de liberdade de ir e vir, bem como a expressão da criatividade, demonstrando que as situações de risco social não impossibilitam a manifestação de potencialidades. A rua também foi abordada como espaço que porta histórias de vida e é espaço de produção de formas de existência e subjetivação (Matias, 2011). Também foi discutido que o estar e o viver na rua demandam o exercício das capacidades humanas de ressignificar a sua existência e de buscar um self que diz respeito ao seu status na rua; portanto, essa condição oferece desafios que levam essa população a buscar estratégias de superação e de sobrevivência. Nesses termos, evidencia-se o paradoxo entre as situações de vulnerabilidade das pessoas que vivem na rua e o potencial da rua para o desenvolvimento humano mesmo em condições precárias. Consideramos fundamental o aprofundamento dessa discussão teórica em outras investigações.

Vale destacar que alguns estudos demonstraram um etnocentrismo ao compararem condições de socialização das crianças e de jovens em contextos diferentes de vida, por exemplo, a comparação da representação social de crianças de classe média com crianças em situação de rua. Os avanços nas pesquisas nas Ciências Sociais e Humanas levam-nos a rejeitar os estudos produtores de preconceitos e de estigmas, buscando-se, hoje, novas formas de compreensão dos distintos contextos culturais de desenvolvimento humano. Nesse sentido, consideramos necessário valorizar a construção de teorias sensíveis às questões da humanidade, partindo de pesquisas situadas historicamente que consideram os processos desenvolvimentais relativos às diferentes culturas; às condições de socialização, os materiais simbólicos ou instrumentais utilizados nas mediações, os discursos; sem conduzir à comparações baseadas em raça, gênero ou status social.

E por fim, recomenda-se o desenvolvimento de projetos que visem fomentar a intersetorialidade das políticas públicas, saúde, educação e sociedade civil para que haja melhor efetividade das ações de atendimento a essa população.

 

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Recebido em 10.Ago.17
Revisado em 27.Nov.17
Aceito em 20.Abr.18

 

 

Felipe Mattiello, é graduando em Psicologia e bolsista do Projeto Observatório de Saúde de Populações em Vulnerabilidade, ObVul, na Universidade de Brasília(UnB).
Wilsa Maria Ramos, Doutora em Psicologia do Desenvolvimento Humano e Saúde pela Universidade de Brasília (UnB), Pós-doutorado na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e na Universidad de Barcelona (UB), Espanha, é Professora Adjunta na Universidade de Brasília (UnB). E-mail: ramos.wilsa@gmail.com

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