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Estudos de Psicologia (Natal)

Print version ISSN 1413-294XOn-line version ISSN 1678-4669

Estud. psicol. (Natal) vol.23 no.4 Natal Oct./Dec. 2018

http://dx.doi.org/10.22491/1678-4669.20180036 

DOI: 10.22491/1678-4669.20180036

TEMAS EM POLÍTICAS SOCIAIS: ASSISTÊNCIA SOCIAL E SISTEMA DE GARANTIA DE DIREITOS

 

Da casa destelhada ao amor materno: um estudo sobre a performance do vínculo na Política de Assistência Social

 

From the tileless house to the maternal love: An study on the performance of the bond in the Social Assistance Policy

 

De la casa destelada al amor materno: un estudio sobre la performance del vínculo en la Política de Asistencia Social

 

 

Luciana RodriguesI; Neuza Maria de Fátima GuareschiII

IUniversidade Federal do Rio Grande do Sul
IIUniversidade Federal do Rio Grande do Sul

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O vínculo familiar e comunitário é meta que perpassa todas as normatizações da Política Nacional de Assistência Social. Frente a essa centralidade investigamos, a partir das proposições dos Estudos da Ciência, Tecnologia e Sociedade e da Teoria Ator-Rede, a produção do vínculo em meio às práticas cotidianas de um Serviço de Proteção e Atendimento Integral à Família (PAIF), em um CRAS da cidade de Porto Alegre/ RS. Compreendemos o vínculo não como um mero laço ou associação, mas como um objeto imaterial que ganha existência porque constantemente cultivamos redes de práticas que o produzem. Para visibilizar sua performance construímos um estudo de caso que permite discutir, a partir das contribuições de Bruno Latour, o vínculo como uma conexão que compõe subjetividades. Buscamos, como exercício ético-político, pensar sobre as práticas do campo da Assistência Social de modo a ver mais possibilidades do que impossibilidades ao trabalho cotidiano.

Palavras-chave: performance; vínculo; assistência social; psicologia; teoria ator-rede.


ABSTRACT

The family and community bond is a goal that pervades all the norms of the National Policy of Social Assistance. In view of this centrality, we have investigated, from the propositions of the Science, Technology Studies and the Actor-Network Theory, the production of the bond in the daily practices of a Service of Protection and Integral Assistance to the Family (PAIF), in a CRAS of Porto Alegre City/ RS. We understand bond not as a mere link or association, but as an immaterial object that gains existence because we constantly cultivate networks of practices that produce it. To visualize its performance, we constructed an case study that allows us to discuss, from the contributions of Bruno Latour, the link as a connection that composes subjectivities. We seek, as an ethico-political exercise, to think about the practices of the field of Social Assistance in order to see more possibilities than impossibilities to daily work.

Keywords: performance; bond; social assistance; psychology; actor-network theory.


RESUMEN

El vínculo familiar y comunitario es meta que atraviesa todas las normatizaciones de la Política Nacional de Asistencia Social. Frente a esa centralidad investigamos, a partir de las proposiciones de los Estudios de la Ciencia, Tecnología y Sociedad y de la Teoría Actor-Red, la producción del vínculo en medio de las prácticas cotidianas de un Servicio de Protección y Atención Integral a la Familia (PAIF), em un CRAS de la ciudad de Porto Alegre / RS. Comprendemos el vínculo no como un mero enlace o asociación, sino como un objeto inmaterial que gana existencia porque constantemente cultivamos redes de prácticas que lo producen. Para visibilizar su performance construimos un estudio de caso que permite discutir, a partir de las contribuciones de Bruno Latour, el vínculo como una conexión que compone subjetividades. Buscamos, como ejercicio ético-político, pensar sobre las prácticas del campo de la Asistencia Social para ver más posibilidades que imposibilidades al trabajo cotidiano.

Palabras clave: performance; vínculo; asistencia social; psicología; teoría del actor-red.


 

 

Os vínculos familiares e comunitários constituem um operador central na Política de Assistência Social. Centralidade que podemos visibilizar na proposição que afirma o fortalecimento desses vínculos como uma das "metas que perpassam todas as normatizações da política nacional de assistência social" (Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome [MDS], 2012b, p. 94). Assim, os encontramos referenciados em diferentes documentos que constituem a Política (Lei n. 8.742, de 7 de dezembro de 1993; MDS, 2004, 2005; 2012a; 2012b; 2013). Além disso, a relevância do tema se apresenta, ainda, na materialização de um documento específico, o Caderno denominado "Concepção de Convivência e Fortalecimento de Vínculos" (MDS, 2013), lançado pelo MDS1 "destinado a gestores e trabalhadores do Sistema Único de Assistência Social – SUAS e às redes de articulação da proteção social básica nos territórios, além de órgãos de controle" (MDS, 2013, p. 7).

Também é importante destacar que a menção dos vínculos familiares e comunitários é frequentemente acompanhada pela necessidade de seu fortalecimento. Esse objetivo aparece tanto no âmbito da proteção social básica, cujo serviço de referência é o Serviço de Proteção e Atendimento Integral à Família (PAIF), localizado no Centro de Referência de Assistência social (CRAS), quanto na Proteção Social Especial, que oferta o Serviço de Proteção e Atendimento Especializado a Famílias e Indivíduos (PAEFI), em unidades dos Centros de Referência Especializados de Assistência Social (CREAS).

Embora o campo das práticas socioassistenciais conte com inúmeros trabalhos que abordam a Política, como Cardoso Junior e Jacooud, (2005); Couto (2004; 2009) e que discutem a atuação da Psicologia nesse território, como Ximenes, Paula e Barros (2009); Pedro e Moreira (2013); Senra e Guzzo (2012); Motta e Scarparo (2013); Miron e Guareschi (2017), ao realizarmos uma pesquisa utilizando os descritores "vínculo e assistência social", tanto no sistema de busca Scielo, como no Google Acadêmico, não encontramos referências que discutam prioritariamente o tema – além de duas de nossas publicações anteriores (Rodrigues & Guareschi, 2018; Rodrigues, Guareschi, & Cruz, 2013) – aspecto que aponta para a relevância desse trabalho, visto que, como mencionamos acima, o fortalecimento de vínculos é central na Política em questão.

A percepção dessa centralidade levou ao desenvolvimento de uma pesquisa que, ao circunscrever o vínculo como objeto da Política Nacional de Assistência Social (PNAS), buscou rastrear e visibilizar as redes de práticas heterogêneas pelas quais esse objeto é performado (Rodrigues, 2017). Desse modo, como um desdobramento da referida pesquisa, o objetivo desse artigo é dar visibilidade e discutir a produção/performance do vínculo, no âmbito da PNAS, através da construção de um estudo de caso produzido a partir da inserção da primeira autora no cotidiano de trabalho de um CRAS da cidade de Porto Alegre/RS.

Um movimento analítico que não tem a pretensão de desenvolver análises generalistas, discutindo a totalidade das práticas do campo de atuação das equipes dos PAIFs, situados em unidades do CRAS de nosso país. Tão pouco, apoiar-se na lógica do exemplo que, segundo Annemarie Mol (2008b), ao referir-se a uma explicação, a ilustração de um argumento já dado, visa apenas corroborar o que foi pensado anteriormente. Em contraponto, seguimos as contribuições da autora escolhendo o estudo de caso como ferramenta que nos auxilia pensar práticas sempre muito bem localizadas no tempo e no espaço, mas que, no entanto, não restringem a relevância da discussão de pesquisa a um único local. Portanto, o estudo de caso torna-se uma potente ferramenta que amplia a abrangência da pesquisa ao oferecer pontos de contraste e comparação para diferentes locais e situações. Como nos aponta Mol (2008b):

A case study is of wider interest as becomes a part of a trajectory. It offers points of contrast, comparison or reference for other sites and situations. It does not tell us what to expect – or do – anywhere else, but it does suggest pertinent questions. Case studies increase our sensitivity2. (Mol, 2008b, p. 9).

Assim, neste trabalho, especificamente, nossa proposta é aumentar nossa sensibilidade para determinados pontos da rede que compõe os serviços socioassistenciais no que diz respeito à performance do vínculo e a produção de subjetividade.

Para pensar a produção do vínculo, em meio às práticas cotidianas de um PAIF, essa investigação partiu das proposições dos Estudos da Ciência, Tecnologia e Sociedade (CTS) e da Teoria Ator-Rede (TAR). Nesse caminho, utilizamos dois operadores centrais para construção de uma política investigativa. A primeira é a noção de rede (Latour, 2012) que, a partir da TAR, se configura através de associações de séries heterogêneas de elementos (que podem ser humanos e não humanos, materiais e imateriais) e que não se constituem como entidades estáveis, ou seja, meramente conectadas sem a possibilidade de transformação. Ao contrário, tais elementos podem se modificar em sua relação com os demais em um processo que faz e refaz a rede constantemente. Assim, contrastando com a ideia de estrutura social, essa imagem da rede heterogênea permite assumir, no fazer da pesquisa, a agência dos atores nela envolvidos que deixam de ser meros ocupantes de um lugar para se tornarem atuantes (ou actantes) que transformam, ao invés de apenas informar, produzindo objetos e marcando uma diferença (Latour, 2012). Esse processo exige considerar a atuação não só dos atores humanos, mas dos não humanos envolvidos na produção do vínculo – pois se há técnicos e especialistas, há também papéis, equipamentos e conceitos envolvidos nessa rede de produção. Portanto, se tudo aquilo que existe no mundo só ganha existência porque é continuamente gerado como um efeito das redes de relações, torna-se relevante explorar e caracterizar tais redes e suas práticas, descrevendo a performance das relações heterogêneas que produzem e rearranjam seus atores (Law, 2007).

Como a existência dos objetos não se constitui fora nem a priori à atuação dos atores em rede, se assume que sua ontologia (seus modos de existência) depende, a cada momento, da composição e operações que se encontram disponíveis em cada uma delas. É, então, ao traçar as conexões dos diferentes atores, descrevendo e construindo a rede heterogênea de elementos que constitui e sustenta a existência do vínculo na Política, que se torna possível visibilizar sua produção. Se, como nos fala Latour (2012), a sociedade, assim como a natureza ou a subjetividade não são entidades abstratas – existindo misteriosamente, sem precisar ser constantemente retraçada e refeita – porque seria, então, o vínculo?

Segundo o autor, seguir esses pressupostos exige nosso esforço em nos mantermos apenas acompanhando (a passos demorados e olhos míopes) a associação em rede dos atores, deixando de lado o uso de contextos e noções totalizantes como ferramentas explicativas de análise. Isso torna a TAR muito mais descritiva, no entanto isso não quer dizer que o que realizamos diz respeito a uma simples descrição das redes, pois é exatamente essa descrição que permite e é parte da produção analítica da pesquisa. É ela que nos leva a contar histórias sobre como as relações são ou não são construídas (Law, 2007). Encarnar essa postura, na tentativa de construir narrativas que nos possibilitem conhecer a produção do vínculo como objeto da PNAS, implica compreender que ele apenas se torna real por ser parte de práticas (sempre localizadas histórica, cultural e materialmente) que constantemente o produzem no entrelaçamento entre o real e o político (Mol, 2002). É essa relação que forja o que Mol (2008a) denomina ontologias políticas, demarcando não a pluralidade de perspectivas sobre uma realidade única, mas, sim, suas diferentes performances. E aqui nos encontramos com o segundo operador dessa política investigativa, a noção de performance (enact) de Annemarie Mol (2002).

Assim, se o trabalho em rede precisa ser constante para produzir e manter a existência do vínculo, não há como o concebermos como um objeto natural, já dado, que sempre existiu esperando ser observado por uma diversidade de pontos de vista que, ao invés de atentar para sua fabricação, criam distintos modos de olhar para uma realidade sempre única (Mol, 2008a). Aqui o movimento é oposto, não há um vínculo ao redor da qual pairam nossas investigações e análises na tentativa de desvendá-lo, pois o vínculo é produzido, manipulado "no curso de uma série de diferentes práticas" (Mol, 2008a, p. 6) que o performam (ao contrário do que poderíamos pensar em um primeiro momento) não como um objeto único, mas múltiplo. Isso porque diferentes lugares e redes de práticas – como o documento da Política ou o campo de conhecimento da Psicologia – compõem distintas versões de vínculo. Como nos fala a autora, são objetos "diferentes, embora relacionados entre si. São formas múltiplas da realidade – da realidade em si" (Mol, 2008a, p. 6).

 

No território do CRAS

Como outras unidades do país, o CRAS da região Nordeste de Porto Alegre, onde foi realizado o estudo que compõe esse artigo, é localizado em uma área do município caracterizada pela vulnerabilidade, risco social e aspectos de periculosidade como violência e tráfico de drogas.  Segundo dados disponibilizados pelo Observatório da Cidade de Porto Alegre, em 2010, a região contava com 37.234 habitantes (2,64% da população municipal) e uma área de 6,78 km², com densidade demográfica de 5.491,74 habitantes por km². No mesmo ano, a taxa de analfabetismo atingia o índice de 5,8 % e o rendimento médio dos responsáveis por domicílio era de 1,68 salários mínimos3. Se compararmos esses mesmos dados com as informações disponíveis sobre a região central de Porto Alegre, veremos a discrepância das condições de vida que a cidade comporta, pois no centro a taxa de analfabetismo do período não ultrapassou 0,51% e o rendimento médio dos responsáveis por domicílio chegou a 8,81 salários mínimos.

A região, constituída pelo bairro Mário Quintana, é dividida em diferentes áreas de abrangência que, na época, recebiam a cobertura de quatro equipes de atendimento às famílias (todas referenciadas ao CRAS Nordeste): a equipe do PAIF de referência da unidade, composta por duas assistentes sociais e uma psicóloga (cujo trabalho abarcava 11 áreas do bairro) e o PAIF Volante, com um psicólogo e uma assistente social, que abrangia três territórios. Os outros dois serviços eram executados na rede conveniada4 com a Fundação de Assistência Social e Cidadania (FASC), que ofertavam atendimento aos usuários através das equipes dos Serviços de Atendimento Familiar (SAF), uma localizada no espaço Artesanato Santa Isabel (CEMASI), com cinco territórios de atendimento e a outra no Clube de Mães Bárbara Maix, com 11 áreas de abrangência. Ambos os espaços ofereciam, ainda, Serviços de Convivência e Fortalecimento de Vínculos para as crianças da região.

Aberto ao público de segunda a sexta, das oito horas da manhã ao meio dia e nas terças, quartas e sextas a tarde, das treze às dezessete horas, a unidade de referência disponibiliza aos usuários a inserção no Cadastro Único para Programas Sociais (CadÚnico), realizada por estagiário(a)s do serviço social e, também, o programa Projovem. Este último, assim com o Serviço de Convivência de Idosos é realizado no prédio ao lado do CRAS onde situa-se o NACIPAZ – Associação Natureza, Cidadania e Paz, espaço comunitário que, na época, abrigava a associação de moradores e um telecentro.

Nesse percurso, a saída de campo, realizada pela primeira autora, permitiu o acompanhamento de diferentes atividades e ações realizadas tanto pela equipe técnica do PAIF de referência do CRAS como, também, algumas atividades do PAIF Volante5, as quais incluíam atividades circunscritas aos técnicos – reuniões de rede, micro rede e de equipe; reunião para contra referência de atendimentos/famílias; reunião com um serviço de acolhimento – e destinadas aos usuários do serviço – visitas domiciliares, grupo de acompanhamento familiar, grupo de descumprimento de condicionalidades, acolhida particularizada, grupo de documentos, Serviço de Convivência e Fortalecimento de Vínculos para idosos e, claro, conversas informais com técnicos e funcionários, principalmente, com a psicóloga da equipe de referência da unidade.

Nesse percurso (pela saída de campo ter sido realizada pela primeira autora, optamos por manter parte da narrativa do texto em primeira pessoa) ao acompanhar o cotidiano do CRAS, em meio as suas diversas reuniões, discussões de caso, grupos e histórias que compõem as práticas do PAIF, escolhemos para discussão da performance do vínculo construir uma cena como estudo de caso, produzida a partir de diferentes atividades nas quais a primeira autora esteve presente. Nossa proposta é utilizar essa cena como um ponto de potência que nos auxilie a pensar de que modo, nesse local específico, se atualizou uma versão específica de vínculo.

Antes de seguirmos a cena, é importante pontuar que, se no documento da Política o vínculo se atualiza como resultado do trabalho social com as famílias (MDS, 2013), para os profissionais que atuam no território que acompanhamos, o vínculo é aquilo que possibilita uma mudança nos sujeitos e/ou famílias. E, ao contrário de nossas ingênuas expectativas iniciais, não houve uma ação específica, exclusiva que se desempenhasse com vistas a fortalecer e/ou produzir vínculos. Na maioria das vezes, a questão dos vínculos estava em segundo plano, pois a urgência está sempre localizada no pensar sobre o que fazer com casos que escancaram a falta de moradia, o trabalho infantil, a negligência no cuidado com os filhos, a ameaça da prostituição e, assim por diante. E é nesse entremeio que vão se produzindo vínculos. Não há uma relação de causa e efeito ou de soma onde A + B = vínculo. Nesse sentido, se há ou não fortalecimento de vínculos, como resultado das ações desenvolvidas entre os profissionais do PAIF e usuários/família, é algo que só pode ser, digamos, detectado se for possível visualizar uma mudança efetiva na vida das pessoas. Ou seja, o vínculo só é perceptível a partir do rastro de seus efeitos na vida dos usuários dos serviços socioassistenciais. Vamos, então, à cena de Maria.

 

O caso de Maria: da casa destelhada ao amor materno

Maria (nome fictício) era uma das usuárias em atendimento pelo PAIF, da unidade CRAS Nordeste, durante minha saída de campo. A profissional de referência que a acompanhava era a psicóloga do serviço e sua situação circulou tanto pela reunião de equipe – que acontece semanalmente na unidade – quanto pela reunião de micro rede – mensal e itinerante. A família de Maria era constituída por ela (mãe) que morava com quatro de seus cinco filhos, um de quatorze, treze, quatro e dois anos, sendo que o filho de nove anos estava morando com o pai, que possui sua guarda. Maria que, então, era acompanhada pela psicóloga do PAIF, tinha atendimentos individualizados e, também, participava do grupo de acompanhamento familiar, que acontecia quinzenalmente na unidade direcionado às famílias em acompanhamento pelo serviço. Portanto, ela se encontrava inserida no CadÚnico, no entanto, não no Programa Bolsa Família o que, segundo a psicóloga, provavelmente ocorria em razão de alguma inconsistência no sistema que ainda não tinha sido resolvida (pois a usuária atendia aos requisitos para receber o benefício). Durante esse período do atendimento, Maria estava desempregada e sua única renda consistia no Benefício Eventual (oferecido aos usuários e famílias que se encontram em dificuldades de arcar por conta própria com o enfrentamento de situações adversas). Em uma das conversas que tivemos sobre o caso, a psicóloga mencionou que Maria teria questões de saúde mental e que, inclusive, já teria sido internada em função disso. Sua história contava, ainda, com um filho gerado em decorrência de um estupro e seus dois filhos mais velhos encontravam-se em situações de trabalho infantil – um deles estava evadido da escola e com suspeita de uso de maconha. Além disso, um dos meninos frequentemente era internado com problemas respiratórios e seu filho mais novo, nas palavras da mãe, é um menino especial – em relação ao qual não se sabia com certeza, mas suspeitava-se ter o diagnóstico de autismo.

Mas eis que o motivo de Maria ter procurado atendimento no CRAS da sua comunidade não tinha nada a ver com esses elementos de sua história, mas, sim, com o fato de ter, recentemente, visto sua casa ser destelhada a tal ponto que a mesma não tinha mais condições de abrigar sua família. Sem ter um local para onde ir, conseguiu encaminhar junto ao acompanhamento do CRAS um pedido de recebimento do aluguel social básico6, que na época estava em torno de R$300,00. Ainda assim, devido ao baixo valor repassado pelo benefício, Maria relatava nos atendimentos que não estava conseguindo encontrar um imóvel pelo qual pudesse pagar com esse valor, além disso, os poucos lugares que encontrava não aceitavam crianças.

Na primeira discussão sobre o caso, da qual participei durante uma reunião de equipe, a psicóloga relatou que não via outra alternativa para tal situação que não fosse recorrer ao acolhimento institucional para as crianças, pois embora toda a rede estivesse acompanhando o caso, a família parecia não sair do lugar – e, ainda, havia o filho que volta e meia era internado no hospital e uma mãe que parecia ter comprometimento cognitivo. Na tentativa de encontrar estratégias para movimentar/mobilizar essa mãe, a psicóloga dizia ter até ameaçado cortar o benefício eventual de Maria por um mês, caso os meninos continuassem em trabalho infantil. A técnica não se orgulhava de ter escolhido essa estratégia para tentar ajudar Maria a modificar sua atual situação (sabia que isso não passava de uma mera ameaça, visto que o benefício não seria e não poderia ser cortado por ela).

A equipe seguiu discutindo o caso e algumas sugestões para o atendimento da família foram surgindo. Uma delas era contatar um educador do Ação Rua – projeto que desde 2007 realiza a abordagem e identificação de crianças e adolescentes em situação de rua no município – para ajudar Maria a encontrar uma casa possível para moradia dentro do valor do aluguel social, pois a equipe não sabia o grau de empenho dela em procurar uma casa. Portanto, o educador social poderia ser efetivo em ajudá-la. Outra sugestão era inserir as crianças em um programa que tentava ser reativado, o Mais Ação. Para que as sugestões fossem efetivadas Maria deveria ser chamada para um atendimento no qual a técnica conversaria com ela sobre a possibilidade do acompanhamento do Ação Rua na busca por encontrar uma nova moradia. Foi mencionado que a família também já havia sido inserida em um programa que oferece cursos nos quais Maria poderia se inscrever, mas eles ainda não tinham começado. Diante disso, uma pergunta surgia: como Maria conseguiria fazer um curso tendo que cuidar de quatro crianças? E que ainda estavam sempre doentes (intestino, asma epilepsia...). Também se cogitou a possibilidade de tentar conseguir o aluguel social pelo Departamento Municipal de Habitação (DEMHAB) que oferecia um valor mais alto e poderia continuar sendo pago a família até a mesma conseguir uma casa definitiva para morar, já que o aluguel social básico é limitado a um período de apenas seis meses.

Para além da discussão em equipe, e das conversas que tive com a psicóloga sobre a situação da família, participei de dois encontros do grupo de acompanhamento familiar nos quais Maria compareceu. O primeiro deles tinha como temática a dependência química, e o segundo o cuidado com as crianças e o relacionamento familiar. Nesse último, Maria falou bastante sobre sua relação com o filho mais novo (que, aqui, chamaremos de Tom) que ela mencionara ser especial. Comentou o quanto precisava aprender a brincar de novo junto com ele – ela que quase não brincou na infância, pois tinha que cuidar dos irmãos e, já durante a adolescência, engravidou do primeiro filho. Para ela, conversar com a psicóloga do CRAS havia sido muito importante, pois lhe ajudou a ver que precisava dar mais atenção a esse filho. Também mencionou o preconceito das pessoas em relação a Tom – uma vez, conta Maria, quando pegou o ônibus com o menino, uma das passageiras comentou com ela o comportamento que o menino estava apresentando julgando-o, dizendo que se fosse seu filho não o deixaria bater nela. Frente a isso, Maria respondeu que seu filho era especial, explicando sobre o comportamento do menino que muitas vezes machuca a si mesmo e grita. No meio de sua fala, lembra de uma pergunta que um de seus filhos lhe havia dirigido, "tu me ama"? Maria pensa que o menino lhe pergunta essas coisas porque ela dá mais atenção ao Tom. Ela diz que tenta falar que ama todos os seus filhos, que tenta abraçá-los – ao que a psicóloga intervém comentando sobre a importância de poder dar carinho a todos eles.

O que podemos, claramente, notar na descrição realizada acima é a reconfiguração do caso de Maria na relação com os profissionais do PAIF/CRAS. Da falta da materialidade de uma casa para morar, a discussão e os olhares dos profissionais também passaram a enfatizar e trabalhar com questões de sua vida íntima, onde se produziu a necessidade de fortalecer algo imaterial que, nesse caso, se constituiu como o vínculo do amor materno.

A relação que se produziu com o CRAS e, principalmente com a psicóloga do serviço, fez Maria olhar mais para os seus próprios sentimentos em relação aos seus filhos – a fez pensar na necessidade de dar mais atenção ao filho especial e, também, não esquecer dos demais. Assim, poderíamos dizer que a prática psi – com suas intervenções e atendimentos – se produziu em um modus operandi que funciona com base na lógica das relações interpessoais que, em última instância, nos remete a uma lógica da intimidade. E aqui, compreendemos intimidade no sentido trabalhado por Despret (2011) em sua leitura etnopsicológica do segredo na qual aponta que, além da separação entre o que é interior/privado e exterior/público, a intimidade é uma experiência da interioridade. Portanto, há um voltar-se para si mesmo, uma produção subjetiva em jogo nessa experiência. Essa lógica da intimidade, então, performa um vínculo em meio às práticas desenvolvidas pela psicóloga, no serviço, em sua interação com a usuária o que, por sua vez, muda o modo como Maria pensava certos elementos de sua vida, no caso, a relação com seus filhos. Então, não é somente a urgência de uma casa o que passa a ocupar Maria, a partir do momento em que recorre ao serviço, mas o modo como ela vive.

Nossa escolha em utilizar o termo lógica, para designar esse modo de operar com a intimidade, é inspirado na proposição de Mol (2008b) ao demarcar sua aposta em cultivar uma lógica do cuidado versus uma lógica da escolha nas práticas relacionadas a saúde. Para a pesquisadora o uso da ideia de lógica,

It invites the exploration of what it is appropriate or logical to do in some site or situation, and what is not. It seeks a local, fragile and yet pertinent coherence. This coherence is not necessarily obvious to the people involved. It need not even be verbally available to them. It may be implicit: embedded in practices, buildings, habits and machines7. (Mol, 2008b, p. 8).

Incorporada nas práticas, essa lógica da intimidade também se produz no grupo ao qual foi convidada a participar, o grupo de acompanhamento familiar, espaço que faz Maria querer compartilhar suas experiências e sentimentos, pois, mesmo que instigada a falar, poderia ter se mantido em silêncio. Mas ela não o fez, ainda mais recebendo o apoio dos demais participantes, que comentavam, por exemplo, que ela não devia "dar bola" para o que os outros dizem e, também, compartilhando casos em que sofreram situações parecidas com as dela, como bullying na escola. Esse grupo de acompanhamento familiar, para o qual eram convidadas famílias em atendimento no PAIF que apresentavam questões em comum, acontecia quinzenalmente e era realizado pela psicóloga e pela assistente social do serviço. Ele oferecia continência e a possibilidade de estabelecimento de vínculos não apenas com os profissionais que os atendiam, mas, também, entre os usuários participantes do grupo. Ele tinha um número definido de encontros e sempre começava com um vídeo, que servia de disparador para as discussões da temática escolhida para o dia – definidas junto aos participantes no primeiro encontro: dependência química, cuidado com as crianças/ relacionamento familiar, reflexões sobre o bullying e violência doméstica.

Como em todos os grupos fechados, nos quais os participantes são convidados a falarem sobre questões íntimas/privadas, o sigilo é mantido em relação ao que é dito e ao que acontece no grupo. É justamente esse sigilo, esse segredo (fazendo uma analogia com as proposições desenvolvidas por Despret, 2011), que permite a fabricação da interioridade, ou, nas palavras da autora, "fabrica seres interiores" (Despret, 2011, p. 10). O segredo, assim, empenha o sujeito "em viver e em traduzir sua perturbação enraizando-a no mais profundo de sua intimidade" (Despret, 2011, p. 10) tornando possível que o sujeito, ao voltar-se para si, diga sobre coisas que talvez não diria em outro espaços – no caso situações vivenciadas com filhos ou conhecidos que são usuários de drogas, a violência doméstica cometida pelo companheiro, o que se sente frente ao bullying que o filho sofre na escola, as situações na quais se acaba batendo nos filhos, etc. O exame e a fala do que se passa em seu próprio interior pode, ainda, proporcionar certo alívio aos sujeitos, como quando uma idosa participante do grupo de acompanhamento mencionou em um dos encontros que "é preciso desabafar para sobreviver".

Portanto, voltando à situação de Maria, a rede que se tece na sua relação com o CRAS performa um vínculo que produz, na lógica da intimidade, uma experiência de interioridade que modifica, transforma sua relação com o serviço e com sua própria família. Todas as ações – as idas ao CRAS, os encontros com a psicóloga, as discussões e proposições sugestivas sobre com o conduzir o caso nas reuniões de equipe, a participação no grupo de acompanhamento familiar – são atores que atuam na performance do vínculo de amor de Maria por seus filhos.

Antes de passarmos para próxima sessão faz-se importante ressaltar que é preciso estarmos sempre atentos ao perigo de se instituir mudanças específicas nos modos de viver (de condutas e comportamentos) dos usuários como uma condicionalidade para o acesso à direitos sociais – cuja garantia é princípio da PNAS. Perigo que pode nos levar a atualização de práticas prescritivas e normativas que marcam a história da assistência social brasileira regida pela caridade e primeiro-damismo, ou seja, pelas ações socioassistenciais como um favor e não um direito.

O Vínculo como Subjetivador

A transformação no modo de Maria olhar para e se relacionar com os filhos é uma mudança que ocorreu pela associação de outros elementos que passaram a compor sua produção subjetiva. Assim, se o vínculo – objeto imaterial performado na rede de práticas heterogêneas da PNAS – permite produzir mudanças na vida dos usuários que utilizam os serviços do SUAS é porque ele estabelece uma conexão que gera subjetividade. Nesse sentido, consideramos o vínculo a partir do uso da metáfora do plug-in (conector e/ou subjetivador) que encontramos nas proposições de Latour (2012) ao se remeter a temática da subjetividade. Como aponta Tirado, Baleriola, Giordani e Torrejón (2014) essa noção latouriana redefine o tema (em relação aos estudos foucaultianos e deleuzianos) permitindo abordá-lo em termos de uma conexão, o que nos isenta da necessidade de ter que nos atermos a longos processos históricos:

Gracias a los subjetivadores, en lugar de describir extensos procesos históricos o genealógicos, o narrativas y discursos, que muestran cómo emerge y se articula un pliegue con una subjetividad concreta, nos enfrentamos al desafío de mostrar cómo nuestra identidad adquiere definición y consistencia cuando nos conectamos con una serie de elementos locales, sencillos y casi anodinos que nos rodean permanentemente y cuyo origen se vincula a ejercicios tecnológicos con duraciones temporales y muy desiguales8. (Tirado et al., 2014, p. 36).

O conceito de subjetividade de Latour (2012) permite pensar, assim, o processo de tornar-se sujeito como um efeito da rede de relações nas quais somos capturados. Nessa direção, para cada relação estabelecida haveria também um tipo específico de conexão que o autor denominou de plug-in (um conector). Essa metáfora do plug-in, utilizada a partir da linguagem relacionada ao uso da Internet, nos remete a possibilidade de "baixar" um programa que (no sistema computacional) permite acessar, ativar algo que, anteriormente, não era possível visualizar. Desse modo, um plug-in seria como um grampo, algo que se instala entre os atores permitindo que uma nova conexão se estabeleça ou, ainda, que uma conexão já existente seja modificada.

Portanto, o vínculo produzido em meio às associações que se estabeleceram na rede de atores que envolveram o caso de Maria possibilitou a mesma modificar elementos na sua relação com o filho ao qual se referia como especial; mudança que se efetuou a partir dos efeitos das interações estabelecidas por sua entrada no serviço onde passou a ser acompanhada pela psicóloga e participar do grupo familiar, no qual emergiram questões ligadas a esse filho. Essa modificação aponta para a característica do que Latour (2012) denomina de subjetivadores: uma conexão que permite, que induz os atores a fazerem algo. É importante definir o que na perspectiva latouriana significa induzir, pois ao contrário do que essa palavra nos suscita em mente (como ideia de causa) "há em seu âmago uma duplicação, um deslocamento, uma translação que modifica simultaneamente todo o argumento" (Latour, 2012, p. 311-312). Desse modo, indução está aqui relacionada a ação de agir, provocada pela rede de mediadores que entram e saem produzindo um ator-rede – este, vale lembrar, só tem existência a partir de suas múltiplas conexões, "primeiro os vínculos, depois os atores" (Latour, 2012, p. 312). No campo da pesquisa, esse aspecto nos permite visibilizar a rede que articula a produção de vínculos que, por sua vez, fazem os atores fazerem algo, ou seja, atuarem de determinados modos e não de outros – como podemos acompanhar no caso de Maria, quando a produção de um vínculo específico a fez modificar sua relação como mãe.

Mais uma vez, em um primeiro olhar, podemos julgar determinista o ponto de vista latouriano, ainda mais se pensarmos em um ator humano e em seu processo de produção subjetiva, já que o autor menciona os vínculos como uma conexão que induz a atuação de um ator. No entanto, para o filósofo, a emancipação não está ligada ao rompimento dos laços, mas sim a multiplicidade de vínculos e ao fato de se estar bem vinculado. Assim como as marionetes "só são livres na medida em que o titereiro é um bom titereiro" (Latour, 2012, p. 310), ou seja, na medida em que há diferentes cordões conectando ambos, a produção subjetiva só se compõe estabelecendo conexões. Quanto mais vínculos, mais possibilidades subjetivas. Mais produção de interioridade.

São justamente os plug-in (subjetivadores ou ainda, conectores) em circulação nas redes que, acessados pelos sujeitos, subscritos e/ou baixados (segundo a metáfora computacional) possibilitam aos mesmos tornarem-se local e provisoriamente competentes ao exercício de determinadas atuações – em outras palavras, são essas conexões que permitem que competências sejam desempenhadas. Os subjetivadores, então, não forjam atores humanos completos, já que apenas uma conexão não dá conta de todos os elementos subjetivos que produzem um sujeito, mas, sim, agrega elementos que o compõe em "várias camadas sucessivas, cada qual empiricamente distinta da seguinte" (Latour, 2012, p. 299). É preciso frisar que essas camadas criadoras de competências (que possibilitam o exercício de certas habilidades, de determinadas atuações), não se encontram no sujeito, mas precisam ser acessadas por ele "sem descanso para adquirir certa habilidade durante algum tempo" (Latour, 2012, p. 305). Maria, antes de circular pela rede de Assistência Social não tinha acesso às conexões que a permitiram mudar sua relação com o filho, mas quando passou a ter, essas conexões não a constituíram como sujeito completo e sim, gerou o que aqui podemos chamar de uma nova camada subjetiva. Essa movimentação permite visualizar que quanto mais conexões são estabelecidas, mais interioridade se obtém, "como bem demonstrou William James, é multiplicando as conexões com o exterior que conseguimos perceber como o 'interior' está sendo mobilizado. Você precisa de uma porção de subjetivadores para se tornar sujeito" (Latour, 2012, p. 310).

Como nos explica Tirado et al. (2014), um subjetivador pode vir a se constituir de diferentes modos (uma imagem, uma ideia, uma explicação ou teoria e, assim, por diante) se vinculando, tanto a grandes dispositivos institucionais, como a práticas breves e cotidianas oferecendo ao sujeito um curso de ação sempre local. Essas conexões implicam a produção de um efeito de mediação, o qual se caracteriza por três elementos específicos: possuir uma carga política, gerar um efeito de reflexividade e ser um fragmento de conhecimento.  Nesse sentido, se voltarmos ao caso de Maria, fica evidente como a produção do vínculo torna-se um subjetivador, pois a performance do vínculo do amor materno estabelece uma conexão com novos elementos que Maria passa a ter acesso, habilitando-a a exercer novas capacidades (aqui ligadas ao amor materno). Portanto, a produção do vínculo não funcionou como uma mera associação, mas, sim, como uma conexão que permitiu instalar/modificar elementos que passaram a compor sua subjetividade em relação a uma situação local e específica: seu modo de se relacionar com seus filhos. E isso só foi possível após a produção desse vínculo que conectou Maria com novos elementos os quais a fizeram pensar em si mesma como mãe e conhecer um pouco mais sobre si na relação com os filhos.

E Maria continuou circulando pela assistência

Você, caro leito(a)r, deve estar se perguntando como terminou o caso de Maria. Não terminou ou, ao menos, não tinha terminado durante minha passagem pelo CRAS. A situação da usuária continuou circulando nas reuniões de equipe. No entanto, frente à complexidade e gravidade do caso, foi decidido pela equipe que uma reunião com o Centro de Referência Especializada de Assistência Social (CREAS) da região precisaria ser marcada, na tentativa de referenciar a família de Maria aos serviços oferecidos por esse Centro. Há tempos o caso era mencionado como uma situação a ser atendida pelo CREAS, mas segundo a própria equipe do CRAS, essa é uma tarefa difícil, pois a média complexidade encontra-se lotada de situações com violação de direitos, tantos que, muitas vezes, o CREAS não consegue dar conta de toda demanda de atendimento. Portanto, a lógica de efetivação da contra referência CRAS-CREAS também não consegue realizar o atendimento de todos os casos que apresentam situações de violação de direitos, apenas os casos mais urgentes/graves. A demanda parece incontornável.

Já na reunião para realização da contra referência de algumas famílias, a equipe técnica do CRAS levou duas situações de famílias que precisariam ser atendidas pelo CREAS, mais um caso apresentado pela psicóloga de um SAF da região que também participava da reunião. No entanto, diante do número de atendimentos que já estavam sendo realizados pelo CREAS e os mais de 90 casos em espera para atendimento, apenas dois, dentre os três casos levados à reunião poderiam ser escolhidos para, efetivamente, serem referenciados no CREAS. No meio dessa difícil escolha, eis que a família de Maria foi uma das escolhidas para ser acompanhada pelo CREAS, via Ação Rua.

Após a difícil escolha, os profissionais pensam em uma estratégia para a vinculação da família de Maria a equipe do CREAS e a equipe do Ação Rua. Combinam que sempre que for realizada uma nova referência será necessário fazer uma visita em conjunto – o técnico de referência da família do CRAS e o novo técnico do CREAS, nesse caso, a equipe do Ação Rua. Estratégia que para os profissionais constitui uma tentativa de aprimorar a vinculação, uma ação realizada para que a família não fique com a sensação de que está sendo largada.

Para o CRAS há um desconforto em relação à contra referência, que é apontada pela equipe como algo que não é feito. Nessa direção, surge a pergunta sobre o que fazer com as famílias que não são referenciadas no CREAS quando se esgotam as possibilidades do trabalho que pode ser realizado pelo CRAS? Situação que leva a coordenação da equipe a afirmar que "chegamos no fundo do poço", pois ainda há as situações em que o serviço desliga as famílias por não haver adesão. E mais perguntas surgem – "o que é esse não aderiu? O que foi feito? Vai ver fez uma VD [visita domiciliar] e isso é suficiente para avaliar que a família não se vinculou? a família é desligada e não é nem contra referenciada". A reflexão que emerge aponta para vinculação como algo que deve ser construído e para a necessidade de se pensar um fluxo para ela. Mas o impasse para a questão parece não ter saída quando trazida para reunião de contra referência, pois segundo o CREAS existe muita demanda para realizar visitas.

A reunião se encaminha para o fim, quando um dos integrantes da equipe do CREAS olha para mim e diz "coitada", pois agora eu estava vendo como as coisas funcionam na assistência e, como mencionou alguém da equipe, vendo que a assistência também está precisando de ajuda. E, talvez, um caminho possível para se estabelecer práticas mais efetivas, seja a própria Assistência Social apostar na produção de mais vínculos que, na circulação dos usuários pelos equipamento e serviços da Política, possam atuar para o exercício da proteção social e exercício da cidadania. Como nos escreve Latour (2012), não é o rompimento, mas a multiplicidade de vínculos que nos produz como sujeitos. Assim, quanto mais vínculos, mais possibilidade de nos tornarmos local e provisoriamente competentes ao exercício da proteção e acesso a garantia de direitos.

O Que Maria nos Fez Ver

A aposta em nos voltarmos para as práticas cotidianas de um serviço da Política de Assistência Social – no caso, um PAIF – a fim de pensar a produção do vínculo como seu objeto abriu a possibilidade de discutirmos e visibilizarmos o vínculo como um subjetivador (Latour, 2012), abordando o tema da subjetividade sob o viés das conexões que tornam possível ao sujeito acessar elementos que os constituem, modificando e permitindo que novos modos de agir e novas capacidades possam ser exercidos.

Um exercício analítico importante para pensarmos a produção de subjetividade implicada em meios às práticas da Assistência Social, já que esse é um ponto pouco explorado no que diz respeito ao trabalho no campo da proteção social. Exercício que nos lembra que não é apenas o acesso a recursos e materialidades à garantia de direitos sociais o que está em jogo nas práticas socioassistenciais, mas sim, a produção de sujeitos, de interioridade e, como nos mostra o caso de Maria, de um modo específico de ser mãe. É a produção de Maria em sua relação com o serviço da Assistência Social o que vemos em movimento no estudo de caso que construímos.

Acompanharmos o caso de Maria nos permite destacar não apenas como a produção do vínculo, criado na interação da usuária com o serviço da Política, forjaram novas questões para ambos, mas também, atentar para a produção de vínculos como um indicador que permite avaliar a potência das ações desenvolvidas na garantia da proteção social e ao acesso a direitos. Aspecto importante ao considerarmos a relevância que as políticas sociais têm para a vida coditiana de populações cujos direitos cotidianamente são barrados.

Nesse caminho, o convite que fazemos a você leitor(a) é para que possamos seguir acompanhando e discutindo as produções subjetivas no campo da Política de Assistência Social para que, nesse percurso, possamos pensar sobre que modos de existência estamos promovendo e desejamos promover para o coletivo com o qual trabalhamos nesse campo. É, sobretudo, um convite que busca chamar atenção para a possibilidade de abrir brechas às práticas desse campo, por vezes, tão minado que é a Assistência Social, de modo a ver mais possibilidades do que impossibilidades ao trabalho cotidiano. Isso implica conhecermos e compreendermos muito mais como as coisas funcionam e são produzidas, do que buscar interrogar os porquês; pensar muito mais sobre os efeitos das práticas, ao invés de lançar julgamentos ou prescrever "receitas". E uma maneira de seguirmos essas proposições é interrogando o que determinadas conexões e interações são capazes de nos "fazer fazer" (Latour, 2012), apostando no exercício da micropolítica e na busca por manter em nossos horizontes práticas que instigam o pensamento e os pequenos movimentos na vida cotidiana.

 

Referências

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Endereço para correspondência:
Ramiro Barcelos, 2600
Porto Alegre/RS, Sala 401i
E-mail: lurodrigues.psico@gmail.com

Recebido em 29.ago.2017
Revisado em 12.fev.2019
Aceito em 16.jul.2019

 

 

1. Inúmeras mudanças ocorreram no governo brasileiro durante o ano de conclusão do doutorado acadêmico do qual deriva esse trabalho. Entre elas houve a mudança do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome que, ao se juntar ao agrário passou a se chamar Ministério do Desenvolvimento Social e Agrário. No entanto, ao longo do texto optei por manter o primeiro nome, tanto por uma escolha política, como por entender que o conteúdo ao qual fiz referência foi produzido na conjuntura política do Ministério anterior. É importante frizar que, como também houve alterações no site do Ministério, alguns dos links aqui citados podem encontrar-se fora do ar.
2. Tradução livre: "Um estudo de caso é de interesse mais amplo no momento em que se torna parte de uma trajetória. Ele oferece pontos de contraste, comparação ou referência para outros lugares e situações. Ele não nos diz o que esperar – ou fazer – em qualquer outro lugar, mas sugere perguntas pertinentes. Os estudos de caso aumentam nossa sensibilidade".
3. Informações recuperadas de http://portoalegreemanalise.procempa.com.br/?regiao=7_0_0
4. A FASC gerencia a implantação de convênios através da Resolução do Conselho Municipal de Assistência Social, executando os pagamentos das entidades com recurso do Fundo Municipal e Fundo Nacional de Assistência Social. Recuperado de http://www2.portoalegre.rs.gov.br/fasc/default.php?p_secao=64
5. Consiste em uma equipe adicional à equipe técnica do CRAS "que se desloca para as áreas de dispersão populacional e/ou difícil acesso para ofertar os serviços de proteção social básica e ações às famílias residentes nestes locais." (Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, 2012b).
6. As informações disponibilizadas pelo site da FASC descrevem o Aluguel Social como "um recurso assistencial mensal destinado a atender, em caráter de urgência, famílias que se encontram sem moradia. É um subsídio concedido por seis meses. A família beneficiada recebe uma quantia equivalente ao custo de um aluguel popular". Recuperado de http://www2.portoalegre.rs.gov.br/demhab/default.php?p_secao=116
7. Tradução livre: "Convida à exploração do que é apropriado ou lógico fazer em algum local ou situação e o que não é. Ela busca uma coerência local, frágil e ainda pertinente. Esta coerência não é necessariamente óbvia para as pessoas envolvidas. Não precisa sequer estar verbalmente disponível para eles. Pode estar implícito: embutido em práticas, edifícios, hábitos e máquinas. E ainda, se quisermos falar sobre isso, nós precisamos traduzir uma lógica em linguagem".
8. Tradução livre: "Graças aos subjetivadores, em vez de descrever extensos processos históricos ou genealógicos, ou narrativas e discursos, que mostram como uma dobra com uma subjetividade concreta emerge e se articula, enfrentamos o desafio de mostrar como nossa identidade adquire definição e consistência quando nos conectamos com uma série de elementos locais, simples e quase anódinos que nos rodeiam permanentemente e cuja origem está ligada a exercícios tecnológicos com durações temporárias e muito desiguais".
Luciana Rodrigues, Doutora pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), é professora do Departamento de Psicologia Social e Institucional da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
Neuza Maria de Fátima Guareschi, Pós-doutora pelo Institute of Education na University College of London, é Professora Associada I da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). E-mail: nmguares@gmail.com

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