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Estudos de Psicologia (Natal)

versão impressa ISSN 1413-294Xversão On-line ISSN 1678-4669

Estud. psicol. (Natal) vol.24 no.1 Natal jan./mar. 2019

http://dx.doi.org/10.22491/1678-4669.20190004 

DOI: 10.22491/1678-4669.20190004

ASPECTOS PSICOSSOCIAIS DAS INTERAÇÕES ENTRE PESSOAS E DIVERSOS CONTEXTOS SOCIOAMBIENTAIS

 

Modos de subjetivação de mulheres beneficiárias do Programa Bolsa Família (PBF) do contexto rural da Zona da Mata Pernambucana1

 

Modes of subjectivation of women beneficiaries of the Bolsa Família Program (PBF) in the rural context of Zona da Mata Pernambucana

 

Modos de subjetivación de mujeres beneficiarias del Programa Bolsa Familia (PBF) del contexto rural de la Zona da Mata Pernambucana

 

 

Claudio Baradit MuñozI; Elaine Magalhães Costa FernandezII

IUniversidade Federal de Pernambuco
IIUniversidade Federal de Pernambuco

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo apresenta as conclusões de uma pesquisa que interroga as repercussões de uma política pública brasileira de inclusão social nos modos de subjetivação de mulheres beneficiárias. A metodologia de base qualitativa consistiu na análise crítica do discurso obtido dos relatos de seis mulheres beneficiárias do Programa Bolsa Família (PBF) habitantes do contexto rural da Zona da Mata de Pernambuco. A fundamentação teórica privilegia o enfoque da governamentalidade e as críticas feministas ao PBF. Os resultados obtidos confirmam que normas sociais são incorporadas nas subjetividades das mulheres enquanto "mães pobres lutadoras". Concluiu-se que o PBF exerce uma função reforçadora de modos de subjetivação hegemônicos da sociedade neoliberal. Apesar das vantagens e mudanças produzidas pelo PBF, as mulheres beneficiárias enfrentam uma situação de inclusão social fragilizada, condição característica da pobreza nas sociedades capitalistas.

Palavras chave: pobreza; programa bolsa família (PBF); governamentalidade; mulher; ruralidade.


ABSTRACT

This article presents the conclusions of a research that questions the repercussions of a Brazilian public policy of social inclusion in the modes of subjectivation of beneficiary women. The qualitative methodology consisted of the critical analysis of the discourse obtained from the reports of six women beneficiaries of the Bolsa Família Program (PBF), habitants of the rural context of the Zona da Mata de Pernambuco. The theoretical foundation favors the focus of governmentality and feminist critiques of the PBF. The results obtained confirm that social norms are incorporated in the subjectivities of women as "poor fighter mothers". It was concluded that the PBF exerts a reinforcing function of hegemonic subjectivation modes of neoliberal society. Despite the advantages and changes produced by the PBF, women beneficiaries face a situation of fragile social inclusion, a characteristic condition of poverty in capitalist societies.

Keywords: poverty; bolsa família program (PBF); governmentality; women; rurality.


RESUMEN

Este artículo presenta las conclusiones de una investigación que interroga las repercuciones de una política pública brasileña de inclusión social em los modos de subjetivación de mujeres beneficiarias. La metodología de base cualitativa consistió em el análisis crítico del discurso obtenido de los relatos de seis mujeres beneficiarias del Programa Bolsa Familia (PBF) habitantes del contexto rural de la Zona da Mata de Pernambuco. La fundamentación teórica privilegia el enfoque de la gubernamentalidad y las críticas feministas al PBF. Los resultados obtenidos confirman que normas sociales son incorporadas em las subjetividades de las mujeres em cuanto "madres pobres luchadoras". Se concluye que el PBF ejerce una función reforzadora de modos de subjetivación hegemónicos de la sociedad neoliberal. A pesar de las ventajas y cambios produzidos por el PBF, las mujeres beneficiarias enfrentan una situación de inclusión social fragilizada, condición característica de la pobreza em las sociedades capitalistas.

Palabras clave: pobreza; programa bolsa familia (PBF); gubernamentalidad; mujer; ruralidade.


 

 

Governamentalidade neoliberal e indivíduo-empreendedor

A pobreza é um problema social constituído por elementos materiais, econômicos, contextuais, simbólicos e subjetivos. Apesar da relevância, para a Psicologia, de compreender as repercussões subjetivas da pobreza, nota-se, no contexto brasileiro, escassez de pesquisas sobre a temática além de ausência de reflexão crítica sobre esta realidade (Dantas, Oliveira, & Yamamoto, 2010). O presente estudo visa contribuir a suprir esta lacuna. Nossa investigação, de tipo qualitativo, tem como objetivo analisar as práticas discursivas que constituem os modos de subjetivação de mulheres beneficiárias do Programa Bolsa Família (PBF) do contexto rural da Zona da Mata de Pernambuco. A pesquisa parte do pressuposto que políticas públicas de inclusão social, como o PBF, implementadas num contexto neoliberal, geram efeitos nos modos de subjetivação a partir da prescrição de normas sociais incorporadas subjetivamente pelas beneficiárias. A presente investigação parte de leituras pós-estruturalistas que consideram o enfoque teórico da governamentalidade, o conceito de modos de subjetivação e as crìticas feministas dirigidas ao PBF.

Os estudos em governamentalidade, iniciados com a obra de Foucault, receberam relevância e ampliação através das obras de autores post-foucaultianos (Miller & Rose, 2012; Rose, 1998, 2007). Originalmente, Foucault (2008) sugere a progressiva introdução da lógica do liberalismo no Estado através do conceito de governamentalidade, definido como o "conjunto constituído pelas instituições, procedimentos, análises e reflexões, cálculos e táticas que permitem exercer esta forma bastante específica e complexa de poder, que tem por alvo a população" (Foucault, 1992, p. 171). Nesta perspectiva, a população é o objetivo principal do Estado e a família passa a ser seu principal instrumento. Na medida em que o governo dos indivíduos é considerado relevante em função de seus impactos nas tendências populacionais, indivíduo e população passam a se articular instrumentalmente. Considera-se que o indivíduo deve atuar motivado por seu desejo livre, mas numa liberdade regulada dentro dos limites aceitáveis para essa população. O governo do desejo individual, a forma como se pode intervir nas características desse desejo para que esteja em consonância com os requerimentos da população, será um ponto estratégico das racionalidades liberais. Nesta interseção se articulam o governo dos outros e o governo de si mesmo, já que o governo nas sociedades liberais não pode ser operacionalizado sem que os próprios indivíduos exerçam o autogoverno, o que implica no fundamental controle das práticas de subjetivação. Portanto, uma série de saberes é ativada para modelar os sujeitos a partir de certas normas através das quais eles devem governar-se. Modos de subjetivação seriam, portanto, posições subjetivas dentro das práticas discursivas disponíveis para serem ocupadas pelos sujeitos, fornecendo lugares a serem ocupados (Rose, 1998, 2007). Os modos de subjetivação hegemônicos num determinado contexto funcionam como normas incorporadas pelo sujeito que orientam seu autogoverno. Desta forma, discursos hegemônicos teriam o poder/autoridade de prescrever normas constitutivas das subjetividades.

Segundo Rose (1998), as sociedades contemporâneas promovem um valor hegemônico, o self, construído em torno dos princípios liberais (autonomia, liberdade, individualidade, identidade, escolha e satisfação). A partir desta ética do self se configura, no século XX, uma cultura do empreendedorismo que promove uma imagem normativa do ser humano enquanto "self-empreendedor". Este modo de subjetivação prescreve que as pessoas devem ser entidades autônomas responsáveis e devem buscar a realização pessoal através de escolhas livres. Este indivíduo-empreendedor será um modo hegemônico de entender e julgar os seres humanos nas sociedades liberais. A hegemonia deste modo de subjetivação nas sociedades contemporâneas é fundamental para entender o objeto de nossa pesquisa, já que postulamos que as políticas sociais que operam num contexto neoliberal tendem a reforçar esta posição de sujeito, individualizando os problemas sociais e responsabilizando os indivíduos (Miller & Rose, 2012; Paugam, 2003; Ramos, 2016). A "psicologização" das problemáticas sociais leva a traduzir problemas de ordem estrutural em problemas de tipo psicossocial (carência de habilidades, falta de empreendedorismo, carência de auto-estima, falta de habilidades sociais, e assim por diante), situação que acarretaria sua gestão exclusiva no âmbito privado. Boa parte da responsabilidade passa, então, a ser atribuída aos indivíduos e às famílias, o que vem a invisibilizar causas estruturais que determinam as desigualdades.

Paralelamente, Miller e Rose (2012) consideram uma das características fundamentais da governamentalidade liberal a produção de discursos que regulem os âmbitos privados, como a família, mas sem a perda de sua autonomia. Por isso, as intervenções realizadas na família têm como objetivo a produção de sujeitos capazes de se auto-gerenciarem. Rose (1998) afirma que durante o século XX, se consolida a visão da família como principal espaço social em que os sujeitos podem ser moralmente modelados. Para o autor, a "familiarização" consiste em situar a família como central no exercício governamentalizante, principalmente impulsionado pelo Estado, visando melhor gerir as funções domésticas, as relações entre seus membros e a educação/cuidado com as crianças (Saraiva, 2016). A família torna-se, então, fundamental para a condução dos indivíduos na sociedade liberal, responsabilizando-se pela socialização e condução ética dos cidadãos.

No entanto, a familiarização das tecnologias de governo não é uma prática socialmente homogênea. Donzelot (1980), ao identificar as modalidades de tratamento de famílias excluídas durante o século XX pelo governo, descreve o funcionamento de um complexo tutelar, ou seja, um conjunto de autoridades e saberes (jurídicos, sociais, psiquiátricos e psicológicos) que se articulam para acionar mecanismos de uma vigilância permanente sobre as famílias populares. Donzelot (1980), ao analisar a situação das crianças, afirma que estes dispositivos tinham como objetivo a regulação da infância inadaptada, identificando as famílias que escapavam das normas e precisavam algum tipo de intervenção, seja educativo-corretiva ou jurídica. Sendo as crianças do lar o foco das intervenções, a "mulher-mãe" se tornou a peça estratégica para o governo da família. O êxito de sua moralização passa a depender do posicionamento da mulher como vigia dos hábitos familiares.

Donzelot (1980) faz uma descrição das estratégias governamentais que passariam a operar neste século sobre a família excluída, funcionando numa tensão constante entre liberalização e tutelarização. Por um lado, várias ações são previstas para que a família se gerencie de forma autônoma, por meio do automonitoramento a partir das normas. Mas, na medida em que a família se mostra incapaz de conduzir-se autonomamente, os mecanismos tutelares entrariam em cena para corrigir os desvios. Passam então a operar nas famílias excluídas racionalidades híbridas, entre o incentivo e a ameaça, delineando tecnologias liberais que hegemonizariam o século XX.

 

O Programa Bolsa Família (pbf) como dispositivo2 de governo

Segundo Ramos (2016), a pobreza é determinada por cada sociedade ao fixar níveis mínimos de bem estar e participação social. Estes padrões definem paralelamente situações sociais inaceitáveis ou carências intoleráveis. Esta classificação de inaceitável/intolerável se fundamenta em critérios normativos constituídos pelos grupos sociais sobre o que é bom, desejável e aceitável. Paralelamente, Paugam (2003) afirma que a pobreza se define, em boa parte, na relação estabelecida entre o Estado e os excluídos, a partir do vínculo destes com a assistência social. O ingresso nas redes assistenciais marcaria um antes e um depois na vida dos sujeitos, que obrigatoriamente devem passar por um processo de categorização acionado pelo saber técnico estatal, a partir da aplicação de instrumentos de medição da pobreza e focalização da política social. Esta operação é denominada por Ramos (2016) como dimensão privada da pobreza, ou seja, a progressiva e permanente penetração do Estado na vida privada dos assistidos. A pobreza, desta forma, deve ser uma situação socialmente reconhecida e sancionada pelo Estado através da etiqueta social "assistido/beneficiário". Desta forma, o estatuto social dos pobres fica, ao menos em parte, definido pelas instituições estatais que os classificam e lhes fornecem assistência.

Por exemplo, no Brasil, o instrumento Cadastro Único (CadU) é a porta de entrada a todos os benefícios do Plano Brasil sem Miséria, política pública que inclui uma série de programas sociais complementares na melhoria das condições de vida das famílias em situação de pobreza. O ingresso ao sistema implica necessariamente uma operação de categorização dos sujeitos, classificados primeiramente como "pobres" ou "extremadamente pobres", passando posteriormente a adquirir a condição de "beneficiários" de diversos programas sociais.

Dentro do Plano Brasil sem Miséria, o Programa Bolsa Família (PBF) se transformou na grande estratégia de luta contra a fome e a pobreza. Originado no ano 2003, durante o governo de Luiz Inácio Lula da Silva, seu objetivo é promover a inclusão social e acesso a direitos sociais, além de incrementar a renda familiar através de uma transferência condicionada ao cumprimento de certos deveres por parte da família. Além disso, o PBF contempla a participação dos membros da família em programas focados no desenvolvimento de capacidades individuais. Estas ações atuam como elementos estruturantes para consolidar os resultados do PBF a médio e longo prazo. O PBF parte da premissa de que existe uma parte da população excluída do desenvolvimento que precisa de apoio do Estado para alcançar um patamar mínimo, indispensável para integrar-se com melhores ferramentas na sociedade. O PBF tem como objetivo final a inclusão social das famílias, vinculando-as a uma rede de proteção que amplie o acesso a oportunidades e reduza o risco do retorno à situação de exclusão.

O papel da mulher dentro do PBF é fundamental, sendo a beneficiária titular por excelência (Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, 2013). A mulher é o nexo articulador entre o governo e a família, na gestão tanto do benefício econômico como das condicionalidades. As condicionalidades são contrapartidas que asseguram o compromisso das famílias e garantem o exercício de direitos, por meio do acesso à educação e saúde, elementos centrais para a superação intergeracional da pobreza. Complementarmente, o PBF aciona outras estratégias que incrementam o nível de autonomia dos beneficiários, buscando uma saída permanente da pobreza. Para isto o PBF vai se vincular com rede do Brasil sem Miséria, com ações nos âmbitos de assistência social, emprego e geração de renda. Seu objetivo final será que as famílias não precisem do apoio estatal, alcançando a autonomia através de capacidades instaladas que as mantenham fora das linhas de pobreza.

Após alguns anos de funcionamento, algumas críticas foram questionando os fundamentos do PBF. Lavergne (2012), por exemplo, considera que o PBF pode ser entendido como uma estratégia biopolítica de governo da população que atua através do dispositivo familiar. O autor afirma que o PBF acionaria uma série de pontos de fixação das famílias (escola, posto de saúde e centro de assistência social) através das condicionalidades, os quais permitiriam uma intervenção na intimidade da família e subjetividades de seus membros.

Para Rose (1998), o modo de subjetivação promovido pela familiarização inclui a responsabilização e o envolvimento ativo dos sujeitos na superação da pobreza. Eles devem se engajar ativamente, incrementar suas capacidades, para assim conduzir-se autonomamente. Nesta lógica, a causa e solução do problema da pobreza dependeriam da capacidade dos indivíduos. Sem embargo, as famílias em situação de pobreza vivem numa condição que as limita estruturalmente, deixando-as com poucas possibilidades de escolha. Apesar de o Estado dispensar uma assistência com o objetivo de compensar esta desvantagem, os pobres se encontram numa situação de vulnerabilidade, com risco constante de retornarem à exclusão. A situação de pobreza caracteriza-se pela fragilidade, instabilidade, dependência de fatores externos e restrição da possibilidade de escolha, situação paradoxal na sociedade neoliberal, que estimula a proatividade e responsabilização do sujeito.

Por outra parte, algumas críticas feministas afirmam que a gestão do dispositivo familiar realizada pelo PBF é possibilitada pela instrumentalização da mulher, o que permite ativar mudanças na família (cônjuge, filhos, etc.). A mulher é posicionada como vigia das relações familiares, principalmente através das condicionalidades que, ao recaírem preferencialmente nelas, as tornam responsáveis pela saúde e educação das crianças, reforçando seus "deveres de mãe", transformando-as em vigias das condicionalidades (R. Silva, 2011). O cumprimento das condicionalidades traz um beneficio monetário importante para a família, que funciona como um "estímulo reforçador" para que a mulher exerça seus deveres maternos. Nesta linha, Mariano e Carloto (2009) afirmam que o PBF ativa mecanismos que reforçam a associação da mulher com a esfera reprodutiva e a sobrecarrega de novos deveres. As autoras argumentam que no PBF as categorias "mulher" e "mãe" tornam-se equivalentes no discurso, gerando efeitos subjetivantes, na medida em que "a estratégia de inclusão e de interpelação das mulheres supõe a seguinte operação ideológica: mulher = mãe ou família = mãe" (Mariano & Carloto, 2009, p. 5).

Outras autoras também defendem esta hipótese (Klein, Meyer, & Borgues, 2013; Meyer, 2005) e destacam que nas políticas públicas contemporâneas se observa a substituição do termo "mãe" por "família", posicionando a mulher e suas funções maternas no centro da família. Para Mariano e Carloto (2009), isto obedeceria a uma revalorização da família por políticas como o PBF, as quais substituem "a demanda por empoderamento das mulheres por demandas que visam o fortalecimento das famílias" (p. 5). O "familismo" implica uma operação em que "a defesa da família é operacionalizada com foco nas funções femininas, logo essas políticas familistas reforçam a associação da mulher à maternidade" (Mariano & Carloto, 2009, p. 8).

 

Enfoque e contextualização da pesquisa

A pesquisa, de enfoque qualitativo, visa analisar as práticas discursivas que constituem os modos de subjetivação de mulheres beneficiárias do PBF do contexto rural da Zona da Mata de Pernambuco. Busca-se também compreender como o contexto rural dá especificidade a estes modos de subjetivação. Tentou-se, também compreender o papel exercido pelo PBF na constituição da subjetividade das mulheres beneficiárias. Finalmente, a pesquisa analisou se o PBF atua reforçando modos de subjetivação hegemônicos, especificamente as posições de sujeito "mulher-mãe", "indivíduo-empreendedor" e "indivíduo-pobre".

O contexto rural da Zona da Mata de Pernambuco caracteriza-se por ter a produção da cana de açúcar como sua principal atividade econômica (Rodrigues & Rollo, 2000). Durante as décadas de 80 e 90, crises econômicas prejudicaram esta atividade econômica, o que causou uma importante redução da renda média da população rural, incrementando-se os índices de pobreza. Nesta região, a Reforma Agrária permitiu que muitos trabalhadores obtivessem a posse de terras, mas inicialmente os assentamentos se encontravam em condições precárias, com carências nas áreas de infraestrutura, produtividade, crédito, saúde, educação, saneamento, energia e água. Mesmo que políticas públicas tenham beneficiado esta região nas últimas décadas, muitos destes problemas ainda persistem. No que diz respeito à situação das mulheres na região, Dourado et. al. (1999, citado por M. Silva, 2002) afirmam que sua presença na produção da cana de açúcar existe desde a colonização. Simultaneamente, se desempenham como agriculturas na unidade produtiva familiar, além de cumprirem com labores "femininas": cuidar dos filhos, família e casa.

Para entender as características heterogêneas do rural pernambucano, consideramos os conceitos de ruralidade tradicional, moderna e socioambiental, propostos por Brandemburg (2010). No paradigma tradicional, destaca-se o papel da pequena propriedade familiar e as redes sociais, formadas pela família extensa e a comunidade. Nesta forma de vida, um grau de autonomia relativa é desenvolvido pelas famílias, que produzem alimentos para o auto-consumo e ativam uma pequena indústria doméstica, que obtêm produtos para serem consumidos ou comercializados. Na racionalidade moderna altera-se a vida social somente focada na família ou na comunidade proximal, com o camponês integrando-se ao mercado, seja como consumidor ou comerciante. O trabalho assalariado fora da unidade de produção familiar é um das principais consequências da modernização, como também o êxodo rural. Finalmente, na ruralidade socioambiental convivem lógicas diversas, coexistindo formas de vida em que racionalidades se misturam, onde se cruzam valores tradicionais e modernos. Ambos os referenciais tornam-se relevantes na configuração de formas de vida e de identidades das pessoas do campo. Podemos afirmar que, nas sociedades contemporâneas, existe um agricultor "familiar-moderno" que, ao mesmo tempo em que se integra no mercado como consumidor/comerciante em busca de bens e serviços, guarda laços profundos com a tradição camponesa que lhe foi herdada familiarmente.

Os critérios de inclusão dos sujeitos da pesquisa foram: ser mulher, maior de 18 anos, ter ao cuidado crianças/adolescentes menores de 18 anos, ser beneficiária do PBF e habitar na Zona da Mata de Pernambuco. Como ferramenta de coleta de dados se utilizou a entrevista semiestruturada, aplicadas a seis mulheres. Em termos gerais, podemos dizer que as participantes são habitantes da região da Mata Sul de Pernambuco, dos municípios Rio Formoso e Tamandaré. Vivem nas comunidades rurais Amaragi, Siquiera e Sauezinho, a distintos graus de distancia do centro urbano municipal. As idades das entrevistadas variam entre os 22 e os 45 anos. A quantidade de filhos por família varia entre um e oito. Os níveis de renda das famílias dependem da existência ou não de algum tipo de salário fixo (emprego ou aposentadoria). Sobre o nível educacional, as mulheres mais novas apresentam níveis mais altos (ensino médio) que as mais velhas (ensino fundamental ou sem instrução). Todas têm como atividade principal a agricultura, seja de autoconsumo, comercialização ou emprego agrícola por temporada na produção de cana de açúcar. O contato com as mulheres se realizou por meio do Centro Sabiá, ONG atuante no território que fornece assistência técnica para as agricultoras através do Programa ATER. Na seguinte tabela se especificam alguns dados de cada uma das participantes:

 

 

O material, coletados através das entrevistas, foi interpretado segundo a análise crítica do discurso (Fairclough, 2001), analisando-se a constituição das subjetividades através do conceito de posicionamento. Para identificar as práticas discursivas, foram selecionadas as citações relevantes durante as entrevistas. Em seguida, as citações foram categorizadas em função da temática. Estes procedimentos permitiram a identificação de três práticas discursivas: família, ruralidade e PBF. A partir de então, foram identificados os posicionamentos predominantes nos relatos das mulheres.

Na medida em que a análise crítica do discurso contempla a flexibilidade na análise, foi incluído o uso de recursos metafóricos (Lakoff & Johnson, 2009) e retóricos (Potter, 1998). Os recursos metafóricos foram selecionados porque os modos de subjetivação se definem, em parte, a partir do uso de metáforas estruturantes. Os recursos retóricos foram selecionados por existirem elementos nos discursos que naturalizam qualidades/características dos indivíduos, contribuindo para a constituição de posições de sujeito essencialistas.

 

Resultados da pesquisa

A partir da análise do corpus das entrevistas, identifica-se a posição de sujeito "mulher-mãe" como uma das mais importantes na definição das subjetividades das entrevistadas. As principais funções da mulher-mãe são cuidar, criar e educar filhos, as tarefas domésticas e administração do lar. Esta posição de sujeito vai determinar qualidades maternas essenciais. As seguintes virtudes atribuídas à boa mãe: ser paciente, presente, cuidadosa, atenciosa e carinhosa. As entrevistadas vão se auto-posicionar como "boas mães" e posicionar outras mulheres como "más mães". A má mãe é impaciente, ausente, descuidada, desatenta, fria e abandona seus filhos. Elas também se auto-posicionam como "boas esposas", julgando como "tolas" ou "estragadas" que não cumprem o papel de boas administradoras do lar.

As entrevistadas se atribuem igualmente a responsabilidade de cuidar, educar e moralizar as crianças do lar. Para as famílias que vivem em condição de pobreza, a prioridade consiste em satisfazer as necessidades básicas dos filhos, principalmente a alimentação. Outra prioridade é proteger as crianças dos perigos externos (drogas, vícios, más amizades, abandonar os estudos, precocidades sexual), que podem entorpecer sua formação. Nas palavras das entrevistadas, a missão da mulher-mãe será levar os filhos "pelo caminho certo".

No que diz respeito à educação escolar dos filhos, esta responsabilidade inclui desde tarefas básicas até acompanhar o rendimento escolar e encorajá-los a terminar seus estudos. O abandono da escola é um dos principais temores das entrevistadas. As mulheres mostram otimismo sobre o futuro dos filhos, considerando que as oportunidades estão disponíveis para quem mostre "interesse" e "esforço", atribuindo o êxito a fatores individuais (motivação, proatividade, etc.). O êxito educacional está relacionado à obtenção de um emprego "digno" e acesso a melhores condições de vida. O sonho das entrevistadas é ver seus filhos tornarem-se profissionais para alcançarem um melhor status social.

Com relação à família extensa, ela se apresenta como uma rede solidária para enfrentar a pobreza. O papel da mulher nesta rede social feminina é estratégico e está vinculado à tarefa de cuidar dos filhos. Observaram-se também estratégias solidárias como dividir gastos de comida, plantio/comercialização conjunta de produtos, troca de apoio material (comida, dinheiro, roupas) e cuidado coletivo das crianças.

Sobre a vida no contexto rural, o elemento mais valorizado pelas mulheres é a propriedade da terra, relevante para a vida familiar e produtiva, fonte de alimentação, geração de renda e autonomia. Outras características positivas da ruralidade são a tranquilidade, ser um lugar adequado para criar os filhos e a existência de redes de solidariedade familiares/comunitárias. Por outro lado, algumas características negativas foram identificadas; como o desemprego, baixos salários e más condições laborais.

Sobre o trabalho, este é um elemento fundamental de reconhecimento social e de configuração das subjetividades das mulheres. O trabalho é definido de duas formas. Primeiro, como emprego assalariado, considerado o "emprego digno" ou "verdadeiro emprego". Sendo este escasso, as famílias dependem de serviços esporádicos ("bicos"), que trazem rendas intermitentes e instáveis. A este conceito se associam também os problemas do desemprego e baixos salários, indicados como causas principais da pobreza.

Em segundo lugar, o trabalho é definido como "forma de vida", eixo articulador dos costumes, rotinas e da divisão sexual de funções na família rural. Os trabalhos rurais são fonte de alimentação e renda através da comercialização de produtos. As atividades rurais são definidas como "trabalhos pesados", por suas difíceis condições, grandes esforços físicos e baixas rendas. Estes trabalhos passam de geração em geração e orientam o processo de socialização na família, marcado pela divisão entre um espaço de dentro (casa) e fora (rua) (Wedig & Menasche, 2013). As mulheres trabalham em ambos os espaços, numa dupla jornada de trabalho. Mesmo sendo em algumas situações as provedoras principais, ocasionalmente isto não modifica as relações de gênero na família.

Identificamos nos relatos das entrevistadas uma filosofia de vida que pode ser caracterizada como uma "épica da luta", com as seguintes características: 1) Pluriatividade (diversos modos de sobrevivência); 2) Proatividade (correr atrás das oportunidades); 3) Instabilidade, insegurança e incerteza; 4) Pouco poder de planejamento futuro (presentismo); 5) Ética do esforço pessoal; 6) Vinculação do êxito a fatores individuais; 7) O "trabalho pesado" como fonte de orgulho (narrativa heróica). Esta épica da luta constitui subjetivamente as mulheres como "mães-lutadoras".

As entrevistadas definem a pobreza através das noções "fome" e "renda", o que induz distinções. O fato de poder satisfazer as necessidades básicas permite diferenciar "pobres" de "miseráveis". A categoria "miséria" está relacionada a condições de vida indignas e inumanas, enquanto que a "pobreza" está vinculada à falta de renda. Também a posição de sujeito "pobre-humilde", norma de origem religiosa, prescreve que se deve agradecer a Deus e levar uma vida austera.

No que diz respeito à percepção das mulheres sobre o PBF, o benefício monetário é considerado uma ajuda muito relevante para o orçamento familiar. A noção de "ajuda" implica que a principal responsabilidade de sair da pobreza é das famílias e não do Estado, visão coerente com a racionalidade neoliberal (Rose, 1998). O benefício é uma renda fixa e segura, previsibilidade que dá segurança e possibilidade de planejamento. O benefício é considerado como um "quase salário", só que não provém do esforço pessoal. Observa-se que a renda familiar depende em grande medida do benefício do PBF; portanto, existe medo permanente a perdê-lo. As mulheres pensam que o valor recebido deve ser utilizado em favor dos filhos. Ele traz mudanças importantes para as mulheres, como maior autonomia financeira e melhora da autoestima.

Observa-se na vida das famílias, uma tensão entre os binários autonomia/dependência e certeza/incerteza. Por um lado, a renda do PBF é a única renda estável, mas não encaixa na norma do esforço pessoal. Por outro lado, a renda que provém das atividades produtivas rurais se enquadra na lógica das mães-lutadoras, mas se caracteriza pela incerteza. O PBF assegura a satisfação das necessidades básicas, permitindo às famílias distanciar-se do risco de voltar à miséria ("tempos da fome"), mas elas vivem ainda ameaçadas pela insegurança. Este alto grau de incerteza e instabilidade caracteriza uma situação de inclusão social fragilizada, típica da pobreza nas sociedades capitalistas (Castel, 2005).

Sobre o papel das condicionalidades do PBF, estas se transformam em novos deveres para a mulher-mãe, esta vez estimulados pelo Estado. Essas responsabilidades também são reforçadas pela ameaça de perder o benefício. As condicionalidades são instrumentos utilizados para incentivar a mulher a cumprir suas obrigações, aproveitando suas qualidades de mãe para conseguir objetivos a nível familiar (Foucault, 2008). O PBF vai reforçar a divisão sexual do trabalho já existente e usá-la estrategicamente para cumprir seus objetivos.

Os programas que complementam a ação do PBF são, segundo as mulheres, escassos ou inexistentes, limitando-se a iniciativas isoladas e pouco efetivas. A experiência relatada coincide com as observações de Santos e Magalhães (2012), que apontam uma deficiente implementação de programas complementares. Sendo assim, as famílias têm dificuldades para alcançar maior autonomia, devido às poucas alternativas de inserção laboral, situação agravada pela decaída economia da região onde habitam. Esta situação compromete a efetividade do PBF nos objetivos de autonomizar as famílias e incluí-las socialmente pela via laboral. Já no longo prazo, o PBF consegue implementar ações preventivas efetivas com foco nas crianças, através de suas condicionalidades, elemento central para a superação inter-geracional da pobreza.

 

Discussão

Observamos, através da pesquisa, que a subjetividade das mulheres participantes é constituída por práticas discursivas heterogêneas. Consideramos, neste sentido, que a ideia de articulação, proposta por Hall (1996, citado por Meyer, 2005), pode ser útil, já que destaca a confluência contingente de múltiplos elementos discursivos que se complementam na configuração de subjetividades num determinado contexto. No contexto estudado, diversos discursos configuram as subjetividades das mulheres entrevistadas, operando através de vários dispositivos (políticas públicas, comunidade, igreja, mídias, família, instituições escolar e de saúde, etc.). Estes dispositivos se articulam para reproduzirem certas normas sociais que são incorporadas pelos indivíduos. Nesta articulação, alguns elementos discursivos têm o poder de constituir-se como "verdades" normativas (Rose, 1998) que restringem as possibilidades de questionamento das posições de sujeito hegemônicas, reduzindo as chances de acionar estratégias de resistência à construção de outras formas de subjetividade.

Observamos que a norma da maternidade, originada no modelo da família nuclear burguesa (Badinter, 1991) naturaliza posições de gênero fixas3 (Scott, 1995), posicionando as mulheres como mães e esposas, no âmbito do privado. A posição de sujeito mulher-mãe é construída no discurso de forma essencialista (Potter, 1998), prescrevendo as qualidades morais naturais de uma boa mãe. Através desta norma as mulheres entrevistadas vão se julgar e julgar as outras no exercício da maternidade.

A norma do indivíduo-empreendedor (Rose, 1998) se materializa na filosofia da "épica da luta" identificada no discurso das mulheres, filosofia que se fundamenta na ética do trabalho e na ideologia da meritocracia (Souza, 2009). Apesar do conceito pertencer a outro paradigma epistemológico, acreditamos que a lógica da meritocracia explica o fato de as mulheres exibirem a tendência a atribuir a fatores individuais o êxito ou fracasso no mundo escolar ou laboral. Essa visão individualista convive paralelamente com uma situação de constante incerteza enfrentada pelas entrevistadas, o que nos permite afirmar que estas se constituem como selfs-empreendedores fragilizados. Outra norma subjetivante opera através das categorias pobre/miserável, sendo a miséria relacionada a condições de vida inumanas e a pobreza a uma situação de carência de renda. A partir destas categorias, as mulheres se posicionaram como "pobres, mas não miseráveis". Estas duas normas vão configurar as subjetividades das entrevistadas entanto mães pobres lutadoras. Por último, uma norma da humildade será um modelo moral que o pobre deve seguir originado no discurso religioso. Esta norma configura as subjetividades das entrevistadas entanto mães pobres humildes.

Estas normas, em geral, atuam através dos mecanismos de auto-posicionamento, posicionamento dos outros e re-posicionamento descritos por Fairclough, (2001). O auto-posicionamento permite posicionar os outros, classificando-os através de categorias essencialistas (Potter, 1998). Também permite o reposicionamento quando, no ato de julgamento, se exige a quem tem se desviado da norma a enquadrar-se novamente dentro dos comportamentos prescritos. Estas normas moralizantes permitem o governo de si e dos outros (Foucault, 1984, citado por Castro, 2007). A atualização destas normas acontece nas relações sociais possibilitadas pelas práticas discursivas. As posições de sujeito determinadas por estas normas prescrevem quem "devemos ser"; portanto, possuem um caráter moralizante.

Observamos que nas diversas práticas discursivas emergem alguns binários que atuam na constituição da subjetividade das mulheres. Os binários masculino/feminino e público/privado são ativados pelo modelo da família nuclear burguesa, prescrevendo posições de gênero fixas, posicionando a mulher no espaço privado, como esposa e mãe. Sobre o binário família/sociedade, seguindo as ideias de Brandemburg (2010), a vida das mulheres parece tensionada, tanto por um sistema social organizado em torno de laços familiares e comunitários tradicionais, quanto pelo funcionamento da lógica da competência e meritocracia, na qual indivíduos sem vínculos afetivos nem solidários devem competir por oportunidades limitadas, lógica própria das relações societárias modernas.

Observamos também que os binários estável/instável e moderno/tradicional configuram o conceito de trabalho, distinguindo-se os empregos (modernos) dos trabalhos rurais como forma de vida (tradicionais). Os primeiros são caracterizados pela segurança, entanto que os segundos não cumprem as condições do trabalho assalariado fixo e estável.

O binário controlabilidade/incontrolabilidade vai implicar que, ao mesmo tempo em que fatores individuais permitem que o sujeito controle sua vida, simultaneamente elementos externos afetam as vidas dos indivíduos em situação de pobreza, gerando um estado de constante incerteza. O binário dependência/autonomia é um eixo configurador da experiência de viver em pobreza, que flutua entre a exigência de autonomização do sujeito e fatores externos incontroláveis que o tornam dependente. Por exemplo, na épica da luta, as mulheres vão-se atribuir a capacidade de controlar suas vidas, mas, ao mesmo tempo, fatores incontroláveis aparecem determinando seus destinos, sendo a pobreza caracterizada como uma experiência marcada pela incerteza.

Por outro lado, o PBF tensiona o binário segurança/insegurança, sendo o benefício considerado uma renda estável que depende do Estado, benefício que em qualquer momento pode ser perdido. Esta situação recria as condições de insegurança próprias das sociedades capitalistas modernas (Castel, 2005).

No que diz respeito às modalidades de influência do contexto rural nas subjetividades das mulheres, observa-se que a propriedade da terra vai servir de base para as formas tradicionais e modernas de vida rural. A partir das atividades produtivas rurais vai se configurar a filosofia da "vida como luta" das mulheres batalhadoras do campo. Na ruralidade, a "luta" das mulheres se expressa através de atividades rurais (trabalhos pesados) que implicam um grande esforço pessoal. A produção para o auto-consumo torna-se um fator central para amortecer a situação de pobreza, trabalho que é fonte de orgulho e dignidade para a mulher agricultora.

Outra qualidade importante da ruralidade será a rede de laços solidários familiares/comunitários, característica que tensiona os binários público/privado e família/sociedade. Como descreve Brandemburg (2010), as formas de vida rural se configuram entre uma lógica tradicional de solidariedades e uma lógica moderna, onde a lógica da meritocracia tenta hegemonizar as relações sociais dos habitantes do campo. Como destacamos, na ruralidade coexistem racionalidades que se misturam, onde o tradicional e o moderno se resignificam, ambos atuando na configuração das subjetividades.

Sobre a influência do PBF na subjetividade das mulheres, concluímos que o PBF forma parte de uma rede de dispositivos que reforçam as posições de sujeito mulher-mãe, indivíduo-empreendedor e indivíduo-pobre. O PBF, ao não questionar estes modos de subjetivação, reforça, através de suas ações e omissões, estas normas da subjetividade. Observamos que as famílias ainda vivem uma situação de dependência, pelos obstáculos à participação na vida produtiva. Isso é reforçado pela deficiente implementação de programas de qualificação ou geração de renda e também pelo contexto local de crise econômica. Os impactos mais significativos do PBF são o benefício econômico, o que permite satisfazer necessidades básicas e gera mudanças significativas nas vidas das mulheres, e as condicionalidades, que contribuem à superação da pobreza intergeracional.

Em relação à situação de inclusão social fragilizada das famílias analisadas, nossos resultados são complementares ao diagnóstico de Souza (2009), que afirma que na sociedade brasileira não existem ainda ações efetivas para gerar equidade nas condições sociais entre classes, como nas sociedades desenvolvidas, que vêm construindo condições para o desenvolvimento de capacidades mínimas para competir no mundo social.

Sem embargo, este discurso das "capacidades/oportunidades" não questiona que o sistema social seja naturalmente competitivo. Ao contrário, devemo-nos adaptar a ele, desenvolvendo habilidades para competir com êxito. A ideia de desenvolver as competências mínimas necessárias para a inclusão social não questiona o funcionamento do sistema individual, liberal e capitalista. A metáfora da "vida como luta" construída pelas mulheres não é por acaso, já que as metáforas representam valores dominantes da sociedade (Lakoff & Johnson, 2009). Essa metáfora é um reflexo da "vida como competência", metáfora estruturante central da sociedade neoliberal. Como afirma Souza (2009), a única forma de nos tornarmos sujeitos é conscientizar-nos das regras do jogo da sociedade neoliberal. Esperamos que os resultados aqui apresentados contribuam abrindo espaços de crítica destes consensos sociais implícitos, possibilitando mudanças sociais.

No que diz respeito às limitações do estudo, tendo a investigação um caráter qualitativo e estando situada num contexto particular, seus resultados não podem ser considerados generalizáveis. As reflexões aqui expostas oferecem elementos para alimentar a discussão sobre temáticas como Programa Bolsa Família (PBF), inclusão social, gênero, governamentalidade e modos de subjetivação, através do diálogo com outras pesquisas de similares características.

Após a realização de nossa pesquisa, no ano 2016, começou um período marcado por uma crise econômica que causou aumento do desemprego e inflação. Também vivenciamos um contexto de crise social e política sem precedentes no Brasil, que chegou a seu ápice com o impeachment da presidenta Dilma Rousseff. A partir desse momento observou-se uma drástica modificação de prioridades e ênfases nas políticas sociais, implementadas pela gestão de Michel Temer (2016-2018). Parece-nos então relevante orientar nosso olhar para os efeitos que terão tais mudanças sobre o PBF e as possíveis repercussões na vida das mulheres beneficiárias. Isto será tema de uma nova pesquisa, tese de doutorado, onde esperamos acompanhar a trajetória das mulheres beneficiárias do PBF entre os anos 2015 e 2018, dando continuidade à pesquisa de mestrado aqui apresentada.

 

Referências

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Endereço para correspondência:
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Telefone para contato: (81) 98625-1699
E-mail: baradit.claudio@gmail.com

Recebido em 13.dez.17
Aceito em17.abr.19
Revisado em 16.out.19

 

 

1. Artigo produzido a partir de dissertação de mestrado finalizada no ano 2016, no Programa de Pós-graduação em Psicologia da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Esta pesquisa foi financiada pela CAPES e aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos (CONEP) da UFPE, CAAE: 81177317.1.0000.5208.
2. Entendemos o conceito de dispositivo como um conjunto heterogêneo de práticas de saber, poder e subjetivação (Weinmann, 2006).
3. Scott (1995) define o gênero como "um elemento constitutivo de relações sociais baseadas nas diferenças percebidas entre os sexos" (p. 86). A autora agrega que o gênero se compõe de quatro elementos inter-relacionados que atuam para caracterizar as diferenças entre masculino e feminino num determinado contexto social. Estes elementos são os símbolos culturais, os conceitos normativos, as instituições sociais e a identidade subjetiva. Ademais, uma qualidade fundamental do gênero é dar significado às relações de poder, nos âmbitos cotidianos e da política.
Claudio Baradit Muñoz, mestre em psicologia pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), é doutorando em Psicologia no Programa de Pós-graduação em Psicologia (PPG-Psi) da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), e investigador do Laboratório de Interação Social Humana (LabInt) da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).
Elaine Magalhães Costa Fernandez, doutora em psicologia pela Universidade Toulouse le Mirail (UTM), França, pós-douta em psicologia intercultural pela Universidade de Toulouse Jean-Jaurès (UT-JJ), França, é professora permanente do Programa de Pós-graduação em Psicologia (PPG-Psi) da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). E-mail: elainef@free.fr

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