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Estudos de Psicologia (Natal)

versão impressa ISSN 1413-294Xversão On-line ISSN 1678-4669

Estud. psicol. (Natal) vol.24 no.3 Natal jul./set. 2019

http://dx.doi.org/10.22491/1678-4669.20190032 

DOI: 10.22491/1678-4669.20190032

PSICOLOGIA SOCIAL COMUNITÁRIA E SAÚDE MENTAL

 

Formação profissional em uma atividade vivencial em saúde mental: Grupo Comunitário de Saúde Mental

 

Professional education in an experiential activity in mental health: Mental Health Community Group

 

Formación Profesional en una actividad vivencial en salud mental: Grupo Comunitario de Salud Mental

 

 

Bruna Cardoso PinheiroI; Cármen Lúcia CardosoI

IUniversidade de São Paulo

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Objetivou-se compreender as experiências de estudantes e profissionais em processo de formação com uma atividade vivencial em saúde mental, denominada Grupo Comunitário de Saúde Mental (GCSM) e os desdobramentos de sua apropriação no percurso de formação profissional. Adotou-se uma abordagem qualitativa, de natureza exploratória, tendo como instrumento a entrevista aberta. Participaram cinco estudantes e 10 profissionais em formação de diferentes áreas da saúde. Para a análise utilizou-se o método de Análise de Conteúdo Temática. Foram elaboradas duas categorias: O lugar profissional no GCSM; A horizontalidade das relações no GCSM. Considera-se que a proposta vivencial, presente no modelo do GCSM apresenta contribuições tanto do ponto de vista técnico da formação, quanto em relação ao desenvolvimento humano dos profissionais. Destaca-se que este estudo traz avanços para se pensar a formação realizada em serviços-escola no campo da saúde mental e que tal compreensão pode colaborar com a consolidação do modelo psicossocial de atenção.

Palavras-chave: saúde mental; capacitação de recursos humanos em saúde; serviços de saúde mental; educação superior.


ABSTRACT

The objective of this study was to understand the experiences of students and professionals in process of education in an experiential activity in mental health, named Mental Health Community Group (MHCG), and the unfolding of its appropriation throughout professional education. A qualitative exploratory approach was adopted, and open interviews were used as data collection instrument. Study participants were five students and 10 professionals studying in different healthcare areas. Analysis was conducted using the thematic content analysis technique. Two categories were created: The professional place in the MHCG, and The horizontality of relationships in the MHCG. The experiential proposal, in the MHCG model, presents contributions both from the technical point of view of education, and in relation to the human development of professionals. This study promotes reflection on the education provided in teaching services in the mental health area and this understanding can contribute to consolidate the psychosocial care model.

Keywords: mental health; health human resources training; mental health services; higher education.


RESUMEN

Se trató de comprender las experiencias de estudiantes y profesionales en proceso de formación con una actividad vivencial en salud mental, denominada Grupo Comunitario de Salud Mental (GCSM) y los desdoblamientos de su apropiación en el curso de formación profesional. Se adoptó un enfoque cualitativo, de naturaleza exploratoria, teniendo como instrumento la entrevista abierta. Participaron cinco estudiantes y 10 profesionales en formación de diferentes áreas de la salud. Para el análisis se utilizó el método de Análisis de Contenido Temático. Se elaboraron dos categorías: El lugar profesional en el GCSM y la horizontalidad de las relaciones en el GCSM. Se considera que la propuesta vivencial, presente en el modelo del GCSM ofrece contribuciones tanto desde el punto de vista técnico de la formación, como con relación al desarrollo humano de los profesionales. Se destaca que este estudio trae avances para pensar la formación realizada en servicios-escuela en el campo de la salud mental y que tal comprensión puede colaborar con la consolidación del modelo psicosocial de atención.

Palabras clave: salud mental; capacitación de recursos humanos em salud; servicios de salud mental; educación superior.


 

 

O campo da atenção à saúde mental no cenário brasileiro passou por uma série de transformações paradigmáticas, visando à superação da lógica manicomial e consolidação do modelo psicossocial de atenção, pautado pelas noções de desinstitucionalização, reabilitação psicossocial e emancipação da pessoa em sofrimento psíquico. Se por um lado observou-se nas últimas décadas uma considerável expansão dos serviços substitutivos, por outro ainda permanecem como desafios a superação da lógica manicomial no cotidiano dos serviços e a efetiva consolidação de um modelo de atenção à saúde mental aberto e de base comunitária visando, além do acesso, a qualificação e ampliação das ações e serviços (E. C. Pereira & Costa-Rosa, 2012; Vasconcelos & Paulon, 2014).

Nesse contexto ganha destaque a questão da formação dos profissionais de saúde mental, considerando que a saúde mental é uma área essencialmente "recursos humanos-dependente", ou seja, a principal tecnologia utilizada é a própria pessoa do trabalhador (Poz, Lima, & Perazzi, 2012, p. 632). Quando se considera a formação profissional em saúde mental, tomando como base o modelo de atenção psicossocial em vigor no Brasil (Ministério da Saúde, 2011), observa-se uma série de entraves, incluindo: o currículo, que na maioria dos cursos de graduação e pós-graduação na área da saúde é construído em torno de disciplinas fragmentadas, com ênfase na superespecialização e no uso de tecnologias específicas (A. A. Pereira, Reinaldo, & Andrade, 2015); a baixa carga horária destinada a disciplinas de saúde mental, assim como a carência de estágios práticos supervisionados e pouca ênfase nos aspectos psicossociais e comunitários (A. A. Pereira et al., 2015; Villela, Maftum, & Paes, 2013). Tal situação leva a uma disparidade entre a formação recebida pelos profissionais e as exigências que se colocam no cotidiano dos serviços de saúde mental.

Portanto, quando se considera o processo de transformação do modelo de atenção em saúde mental, é fundamental analisar o papel ocupado pelos profissionais na consolidação e expansão de tal modelo. Torna-se indispensável preparar os profissionais para atuar dentro de uma lógica pautada pela integralidade do cuidado, auxiliando-os a desenvolver habilidades e competências coerentes aos novos dispositivos de atenção e um posicionamento permanentemente crítico perante os desafios e impasses colocados pela prática (Poz et al., 2012).

Tendo em vista esta realidade, a IV Conferência Nacional de Saúde Mental propôs a implantação de uma política de especialização, educação permanente, capacitação e investimento em projetos de pesquisa e metodologias voltadas à área da saúde mental. Nesse contexto, diversos programas sob o incentivo do Ministério da Saúde e do Ministério da Educação vêm sendo desenvolvidos, com o intuito de promover uma melhor articulação entre a formação profissional e a política assistencial (Ministério da Saúde, 2011).

Entre estas iniciativas se destaca o Programa Nacional de Reorientação da Formação Profissional em Saúde (Pró-Saúde), que em articulação ao Programa de Educação Pelo Trabalho em Saúde (PET-Saúde) vem desenvolvendo projetos associados a diferentes redes de atenção em saúde, incluindo a rede de atenção psicossocial (Ministério da Saúde, 2011). Apesar das dificuldades postas por um processo ainda em construção, experiências de integração ensino-serviço como as desenvolvidas pelo Pró/PET-Saúde têm sido reconhecidas como estratégias privilegiadas para a reorientação da formação em saúde/saúde mental, na medida em que favorecem o contato dos estudantes com as dinâmicas, desafios e dificuldades dos serviços; ao mesmo tempo em que oportunizam um processo de maior autoria por parte dos estudantes em seu processo formativo, colocando-os em contato com diferentes atores sociais, incluindo pacientes, profissionais do serviço, docentes e comunidade (S. H. S. S. Batista, Jansen, Assis, Senna, & Cury, 2015; Rézio, Caetano, Borges, & Fortuna, 2017).

Inspiradas por esta lógica, instituições de ensino superior vêm desenvolvendo diferentes projetos e iniciativas, tomando por base a formação em serviço e a educação permanente, no intuito de proporcionar uma formação em saúde/saúde mental mais ampliada e afinada às necessidades dos serviços e aos princípios da Reforma Psiquiátrica (Jesus & Araújo, 2011; Lima & Santos, 2012; Otanari, Leal, Campos, Palombini, & Pereira, 2011). Considerando a importância de tais experiências, que estimulem a criação de espaços de formação, afinados aos pressupostos da Reforma Psiquiátrica e que favoreçam o desenvolvimento de um olhar mais integral para a questão da saúde mental, o presente estudo tem como objeto um programa desenvolvido na cidade de Ribeirão Preto - SP, denominado Grupo Comunitário de Saúde Mental (GCSM), que vem atuando como estratégia de ampliação e diversificação dos programas de cuidado em saúde mental e que constitui espaço de formação profissional em saúde/saúde mental.

O GCSM é desenvolvido desde 1997 no Hospital-Dia do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, da Universidade de São Paulo (HD-HC-FMRP-USP). Além do grupo desenvolvido no contexto do Hospital-Dia, o trabalho tem se expandido para outras localidades, incluindo Unidades Básicas de Saúde (UBS), Unidades de Saúde da Família (USF), Espaço de Cultura e Extensão Universitária (ECEU), bem como para outras cidades (Cardoso & Ishara, 2013). Constitui um programa de cuidado à saúde mental, com propósitos educativos, terapêuticos e de promoção de saúde (Loureiro, 2013). São objetivos do programa: no plano individual - promover um exercício continuado de reflexão acerca das experiências cotidianas e de aprofundamento pessoal, associado a um trabalho de construção grupal; no plano coletivo - oferecer uma nova modalidade de cuidado em saúde mental, aberta à comunidade e pautada pela construção compartilhada de uma rede de cuidado, e diversificar e complementar os programas de saúde mental já existentes (Cardoso & Ishara, 2013).

Loureiro (2013) afirma, ainda, que em relação ao ensino o GCSM possui como objetivo colaborar no processo de formação de estudantes e capacitação de profissionais da saúde mental, articulando as experiências pessoais e profissionais. Destaca-se que o GCSM integra as atividades rotineiras do Hospital-Dia, serviço-escola que recebe estudantes e profissionais de diferentes áreas, incluindo: residentes de Psiquiatria, aprimorandos e estagiários de Psicologia, Assistência Social, Terapia Ocupacional, Enfermagem, Fisioterapia e Educação Física. Nesse contexto, geralmente, todos os estudantes e profissionais em formação são convidados a participar do GCSM, apresentando um tempo variável de participação no espaço, que pode se estender conforme interesse dos mesmos.

Em relação à construção teórico-metodológica do GCSM, ressalta-se que foi um processo desenvolvido a partir da interlocução profícua entre várias inspirações teóricas e a prática clínica, articuladas à observação sistemática e a investigação científica. Entre as fontes precursoras, destacam-se as contribuições conceituais e práticas fundadas em paradigmas da Atenção Psicossocial em saúde mental; os conceitos advindos da Psicologia Social de Pichón Rivière e a sua instrumentalização através dos Grupos Operativos; o diálogo com a fenomenologia clássica, especialmente, em relação às concepções de pessoa humana1, empatia, comunidade, bem como o conceito de Experiência Elementar, presente nas proposições de Giussani. Conforme apontado, o GCSM se constitui como um programa desenvolvido, a partir do conhecimento empírico, vindo da própria prática da modalidade que em diálogo com os referenciais teóricos citados, vem se constituindo em uma modalidade inovadora e original (Ishara & Cardoso, 2013).

O GCSM é desenvolvido com base em uma lógica de horizontalidade, que coloca todos os participantes em condições de serem protagonistas do processo de ajuda, considerando que a proposta de atenção às experiências cotidianas pode ser vivenciada por qualquer pessoa. Os estudantes e profissionais em formação são inseridos na atividade na condição de participantes, ocupando posição simétrica aos demais integrantes do grupo. O trabalho acontece semanalmente e segue o formato de rodas de conversa, com duração em média de uma hora e trinta minutos (Cardoso & Ishara, 2013).

Inicialmente, um coordenador ou mais coordenadores introduzem a proposta de trabalho ao grupo, acolhendo e localizando os participantes em relação à tarefa grupal. Em seguida são apresentadas as etapas que compõem o processo de trabalho e que são estruturadas em três momentos: "Sarau" – que consiste em um exercício de reflexão e apropriação das vivências construídas através do contato com a cultura, por meio de produções artísticas, literárias, jornalísticas, entre outras, que podem ser compartilhadas pelos participantes com o grupo; "Relato de Experiências" – nesse momento os participantes são convidados a compartilhar experiências pessoais e a realizar um exercício de aproximação, elaboração e aproveitamento dos acontecimentos cotidianos, seja através de seu próprio relato ou através da escuta do relato do outro; e "Elaboração do Trabalho Grupal" - realiza-se nessa etapa um fechamento do trabalho, através de uma reflexão sobre as repercussões pessoais do que foi compartilhado e vivenciado no grupo, assim como uma reflexão sobre o processo grupal (Cardoso & Ishara, 2013).

Destaca-se que o GCSM não se constitui como um grupo terapêutico clínico tradicional, centrado nas queixas dos participantes e na relação paciente-terapeuta, mas assume uma multiplicidade de arranjos relacionais, em que o coordenador figura como mediador do grupo, compartilhando e vivenciando a proposta de trabalho, juntamente aos demais participantes (Rocha, 2015). Ressalta-se, ainda, que o Programa GCSM não se restringe a um dispositivo técnico, adotado em um serviço de saúde mental, mas representa uma proposta teórico-metodológica de grupo, que busca proporcionar um modelo diferenciado de cuidado em saúde mental. Assim, considerando que o GCSM, em seu processo histórico vem se consolidando como espaço de cuidado, ensino e pesquisa e que sua proposta encontra-se afinada ao modelo de atenção psicossocial, esta pesquisa teve como objetivo compreender as experiências de estudantes e profissionais em processo de formação com uma atividade vivencial em saúde mental - o Grupo Comunitário de Saúde Mental (GCSM) - e os desdobramentos de sua apropriação no percurso de formação profissional em saúde/saúde mental.

 

Método

O presente estudo foi desenvolvido com base em uma abordagem qualitativa, de natureza exploratória, utilizando a análise de conteúdo temática (Bardin, 1977/2011) como método para a análise do corpus ou material de pesquisa. A Análise de Conteúdo Temática consiste em um "conjunto de técnicas de análise da comunicação, visando obter, por procedimentos sistemáticos e objetivos de descrição do conteúdo das mensagens, indicadores que permitam a inferência de conhecimentos relativos ao modo como tais mensagens foram produzidas, transmitidas e recebidas" (p. 48).

O contexto da pesquisa foi o Hospital-Dia (HD/ HCRP/FMRP/USP). Trata-se de um Hospital Universitário que tem como um de seus compromissos a capacitação de futuros profissionais em saúde mental (Lorenzi et al., 2012). A escolha do HD como contexto de estudo deu-se em função do mesmo representar o local onde se iniciou o Grupo Comunitário de Saúde Mental, que se encontra sistematizado e consolidado neste espaço, assim como por acolher estudantes e profissionais em processo de formação em saúde mental, que desenvolvem diferentes atividades dentro deste serviço.

Participaram deste estudo estudantes das áreas de Enfermagem (três graduandos), Terapia Ocupacional (um graduando) e Fisioterapia (um graduando); e profissionais em formação das áreas de Psicologia (um aprimorando de Psicologia), Medicina (oito residentes de Psiquiatria) e Serviço Social (uma aprimoranda de Serviço Social), totalizando 15 participantes. Os critérios de inclusão para participação no estudo foram: 1) Possuir 18 anos completos ou mais; 2) Ter frequentado o GCSM por no mínimo cinco encontros possuindo, assim, certo grau de conhecimento da proposta.

O período de coleta do material compreendeu os meses de agosto de 2015 a fevereiro de 2016. O corpus do estudo foi constituído por entrevistas abertas e individuais, com duração aproximada de sessenta minutos, realizadas em locais e dias acordados com os participantes e audiogravadas e transcritas na íntegra. O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa. Ressalta-se que os nomes apresentados neste estudo são fictícios, visando preservar a identidade dos participantes.

 

Resultados e discussão

A partir da análise das entrevistas foram construídas duas categorias temáticas2: 1) O lugar profissional no GCSM; 2) A horizontalidade das relações no GCSM. Para apresentação de tais categorias, visando maior visibilidade e compreensão, foram utilizados fragmentos dos depoimentos dos participantes.

O Lugar Profissional no GCSM

Essa categoria aborda a vivência pessoal dos estudantes e profissionais em formação com o Programa GCSM, com ênfase na questão do lugar profissional, uma vez que são pessoas que se encontram em processo de formação profissional. Destaca-se que o termo "lugar" foi adotado em preferência ao de "papel", por entender este associado a uma noção prescritiva, a um conjunto de funções, atribuições e comportamentos que circunscrevem determinado modo de agir, enquanto que lugar contém uma ideia tanto de identificação e pertencimento, quanto de posição dinâmica que se delineia no espaço afetivo-relacional do grupo.

Os contatos iniciais dos participantes com o GCSM se caracterizaram pelo estranhamento, em relação às especificidades de sua proposta de trabalho. Diversamente de experiências anteriores com grupos terapêuticos ou clínicos, centrados nas queixas e problemas dos pacientes, os entrevistados se depararam com um formato de grupo aberto à comunidade, heterogêneo em sua composição e orientado para um exercício de reflexão acerca das experiências cotidianas. Diante desse cenário, os participantes relataram uma dificuldade inicial de compreensão da proposta grupal, como sugere o relato a seguir.

No início, não entendia direito, né, porque eu nunca tinha visto nada parecido [...] Eu lembro de ter ficado muito assim em dúvida, porque fugia muito do padrão dos outros grupos lá do Hospital-Dia e daqui do hospital (Geral), dos outros grupos que eu tinha participado durante a residência. [...] Então, eu realmente não entendi direito o que que tava acontecendo ali, porque as pessoas levavam música, poema e depois falavam algumas coisas que tinham acontecido no dia-a-dia delas, só lembro de ficar muito confuso (Jorge, médico, residente de Psiquiatria do 3º ano).

Conforme se observa por meio do depoimento de Jorge, um dos fatores de estranhamento apontado pelos participantes diz respeito à estruturação do encontro grupal em três momentos: Sarau, Relato das Experiências e Elaboração do Trabalho Grupal. Considerando a novidade desse modelo mostrou-se necessário certo tempo, bem como maior exposição dos participantes à tarefa grupal, de modo a se familiarizarem e compreenderem os propósitos de tal organização. Além dos aspectos estruturais, os estudantes e profissionais descreveram, ainda, uma dificuldade inicial de compreensão e vivência do lugar profissional proposto pelo GCSM, tendo em vista que se trata de um modelo de interação horizontal, que coloca todos os participantes na condição de colaboradores e construtores da tarefa grupal, sem estabelecer distinções no que tange a posições ou atribuições específicas entre seus membros. A este respeito apresenta-se o relato de Rodrigo, segundo o qual:

Você fica um pouco confundido, assim, na sua função ali, porque minha função ali não é ser coordenador, né, a minha função ali não é tá pensando o que que tá acontecendo, é... eu tô ali pra sentir o grupo e pra participar como um membro do grupo, como tão os pacientes, como tão as outras pessoas da equipe e como às vezes, eu vejo que os coordenadores participam, se emocionam. (Rodrigo, médico, residente de Psiquiatria do 2º ano).

Observa-se que os estudantes e profissionais em formação chegam ao GCSM com algumas concepções a respeito da coordenação e dinâmica de participação em grupos de saúde mental, com destaque para a centralização na figura de um coordenador e diferenciação entre profissional e paciente. De modo diverso, no espaço do GCSM se veem diante de uma lógica de cuidado que subverte as posições tradicionalmente ocupadas por pacientes e profissionais, rompendo com os limites entre aquele que ajuda e aquele que é ajudado no grupo.

Nesse contexto, por estarem familiarizados com outro lugar profissional em seu processo formativo, no qual são estimulados a assumir a organização e o controle do processo de cuidado, os participantes relataram uma dificuldade inicial de se desprender de uma posição de autoridade e centralidade, na qual pensam e desenvolvem o cuidado para o outro, de modo a experimentar outro lugar profissional, em que vivenciam o cuidado com o outro.

[...] no início, eu pensava assim, eu fui muito com essa coisa, assim, "ah, eu sou residente e estou participando" e aí eu achava, assim, que inclusive eu tinha que entender o que tava acontecendo ali pra, muitas vezes, ajudar meus pacientes lá do Hospital-Dia que participassem do Grupo Comunitário a levar também alguma coisa, muito assim pensando ainda, tipo eu pra ajudar eles e não sentia que o grupo também era pra mim (Jorge, médico, residente de Psiquiatria do 3º ano).

Observa-se uma circunscrição inicial das possibilidades de participação e aprendizagem no espaço do grupo, associada a uma tradicional de(limitação) dos lugares de paciente e profissional, que sugere uma dificuldade em experimentar um modelo de cuidado no qual o profissional também se inclui, vivencia e compartilha a tarefa grupal, podendo afetar e ser afetado pelos arranjos que ali se processam, bem como expressar tal afecção diante dos demais participantes.

Barros (2006) destaca que a formação dos profissionais de saúde ainda é marcada predominantemente por um modelo prescritivo, que assume as características de "treinamento" previamente estabelecido e centrado na transmissão sequencial e vertical de conhecimentos, visando como produto um modelo profissional/pessoal "ideal", que uma vez adquirido capacita o profissional a desempenhar suas atribuições eficazmente. Nesse sentido, a autora chama a atenção para os riscos de se produzir uma naturalização de modelos e discursos, que perpassam a formação e a prática profissional em saúde, restringindo as possibilidades criativas de reinventar e problematizar o próprio fazer.

Além da dificuldade de experimentar um modelo diferente, os depoimentos dos entrevistados revelaram como obstáculo à vivência do lugar profissional proposto pelo GCSM, uma lógica de formação e atuação profissional que pressupõe a cisão entre as dimensões de "pessoa" e "profissional", conforme explicitado pelo depoimento do participante João:

Eu acho que no começo foi um pouco difícil porque é um modelo diferente, né, de grupo, você não tá lá só como profissional. [...] Então num primeiro momento foi um pouco difícil no sentido de eu me soltar, rir, eu acho que eu me sentia um pouco preso no começo, [...] acho que por tá acostumado com outro modelo de grupo, de atendimento, de você tá só como profissional, você não tá como pessoa (João, psicólogo, aprimorando de Psicologia).

Nota-se uma oposição entre estar no grupo na condição de "participante-pessoa" e participar do grupo na condição de "profissional". Destaca-se que o termo "pessoa", conforme empregado pelos entrevistados mostrou-se associado às dimensões afetivas, relacionais e sociais do humano, bem como aos valores, crenças e a maneira singular do sujeito de compreender e conduzir a própria vida, enquanto que o termo "profissional" foi utilizado em um sentido de ação instrumentalizada do sujeito, legitimada por um conjunto de conhecimentos e técnicas, específicas a determinado campo profissional. Dessa forma, observa-se uma cisão entre o ser "pessoa" e o ser "profissional", fragmentando a totalidade do sujeito e reduzindo o ato do profissional de saúde às suas dimensões técnicas e instrumentais.

Independentemente de possíveis dificuldades de natureza individual, percebe-se através das experiências narradas pelos entrevistados uma dada concepção de cuidado em saúde, que pressupõe a cisão entre as dimensões técnica-instrumental e relacional-afetiva na ação do profissional. Nesse sentido, remete-se a uma lógica formativa perpassada pela racionalidade biomédica, paradigma ainda hegemônico nas profissões de saúde, embora em permanente tensão com o modelo biopsicossocial, que propõe atualmente outra racionalidade no desenvolvimento do cuidado em saúde. Ressalta-se que o paradigma biomédico fundamenta-se em uma racionalidade que compreende corpo e doença como objetos, com ênfase na dimensão biológica do adoecimento (Nogueira, 2010) e adoção de um conceito negativo de saúde, ou seja, a saúde é pensada em uma relação de dependência à doença, como sua ausência, desconsiderando os diferentes aspectos existenciais, culturais, subjetivos, sociais e espirituais que compõem tanto a experiência de saúde como de adoecimento (Costa & Bernardes, 2012).

Segundo Arruda e Arruda (2010), o pensamento linear e fragmentado, herdeiro do paradigma cartesiano, ainda se mostra infiltrado na formação e prática dos profissionais de saúde, perpetuando as clássicas dicotomias corpo/mente e razão/emoção. Assim, o estudante geralmente é exposto ao longo do seu processo formativo a uma lógica que desconsidera a complexidade do humano, centraliza a aprendizagem sobre os aspectos biológicos do adoecer e negligencia a questão emocional, associando-a a presença de "ruído" no processo de aprendizado. Ou, muitas vezes, quando a questão relacional é incorporada aos cursos de saúde é feita de uma forma prescritiva, como ação instrumental que estabelece princípios como "saber ouvir", "acolher", que se centram muito mais no olhar técnico do que na vivência emocional do estudante (Silva Junior, Pontes, & Henriques, 2006).

Outro elemento a ser considerado é que por ser o GCSM um espaço de cuidado em saúde mental, a experiência dos entrevistados com o mesmo desvelou uma dimensão sutil, que diz respeito ao estigma em relação ao adoecimento mental. Tal questão pode ser ilustrada pelo depoimento do participante Antônio, que destaca:

[...] acho que... tá totalmente como pessoa acho que não seria possível, porque aí implicaria eu não saber olhando, por exemplo, pro fulano, pro beltrano eu sei que o fulano é do Hospital-Dia, que beltrano só vem pra participar do Grupo [...] porque lá é um lugar que, por exemplo, lá não se usa o jaleco. Ainda que não se use o jaleco, mas dá pra fazer uma diferenciação de quem é membro de equipe fixa, equipe móvel e quem são os clientes ou os pacientes pelo tipo de vestuário. Indiretamente, você consegue identificar, acaba tendo uma pequena segregação e fazer esse contato, de expor essa experiência, muitos não fazem porque acaba sendo um limite falar, "ah, eu ainda sou profissional aqui participando, mas prefiro não me expor" (Antônio, médico, residente de Psiquiatria do 3º ano).

O depoimento de Antônio sugere um medo da identificação com o lugar de "paciente/doente", que leva a uma demarcação do lugar de "profissional" por meio da adoção de barreiras, como expõe o entrevistado em relação ao vestuário dos participantes. Nesse sentido, observa-se que a cisão pessoa/profissional vivenciada pelos estudantes e profissionais em formação no espaço do GCSM perpassa também por um fenômeno que representa um entrave à efetiva consolidação do modelo psicossocial: a permanência de uma lógica manicomial manifesta, frequentemente, de forma sub-reptícia, por meio de gestos, posturas, olhares, relações institucionais, interprofissionais e interpessoais que objetificam a pessoa em sofrimento psíquico e reafirmam como legítima a assimetria de direitos e poderes (Oliveira, 2009).

A sutileza deste processo pode ser observada através de estudos que analisaram a presença de estigma em relação ao sofrimento psíquico entre profissionais de saúde mental (Barretto, 2016; L. T. M. B. Batista, 2013; Figueiras, 2010). Conforme apontam essas pesquisas, o estigma geralmente se manifesta entre os profissionais, por meio de sentimentos, crenças e atitudes que são reproduzidos cotidianamente, de forma naturalizada ou encoberta, sem que se tome consciência do caráter estigmatizante dos mesmos, incluindo: a rotulação diagnóstica; a restrição da liberdade de participação dos pacientes nas escolhas de tratamento, baseada em uma crença de incapacidade dos mesmos; o pessimismo e descrença dos profissionais em relação ao tratamento e recuperação dos pacientes, bem como em suas capacidades (L. T. M. B. Batista, 2013; Figueiras, 2010); e o desejo de distância social em relação à pessoa em sofrimento psíquico, particularmente na esfera privada, geralmente, associado a um receio do próprio profissional de adoecer mentalmente (Barretto, 2016; Figueiras, 2010).

Assim, percebe-se que as dificuldades descritas pelos participantes deste estudo em relação à vivência do lugar de "pessoa" no GCSM apresentam uma série de nuances, tais como: uma lógica formativa que fragmenta não apenas o conhecimento, mas a pessoa e a ação do profissional de saúde/saúde mental em seu componente técnico-instrumental e relacional-afetivo; os desafios inerentes à consolidação do novo modelo de atenção em saúde mental; bem como a superação de um modelo hierarquizado e verticalizado que perpassa historicamente a construção das profissões de saúde.

Apesar das dificuldades, com o decorrer do tempo e participando mais sistematicamente da atividade, os participantes puderam se familiarizar com a proposta grupal relatando maior espontaneidade e segurança para se colocar de maneira mais pessoal no espaço do GCSM e contribuir com o trabalho realizado, como sugere o relato seguinte.

E aí, a medida do tempo, eu acho que eu fui me vendo como participante do grupo, saindo desse papel aí meio que eu tô aqui como médico e tudo e que eu acho que vinha muito pra suprir uma insegurança, né, como lidar tanto com meus pacientes, como lidar com as minhas próprias coisas e fui podendo deixar, sair desse lugar pra me tornar um participante. [...] eu passei a aproveitar o grupo pra mim mesmo, muito assim no sentido de me ajudar e no sentido de eu ajudar os outros como um participante, mas não como aquela coisa assim "ah, eu sou o residente, que tá aqui participando do grupo", participar mesmo e se fosse pra eu ajudar alguém, ajudar mesmo com as minhas contribuições, como outro participante, como todo mundo que tava ali. (Jorge, médico, residente de Psiquiatria do 3º ano).

Conforme explicitado pelo depoimento de Jorge, alguns entrevistados descreveram um movimento de transformação, no que tange a maneira de vivenciar e participar do GCSM, podendo se apropriar do espaço enquanto lugar de aprendizagem, trocas e crescimento pessoal. Tal movimento não se deu de forma mecânica e no caso dos estudantes e profissionais em formação entrevistados demandou a construção de vínculo com o grupo, bem como de maior segurança para se colocar no espaço na condição de pessoa, reconhecendo a mesma como parte integrante e não oposta do ser profissional de saúde/saúde mental. Nota-se que esse movimento de maior integração expandiu as possibilidades de aprendizagem e vivência de outro lugar profissional, delineado no espaço do grupo através da experiência singular de cada sujeito.

Barros (2006, p. 140-141) destaca a importância de se pensar a formação tendo por base uma "política de invenção", que evite cair tanto no extremo do "saber especialista", que se julga pronto e acabado, quanto no extremo da "problematização ociosa", ou seja, que não leva à ação. Portanto, a formação como política de invenção deve procurar manter uma tensão permanente entre a ação e a problematização, assumindo a incerteza como motor propulsor do conhecimento, mas sem se deixar paralisar, ousando novas práticas, novos jeitos de pensar e fazer, que devem ser continuamente problematizados de modo a impulsionar o movimento criativo e criador.

Nota-se, no caso dos entrevistados, que essa possibilidade de se inventar de outro modo como estudante e profissional de saúde/saúde mental no espaço do GCSM, não significou o abandono da bagagem construída ao longo de seu percurso formativo, mas um repensar, um problematizar a respeito da mesma, se colocando de forma ativa no processo criativo de sua própria formação. Importante destacar que este movimento relatado por alguns dos estudantes e profissionais em processo de formação entrevistados, não dependeu exclusivamente da compreensão teórica da proposta do GCSM, mas mostrou-se como fundamental, ao longo deste processo de experimentar-se como pessoa no grupo, a vivência pessoal da proposta.

Abrahão e Merhy (2014) propõem que a formação em saúde seja vivida como um "acontecimento" e não simplesmente como "representação", ou seja, que o processo formativo não se reduza à assimilação e interpretação de conceitos, mas que estes conceitos possam ser vividos, sentidos, experimentados, trazendo novas possibilidades de significação e ação a partir daquilo que toca o sujeito. A análise dos depoimentos dos estudantes e profissionais aponta a possibilidade de, apesar das dificuldades, vivenciar a proposta do GCSM como "acontecimento" e não apenas como "representação", ou seja, de gradativamente se permitir ser tocado, afetado pelos encontros e pelas trocas que ali se processam, de se abrir para si mesmo e para o outro e experimentar nesses encontros diferentes dimensões que compõem o humano: objetiva, subjetiva, emocional, sensorial, relacional, entre outras.

A horizontalidade das Relações no GCSM

Essa categoria temática abrange as relações vividas pelos estudantes e profissionais em formação no espaço do GCSM, com destaque para a vivência da proposta de horizontalidade, construída no espaço. Para os entrevistados, o convite realizado pelo GCSM de se colocarem no espaço em condição semelhante aos demais participantes, representou uma oportunidade de experimentarem uma nova forma de contato e relação com os pacientes e demais membros do grupo, conforme explicitado pelo depoimento a seguir.

Então, acaba que você vê um pouco, eu me via um pouco identificado nos pacientes, assim, vê que tinha uma identificação, que na relação médico-paciente eu era o médico e o paciente era o paciente. Então, aí foi transformando em pessoa-pessoa e agora eu acho que no Grupo eu não vejo mais os pacientes assim, "ah, tal pessoa tem um transtorno de personalidade, tal pessoa", mas assim, aquela pessoa aproveitou uma experiência desse jeito, o que eu posso aproveitar dela (Miguel, médico, residente de Psiquiatria do 1º ano).

Nota-se uma modificação na relação estabelecida com o outro, de verticalidade, em que uma das partes oferece ajuda e a outra recebe para maior horizontalidade e reciprocidade, em que pode haver troca e ambas as partes podem se beneficiar da relação. Ao mesmo tempo observa-se que essa possibilidade de estabelecer relações mais recíprocas permite ressignificar o lugar e o valor que o outro ocupa na relação, na medida em que este outro pode contribuir e enriquecer a própria experiência do profissional. Destaca-se que este movimento não se refere a uma redução do sofrimento da pessoa do paciente, mas carrega em si como potencialidade o estabelecimento de um encontro mais autêntico, que se guie pelas necessidades e possibilidades humanas da díade.

Nessa perspectiva de maior abertura para si mesmo e para o outro se percebe o resgate de valores propriamente humanos, como a autenticidade, dignidade, solidariedade, afetividade e o respeito à individualidade humana (Backes, Koerich, & Erdmann, 2007). Conforme apontam Puggina e Silva (2009), para empreender o resgate daquilo que é próprio ao humano faz-se necessário considerar a dimensão ética. Assim, humanizar as relações e práticas em saúde perpassa pela adoção de valores que orientem positivamente a vida e tal tarefa não pode ser mecanicamente construída, uma vez que depende das vivências, concepções, valores e afetos dos sujeitos (Backes et al., 2007; Puggina & Silva, 2009). Nesse ponto a proposta do GCSM de ser uma experiência vivencial parece favorecer, de acordo com os relatos dos participantes dessa pesquisa, uma maior abertura para si mesmo e para o outro, ampliando o olhar acerca do humano, com suas potências e limitações, podendo superar reducionismos e estabelecer novas possibilidades de encontro humano com o outro, o que implica numa ampliação das possibilidades de atuação profissional.

Nesse contexto, a literatura aponta a necessidade de criação de espaços que favoreçam o desenvolvimento do futuro profissional do ponto de vista da pessoa humana, valorizando e integrando ao processo educativo aquilo que torna o sujeito um ser humano único, de modo que o mesmo possa se identificar, se reconhecer e sentir-se implicado com aquilo que está sendo produzido (Backes et al., 2007; Martins & Albuquerque, 2007). No entanto, esta não constitui tarefa fácil, visto que implica em um processo de mudança em relação a um modelo idealizado de profissional de saúde, reconhecido como detentor do conhecimento, da autoridade e do controle sobre o processo de cuidado em saúde, assim como pelo contato do mesmo com suas próprias fragilidades e limitações e com o "não saber", o que rompe com o processo histórico de construção das profissões da saúde marcado pela superioridade do saber do profissional sobre o não-profissional e que estabelece relações de dependência, tutela e vigilância sobre o outro (Mattos, 2008). Tal questão pode ser mais bem elucidada pelo depoimento de Rodrigo, que destaca:

Eu lembro quando eu falava no Grupo Comunitário, os pacientes falavam assim 'nossa' e eu acho que era bom pra eles, assim, é bom a gente ver que o médico também é gente, que o médico tem sofrimento, que o médico chora. [...] Pra mim era muito bom, porque me aproximava deles, entende, e me tirava um pouco dessa noção que eu tinha antes assim sabe, dessa coisa, dessa rigidez que eu tinha e que tá dentro de um certo ideal, né, que se faz a respeito dessa figura do médico [...] e você adora esse lugar, né, é bom, é confortável, só que é vazio e aí muitas vezes o paciente faz esse convite pra que você fique ali, ele precisa de alguém nessa posição pra salvar ele daquele sofrimento, só você ali vai poder salvar, só que isso não é o que acontece, entende, isso é um pouco irreal e aí eu ver os pacientes desmistificando isso dentro deles e eu poder desmistificar isso dentro de mim, entende, é uma coisa que me aproximava deles e me aproximava de mim (Rodrigo, médico, residente de Psiquiatria do 2º ano).

Nota-se que a vivência da proposta de horizontalidade no espaço do GCSM, na medida em que favorece maior proximidade da pessoa do profissional com o outro e consigo mesmo suscita uma série de questionamentos acerca das imagens e noções geralmente construídas em torno da figura do profissional de saúde, incluindo: um sujeito "onipotente", "sobre-humano", "saudável", que "não tem sofrimentos" e que "detém respostas prévias para os problemas do outro". Ao mesmo tempo em que este processo parece favorecer um contato mais realista do profissional consigo mesmo, exige o enfrentamento de uma série de barreiras, incluindo o medo da exposição e vulnerabilidade diante do outro, numa oscilação entre a onipotência (o profissional que sabe tudo e tem respostas) e a impotência (uma pessoa só com limites e fragilidades), representando um desafio a possibilidade de encontro com a própria potência.

Ressalta-se que a ruptura com este modelo idealizado de profissional de saúde e a possibilidade de ressignificação do lugar de profissional como pessoa humana que estabelece relações de cuidado com outra pessoa humana só é possível em relação, pois conforme assinala Santos (2001, p. 269): "não há emancipação em si, mas antes relações emancipatórias", considerando que, assim como relações de poder, de dependência, de tutela são reproduzidas por sujeitos em relação, sua ruptura e transformação também são de responsabilidade desses mesmos sujeitos, nas relações construídas.

 

Considerações finais

A presente pesquisa teve como foco as experiências de estudantes e profissionais em processo de formação com uma atividade vivencial em saúde mental - o Grupo Comunitário de Saúde Mental - no intuito de apreender as repercussões e desdobramentos da apropriação de tal vivência em seu percurso de formação profissional em saúde/saúde mental. Conforme sugere a análise do corpus, a horizontalidade das relações proposta no espaço do grupo suscitou uma série de questionamentos por parte dos entrevistados, acerca do lugar do profissional de saúde/saúde mental em um contexto de cuidado e dos modos de relação profissional-paciente. De maneira geral, os entrevistados relataram que com a participação mais sistemática na atividade ocorreu uma mudança em seu modo de participar do GCSM, com maior abertura para vivenciar o encontro com os demais participantes e compartilhar experiências pessoais.

Considera-se que este estudo traz contribuições no que tange a formação profissional em saúde/saúde mental. Auxilia ainda o debate mais amplo acerca dos desafios que envolvem a reconfiguração da formação profissional na área da saúde, visando a sua reorientação para os princípios e diretrizes do SUS e especificamente no campo da saúde mental, para a consolidação do modelo psicossocial de atenção. Como limitação do presente estudo destaca-se que foi possível analisar o relato de uma pequena parcela de participantes do GCSM (estudantes e profissionais em formação), circunscrito a um dos locais de realização do mesmo. Nesse sentido, novos estudos são necessários visando aprofundar tal questão. Sugere-se o acompanhamento longitudinal de estudantes e profissionais em formação no GCSM, de modo a apreender as nuances desse processo de participação, bem como suas singularidades, generalidades e inter-relações com o contexto mais amplo de formação.

Com base na análise empreendida pode-se afirmar que a proposta vivencial, presente no modelo do GCSM apresenta contribuições tanto do ponto de vista técnico da formação, quanto no que tange ao desenvolvimento humano dos profissionais. Ao favorecer o resgate do sentido humano do cuidar, por meio da promoção de encontros entre pessoas, a proposta do GCSM revela como potência na formação profissional, o aprendizado de outras possibilidades humanas de estar e desenvolver o cuidado com o outro. Nesse sentido, traz avanços para se pensar na formação realizada em serviços-escola no campo da saúde mental, tendo em vista que a principal tecnologia utilizada nesta área é o próprio trabalhador.

 

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CEP: 14.040-901
Telefone (16) 3315-3660
Email: carmen@ffclrp.usp.br

Recebido em 30.jan.18
Revisado em 23.set.19
Aceito em 02.dez.19

 

 

1. O termo "pessoa humana" é utilizado na fenomenologia clássica, para especificar o que é próprio do humano, ou seja, a consciência de si, capacidade reflexiva, criativa, capacidade fazer escolhas e se posicionar diante dos acontecimentos, entre outros. Neste sentido não se trata de redundância, uma vez que muitas pessoas podem não atingir esse estatuto. Ver Stein, E. (2013). La struttura della persona umana (M. D'Ambra M., Trad.). Roma: Città Nuova: 2013. (Texto original publicado em 1933)
2. O presente artigo é um desdobramento de um estudo mais amplo, em nível de mestrado: Pinheiro, B. C. (2017). Grupo Comunitário de Saúde Mental: Formação de Recursos Humanos (Dissertação de Mestrado, Universidade de São Paulo, São Paulo). doi: 10.11606/D.59.2018.tde-20032018-132235. Ver também: Pinheiro, B. C., Ishara S., & Cardoso C. L. (2019). Grupo Comunitário de Saúde Mental: centralidade da pessoa humana no processo de formação. Revista de Medicina, 98(2), 120-131. doi: 10.11606/issn.1679-9836.v98i2p120-131
Bruna Cardoso Pinheiro, Mestre em Ciências pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo - USP. Email: bruna_cardoso_pinheiro@hotmail.com
Cármen Lúcia Cardoso, Livre Docente na área de Psicologia da Saúde pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo - USP, é Professora Associada da Universidade de São Paulo - USP, é Coordenadora do Laboratório de Processos de Subjetivação em Saúde (LaProSUS), vinculado à FFCLRP-USP.

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