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Estudos de Psicologia (Natal)

versão impressa ISSN 1413-294Xversão On-line ISSN 1678-4669

Estud. psicol. (Natal) vol.24 no.4 Natal out./dez. 2019

http://dx.doi.org/10.22491/1678-4669.20190038 

DOI: 10.22491/1678-4669.20190038

TEMAS EM POLÍTICAS SOCIAIS: ASSISTÊNCIA SOCIAL E SISTEMA DE GARANTIA DE DIREITOS

 

A família na Proteção Social Especial (CREAS/SUAS) e as questões de Gênero, Diversidade Sexual e Classe: uma revisão narrativa

 

The Family in Special Social Protection (CREAS/SUAS) and the issues of gender, sexual diversity and class: a narrative review

 

La Familia en la Protección Social Especial (CREAS/SUAS) y las cuestiones de género, diversidad sexual y clase: una revisión narrativa

 

 

Victor Cesar Amorim CostaI; Eleonora Schettini Martins CunhaII,III,IV

IUniversidade Federal do Rio Grande do Norte
IIUniversidade Federal de Minas Gerais
IIIPontifícia Universidade Católica de Minas Gerais
IVEscola do Legislativo da Assembleia Legislativa de Minas Gerais

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Parte dos desafios existentes à efetivação das garantias afiançadas pelo SUAS perpassa pela compreensão acurada dos conceitos centrais da proteção social especial e de suas críticas. O objetivo deste estudo é apresentar uma revisão crítica do conceito de família nos documentos oficiais e nas literaturas especializadas em gênero, diversidade sexual e classe, buscando evidenciar correspondências, discordâncias e suas implicações. O método utilizado foi a revisão narrativa. Os resultados apontaram o caráter progressista, porém limitado, da conceituação de família nos documentos oficiais, uma vez que existe um raro e precário elo entre teoria e prática no tocante ao conceito de matricialidade sociofamiliar e o acompanhamento especializado, sendo este relegado à discricionariedade daqueles que operam a política, nos equipamentos e na rede local.

Palavras-chave: assistência social; família; gênero; diversidade sexual; classe.


ABSTRACT

Part of the existing challenges to the implementation of the guarantees of SUAS is the accurate understanding of the central concepts of special social protection and its criticisms. The objective of this study is to present a critical review of the concept of family in official documents and in literature specialized in gender, sexual diversity and class, seeking to highlight correspondences, disagreements and their implications. The method used was the narrative review. The results pointed out the progressive but limited nature of family conceptualization in official documents, since there is a rare and precarious link between theory and practice regarding the concept of "family social matrix" and specialized monitoring, which is relegated to the discretion of those who operate politics, on the equipment and on the local network.

Keywords: social assistance; family; gender; sexual diversity; class.


RESUMEN

Parte de los desafíos existentes para la implementación de las garantías del SUAS es la comprensión precisa de los conceptos centrales de la protección social especial y sus críticas. El objetivo de este estudio es presentar una revisión crítica del concepto de familia en documentos oficiales y en literatura especializada en género, diversidad sexual y clase, buscando resaltar las correspondencias, los desacuerdos y sus implicaciones. El método utilizado fue la revisión narrativa. Los resultados señalaron la naturaleza progresiva pero limitada de la conceptualización de la familia en los documentos oficiales, ya que existe un raro y precario vínculo entre la teoría y la práctica en relación con el concepto de «matricialidad sociofamiliar" y el monitoreo especializado, que está relegado a la discreción de quienes operan la política, en los equipamientos y en la red local.

Palabras clave: asistencia social; familia; género; diversidad sexual; clase.


 

 

Nas últimas décadas, a proteção social não contributiva avançou no Brasil através da implementação do Sistema Único de Assistência Social (SUAS). Bronzo e Mendes (2016) realizaram uma análise descritiva desse sistema a partir de dados recentes e constataram que, a despeito do desenho institucional separar a prevenção a vulnerabilidades e aos riscos sociais, atribuída à Proteção Social Básica (PSB), da reparação e da prevenção ao agravamento de situações de violação de direitos, atribuída à Proteção Social Especial (PSE), a realidade apresenta as demandas por proteção de forma imbricada, sendo uma difícil barreira à efetivação do sistema.

Em seu estudo especificamente sobre a PSE, Duarte (2016) aponta ainda outros desafios. No tocante à prática profissional, um deles se refere à heterogeneidade do quadro de funcionários, muitos com pouco tempo de formação e que não necessariamente se sentem qualificados diante das demandas. Se aprofundarmos essa questão, por exemplo, no campo da psicologia, encontraremos a paulatina e veemente denúncia não apenas da falta de qualificação ou de qualificação precária, mas, também, da inadequação dos conhecimentos existentes e, consequentemente, da necessidade de desenvolvimento de novos conhecimentos em psicologia que atendam às demandas da assistência social no Brasil (Yamamoto, 2009; 2007; Yamamoto & Oliveira, 2010). Outro desafio apresentado por Duarte (2016) se refere à efetivação do papel afiançador e restaurador em situações de violação de direitos, a qual demandaria a necessária compreensão das delimitações e competências na política de assistência social, bem como a redefinição de processos de trabalho.

Considerando os desafios e necessidades postos acima, compreendemos que uma pequena, mas importante parte das soluções, passa pela compreensão acurada dos conceitos centrais da PSE e de suas críticas1. Mas quais conceitos são esses? E em que medida esses conceitos, para além dos documentos normativos e técnicos, encontram ou não ressonância na literatura especializada? Na Política Nacional de Assistência Social (PNAS) (Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome [MDS], 2005) encontramos vários conceitos centrais relacionados à PSE, como os de família, território, exclusão social, vulnerabilidade e risco social. Dentre eles, o conceito de família tem relevada importância, por estar no foco dos objetivos da política, em seus princípios e nas estratégias de organização das ofertas. Refletir sobre este conceito e seu rebatimento na PSE, especificamente no âmbito do Centro de Referência Especializado de Assistência Social (CREAS) nos parece fundamental, especialmente se foram consideras as críticas diante da literatura especializada em questões de gênero, diversidade sexual e classe, pois já foi dito que, em se tratando de política social, é necessário dar visibilidade e o devido tratamento às questões de gênero e diversidade sexual (Bandeira & Almeida, 2015; Prado & Machado, 2012). Isso sem se furtar à análise de suas relações com o modo de produção capitalista (Behring & Boschetti, 2011).

O objetivo deste artigo é apresentar uma revisão crítica do conceito de família nos documentos oficiais e em parte da literatura especializada em questões de gênero, diversidade sexual e classe, buscando evidenciar correspondências e discordâncias e as implicações teórico-práticas no âmbito do CREAS. O método utilizado foi a revisão narrativa da literatura. Num primeiro momento, os principais documentos oficiais de referência do CREAS foram revisados. Posteriormente, foram revisados os textos sobre questões de gênero, diversidade sexual e classe. Os resultados de ambas as revisões possibilitaram discorrermos sobre correspondências e discordâncias do conceito de família e suas implicações teórico-práticas no âmbito do CREAS. A escolha dos textos se deu de forma arbitrária considerando as leituras que o autor e a autora possuíam sobre tais questões, além da busca simultânea de outros textos de referência sobre as mesmas. Se, por um lado, o método adotado se caracteriza por não ser tão abrangente, por não poder ser reproduzido por outros autores e pelo fato de as informações relevantes serem escolhidas de forma arbitrária (Bernardo, Nobre, & Jatene, 2004), por outro lado, possui um papel fundamental para o conhecimento a respeito de uma temática específica (Rother, 2007), como é o caso deste texto.

 

A família na PSE da Política de Assistência Social

De acordo com a PNAS (MDS, 2005), documento normativo da assistência social no Brasil, a proteção social especial:

É a modalidade de atendimento assistencial destinada a famílias e indivíduos que se encontram em situação de risco pessoal e social, por ocorrência de abandono, maus tratos físicos e, ou, psíquicos, abuso sexual, uso de substâncias psicoativas, cumprimento de medidas sócio-educativas, situação de rua, situação de trabalho infantil, entre outras. (MDS, 2005, p. 37)

O referido documento expressa que as situações de risco podem demandar intervenções em problemas específicos ou abrangentes, necessitando estratégias de atenção sociofamiliar que objetivem "a reestruturação do grupo familiar e a elaboração de novas referências morais e afetivas, no sentido de fortalecê-lo para o exercício de suas funções de proteção básica" (MDS, 2005, p. 37).

Os serviços da proteção social especial se distinguem por requererem acompanhamento individualizado e uma significativa flexibilidade nas soluções protetivas. Tais serviços se organizam em média complexidade e alta complexidade (MDS, 2005). O CREAS é o equipamento público de abrangência municipal ou regional responsável pela oferta dos serviços de média complexidade. Este equipamento público deve ofertar, obrigatoriamente, o Serviço de Proteção e Atendimento Especializado a Famílias e Indivíduos (PAEFI), além de outros serviços como o de Proteção Social a Adolescentes em Cumprimento de Medida Socioeducativa de Liberdade Assistida e de Prestação de Serviços à Comunidade, o Serviço Especializado em Abordagem Social e o Serviço de Proteção Social Especial Para Pessoas com Deficiência, Idosas e suas Famílias, serviços esses cuja oferta está condicionada à existência de demandas no território (MDS, 2011).

No que se refere à família na PSE, sua conceituação irá variar de acordo com o documento oficial consultado, seja ele normativo ou de orientação técnica. A família é um dos temas primordiais à Política de Assistência Social no Brasil contemporâneo. A partir da PNAS (MDS, 2005), há a compreensão oficial de que as consequências tanto da crise econômica como das transformações no mundo do trabalho teriam determinado transformações fundamentais no âmbito privado, ressignificando, assim, as formas de composição e a função das famílias.

Nesse mesmo documento oficial se reconhece as fortes pressões com as quais os denominados processos de exclusão sociocultural estariam atuando sobre as famílias no Brasil, de maneira a fazer sobressair suas fragilidades e contradições, o que acabaria por justificar a centralidade da família no âmbito desta política. A família, então, passou a ser tomada como espaço "privilegiado e insubstituível de proteção e socialização primárias, provedora de cuidados aos seus membros, mas que precisa também ser cuidada e protegida" (MDS, 2005, p. 41).

Para a PNAS (MDS, 2005), a família seria uma instituição em transformação, considerando estar superada qualquer referência de tempo e lugar no tocante à sua conceituação. Desta forma, a família é compreendida como um conjunto de pessoas que se veem unidas por laços sejam eles consanguíneos, afetivos e/ou de solidariedade. Mais tarde, foi colocado de forma ainda mais explícita o entendimento oficial sobre a função e a organização da família, apontando expressamente que tais vínculos entre seus membros se referem à reprodução social e sobrevivência, pressupondo recíprocas obrigações, bem como o compartilhamento da renda e/ou dependência econômica (MDS, 2009). Mesmo fazendo a menção de todos esses laços de solidariedade e da função protetiva da instituição familiar, os documentos oficiais ressaltam que se trata, na verdade, de um espaço contraditório onde a violência e as desigualdades não deixam de marcar presença (MDS, 2005; 2011).

Também é necessário ressaltar que existem algumas variações nas abordagens dos documentos oficiais quanto à família em relação aos serviços socioassistenciais. Se na PNAS (MDS, 2005) é possível encontrar a expressão "reestruturação familiar", no documento de orientações técnicas do CREAS (MDS, 2011) evidencia-se um esforço para que se evite a categorização de famílias em estruturadas e desestruturadas, mas menciona, contudo, que o empoderamento das famílias e de seus membros poderá levar à "reconstrução" das relações familiares ou à "construção" de novas referências no âmbito familiar e comunitário (MDS, 2011). Percebemos, assim, a substituição ipsis litteris do termo reestruturação familiar por reconstrução familiar.

Todas essas asserções sobre o que vem a ser uma família e sua relação diante da política pública de assistência social acabam por serem resumidas num conceito central do SUAS, a saber, a matricialidade sociofamiliar. Esse conceito evidencia uma forma diferenciada de tratar a instituição familiar e foi utilizado para defender a centralidade da família e a necessidade de enfrentamento da focalização na política de assistência social (MDS, 2005; 2009; 2011).

Como visto até aqui, a direção que a intervenção estatal toma é sempre ancorada em premissas específicas a respeito da instituição familiar. É nesse sentido que entendemos ser imprescindível para a atuação profissional na PSE uma fundamentação teórica capaz de possibilitar uma perspectiva crítica frente ao aparato normativo e técnico oficial e às demandas do cotidiano da atuação profissional.

 

O debate sobre o conceito de família a partir das questões de gênero, diversidade sexual e classe

O conceito de família tem sido tensionado há algumas décadas por estudiosos de diversos campos do conhecimento. Adiante, apresentaremos parte do debate sobre o conceito de família relacionado às perspectivas críticas e interdisciplinares do campo das ciências sociais que tematizam a família em relação às questões de gênero, diversidade sexual e classe.

A Família e as Questões de Gênero e Diversidade Sexual

Matos (2015) nos diz que, a partir da perspectiva teórica e política de gênero, a forma como homens e mulheres se comportam em contextos sociais distintos é vista como sendo resultado de um intenso e longo processo de aprendizagem sociocultural de gênero, processo esse que ensina a cada um/uma a se comportar de acordo com as prescrições já colocadas para cada sexo, o que acaba por implicar sempre na existência de alguma expectativa e prescrição sociais em relação a como homens e mulheres, sejam eles heterossexuais ou homossexuais, devem andar, se sentar, mostrar seu corpo, falar, amar e cuidar do outro, por exemplo.

Ocorre que, enquanto construções sociais e políticas, as relações de gênero são frequentemente convertidas em assimetrias, hierarquias e desigualdades (Matos, 2015), o que influi diretamente na instituição familiar, a qual passa a ser compreendida como

produto de, e reproduz ativamente, relações de poder historicamente estruturadas, sem deixar de ser um ambiente central à definição das especificidades dos indivíduos e dos valores e atitudes, racionais e afetivos, que terão impacto sobre sua participação em outras esferas da vida [...] de um ponto de vista feminista, a análise da família impõe a confrontação de relações de gênero assimétricas, das quais se extraem boa parte do entendimento que temos sobre as diferenças entre os papéis de homens e mulheres na sociedade, e não apenas na esfera familiar (Biroli, 2012, p. 212).

Biroli (2018) nos informa que as relações familiares têm sido discutidas a partir de diversos ângulos no debate feminista nas suas mais diversas vertentes. Contudo, há uma preocupação ampla que tem obtido considerável relevo. Se o universo das relações familiares é permeado de afetos, apoio e cuidado, ele também é constituído pela exploração do trabalho, pelo exercício da autoridade e pela violência. Ainda para essa mesma autora, uma das formas possíveis de trabalhar com a temática da família é através da dimensão dos controles, a qual é tributária do debate sobre família, controle dos corpos e a normalização dos afetos. Essa dimensão vem a incidir sobre a vida de homens e mulheres, delimitando, por um lado, formas de vida aceitáveis e valorizadas e, por outro, formas de vida que são objeto de violência simbólica e de privações por serem estigmatizadas. Concepções de sucesso na regulação das relações, "como o da domesticidade feminina, da maternidade e do amor romântico, estabelecem, em conjunto com a heteronormatividade, perspectivas para julgar vidas concretas que não correspondam a eles, que escapem a seus códigos" (Biroli, 2018, p. 92).

Dois conceitos são importantes diante dessa dimensão. Um deles se denomina violência de gênero, a qual é praticada de maneira dinâmica e relacional tanto por homens como por mulheres, ainda que de forma desigual (Cassab, 2015). Meneghel e Hirakata (2011) nos apontam que o uso do gênero na análise de acontecimentos vitais se trata, na verdade, de um posicionamento político em favor da desnaturalização das mortes violentas, não atribuindo a elas fatores apenas de natureza pessoal e de tomar a hierarquização de gênero vigente em nossa sociedade como um dos fatores que acabam por expor mulheres a toda uma variada gama de vulnerabilidades, sendo o feminicídio, o homicídio de mulheres que decorre de conflitos de gênero, o acontecimento último dessa situação. As autoras ressaltam, ainda, que a extensão deste fenômeno no Brasil ainda é muitas vezes subestimada. Além da incidência e do impacto da violência de gênero variar de acordo com classe e raça (Biroli, 2018), não devemos esquecer que ela não ocorre apenas do homem sobre a mulher. Como definido inicialmente, a partir de uma concepção relacional da violência, entendemos que ela expressa uma relação de poder não absoluta e estática entre homens e mulheres, ocorrendo tanto em relações heterossexuais quanto homossexuais. Neste sentido, por exemplo, violência de gênero também inclui violência praticada contra homens que exercem masculinidades não hegemônicas (Cassab, 2015). Isso nos leva ao segundo conceito central para essa questão, a heteronormatividade, o qual se refere à naturalização da heterossexualidade. Supõe-se que a heterossexualidade é natural e, assim sendo, reclusa de quaisquer questionamentos, o que vem a converter todas as outras formas de expressão da sexualidade como antinatural em diversos níveis (Nardi & Machado, 2015), devendo elas serem reprimidas, penalizadas e até mesmo eliminadas, tendo em vista seus negativos efeitos sobre os sujeitos e sobre a sociedade numa forma geral (Barreto, 2015).

A heteronormatividade, enquanto uma norma hegemônica no tocante às possibilidades reais de se vivenciar a sexualidade implica, necessariamente, a produção e reprodução de discursos e ações que visem a sua manutenção, o que denominamos comumente de homofobia. Se falamos do contexto familiar, se trata, então, de falarmos sobre a existência da homofobia familiar, enquanto um "um modo de homofobia obscurecido pela intimidade do mundo privado" (Toledo & Teixeira Filho, 2013, p. 378). Estudos etnográficos mostram, por exemplo, o quanto o ato de revelar a homossexualidade para família, comumente denominado coming out ou, em português, "sair do armário", incorre em conflitos familiares e violências de diversas matizes que vão desde aquelas mais simbólicas e psicológicas, como a humilhação e a violência verbal, até aquelas formas mais graves de conflitos, como a agressão física. Essas situações podem levar tanto à fragilização do vínculo familiar como ao seu pleno rompimento (Nascimento & Scorsolini-Comin, 2018; Natividade & Oliveira, 2013; Palma & Levandowski, 2008; Toledo & Teixeira Filho, 2013). De forma mais aguda, a população trans também vivencia essas violências no espaço familiar, sendo este último considerado como integrante de uma verdadeira "zona de perigo", ao lado da rua, da escola e dos serviços de saúde (Silva et al., 2016).

Diante desse debate é possível constatarmos consequências políticas significativas. A família, enquanto uma instituição histórica, não deve ser vista de forma descontextualizada, monística e romântica. O espaço doméstico e o que se vive e como se vive nele não é natural e pré-político. Os estudos sobre questões de gênero e diversidade sexual e suas relações com a família são um exemplo de crítica contra a naturalização dessa instituição e das relações sociais existentes em seu âmago, o que vem a possibilitar a politização desse espaço tido como privado e, consequentemente, a luta por sua democratização.

Em termos próprios, ocorre um questionamento e deslocamento do público versus privado, sendo que, de acordo com a teoria política feminista contemporânea, a família não consiste em um espaço privado, intangível pelo Estado, tratada apenas como unidade familiar, de forma a homogeneizar seus integrantes e invisibilizar todas as opressões ali presentes, como geralmente o fez o liberalismo, mas sim de um espaço público cuja democratização passa, necessariamente, pela intervenção do Estado tendo em vista a proteção de cada um dos seus membros (Kritsch, 2012).

Para além da violência e injustiça na família, interessa também, ao debate da teoria política feminista contemporânea, as desigualdades entre as famílias e suas relações com o Estado. Para Biroli (2018), essa se trata de uma outra forma de trabalhar a temática da família, a saber, a dimensão dos privilégios e das desigualdades. Nas palavras da autora

Leis e políticas públicas ativam determinadas concepções de família e, com isso, excluem laços e formas práticas de organização. Isso implica não apenas reconhecimento social desigual, mas também acesso desigual a direitos e recursos materiais. Desde a eletividade para as políticas públicas e financiamentos de moradia até o acesso comum a planos privados de seguridade e saúde, a adoção de crianças e a transmissão de herança, há todo um espectro de questões diretamente implicadas nas normas e nos valores que definem o que é reconhecido como família. (Biroli, 2018, p. 92).

Se até aqui buscamos recorrer a perspectivas teóricas e conceitos que nos auxiliam a denunciar as injustiças e desigualdades no interior da família, agora se trata de darmos um passo atrás e questionarmos a respeito de quais famílias estamos falando, voltando nossa atenção para a diversidade possível e realmente existente tanto no tocante aos integrantes das famílias quanto aos arranjos familiares. Isso nos incita a pensarmos não só sobre as famílias monoparentais, as famílias pauperizadas, suas configurações extensas, suas estratégias e redes de solidariedade, mas também aquelas formas de "parentalidades impensáveis", para utilizar a expressão de Zambrano (2006). As famílias LGBTQI+ têm se tornado mais frequentes e visíveis em meio a avanços morosos e riscos iminentes. Essas formas de famílias se constituem num encontro de vulnerabilidades, num ambiente de alto risco e de sistemática exclusão social, onde as possibilidades de proteção civil e social estão muito distantes daquelas da família hegemônica, monogâmica, heterossexual, composta por um homem, uma mulher e filhos. Ao discutir a família diante do Estado devemos nos abster da restrição ao tratamento dessa instituição de forma abstrata, nos voltando a formas concretas, ou seja, a famílias e suas distintas vicissitudes.

A Família na Sociedade de Classes

A sociedade de classes se caracteriza por ter como pedra angular a propriedade privada, a qual irá colocar em situação de antagonismo dois sujeitos historicamente determinados: o burguês, detentor de propriedades e, portanto, dos meios fundamentais de produção, e aqueles que não possuindo propriedades são compelidos a vender sua força de trabalho na produção de mercadorias (Netto & Braz, 2012). Entretanto, além das particularidades da formação social brasileira (Santos, 2012), ocorreram também grandes transformações no capitalismo contemporâneo (Antunes, 2015), não mais sendo significativamente evidente a constituição da sociedade em duas classes fundamentais2.

Atento às transformações recentes, Antunes (2015) apresentou a classe-que-vive-do-trabalho, uma noção ampliada e moderna da categoria classe trabalhadora, a qual se refere à totalidade de homens e mulheres que vendem sua força de trabalho em troca de salário. A classe-que-vive-do-trabalho se encontra numa bárbara situação que se mostra generalizada no capitalismo contemporâneo: o aumento e a cronificação do desemprego, a intensa precarização das relações de trabalho, a onipresente informalidade e a consequente condição de desproteção social (Antunes & Druck, 2015; Maranhão, 2010; Mészáros, 2011; Netto & Braz, 2012). Isso associado ao desmonte do Estado e da retirada de direitos sociais duramente conquistados no passado (Behring & Boschetti, 2011).

Falar sobre a sociedade de classes é falar de trabalho. Falar de famílias na sociedade de classes é falar da divisão sexual do trabalho, a forma como, historicamente, vem se definindo o que é trabalho, competência e o lugar de mulheres e homens. Desta forma, a divisão sexual do trabalho possui grande importância na produção do gênero, produzindo identidades, vantagens e desvantagens. A divisão sexual do trabalho se estabelece e se mantém sobre a naturalização das relações de autoridade e subordinação, como supostamente fundadas na biologia e justificadas pela raça (Biroli, 2018).

A crítica orientada pela divisão sexual do trabalho se faz também na denúncia do trabalho doméstico não remunerado: o trabalho doméstico cotidiano não era, há algumas décadas atrás, considerado como componente do processo de produção-reprodução sob a dinâmica do capital, ele não era visualizado como trabalho, sendo relegado às trevas, para longe do debate político. Muitas mulheres ainda permanecem como donas de casa, sem rendimento, mas, atualmente, muitas outras se dedicam também à vida pública e ao trabalho produtivo, o que muitas das vezes as levam a uma situação de duplicidade da jornada de trabalho, considerando a persistência do trabalho doméstico não remunerado em suas vidas (Duque-Arrazola, 2010; 2015). Isso sem mencionarmos a desigualdade salarial existente entre homens e mulheres no mercado de trabalho, que persiste independentemente do nível de qualificação e habilidades das mulheres (Aguiar, 2015).

Biroli (2018) nos lembra que a exploração do trabalho, bem como a expropriação do tempo e da energia das mulheres não tem, no outro lado das relações cotidianas, apenas homens, principalmente quando pensamos no trabalho doméstico remunerado, prestado por mulheres a outras famílias. A autora também salienta que o fato de a divisão sexual do trabalho não incidir sobre mulheres de igual maneira implica que a produção do gênero se dê de forma racializada e que a mesma atende a uma dinâmica de classe. Pacheco (2010), por exemplo, ao estudar o caso de famílias pobres chefiadas por mulheres, em sua maioria pardas e negras, apontou que o acúmulo de obrigações e tarefas acaba por produzir uma situação devastadora: excesso de carga horária de trabalho em função da dupla jornada, carga essa que pode chegar a 60 horas de trabalho semanais, e o abandono escolar de crianças e adolescentes, dada a necessidade de trabalharem, a fim de complementar a renda familiar. O mesmo não ocorre com mulheres brancas de classe média, o que nos evidencia a relevância de discutir não apenas as desigualdades na família, mas entre famílias na sociedade de classes (Biroli, 2018). Trata-se aqui de pensar não só as violências e injustiças presentes no interior das famílias, mas suas condições materiais de existência.

A divisão sexual do trabalho produz o gênero, como já dito. Se pensarmos numa perspectiva de convergência, convém considerarmos que "as restrições impostas por gênero, raça e classe social conformam escolhas, impõem desigualmente responsabilidades e incitam a determinadas ocupações, ao mesmo tempo que bloqueiam ou dificultam o acesso a outras" (Biroli, 2018, p. 42). Pensando, também, na ampla e veemente crítica existente sobre a suposta universalidade e homogeneidade no tocante às "mulheres" e na crítica da dicotomia teórica tradicional entre "sexo" e "gênero" (Mariano, 2012; Nogueira, 2017), poderemos ampliar nossa visão sobre a divisão sexual do trabalho e suas relações com a sexualidade, no que concerne à heteronormatividade e à heterossexualidade compulsória. Quanto a isso, é de primeira relevância a situação concreta de uma exclusão sistemática da possibilidade de venda da força de trabalho com relação à população trans (Almeida & Vasconcelos, 2018). São milhares aquelas e aqueles integrantes dessa população que "não têm acesso à escola ou ao mercado de trabalho, que sofrem cotidianamente as mais diversas formas de violência, incluindo uma altíssima taxa de homicídios, e que acabam condenadas à prostituição e à criminalidade" (Miguel, 2016, p. 376), o que nos permite pensar sobre as escassas e precárias condições concretas de existência da população LGBTQI + na sociedade de classes, as escolhas que essas condições conformam, as ocupações que essas condições incitam, dificultam ou bloqueiam o acesso.

As formas atuais de exploração do trabalho e os interesses capitalistas influem sobre o âmbito doméstico, sobre a conjugalidade, a divisão das tarefas no cotidiano e até mesmo sobre a possibilidade de fruição do tempo pelas e pelos integrantes das famílias (Biroli, 2018). Se na sociedade de classes o salário, ou seja, o valor da força de trabalho, é uma égide fundamental, embora não determinante per se, tanto nas situações de violência de gênero, como nas situações de homofobia familiar (Biroli, 2018; Guedes & Fonseca 2011; Toledo & Teixeira Filho, 2013), não seria exagero algum, no contexto inicialmente citado de desemprego estrutural, precarização do trabalho e retirada de direitos sociais, afirmar que gênero e orientação sexual acabam por se tornar marcadores que, cada vez mais, canalizam as contradições das relações de exploração do capital sobre o trabalho, agregando maior vulnerabilidade e risco às mulheres, principalmente as pobres e negras, e aos LGBTQI+.

Na verdade, Arruzza, Bhattacharya e Fraser (2019) nos asseveram que as muitas formas da violência de gênero são sempre enredadas nas relações sociais capitalistas, que o racismo estava presente na origem desse sistema e que o mesmo tenta, incessantemente, regular a sexualidade. Desta forma, bem mais que potencializar, as questões da sociedade de classes se fazem presentes precisamente na produção e reprodução dessas violências e injustiças que interessam ao debate sobre as famílias, gênero, raça e diversidade sexual.

 

A matricialidade sociofamiliar diante das questões de gênero, diversidade sexual e classe

É chegado o momento de pensarmos o quanto o conceito de família nos documentos oficiais possui correspondência com os resultados da revisão da literatura especializada em questões de gênero, diversidade sexual e classe, bem como de discutirmos decorrentes implicações teórico-práticas e, portanto, políticas.

A conceituação de família nos documentos oficiais postula uma definição que é, no melhor dos termos, significativamente progressista, pois aberta e capaz de compreender desde a forma hegemônica de família (homem, mulher e filhos), até outras formas, ou seja, as famílias monoparentais e homoafetivas. Aliás, de acordo com tais documentos é possível dizer que até mesmo uma república de estudantes se constituiria uma família, afinal de contas os integrantes residem no mesmo espaço, estão unidos por vínculos de solidariedade e compartilham renda. Isso possui fortes implicações na prática profissional, uma vez que seria difícil e improvável alguma forma de discriminação e marginalização de famílias por parte de profissionais do SUAS, ao menos se pressupormos que tais profissionais tenham como referência estrita as concepções oficiais de família no tocante à prática profissional.

Se é verdade que os documentos oficiais reconhecem que a família é um espaço contraditório e violento (MDS, 2005; 2009; 2011), também é verdade que eles não aprofundam nessa questão. A única temática que de fato recebe uma atenção diferenciada nos documentos, mais especificamente na PNAS (MDS, 2005), se refere às transformações societárias relacionadas ao capitalismo contemporâneo e suas relações com a instituição familiar. No mais, esse mesmo texto se ocupa da exclusão social, da vulnerabilidade e risco social de uma forma muito genérica, ao passo que das questões tratadas aqui, a diversidade sexual é a que menos comparece, além de ser palpável também a negligência quanto à temática da divisão sexual do trabalho e das desigualdades entre famílias.

Consoante a isso, é necessário nos atentarmos para o fato de que as questões de ordem material, ou seja, relacionadas à classe, estão relegadas à PSB, sendo que apenas se indica que elas irão ter função acumulativa frente a outras situações (MDS, 2005). Desta forma, as questões de classe e, consequentemente, a divisão sexual do trabalho e as desigualdades entre as famílias, são negligenciadas, pois acabam por serem postas como uma espécie de fator "complicador", quando na verdade, como já expusemos, o processo de pauperização das famílias é estrutural. Em outras palavras, convém toma-lo não como um processo complementar, mas como um processo fundante que dialeticamente irá influir na satisfação ou não das necessidades mais básicas por meio das quais se torna possível, precária ou até mesmo impossível a nossa existência e socialização.

De uma forma ampla, cabe também apontarmos que, embora as questões de gênero e diversidade sexual compareçam no documento de orientações técnicas do CREAS (MDS, 2011), cada qual a seu modo e em profundidades distintas, não há uma fundamentação apropriada das causas dessas contradições. No tocante não só a esses temas, mas às questões de classe também, não se apontam explicitamente e com substância as consequências teórico-práticas mais gerais de tais temas no trabalho social com famílias e indivíduos em situação de violação de direitos, ou seja, as formas processuais/operacionais que o acompanhamento especializado tomaria.

Se, como apontamos, a temática das questões de gênero e diversidade sexual possui significativas consequências políticas quando do deslocamento do público versus privado, fica perceptível o quanto essas consequências estão ausentes no texto da PNAS (MDS, 2005). Elas comparecem timidamente no documento de orientações técnicas do CREAS quando, por exemplo, é ressaltado que as situações de violação de direitos implicam "maior domínio teórico-metodológico por parte da equipe, intencionalidade e sistematicidade no acompanhamento a famílias/indivíduos em situação de risco pessoal e social, por violação de direitos" (MDS, 2011, p. 28). Ainda em outro momento das orientações é explicitado que o objetivo do acompanhamento especializado é o empoderamento, assim como o enfrentamento e a construção de novas possibilidades de interação na dinâmica familiar e também no contexto social.

Todavia, novamente, esses conceitos, a saber, intencionalidade, sistematicidade, processo de empoderamento, bem como a atribuição de construir novas possibilidades de interação na dinâmica familiar, os quais parecem se relacionar com o acompanhamento social especializado de famílias e indivíduos e todo o debate das consequências entre as questões de gênero, diversidade sexual e classe no tocante ao público versus privado, ou seja, à democratização da instituição familiar através da intervenção do Estado, não são colocados de forma operacional ou processual.

Talvez isso ocorra em função do desenvolvimento e da implementação dos processos e fluxos de trabalho serem delegados aos equipamentos e à rede local existente (MDS, 2011). De uma forma ou de outra, tal situação acaba por esvaziar o potencial do conceito de matricialidade sociofamiliar e suas implicações na PSE. Em outros termos, afirmamos que a conceituação de matricialidade sociofamiliar é abrangente e, portanto, inespecífica no plano das consequências teórico-práticas do trabalho social com famílias. Consequentemente, em detrimento da suposta pretensão de tornar o conceito de matricialidade sociofamiliar uma espécie de bricoleur institucional do trabalho social especializado com famílias e indivíduos, o que se presencia é a esterilidade processual/operacional, implicando a negligência em termos institucionais e teórico-práticos de todo o rico debate sobre as questões de gênero, diversidade sexual e classe e suas implicações políticas.

Posto que no Brasil se faz presente, cotidianamente, diferentes formas de violência de gênero e homofobia (Meneghel & Hirakata, 2011; Silva et al., 2016; Simões & Facchini, 2009), é necessário também interpelarmos se é justificável em termos teóricos e políticos delegar aos equipamentos e à rede local existente o desenvolvimento e a implementação dos processos e fluxos de trabalho nos casos de violência de gênero e homofobia. Em outras palavras, argumentamos que o fato de tais violências contra grupos específicos variarem de acordo com cada região e território não deveria ser a razão da inexistência de normativas e orientações técnicas em termos processuais e operacionais do acompanhamento especializado a tais grupos no âmbito do SUAS. Tais normativas e orientações técnicas poderiam ser mais gerais e com possibilidade de flexibilização e adaptação diante da realidade de equipamentos e redes locais específicas.

Embora a forma processual/operacional do acompanhamento especializado com famílias e indivíduos não compareça de forma densa nos documentos, como criticamos acima, isso não quer dizer que ela inexista. Por exemplo, em um dos solitários momentos em que o documento de orientações técnicas do CREAS esboça explicitamente uma forma operacional de atuação frente às situações de violação de direitos, ele afirma a necessidade do reconhecimento da autonomia da família e de cada um de seus membros, devendo ser consideradas as especificidades de gênero e dos ciclos da vida, apontando que isso deve repercutir na definição das intervenções e das metodologias, podendo, inclusive, impossibilitar a inserção de alguns membros da família no processo de acompanhamento a fim de garantir a proteção, a confiança e os interesses dos demais membros. O documento cita como exemplo a exclusão dos agressores do processo de acompanhamento especializado naqueles casos que implique ameaça e risco à efetividade do acompanhamento aos demais membros da família (MDS, 2011).

Reservar apenas à vítima o direito ao acompanhamento especializado pode parecer progressista, principalmente se justificado com base na necessária relação de confiança entre a vítima e a profissional, mas se observarmos atentamente o que encontramos é a ausência do direito e do dever de o agressor ser acompanhado, pois em momento algum são mencionados. Ora, o que é isso senão a responsabilização da vítima, tendo em vista o tratamento da situação de violência de forma individualista e atomizada? O que, conforme já apontamos, segue caminho contrário aos avanços proporcionados pelo debate sobre violência intrafamiliar.

Destarte, temos que os documentos normativos e de orientações técnicas relacionados à PSE no âmbito do CREAS pecam em não desenvolverem o caráter processual/operacional do trabalho social especializado com famílias e indivíduos em situação de violação de direitos, o que acaba por ter consequências quanto às reais possibilidades de efetivação da PSE em relação a uma larga população em situação de vulnerabilidade e risco, a saber, mulheres e a população LGBTQI+.

 

Considerações finais

A revisão crítica do conceito de família na política de assistência social possibilitou constatar que há uma correspondência variada entre os documentos oficiais e as discussões em torno da família e das questões de gênero, diversidade sexual e classe, sendo que a presença desses temas varia de acordo com o documento consultado. Entretanto, é mister apontarmos o quanto a temática das questões de gênero e diversidade sexual são negligenciadas, pois relegadas ao silêncio. Fato esse que também ocorre no tocante à convergência entre classe, raça e gênero, quando da divisão sexual do trabalho e das desigualdades materiais entre famílias.

Se não podemos, contudo, deixar de explicitar o quanto a definição de família nos documentos oficiais é progressista, não devemos deixar de questionar o quanto ela é realmente utilizada como referência estrita no cotidiano da prática profissional na oferta dos serviços. Este estudo constatou que o conceito de matricialidade sociofamiliar, ao pretender incorporar todos esses temas, acaba por se tornar estéril, porque não há um direcionamento claro, denso, qualificado e sistematizado no tocante ao caráter processual/operacional do acompanhamento especializado a famílias e indivíduos em situação de violação de direitos. As consequências políticas de todo o debate das questões de gênero e diversidade sexual, ou seja, a democratização da instituição familiar e o enfrentamento das desigualdades quanto ao reconhecimento e à valorização entre as diferentes formas de famílias existentes, estão atreladas e condicionadas à descentralização da formulação e implementação dos processos e fluxos de trabalho, os quais são responsabilidade dos equipamentos e da rede local existente. Essa condição aponta para uma possível discricionariedade, tanto na compreensão dos conceitos, quanto na sua utilização no cotidiano do trabalho. Sendo assim, indicamos a necessidade de que as investigações futuras sobre PSE e as relações com esses temas se direcionem ao nível local, no sentido de uma investigação etnográfica e/ou documental em equipamentos específicos e da rede que os circunda, de modo a compreender se e como o conceito de família está sendo efetivamente operacionalizado na implementação da política. De todo modo, argumentamos a necessidade do desenvolvimento de normativas e orientações técnicas mais gerais em termos processuais e operacionais do acompanhamento especializado a mulheres e LGBTQI+ em situação de violência no âmbito do CREAS, ou seja, nacionalmente, as quais sejam passíveis de flexibilização e adaptação a partir da realidade de cada equipamento e redes locais específicas.

Finalmente, a denúncia da possível discricionariedade na oferta dos serviços socioassistenciais no âmbito do CREAS não deve ser vista num vácuo social, cultural e político. Estamos denunciando a constatação de uma possível discricionariedade de toda uma rede muito extensa de equipamentos e profissionais, a nível nacional, num país profundamente autoritário e conservador. É neste contexto que tal denúncia ganha relevância e acaba por evidenciar a fragilidade das normativas, dos documentos técnicos e dos seus anseios progressistas, abrindo espaço, na verdade, para a reprodução de violências características de nossa sociedade, como a violência de gênero e a homofobia, mas desta vez por via institucional.

Se a matricialidade sociofamiliar teve como princípio a proposta de inclusão das famílias existentes, nas suas mais diversas formas e adversas condições, a partir do debate proposto e realizado, principalmente no tocante às desigualdades entre as formas de famílias que não são valorizadas e reconhecidas socialmente, às famílias pauperizadas e às violências e injustiças relacionadas a gênero e sexualidade no interior das famílias, consideramos que esse conceito foi mais uma intenção institucional num dado momento histórico particular do que um gesto concreto. A matricialidade sociofamiliar, no campo da assistência social e a nível federal, se trata mais de uma abstração do que de uma transformação real do Estado frente à necessária proteção das possibilidades de ser e existir das diversas e precárias famílias brasileiras, sejam em termos legais, políticos, culturais ou econômicos. As pesquisas sugeridas acima poderão condensar dados e argumentos a tal afirmação nossa, os quais poderão ser utilizados na luta política pela construção e efetivação de um sistema único que realmente possibilite uma proteção social especial digna desse nome.

 

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Endereço para correspondência:
Avenida Xavier da Silveira, número 18, apartamento 1
Nova Descoberta, Natal-RN
Telefone: (84) 33422236
Email: victorcacosta@hotmail.com

Recebido em 08.mar.19
Revisado em 05.nov.19
Aceito em 31.dez.19

 

 

1. Essa sincera admissão decorre de outra conclusão do estudo de Bronzo e Mendes (2016), segundo a qual a efetividade da assistência social pressupõe políticas públicas setoriais robustas e consistentes, com qualidade e cobertura universal. As políticas de educação, saúde, habitação e infraestrutura urbana seriam um exemplo. Em outras palavras, essa conclusão aponta que a solução para os desafios que o SUAS enfrenta, sejam eles em quaisquer níveis de proteção, não se referem apenas ao desenho do próprio sistema, mas à dimensão do Estado frente à sociedade como num todo.
2 É preciso especial atenção quando apontamos não ser mais significativamente evidente a constituição da sociedade em duas classes fundamentais. Embora hoje não nos seja evidente, isso não significa que a sociedade não mais se organize fundamentalmente sobre essas classes. A depender de cada formação social específica, se distribui, entre essas duas classes sociais fundamentais, uma gama de situações sociais intermediárias (Löwy, Duménil, & Renault, 2015), sendo que burguesia e proletariado acabam por se articular a essas outras classes sociais (Netto & Braz, 2012).
Victor Cesar Amorim Costa, Especialista em Política de Assistência Social – SUAS pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais – PUC-Minas e Mestrando em Psicologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN.
Eleonora Schettini Martins Cunha, Doutora em Ciência Política pela Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG, é Professora aposentada do Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG, Professora colaboradora na Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais – PUC-Minas e da Escola do Legislativo da Assembleia Legislativa de Minas Gerais. Email: eleonora.ufmg@gmail.com

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