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Estudos de Psicologia (Natal)

versão impressa ISSN 1413-294Xversão On-line ISSN 1678-4669

Estud. psicol. (Natal) vol.25 no.1 Natal ene./mar. 2020

http://dx.doi.org/10.22491/1678-4669.20200008 

10.22491/1678–4669.20200008

TEMAS EM POLÍTICAS SOCIAIS: ASSISTENCIA SOCIAL E SISTEMA DE GARANTIA DE DIREITOS

 

Possibilidades e potencialidades do rap para adolescentes e jovens cumprindo medida socioeducativa

 

Possibilities and potentialities of rap for adolescents and young people in compliance with socio–educational measures

 

Posibilidades y potenciales de rap para adolescentes y jóvenes que cumplen con la medida socioeducativa

 

 

Alice Cristina Silva dos SantosI; Maria de Fátima Pereira AlbertoII; Aíla Souza MunizIII

IFundação Centro Integrado de Apoio ao Portador de Deficiência–PB
IIUniversidade Federal da Paraíba
IIIConselho Regional de Psicologia da Paraíba

 

 


RESUMO

Este artigo objetiva analisar os sentidos atribuídos ao RAP (rythym and poetry) pelos adolescentes e jovens em cumprimento de medida socioeducativa de internação. A pesquisa exploratória de caráter qualitativo se deu em Unidades Socioeducativas no estado da Paraíba. Participaram 12 adolescentes e jovens, entre 14 e 21 anos, sendo três do sexo feminino e nove do sexo masculino. Utilizou–se como instrumento uma entrevista semiestruturada e procedeu–se a Análise de Conteúdo de Bardin (1977). Os(As) participantes ressaltaram o potencial pedagógico do RAP, que ensina a escrever e sociabilizar. Os(As) jovens e adolescentes apontaram, ainda, que se utilizam do RAP como elemento que auxilia no processo de resistência nas Unidades, e como meio de lazer e fonte de ensinamentos. Este gênero musical oferece elementos que permitem aos(às ) participantes engajarem–se em projetos de vida e novas possibilidades de ações futuras.

Palavras–chave: hip–hop; psicologia histórico–cultural; resistência; projeto de vida.


ABSTRACT

This article aims to analyze the meanings attributed to RAP (rythym and poetry) by adolescents and young people in compliance with a socio–educational measure. The qualitative exploratory research took place in Socio–Educational Units in the state of Paraíba. Twelve adolescents and young people, between 14 and 21 years old, participated, 3 female and nine male. A semi–structured interview was used as an instrument and Bardin's Content Analysis (1977) was carried out. The participants emphasized the pedagogical potential of RAP, which teaches how to write and socialize. Young people and adolescents also pointed out that they use RAP as an element that helps in the resistance process in the Units, and as a means of leisure and source of teachings. This musical genre offers elements that allow participants to engage in life projects and new possibilities for future actions.

Keywords: hip–hop; historical–cultural psychology; resistance; life project.


RESUMEN

Este artículo tiene como objetivo analizar los significados atribuidos a RAP (ritmo y poesía) por adolescentes y jóvenes en cumplimiento de una medida socioeducativa. La investigación exploratoria cualitativa se llevó a cabo en Unidades Socioeducativas en el estado da Paraíba. Participaron doce adolescentes y jóvenes, entre 14 y 21 años, 3 mujeres y nueve hombres. Se utilizó una entrevista semiestructurada como instrumento y se llevó a cabo el Análisis de contenido de Bardin (1977). Los(as) participantes enfatizaron el potencial pedagógico de RAP, que enseña cómo escribir y socializar. Los(as) jóvenes y los adolescentes también señalaron que usan RAP como un elemento que ayuda en el proceso de resistencia en las Unidades, y como un medio de ocio y fuente de enseñanza. Este género musical ofrece elementos que permiten a los participantes participar en proyectos de vida y nuevas posibilidades para acciones futuras.

Palabras–clave: hip–hop; psicologia histórico–cultural; resistência; proyecto de vida.


 

 

Este artigo objetiva analisar os sentidos atribuídos ao RAP (rythym and poetry) pelos adolescentes e jovens em cumprimento de medida socioeducativa de internação. Em termos jurídicos, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) define como adolescente, em seu artigo 2º, os indivíduos com idade entre 12 e 18 anos (Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990). No entanto, autores que têm como referência a perspectiva sócio–histórica compartilham entre si uma leitura da adolescência que supera os elementos que comumente são naturalizados como característicos e típicos deste período. Partilhando desta referência, Ozella (2002) considera a adolescência como uma criação histórica do ser humano enquanto representação social e psicológica. Sua construção, segundo o autor, se dá mediante a atribuição de significados sociais e culturais à realidade concreta.

Considerando a concepção do indivíduo como sujeito social e interativo apresentada pela abordagem histórico–cultural vygotskiana, Rey (2003) compreende que os sujeitos, dentro de um espaço social, compartilham sentidos e significados (Bittencourt, 2013). Os significados são produções históricas e sociais da realidade, que possuem estabilidade e precisão, pois consistem na representação da realidade em determinadas condições históricas. Os sentidos, por sua vez, possuem caráter menos estável, uma vez que modificam–se através dos diferentes contextos e situações – relacionando–se às sensações e às emoções de cada sujeito (Molon, 2009).

Na perspectiva histórico cultural o desenvolvimento atrela–se à aprendizagem, que é impulsionada por meio de atividades guias. Cada período peculiar e específico da vida humana corresponde uma atividade principal, com um percurso contextualizado historicamente. Na adolescência inicial (ou crise da adolescência) a atividade guia é a comunicação íntima pessoal, na juventude (crise da juventude) é atividade de estudo e profissional. O adolescente é visto como um sujeito ativo produto e produtor do seu desenvolvimento a partir das interações culturais que estabelece. O que está fora (o signo) pela regulação, do outro, através de um processo de significação compartilhada cria significado para o sujeito (Alberto, Pessoa, Malaquias, & Costa, 2020; Anjos & Duarte, 2016; Davidov, 1986).

Enquanto a categoria adolescência é tratada como uma construção social que reconfigura a perspectiva consolidada na Psicologia do Desenvolvimento tradicional, a categoria juventude vai ganhando novos contornos e inserções. Ora tida como sinônimo de adolescência, ora definida pelo padrão etário, como no Estatuto da Juventude. Em seu artigo 2º, o Estatuto da Juventude estabelece como jovens as pessoas com idade entre 15 e 29 anos (Lei nº 12.852, de 05 de agosto de 2013).

Entretanto, o critério etário não contempla as vicissitudes sociais apontadas por alguns autores como parte da vivência da juventude. Para León (2005), os sujeitos experimentam na juventude um período profundo de construção de sua identidade e passam a se reconhecer enquanto integrantes de um coletivo social maior e relacionar–se dialeticamente com este. Para efeito deste artigo, considerando as faixas etárias da Adolescência e da Juventude que vão de 12 a 18 anos e de 15 a 29 anos, respectivamente, serão utilizados os termos "adolescentes" e "jovens", em que o critério etário será um referencial adotado em virtude do que define a legislação para as situações que envolvem a prática do ato infracional e as respectivas medidas socioeducativas; apesar deste estudo encontrar–se pautado no referencial histórico–cultural da Psicologia.

As medidas socioeducativas têm sua aplicação executada pelo Estado em casos de cometimento, por parte de adolescentes e jovens com idade entre 12 e 18 anos, de um ato infracional – conduta descrita como crime ou contravenção penal. O ECA estabeleceu sua aplicação excepcional também àqueles que se encontram entre 18 e 21 anos, nas hipóteses expressamente previstas pela lei – de acordo com o artigo 2º, parágrafo único, da referida legislação (Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990).

Avançando no processo de estabelecimento do atendimento socioeducativo, com o intuito de padronizar o atendimento a crianças e adolescentes, bem como de reafirmar o caráter pedagógico da medida socioeducativa, foi instituído pela Lei nº 12.594, de 18 de janeiro de 2012, o Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (SINASE), que regulamenta a execução das medidas socioeducativas, estabelecendo princípios, regras e critérios para tal. De acordo com o referido documento, as medidas socioeducativas têm como objetivo a responsabilização do adolescente ou jovem que comete o ato infracional, a integração deste ao seu contexto social e a garantia dos seus direitos sociais e individuais e, por fim, a desaprovação da prática infracional.

As medidas socioeducativas, conforme estabelecidas pelo ECA, são de: advertência; obrigação de reparar o dano; prestação de serviços a comunidade; liberdade assistida; inserção em regime de semi–liberdade; internação em estabelecimento educacional (Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990). Neste trabalho, a medida socioeducativa em destaque será a de internação em estabelecimento educacional, estabelecida pelo artigo 112, inciso quarto, do ECA. Tal medida baseia–se nos princípios da: brevidade, segundo o qual deve ser reavaliada, no máximo, a cada seis meses e não deve exceder o período de três anos; da excepcionalidade, sendo admitida apenas em caso de ato infracional mediante grave ameaça ou violência, de reiteração do cometimento de infrações graves e pelo descumprimento reiterado e injustificável da medida já imposta; e do respeito à condição peculiar de desenvolvimento do adolescente, sendo dever do Estado zelar pela integridade física e mental dos(as) adolescentes e jovens internos (Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990).

Em relação ao cumprimento da medida de internação, o artigo 94 do ECA (Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990) estabelece dentre as obrigações das entidades que desenvolvem programas deste caráter, observar os direitos e garantias fundamentais dos(as) adolescentes. O mesmo artigo prevê um atendimento pautado por um ambiente de respeito e dignidade ao adolescente, com instalações físicas em condições adequadas de salubridade, higiene, segurança e habitabilidade.

O SINASE ratifica tais pressupostos estabelecendo os Direitos Humanos como um dos princípios através do qual deve se dar o atendimento socioeducativo, condicionando–o à garantia de todos os direitos, em conjunto com o desenvolvimento de ações educativas e de natureza sócio–pedagógica, que oportunizem a formação da cidadania (Lei nº 12.594, 2012). De acordo com A. C. G. Costa (2006), a preparação do socioeducando para o convívio social no exterior da Unidade é a "natureza essencial" da ação socioeducativa.

Mas os direitos humanos desses(as) adolescentes nem sempre são garantidos. Dados do Levantamento Anual SINASE 2017, publicado em 2019 pela Secretaria Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente do Ministério dos Direitos Humanos (SNDCA/MDH), comprovam que, até o final do ano de 2017, na Paraíba, um total de 434 adolescentes estavam em contexto de Internação, quando a capacidade total era de apenas 217 (Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos [MMFDH], 2019). Com relação aos dados biossociodemográficos dos(as) adolescentes em regime de restrição e privação de liberdade no contexto nacional, dados do Levantamento Anual do SINASE 2017 atestam que, em 2016, 59% dos(as) adolescentes internos em instituições de privação e restrição de liberdade no Brasil se autodeclararam como pardos/negros e apenas 22% como brancos (MMFDH, 2019).

Entretanto, há de se considerar que nem sempre a autodeclaração étnica ocorre de modo simples. O mito da democracia racial no Brasil, as exclusões vivenciadas pelos membros da comunidade negra e a exaltação dos valores eurocêntricos afetam de maneira significativa o processo identitário do povo negro. Portanto, a autodeclaração étnica comumente vem acompanhada de estigmas e diversas construções sociais e culturais que, por vezes, dificultam este processo (Munanga, 2004).

Este segmento dos(as) adolescentes e jovens que se encontram privados de liberdade experimentam, por parte do Estado e da mídia, um processo de criminalização de suas condutas a partir de critérios sociais e da própria estratificação da sociedade (Gonçalves, Araújo, & Santana, 2010). Entretanto, a conduta infracional muitas vezes representa o ápice de constantes e sucessivas exclusões e privações, materiais e subjetivas, experimentadas pelos(as) adolescentes e jovens pobres, negros(as) e periféricos(as). Desse modo, a prática do ato infracional deve ser compreendida como a tentativa, por vezes única, por parte do adolescente e jovem de construir ou reestabelecer sua ligação com a sociedade e tentar recuperar o pertencimento ao mundo (Castro & Guareschi, 2008).

O contexto de vida dos(das) adolescentes e jovens pobres das periferias é expressão da questão social (Yamamoto & Oliveira, 2010), que emerge do sistema desigual do capitalismo, da inexistência de políticas sociais de bem–estar social que promovam para os(as) adolescentes, jovens e suas famílias, o acesso aos bens socialmente produzidos (Medeiros & Paiva, 2015). Conforme discutido por Leão, Dayrell e Reis (2011), tais condições implicarão de maneira significativa o modo como este segmento da população irá se relacionar, de modo real e subjetivo, com o meio em que vive; bem como a forma com que o mesmo passa a construir seus interesses e sua trajetória e projetos de vida.

Os projetos de vida são construídos de maneira dinâmica, com base na personalidade e no contexto ontogenético do indivíduo, e desenvolvidos e alterados conforme se apresentem diferentes possibilidades e oportunidades aos mesmos (Pessoa, 2017). No caso dos(as) adolescentes e jovens em cumprimento de medida socioeducativa, seus projetos de vida dizem respeito às projeções futuras que estes indivíduos vislumbram construir, para além da conduta infracional. A construção do projeto de vida do(a) adolescente e jovem que cumpre medida socioeducativa deve ser direcionada para perspectivas futuras, considerando os aprendizados que a medida socioeducativa pode fornecer, de modo a viabilizar uma possível mudança de vida (C. S. S. Costa, 2017).

Ao discorrer sobre os projetos de vida dos(as) adolescentes e jovens em cumprimento de MSE, Baquero, Lemes e Santos (2011) apontam que estes funcionam como elemento de fortalecimento do senso pessoal destes indivíduos. Construir e conduzir um projeto de vida permite aos(às ) adolescentes e jovens enxergarem com maior clareza quem são e os desejos que possuem, experimentando uma reinvenção de seu contexto futuro.

Em contexto e com intuito semelhantes, e como forma de resistir às violações de direitos e à ausência do Estado em sua função protetiva que, entre as décadas de 60 e 70, os(as) adolescentes e jovens nova–iorquinos deram início ao que viria a se tornar o movimento Hip Hop. A implantação da via expressa Cross Bronx Expressway, entre os anos 1960 e 1970, dividiu ao meio a área central de Nova York e culminou na remoção de cerca de 60 mil moradias, que foram alocadas na área chamada de "South Bronx" – que, por sua vez, passou a ser associada pela mídia ao abandono, atraso e criminalidade (Gimeno, 2009).

Os jovens daquela área ansiavam por opções culturais alternativas à situação social e territorial que enfrentavam. Nesse sentido, enquanto movimento juvenil social, político e cultural, o Hip Hop ofereceu "espaços para a identificação quanto ao lugar que moram, ao lugar que ocupam no tecido social, à sua condição juvenil" (Matsunaga, 2004, p. 70). O RAP (rhythm and poetry, do inglês, ritmo e poesia), um dos elementos que compõem o movimento, é resultado da junção do DJ (disc jokey)e do MC (mestre de cerimônia): o primeiro produz as bases musicais que dão ritmo às letras compostas e cantadas pelo segundo (Silva, 2005). Para a autora, o RAP tornou–se um dos principais instrumentos utilizados pelos jovens negros das periferias para intervir nas relações sociais de desigualdade nas quais estão inseridos, através da denúncia das opressões sofridas.

Para além dos aspectos musicais e rítmicos, o RAP consegue sintetizar e disseminar, através de suas letras, elementos que conduzem ao desenvolvimento de uma consciência social e política por parte de quem o ouve. Muitas das letras de RAP reúnem em si e apresentam ao público conselhos e ensinamentos advindos da vivência nas periferias, além de permitirem a construção de novas perspectivas de inserção e transformação dentro da sociedade que é a própria produtora da exclusão (Eble, 2016; Rocha, Domenich, & Casseano, 2001).

Teixeira (2017) aponta a música como importante ferramenta de desenvolvimento cognitivo, psicomotor e sócio–afetivo. Os estímulos diversos produzidos pela música colaboram para o desenvolvimento intelectual do sujeito, ao passo em que o desenvolvimento das habilidades motoras e o processo de formação de identidade e autoestima são favorecidos.

O uso que os(as) adolescentes e jovens que cumprem medida socioeducativa de internação fazem do RAP é justificado pelo fato destes encontrarem, no gênero musical, um elemento que permita falar sobre a realidade social e econômica desigual vivenciada nas periferias. O RAP auxilia na existência e na sobrevivência destes jovens em uma sociedade racista e opressora (Amaral, 2014; Eble, 2016). É comum que os RAPs relatem em suas rimas as nuances do cotidiano da privação de liberdade. O discurso de ressocialização disseminado pelo Estado é problematizado nas composições do gênero musical, e visto apenas como um modo institucionalizado de encarceramento em massa do segmento da população, encarado como desviante da norma (Corrêa, 2016).

O RAP funciona como um modo de denúncia da cruel realidade prisional, de combate à opressão e ao silenciamento a que se encontram submetidos, e de fazer ser ouvida as vozes dos privados de liberdade (Corrêa, 2016; Poncio, 2014). Para Poncio (2014), além do RAP tematizar a realidade da privação de liberdade , apresenta também perspectivas de resistência e mudança de vida. O RAP colabora no processo de resistência aos efeitos do cárcere sobre a "personalidade" do indivíduo, tecendo novas possibilidades e desvelando novos caminhos a serem percorridos por esta parcela da população (Poncio, 2014).

Sobre o potencial do RAP no trabalho com adolescentes em cumprimento de medida socioeducativa, Tomasello (2006), através de sua pesquisa, atestou o poder deste gênero musical como um elemento que permite a manifestação da subjetividade dos(as) adolescentes e a produção de novas perspectivas de vida. O autor conclui que os jovens enxergam o RAP não só como um veículo de comunicação, mas como um modo de realizar–se enquanto indivíduo na sociedade. O RAP fornece a estes jovens a sensação de pertencimento, de uso de um recurso próprio, que lhes pertence. O próprio processo de composição de RAPs, como explorado por Souza, Jovino e Muniz (2018), envolve práticas de letramento que se relacionam com questões culturais e políticas, posto que ampliam as formas de possibilidades do sujeito de se inserir em um lugar social de crítica, contestação e subversão . O processo de criação do RAP acaba por incorporar e permitir a reinvenção e ressignificação dos usos sociais da linguagem, o que é chamado pela autora de "letramentos de reexistência".

 

Método

Lócus e Participantes

Este trabalho foi realizado em três Unidades Socioeducativas que atuam com medidas em caráter de internação no estado da Paraíba; sendo uma feminina e duas masculinas. Foram entrevistados 12 adolescentes e jovens que cumpriam medida socioeducativa de internação, com idades que variaram de 14 a 21 anos e de ambos os sexos. Solicitou–se à Direção Técnica da Unidade a indicação do primeiro participante, sendo um adolescente ou jovem que cantasse ou compusesse RAP na Unidade. A partir disto, seguiu–se o método da bola de neve, em que cada participante fazia a indicação de outro(a) socioeducando(a).

Utilizou–se o critério de saturação, que ocorreu com 10 participantes. Com o objetivo de garantir o sigilo da identidade dos(as) participantes, foram atribuídos nomes fictícios a cada um deles. Os nomes utilizados foram de rappers e MCs brasileiros, e a escolha considerou elementos semelhantes entre os(as) participantes e suas falas e grandes nomes do movimento Hip Hop.

Instrumento, Procedimentos de Coleta e Éticos

Utilizou–se como instrumento uma entrevista semiestruturada, que incluía, além dos dados biossociodemográficos como idade, sexo, etnia e escolaridade, perguntas sobre a relação do adolescente e jovem com o RAP, como o mesmo é utilizado pelo adolescente e jovem na Unidade, quais cantores os(as) participantes costumam ouvir, o que mais chama atenção no RAP e a diferença entre o RAP e outros gêneros musicais entre outras. A pesquisa atendeu todos os preceitos éticos determinados pelas Resoluções de nº 466/2012 e 510/2016, para pesquisas com seres humanos. Diante disto, foram realizadas as entrevistas com jovens e adolescentes que gostavam de ouvir ou que compunham RAP.

Procedimentos de Análise dos Dados

O presente estudo trata–se de uma pesquisa exploratória de caráter qualitativo, a partir do qual foi possível compreender os sentidos construídos pelos(as) adolescentes e jovens participantes em torno do tema proposto, e atribuídos ao mesmo. A adoção do método qualitativo se deu pela maior viabilidade deste no sentido de compreender as dimensões sociais envolvidas na construção de sentidos por parte dos participantes, bem como de conhecer o universo de motivos, crenças e valores dos sujeitos, como aponta Minayo (2014).

Optou–se pela utilização do método de Análise de Conteúdo de Bardin (1977), seguindo as etapas de pré–análise (leitura flutuante do material), codificação, categorização, inferência e interpretação dos dados. As categorias a serem analisadas abordarão o potencial pedagógico do RAP, as possibilidades de uso do mesmo e a construção do projeto de vida dos(as) adolescentes.

 

Resultados

Perfil dos(as) Participantes

As idades dos(das) participantes variaram entre 14 e 18 anos, em que a maioria encontrava–se com 17 anos. Dos(Das) 12 participantes, três eram do sexo feminino e nove do sexo masculino. Quanto à etnia, cinco participantes se declararam como brancos(as), dois como pardos(as), quatro como morenos(as) e apenas uma afirmou ser negra. Sobre o nível de escolaridade, cinco possuíam Ensino Fundamental incompleto, dois haviam concluído o Ensino Fundamental, quatro possuíam Ensino Médio incompleto, e apenas uma havia concluído o Ensino Médio.

Potencial Pedagógico

Esta categoria, denominada Potencial pedagógico do RAP, trata da capacidade do gênero RAP de facilitar o desenvolvimento de processos de caráter pedagógico. A categoria aborda os conteúdos das falas dos(das) participantes que revelaram fazer uso da composição e do consumo do RAP como forma de treinamento da escrita e como modo de favorecer a sociabilidade. No primeiro caso, o RAP constitui–se enquanto um elemento com intenso potencial de viabilizar o desenvolvimento de um maior domínio por parte do adolescente da linguagem escrita; sendo o processo de elaboração da letra realizado inicialmente pelo canto e posteriormente pela transposição para um papel.

Além de demonstrar tal uso, em sua fala, Dexter relevou que está praticando a escrita durante as composições:

Tem uma música que tem na minha mente, que eu to tentando escrever a metade dela, eu só sei a metade dela. ... Eu só num sei escrever minha letra muito bem não. Mas dá pra eu entender. ... To aprendendo a escrever mais, que é melhor. Minha letra é de forma. De imprensa, quer dizer.

Sobre o favorecimento da sociabilidade, identifica–se a capacidade do RAP de auxiliar na convivência cotidiana do participante com os demais socioeducandos. A relação do jovem com os demais companheiros da Unidade Socioeducativa passou por mudanças positivas graças ao RAP, o que colaborou para a construção de relações interpessoais mais pacíficas.

Eu to aprendendo a convivência, tá entendendo, que antes eu era, vamos dizer assim, um pouco tímido, arrumava muitas confusão, tá entendendo, assim, num ficava calado pra ninguém. E através do RAP, hoje em dia, eu to aprendendo a conviver com pessoas, tá entendendo. [...] E eu to aprendendo, respeitando, ajudando, que eu gosto de trabalhar [...] E o RAP assim, tem um pouco de tudo né, do RAP, força, caráter, disposição, né, é isso aí o RAP, tá entendendo (Gustavo) .

Possibilidades de Uso do RAP

Esta categoria, intitulada possibilidades de uso doRAP, aborda os meios através dos quais o referido gênero musical pode ser utilizado nas Unidades. A categoria reúne o teor das falas dos(das) participantes que fizeram menção à formas de utilização do RAP no contexto das Unidades Socioeducativas. O RAP apareceu como ferramenta de lazer, instrumento de resistência à privação de liberdade e como fonte ensinamentos para a vida.

Como meio de lazer, os(as) adolescentes recorrem ao RAP nos momentos de ócio, como forma de fazer o tempo passar mais rápido dentro das Unidades. A fala do jovem Léo exemplifica este aspecto: "Aqui dentro procuro um meio, assim, de passar mais o tempo, eu escrevo um RAP, canto. Ajuda a passar mais o tempo. Na hora que eu to mais assim, com a mente sem ter o que fazer". Na fala do jovem Alex o elemento ociosidade também aparece:

Aqui a gente num tem nada pra fazer, eu fico só escrevendo lá dentro... Aí do nada eu já vi que eu fiz um RAP. Eu sento, aí eu fico só pensando ... pensando e escrevendo, vem uma letra ali, aí eu vou fazendo... [...] Vai vindo na mente, aí quando eu vejo já saiu.

Para a participante Viviane, o uso do RAP se dá como ferramenta de resistência à privação de liberdade. Neste caso, o gênero musical é utilizado como um instrumento essencial para suportar o contexto da internação, auxiliando na sobrevivência e colaborando para uma permanência mais favorável, dentro dos limites possíveis, dentro da Unidade .

Me tira, eu acho que assim, muita... Que aqui a gente é daquela que a gente pode pegar depressão por qualquer coisa. Aí inspira, a gente se acalma, fica melhor em tudo. É uma diversão. ... É. É melhor, a gente procura escrever, cantar, do que a gente tá se estressando, tá em brigas, a gente foca nas coisas melhores pra gente (Viviane).

A participante Kmila apresentou o RAP como uma espécie de cartilha de ensinamentos para a vida. O RAP, neste caso, constitui–se como um gênero musical que consegue reunir diversas lições de vida para os(as) adolescentes e jovens que enfrentam a privação de liberdade. Através do RAP este público consegue adquirir aprendizados e lições de vida compatíveis e pertinentes à suas vivências.

Quando você escuta as letras e vê ali... É tipo um conselho, ali você escutando um RAP. Tipo assim, ele fala na convivência que já viveu, e no mesmo momento, fortalecendo você a não se envolver, dizendo o que é o crime, dizendo os prejuízos se você continuar, se você permanecer ... Ali quando você escuta você já vê, você para e pensa "É mesmo, oh, enquanto tem filho de rico que tá ali gastando dinheiro, rindo, e outro ali tá chorando". Porque ele fala a realidade que a gente tá vivendo hoje, fala que ele tá presenciando na realidade o que a gente vive hoje (Kmila).

A jovem mencionou, ainda, o retrato que o RAP faz das desigualdades de renda e dos problemas sociais que marcam o cotidiano das periferias. A participante Kmila também se referiu ao auxílio oferecido pelo RAP da defesa da população periférica frente aos preconceitos sofridos. Desse modo, além de transmitir perspectivas projeções e aspirações de futuro e mudanças de vida, o RAP instrui seu público a partir do retrato fiel que faz da realidade social das periferias.

... fala da desigualdade social, fala daqueles que vem da comunidade, da periferia, defendendo aqueles que vem da comunidade, que as outras pessoas veem com outros olhos, falando que é favelado... E tá sempre ali apoiando quem vem da periferia, querendo ou não a gente vem de uma comunidade que não tem muita renda. [...] Então é o que é a realidade, o RAP é a realidade que a gente tá vivendo hoje (Kmila).

Construção de Projeto de Vida

Nesta categoria são apresentados os projetos de vida que os(as) participantes afirmaram ter, reunindo as aspirações, planos e perspectivas que os(as) adolescentes e jovens possuem quando visualizam seu futuro. Todos os projetos de vida trazidos pelos(as) adolescentes em suas falas apresentaram, direta ou indiretamente, relação com o RAP e com o uso que fazem deste nas Unidades Socioeducativas. Alguns se relacionavam ao ofício de compor músicas e outros a seguir a carreira de ser cantor do gênero musical.

Sobre a composição de letras, o participante Mano Brown trouxe à tona o desejo de compor RAP quando saísse da Unidade Socioeducativa, e apresentou o gênero musical como uma possibilidade de alcançar um futuro melhor: "Aí nois pega, escuta, pra quando nois sair daqui, o que? Se esforçar pra ser um cantor de RAP, essas coisas assim. [...] E quando eu sair daqui correr atrás de um futuro melhor, só isso mesmo".

Outro projeto de vida mencionado foi o de tornar–se cantor de RAP. O participante considera, inclusive, que a carreira de cantor deste gênero musical possa funcionar como um meio através do qual o participante poderia "vencer na vida".

Resolvi escrever igual a eles, que no futuro eu também podia ser um deles né. [...] mas aí eu quero mudar de vida, né. Ser, como é que se diz... Tipo os meus sons de moleque, né, um cantador de RAP. [...] Sair daqui, botar a cabeça no lugar, trabalhar, fazer faculdade, se Deus quiser, e seguir diante no meu RAP, que eu tenho dom, esse é o meu dom e eu vou mostrar pra todo mundo que eu consigo vencer (Edi Rock).

 

Discussão

Os(As) jovens e adolescentes entrevistados(as), em sua maioria, se declararam como brancos(as) ou morenos(as). O fato de apenas uma participante ter se declarado como negra representa certa incompatibilidade com os dados apresentados pelo Levantamento Anual SINASE 2017 (MMFDH, 2019) acerca do perfil biossociodemográficos dos jovens e adolescentes em privação de liberdade. Este antagonismo é o próprio reflexo dos estigmas envolvidos na autodeclaração étnica como negro(a). Reconhecer–se e dizer–se como negro(a) é um processo marcado pelas sucessivas exclusões e marginalizações experimentadas pelo povo negro (Munanga, 2004).

Vê–se que apenas uma jovem possui Ensino Médio completo. Este aspecto encontra semelhança com a literatura (Medeiros & Paiva, 2015; Yamamoto & Oliveira, 2010), segundo a qual os(as) adolescentes e jovens pobres e periféricos(as) experimentam inúmeros efeitos da expressão da questão social: ausência de políticas públicas de bem–estar social e falta de acesso aos bens socialmente produzidos. São adolescentes e jovens que vivenciam experiências de exclusão e negação dos direitos legítimos e fundamentais dos quais deveriam gozar, enquanto cidadãos.

A partir de suas vivências nas Unidades, os(as) participantes enxergam no RAP um elemento de fundamental importância. O RAP fornece, igualmente, estímulo e auxílio no processo de melhoria da escrita, no caso de um jovem que não dominava a escrita cursiva da letra e que estava tentando aprimorar–se para poder compor RAPs. Para Souza et al. (2018), o processo de composição de letras deste gênero musical que envolve práticas de letramento são só a nível escrito, mas alcançando fatores culturais e políticos, ao permitir ao adolescente e ao jovem uma participação social compromissada com a transformação das relações sociais e raciais. Compor RAP permite ao indivíduo reinventar e dar novos sentidos à linguagem e ao seu uso.

Ainda no contexto das Unidades, a sociabilidade entre os jovens e adolescentes internos também traz consigo alguns traços do que as músicas de RAP apresentam. A melhoria da qualidade na relação entre os(as) socioeducandos(as) é fruto da própria intimidade que este gênero musical apresenta com contextos marcados pela violência e pela exclusão. O movimento Hip Hop, em especial o RAP, conseguem exercer o papel de mediadores no processo de produção de sentidos sociais e pessoais, bem como de representações acerca da realidade onde o sujeito se insere. Em sua pesquisa, Amaral (2014) encontra a explicação para esta relação de intimidade e troca: o Hip Hop oferece aos jovens e adolescentes que vivenciam contextos sociais complexos e violentos um modo particular de sociabilidade, através do qual estes atores conseguem adquirir maiores possibilidades de reelaborarem suas vivências cotidianas.

É o fato do RAP carregar consigo elementos do cotidiano da juventude pobre que permite que o gênero musical funcione como elemento pedagógico nos mais diversos aspectos. O RAP atua como a ponte que medeia, aproxima e oferece elementos para a inscrição do socioeducando no contexto da privação de liberdade em direção a universos e elementos antes não conhecidos. Conforme abordado por Tomasello (2006), o RAP é a ferramenta que permite a estes jovens e adolescentes a produção de novas perspectivas de vida.

Podemos reunir, a partir das falas dos(das) participantes, que o uso que os(as) adolescentes e jovens das Unidades Socioeducativas fazem do RAP percorre, em sua maioria, caminhos mais comprometidos com a sobrevivência nas Unidades e com as lições de vida apresentadas por este gênero musical; embora o mesmo também seja usado como meio de lazer. Poncio (2014) e Corrêa (2016) confirmam tal visão ao tratar do RAP como um componente que colabora no processo de resistência à prisionização (efeitos da prisão sobre a "personalidade" do indivíduo), sendo fundamental na linha de frente da sobrevivência no contexto de privação de liberdade.

O uso do RAP como lazer nos aponta para um modelo Socioeducativo que apresenta momentos ociosos que não deveriam existir nesta proposta. Os jovens e adolescentes assumem o RAP como substituto da ausência de atividades de reintegração social. De acordo com A. C. G. Costa (2006), a preparação do jovem para estabelecer uma relação sadia consigo e com a sociedade deveria ser o pilar central de toda e qualquer ação empreendida no contexto da Socioeducação.

O uso do RAP passa a funcionar como fornecedor de sentido ao ócio provocado pela vivência em um contexto que deveria ser socioeducativo, mas que não parece oportunizar ocasiões que permitam o estímulo e desenvolvimento da autonomia, do empoderamento e do protagonismo dos socioeducandos. A "alma" da ação socioeducativa, mencionada por A. C. G. Costa (2006) como a preparação para o convívio social, passa a ser tomada para si pelo RAP, através do qual os(as) adolescentes e jovens conseguem apreender uma série de aprendizados e lições em termos de uma real educação social.

O compromisso de resgatar os jovens de condutas infracionais e de fornecer elementos que permitam a construção de um processo de autoafirmação e de sobrevivência saudáveis, aparecem na fala dos(das) participantes. Para Tomasello (2006), o RAP é visto pelos(as) adolescentes e jovens como um modo de realização pessoal, permitindo o fortalecimento da sensação de pertença. É este gênero musical que permite aos reeducandos, através do existir–resistir cotidianos, a descoberta de novos sentidos e a elaboração de novos elementos sociais e subjetivos. Desse modo, o RAP opera como auxiliar na superação das exclusões e violações do Sistema; funcionando como elemento fundamental na linha de frente da resistência ao contexto da privação de liberdade (Eble, 2016).

Como gênero musical que oferece elementos que permitem aos jovens e adolescentes engajarem–se em projetos de vida e novas possibilidades de ações futuras, o RAP preenche, nos(as) adolescentes e jovens privados de liberdade, as lacunas deixadas pela presença parcial de práticas de formação e convivência social. O RAP assume a forma de cartilha de ensinamentos, conforme falas dos(das) participantes, permitindo uma série de aprendizados e lições em termos de uma real educação social. De acordo com Alves, Oliveira e Chaves (2016), o hip hop é um recurso extremamente significativo nas práticas de cunho social, educativo e cultural, pois além de estimular a reflexão crítica e a participação cidadã por parte dos jovens em seus contextos sociais, favorece o desenvolvimento de ações individuais e comunitárias de mudança em busca da conquista de direitos sociais.

Estes dados aproximam–se do que é trazido pela literatura (Gimeno, 2009; Matsunaga, 2004; Rocha et al., 2001) acerca da principal intenção que levou à criação do movimento Hip Hop: resistência à pobreza e à marginalização, bem como elementos de identificação com o espaço social que ocupavam – espaço, este, que aparece na fala de uma das jovens: "E tá sempre ali apoiando quem vem das periferias, querendo ou não a gente vem de uma comunidade que não tem muita renda" (Kmila).

Não é coincidência que, o rapper Carlos Eduardo Taddeo, ex–integrante do grupo de RAP Facção Central, na música "Eu acredito" (do álbum solo de estreia "A Fantástica Fábrica de Cadáver", lançado em 2014), dentre os diversos conselhos que fornece aos moradores das periferias, menciona o não envolvimento com a criminalidade. Os conselhos dados por Eduardo ilustram de maneira extraordinária o modo como o RAP "fortalece" os(as) adolescentes e jovens privados(as) de liberdade.

Se vingue sendo nota dez e meio / Roubando seus cargos não as vans dos correios [...] / Nosso papel não é ser troféu de caça / Apresentado pela civil do lado da coca embalada / Não importa os antecedentes baixo poder aquisitivo / Sua sina não é glóck quinze tiro... Eu acredito!

Com um tom confiante e carregado de estímulo, o RAP faz sua assinatura e carimba a marca de sua função social. Eduardo, nascido e criado no bairro paulista Glicério, e tendo enfrentado uma infância extremamente difícil marcada pela pobreza e pelo trabalho infantil, atesta o potencial de mudança e subversão que os jovens das periferias possuem, a despeito do contexto que enfrentam.

Os versos deste RAP cumprem o papel de romper o estigma de que "RAP é coisa de bandido, de marginal ". Eduardo destrói o argumento de que a juventude das periferias está pré–determinada ao envolvimento com a criminalidade; afirmando, inclusive, que a melhor forma de "vingança" é uma trajetória de vida "nota dez e meio". Estes versos alimentam a ideia de que o processo de ser deixado à margem da sociedade, vivenciado pelos jovens e adolescentes privados de liberdade, dá lugar, cotidianamente, à existência , à visibilidade e à resistência empreendida por estes indivíduos feitos de puro protagonismo.

As falas dos(das) participantes apontam para a presença expressiva do RAP na construção dos projetos de vida destes jovens e adolescentes. É este gênero musical que fornece elementos e possibilidades para que os(as) participantes consigam alcançar seus desejos de "vencer na vida" ou "mudar de vida". Além de promover ao indivíduo uma mudança de vida, a construção de um projeto de vida colabora para que o indivíduo passe a ter maior clareza de seus ideais, objetivos e aspirações (Baquero et al., 2011; C. S. S. Costa, 2017). O fato de o RAP viabilizar esta visão nítida de si mesmo e de seu futuro, por parte dos(das) participantes, é ilustrada pelos versos compostos e cantados pelo participante Mano Brown : "Quero sair daqui, eu penso em mudar. Eu quero um emprego e penso em me formar. Nessa vida do crime só tenho uma saída. Jesus Cristo é o caminho, a verdade e a vida ".

Infere–se que a decisão em relação a tornar–se um cantor de RAP ou escrever RAP tenha sido possibilitada pela apropriação que estes adolescentes e jovens fazem do gênero musical dentro do contexto da Unidade. O fato de o RAP conseguir agregar e retratar os elementos da realidade vivenciada por estes adolescentes e jovens na privação de liberdade permite o desenvolvimento de uma relação de intimidade com este gênero musical. Dessa forma, as ferramentas e possibilidades oferecidas pelo RAP, inseridas no contexto social onde os reeducandos se encontram, e em meio a seus processos de desenvolvimento, repercutem de maneira direta sobre o que construirão como projeto de vida, conforme explorado por Leão et al. (2011).

 

Conclusões

A pesquisa mostra que os objetivos pedagógicos das medidas socioeducativas parecem ter se restringido apenas aos ritos da lei, posto que os(as) adolescentes e jovens experimentam, conforme dito por eles, longos momentos de ócio. Nota–se que é nesta ausência de atividades que RAP se faz presente, fornecendo sentido a esta vivência ociosa; como elemento que a preenche, funcionando como mediador na experiência da privação de liberdade, bem como ferramenta educadora e formadora.

A escolha pelo RAP pode sinalizar que os(as) adolescentes e jovens não encontram semelhante abertura e possibilidade de expressão em outras ferramentas dentro da Unidade Socioeducativa. A ausência de formas possíveis e aceitáveis de expressão conduz estes adolescentes e jovens a encontrarem no RAP um meio de adquirir conhecimentos consistentes e compatíveis com suas experiências de vida.

Esperamos que este trabalho tenha demonstrado, através das falas dos próprios socioeducandos, como o RAP ultrapassa a mera definição de "forma de entretenimento". O RAP ocupa o lugar da escola, motiva, estimula e ensina formas de socializar, de escrever e de resistir diante do sofrimento cotidiano na privação de liberdade.

O fato de o RAP ser um veículo de expressão, através do qual os(as) adolescentes e jovens falam de si mesmo e se suas experiências de sofrimento da privação de liberdade demonstra o potencial catártico que o gênero parece ter para estes(as) participantes. Além disso, considera–se que o RAP pode funcionar como ferramenta potente para um trabalho de educação social nas unidades socioeducativas; oferecendo um meio de integração e de construção de identidade por parte dos(as) adolescentes e jovens através da música.

Reitera–se, aqui, o desejo de garantir que a voz, as rimas e os versos destes adolescentes e jovens sejam ouvidos e compreendidos para além de uma visão que apenas racionaliza e extrai de manifestações particulares – como é o caso do RAP – os elementos tão subjetivos e vivos que lhes são particulares.

 

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Recebido em 01.set.19
Revisado em 16.abr.20
Aceito em 18.mai.20

 

 

Alice Cristina Silva dos Santos, Psicóloga pela Universidade Federal da Paraíba – UFPB, é psicóloga reabilitadora na Fundação Centro Integrado de Apoio ao Portador de Deficiência–PB – FUNAD/PB. Endereço para correspondência: Rua Luzitânia, 167 (1º andar), Roger, João Pessoa – PB, CEP 58.020–090. Telefone: (83) 9 9956–7207. Email: alice.crs1@gmail.com
Maria de Fátima Pereira Alberto, Doutora em Sociologia pela Universidade Federal de Pernambuco – UFPE, Pós–Doutora em Psicologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN, é Professora Titular da Universidade Federal da Paraíba – UFPB. Email: jfalberto89@gmail.com
Aíla Souza Muniz, Psicóloga pela Universidade Federal da Paraíba – UFPB, é Psicóloga Clínica e colaboradora do Conselho Regional de Psicologia da Paraíba (CRP–13). Email: ailamuniz@hotmail.com

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