SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.25 número3Estrés y adaptación psicológica en el escenario pandémico de covid-19 en BrasilCOVID-19: indicadores clínicos y epidemiológicos de los impactos en la salud mental en profesionales de primera línea - una revisión sistemática de la literatura índice de autoresíndice de materiabúsqueda de artículos
Home Pagelista alfabética de revistas  

Estudos de Psicologia (Natal)

versión impresa ISSN 1413-294Xversión On-line ISSN 1678-4669

Estud. psicol. (Natal) vol.25 no.3 Natal jul./set. 2020

http://dx.doi.org/10.22491/1678-4669.20200028 

DOI: 10.22491/1678-4669.20200028

PSICOLOGIA SOCIAL DO TRABALHO

 

A atividade de trabalho e o adoecimento psíquico em trabalhadores de uma instituição federal de ensino

 

Work activity and psychic illness in workers of a federal educational institution

 

La actividad de trabajo y la enfermedad psicológica en trabajadores de una institución federal de enseñanza

 

 

Cynthia Araújo MotaI; Alda Karoline Lima da SilvaII

IInstituto Federal de Educação Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Norte
IIUniversidade Potiguar

 

 


RESUMO

Utilizando-se do aporte teórico da Clínica da Atividade, o artigo aborda relação entre o adoecimento psíquico e a atividade de trabalho dos servidores técnico administrativos em educação (TAE) de uma instituição federal de ensino. Considerando que gestores vêm observando um percentual crescente de afastamentos por motivo de saúde psíquica entre os servidores, a pesquisa visa realizar uma análise descritiva e clínica da atividade de trabalho dos TAE que enfrentaram adoecimento psíquico pelo trabalho. Tal análise foi realizada por meio da técnica da Instrução ao Sósia (IaS), com dois trabalhadores: um pedagogo e um assistente de alunos. Ao analisar os impedimentos da atividade, observou-se perda ou amputação do poder de agir em ambos os casos analisados. Por meio das trocas dialógicas com trabalhadores, observou-se mobilizações clínicas de caráter terapeutizante, manifestação de afetos e transformação no poder de agir do trabalhador.

Palavras-chave: clínica da atividade; instrução ao sósia; técnico-administrativo em educação.


ABSTRACT

Considering the theoretical references from the Clinic of Activity theoretical approach, this study is centered on the psychic illness and the working activity of technical and administrative workers in education (TAE) at a federal teaching institution, in Brazil. Considering that its administrators have observed a growing percentage of sickness absence caused by mental health issues among its workers, the current research aims to develop a descriptive analysis and the clinic of activity of TAE´s who face psychic illness at work. This analysis was performed using the technique of the instruction to the double, with two volunteer workers: a pedagogue and a student assistant. When analyzing the impediments of the activity, loss or amputation of the power to act was observed in both analyzed cases. Through dialogical exchanges with workers, clinical mobilizations of a therapeutic nature, manifestation of affections, and transformation in the worker's power to act were observed.

Keywords: clinic of activity; instruction to the double; technical and administrative workers in education.


RESUMEN

En ese artículo se aborda la relación entre enfermedades  psicológicas y la actividad de trabajo de los servidores técnicos administrativos en educación (TAE) de una institución federal de enseñanza, con el predominio de los operadores teóricos de la Clínica de la Actividad. Considerando que gestores vienen observando un porcentaje creciente de alejamientos por motivo de salud psíquica entre los servidores, la investigación tiene como objetivo realizar un análisis descriptivo y clínico de la actividad de trabajo de los TAE que enfrentaron enfermedades psicológicas por el trabajo. Tal análisis fue realizado por medio de la técnica de Instrucción al Sosia (IaS), con dos trabajadores: un pedagogo y un asistente de alumnos. Al analizar los impedimentos de la actividad se observó pérdida o amputación del poder de actuar en ambos casos analizados. Por medio de los intercambios dialógicos con trabajadores, se observaron movilizaciones clínicas de carácter terapéutico, manifestación de afectos y transformación en el poder de actuar del trabajador.

Palabras clave: clínica de la actividad; instrucción al sosia; técnico administrativo en educación.


 

 

Este estudo aborda a relação entre o adoecimento psíquico e a atividade de trabalho dos servidores técnicos administrativos em educação (TAE) de uma instituição federal de ensino (IFE) do nordeste do país, utilizando-se do aporte teórico da Clínica da Atividade (Clot, 2007, 2010). As IFE´s são autarquias federais vinculadas ao Poder Executivo, reconhecidas pela sociedade por oferecer uma educação pública, gratuita e de qualidade. De acordo com dados cadastrais da própria instituição, em janeiro de 2018, ocasião em que foram coletados os dados para a pesquisa, o quadro funcional desta instituição contava com 1.388 docentes efetivos, 1.123 técnicos administrativos e 179 docentes substitutos. Em junho de 2020, a instituição passou a contar com 1512 docentes efetivos, 125 docentes substitutos e 1349 técnicos administrativos.

Os efeitos do trabalho na saúde mental e o crescimento do número de adoecimento psíquico oriundo do trabalho estão sendo alvo de debate e reflexões por diversos pesquisadores. Os dados estatísticos gerados pela Unidade SIASS (Subsistema Integrado de Atenção à Saúde do Servidor) da instituição de ensino pesquisada apresentaram informações significativas a respeito do adoecimento psíquico dos servidores. Segundo relatórios fornecidos pelo referido sistema, durante o período de 01/01/2018 a 31/12/2018, 28% das ocorrências de afastamentos foram por motivo de transtorno mental ou do comportamento (CID F), com grande recorrência de transtorno misto ansioso e depressivo, episódios depressivos graves e ansiedade generalizada. Para o ano 2019, foi registrado percentual de 23% de afastamentos por CID F.

Salienta-se que os estudos de Monteiro (2016) apresentam que os docentes e os técnicos administrativos do ensino público brasileiro também estão no rol daqueles cargos em situação de risco de sofrimento e de transtornos psíquicos. Diante do exposto, esta pesquisa objetivou analisar recortes contextuais da atividade de trabalho que vulnerabilizam a saúde psíquica de TAEs que enfrentaram adoecimento psíquico pelo trabalho.

Neste estudo, a Clínica da Atividade foi o principal referencial teórico de sustentação, cujas bases teóricas podem ser encontradas nas teorias histórico-culturais de Vigotski e Leontiev e na Linguística de Bakhtin (Lima, 2007). Segundo Clot (2010), a ênfase da Clínica da Atividade está na busca de instrumentos que possibilitem a compreensão da situação de trabalho real para aumentar o poder de agir sobre o mundo e sobre si mesmo.

O trabalho é considerado como uma atividade dirigida, histórica e processual (Bendassolli & Soboll, 2011), que visa uma permanente recriação de novas formas de viver. Essa abordagem reconhece que o coletivo regula a ação individual. Dessa forma, o trabalho permeia a dimensão da história singular (do sujeito) e da história de um ofício. Na Clínica da Atividade, cursam juntos os pressupostos teóricos, de pesquisa e de intervenção, já que os trabalhadores são os protagonistas da análise do trabalho, bem como os autores da transformação.

Para Clot (2007), a Clínica da Atividade propõe-se a estudar o trabalho como uma atividade triplamente dirigida: para si mesmo; entre o sujeito e o objeto da tarefa; e entre o sujeito e o outro, como atividade compartilhada, mediada por um gênero profissional. O autor afirma que o trabalho tem uma função psicológica específica na vida do sujeito, na medida em que promove uma ruptura entre as "pré-ocupações" pessoais do sujeito e as "ocupações" sociais que este deve realizar.

Para uma adequada compreensão da abordagem Clínica da Atividade, é basilar esclarecer os conceitos de tarefa, atividade, trabalho prescrito e trabalho real, que são advindos da Ergonomia. A tarefa diz respeito aos objetivos que a organização coloca aos trabalhadores, assim como aos modos de proceder para atingi-los (Guérin, Kerguelen, Laville, Daniellou, & Duraffourg, 2011). Na tarefa também estão compreendidas as formas esperadas de interagir com as ferramentas, as instruções relativas à segurança e as definições técnicas do produto ou do serviço que será prestado. Já atividade, segundo Leontiev (1984) compreende um processo que é eliciado e dirigido por um motivo. Desta forma, a atividade de trabalho, significa o trabalho efetivamente realizado pelo indivíduo, a forma como o trabalhador consegue desempenhar sua tarefa. Ao fazer uma distinção entre o prescrito e o real, Guérin et al. (2001) apontam que as condições reais de trabalho são sempre diferentes do previsto; portanto, os resultados efetivos são sempre diferentes dos resultados antecipados.

É fundamental, para a Clínica da Atividade, ir além da distinção entre tarefa e atividade, trabalhos prescrito e real, adentrando aos conceitos de real da atividade e de ofício. Para Clot (2001), o real da atividade não é somente aquilo que se faz. É também o que não se quer fazer, aquilo que não se pode fazer, o que se tenta fazer sem conseguir, aquilo que se poderia fazer ou aquilo que se sonha poder fazer em outro momento. Para o autor, as atividades impedidas, suspensas ou paralisadas não podem ser desconsideradas da análise da atividade de trabalho, já que compõem a atividade real. Dentre tantas atividades possíveis, uma é realizada e, portanto, passível de observação e descrição. Porém, as possibilidades que não foram realizadas ou ocultadas estão presentes para o trabalhador e atuam constantemente sobre a atividade realizada. Não foi realizada, mas faz parte da atividade. É justamente essa gama de possibilidades do fenômeno da atividade de trabalho que escapa ao observável que caracteriza a Clínica da Atividade, tanto em termos teóricos quanto em termos da proposta de método.

De acordo com Pinheiro, Costa, Melo e Aquino (2016), entre prescrito e real, tarefa e atividade, interpõem-se os gêneros profissionais. O gênero profissional compõe a história transpessoal do coletivo de trabalho, providenciando normas que orientam a ação. O gênero garante a pertença do sujeito a um coletivo, permitindo que os pares se reconheçam, se comuniquem e atuem conjuntamente, sem que seja necessário um conhecimento prévio entre eles (Clot, 2007). Nesse contexto, portanto, a dimensão transpessoal da atividade se refere à história coletiva de um grupo profissional.

A dimensão pessoal do ofício tem relação indissolúvel com o gênero (dimensão transpessoal), já que, segundo Clot (2010), o sujeito, ao atuar, emprega seu estilo a partir de uma apropriação dos gêneros, tendo em vista as circunstâncias imediatas da situação. A dimensão pessoal discorre sobre a singularidade do sujeito ao agir sobre a atividade de trabalho.

A dimensão impessoal do ofício engloba a tarefa, a organização do trabalho, a infraestrutura disponível, as condições de trabalho de modo geral, dentre outros aspectos. Seu caráter impessoal está em os sujeitos serem perfeitamente substituíveis, na medida em que a definição das tarefas e funções, bem como dos meios pelos quais a atividade deve se realizar, cabe à organização (Clot, 2011). Em outras palavras, trata-se de considerar as características oficiais prescritas do trabalho que devem ser, ao menos minimamente, constantes para qualquer um que se coloque a atuar naquelas condições.

Finalmente, a respeito da dimensão interpessoal, esta compreende os diálogos e o relacionamento entre os pares e os demais membros da organização. A Clínica da Atividade, em suas intervenções, apoia-se nessa dimensão como forma de acessar e produzir efeitos sobre as demais (Pinheiro et al., 2016). Os autores esclarecem que o ofício é definido como uma "estrutura arquitetônica" composta pelas quatro dimensões descritas acima (pessoal, interpessoal, impessoal e transpessoal), que mantêm uma tensão recíproca, gerando uma conexão estrutural que contribui para a vitalidade daquele que trabalha.

Segundo Clot (2011), "à medida que o trabalho se torna causa preocupante de doenças cada vez mais numerosas, ele se torna invariavelmente vital para a saúde" (p. 72). Segundo Lima (2006), a partir da obra de Yves Clot, foi possível reafirmar que o trabalho não apenas continua a preencher uma função psicológica exclusiva, como mantém sua centralidade na sociedade contemporânea.

A análise do trabalho proposta pela Clínica da Atividade é uma via de mão dupla, que visa, além de construir conhecimento, transformar as situações laborais por meio da coanálise da atividade do trabalho (Batista & Rabelo, 2013). No processo de coanálise o trabalhador participa ativamente da construção das informações que vão compor a análise do trabalho. Há uma busca para adaptar o trabalho ao homem (e não o contrário), por meio de uma transformação protagonizada pelos trabalhadores (Conceição, Rosa, & Osório da Silva, 2017). As autoras destacam que o analista do trabalho não tem a intenção de cooperar com a imposição de uma ordem social pré-estabelecida, pois sua prática implica assumir que "ser normal não é ser adaptado à situação, mas ser criador de normas. Ser normal não é ser conformado" (Editorial, 2008, p. 67).

Yves Clot se utiliza dos conceitos de normalidade e saúde pelo olhar do filósofo Georges Canguilhem. Sob a ótica de Canguilhem (2009) a saúde constitui um determinado jogo de normas de vida e de comportamento, caracterizada pela aptidão de suportar as alterações das normas. Só tem saúde o ser humano capaz de muitas normas, mais do que o normal. No que se refere à psique humana, segundo Canguilhem, a norma é o chamamento e o uso da liberdade para a revisão e a confecção de normas, o que implica "normalmente" o risco da loucura. O "anormal" pode, assim, o ser justamente porque obedece demais às normas.

 

Procedimentos metodológicos

Este estudo diz respeito à análise da atividade de trabalho de servidores TAE de uma instituição federal de ensino que estiveram adoecidos psiquicamente pelo trabalho, realizada por meio da técnica da Instrução ao Sósia (IaS), método usual na abordagem Clínica da Atividade. Para essa perspectiva teórica, cursam juntos os pressupostos teóricos de pesquisa e de intervenção, já que os trabalhadores são os protagonistas da análise do trabalho. O principal objetivo do clínico da atividade é atingido quando os trabalhadores se utilizam desses métodos como meio para seu desenvolvimento. Nesse sentido, a intervenção com a IaS, ao resgatar a história do desenvolvimento real do sujeito e da atividade, possibilita dar visibilidade aos obstáculos e às possibilidades insuspeitas na situação de trabalho (Clot, 2010) e, assim, oferece condições para que os trabalhadores cuidem do seu próprio ofício.

A IaS, proposta inicialmente por Oddone, Re e Briante (citados por Osório da Silva, 2014) e reformulado por Yves Clot no início dos anos 1990, foi escolhida como a técnica para analisar recortes contextuais da atividade de trabalho que vulnerabilizam a saúde psíquica dos técnico-administrativos em educação da instituição pesquisada.

É digno de nota que foi realizada uma estilização da técnica, que em sua origem francesa é realizada em grupos de pares de trabalhadores que realizam uma mesma atividade. Batista e Rabelo (2013) trazem contribuições importantes a respeito da condução da técnica da IaS, especialmente no que diz respeito à explicitação das regras, a sequência do trabalho e a maneira de proceder a instrução; entretanto, as autoras não apresentam uma experiência brasileira e evidenciam que aquela não é a única possibilidade de uso do método. Assim, considerou-se coerente a realização de algumas adaptações ao contexto cultural em que se insere essa pesquisa.

Participantes

Quatro trabalhadores que enfrentaram adoecimento psíquico pelo trabalho se dispuseram de forma voluntária a contribuir com a presente pesquisa; entretanto, para este escrito foram apresentadas as análises da atividade de trabalho de dois servidores: um pedagogo (cargo de nível superior) e um assistente de alunos (cargo de nível fundamental). Quantos aos participantes foram elegidos os seguintes critérios de inclusão: ser servidor ativo com mais de 6 meses de exercício, que tivesse afastamento prévio do trabalho por motivo de Classificação Internacional de Doenças (CID) do tipo F (transtorno mental ou do comportamento) e que já tivesse retornado ao trabalho. Após contatos prévios por e-mail, foram identificados os servidores que atendiam aos citados critérios. Optou-se por realizar uma entrevista piloto, para verificar o domínio da técnica e em seguida seguir o estudo com outros trabalhadores, através de amostragem não probabilística por conveniência.

Etapas do Estudo e IaS

A IaS é dividida em dois momentos. Inicialmente, o trabalhador se confronta com sua própria atividade por meio de entrevista dialógica com o sósia (pesquisador), a partir da seguinte proposição: "Suponha que eu seja seu sósia e que amanhã eu deva substituir você em seu trabalho. Que instruções você deveria me transmitir para que ninguém perceba a substituição?"(Clot, 2007, p. 144). O clínico do trabalho na posição do sósia deve oferecer certa "resistência" à tarefa que será instruída, realizando perguntas a respeito dos detalhes. Dada a instrução, deve ser delimitada uma tarefa específica de trabalho a que o trabalhador esteja habituado. Durante a execução da técnica, o trabalhador-instrutor relatará: O que ele faz habitualmente em sua atividade de trabalho; o que ele não faz; o que ele não deveria fazer se for substituído; o que ele poderia fazer, mas não faz. Desse modo, o relato que surge evidencia sobre o real da atividade (Clot, 2007). O clínico do trabalho/pesquisador deve estar interessado principalmente em como realizar a tarefa, em detrimento a questão do por que a tarefa é realizada (Da Silva et al., 2016).

O segundo momento da técnica se trata da Confrontação. Ocorre em um encontro posterior do pesquisador com o trabalhador, após a transcrição ou edição videografada do material construído durante o momento da Instrução. As instruções verbalizadas pelo trabalhador serão comentadas por ele e pelo pesquisador. Este segundo momento também é registrado, gerando um novo material para análise (Da Silva et al., 2016).

Cada trabalhador teve dois encontros presenciais com o clínico-instrutor, sendo o primeiro para a Instrução ao Sósia e o segundo para a Confrontação. Todas as entrevistas foram gravadas em áudio (com prévia autorização pelos participantes), transcritas e enviadas por e-mail para cada um dos trabalhadores. A entrevista de Confrontação ocorreu após o envio por e-mail da transcrição da entrevista de Instrução, com orientação de leitura prévia pelo participante.

Análise da IaS

Optou-se pelo método clínico-qualitativo, no qual a interpretação das falas dos participantes deve começar a acontecer já durante os primeiros contatos, de modo que devem ser observadas inclusive as manifestações não verbais dos sujeitos que possam lhe dar indícios interpretativos. A principal análise da atividade de trabalho deve ser o próprio trabalhador, e não um especialista. A posição de protagonista atribuída ao trabalhador é um dos pontos que faz dessa abordagem uma metodologia da análise do trabalho. Segundo Clot (2007, p. 129) trata-se "não de um método a ser aplicado, mas de uma metodologia de co-análise, re-concebida com eles, a cada vez singular, atendendo às expectativas científicas também".

 

Resultados da IaS

Diante da abundância de informações trazidas pela IaS e da necessidade de apresentar com clareza a análise da atividade de trabalho de duas ocupações distintas, com características peculiares, optou-se por separar o conteúdo em três dimensões de análise: a) Dimensões da atividade; b) Desenvolvimento da atividade; c) Interlocuções com o gênero profissional.

Com relação ao primeiro aspecto (dimensões da atividade) buscou-se analisar as quatro instâncias do ofício (Clot, 2010): pessoal (exercício subjetivo da atividade); impessoal (tarefas prescritas pela organização); transpessoal (história e memória profissional construídas pelo coletivo de trabalho); e interpessoal (referente às trocas dialógicas entre os pares). Em seguida, buscou-se analisar a relação do trabalhador com o seu ofício, especialmente no tocante ao contexto que vulnerabilizou a sua saúde (desenvolvimento da atividade). Por fim, destacou-se a relação entre o conteúdo da IaS e o gênero profissional em que aquele trabalhador está inserido. Ressalta-se que essa divisão é meramente didática, já que frequentemente são abordadas questões indissociáveis, como por exemplo, a dimensão transpessoal e o gênero profissional.

O Pedagogo em um Contexto de Fragilidade do Gênero Profissional

A partir do relato do pedagogo, observam-se lacunas no que diz respeito à prescrição do trabalho. Este relata que não houve um treinamento prévio após a sua chegada à instituição e que já precisou conduzir uma reunião pedagógica no seu primeiro dia de trabalho. O pedagogo tinha grande expectativa antes de iniciar o trabalho na instituição, mas encontrava-se, naquele momento, muito decepcionado e desmotivado.

[...] e eu cheguei na quarta-feira, dia da reunião pedagógica. Aí eu disse: 'Oi, tudo bem? Eu sou o pedagogo'. 'Ai, graças a Deus', porque só tinham estagiários, não tinha servidor. [...] E quando cheguei não tinha ninguém para me treinar, já foi o primeiro impacto. [...] E a primeira coisa que falaram foi sobre as atribuições. Inclusive a reunião pedagógica e eu pensando: 'Meu Deus, o que é isso?'... 'Mas é tranquila, inclusive vai ser agora, daqui a uma hora'. E eu: 'Hum, tá... e eu faço o quê?', porque eu nunca coordenei nada, não sabia que tinha que passar a fala pra um, a fala pra outro... Essa questão de logística eu não sabia. Apenas que eu iria coordenar a reunião pedagógica toda quarta. E quando eu pedia uma informação, me era passada de maneira muito genérica, como se eu tivesse que saber."

A dimensão pessoal do trabalho foi destacada várias vezes pelo pedagogo; foi possível perceber que o trabalhador percorreu um caminho de adaptar-se às normas, em busca da saúde (Canguilhem, 2009). Relatou sobre momentos que já havia sido mais paciente, mas que agora tem buscado ser mais firme, entretanto, sem ser grosseiro. Percebe-se o desenvolvimento de um modo de trabalhar protetor para a sua saúde.

Bendassolli (2011) aponta que o desgaste no trabalho está relacionado ao que o trabalhador não pode fazer e que gostaria, e àquilo que ele é forçado a fazer. Quando ocorre o impedimento, a energia associada à atividade acumula-se, sendo também este um fator de adoecimento, pois a saúde está ligada à intensidade dessa energia.

O pedagogo relatou também sobre situação em que afirma ter sido assediado moralmente por um de seus pares (outro pedagogo), que não labora mais no campus. A situação de péssimo relacionamento entre ambos acabou por gerar um Processo Administrativo Disciplinar, que tramitou na instituição, mas que, para o pedagogo, não foi efetivo em sua conclusão, gerando um sentimento de injustiça organizacional.

Para a Clínica da Atividade, a dimensão interpessoal compreende os diálogos e relacionamento entre pares e demais membros da organização (Pinheiro et al., 2016). Considerando que o trabalho é triplamente dirigido – para o sujeito, para a tarefa e para o outro – o aspecto das trocas interpessoais é relevante para as intervenções desta abordagem, que se apóia nessa dimensão como forma de acessar e produzir efeitos sobre as demais (pessoal, impessoal e transpessoal). Clot (2013) destaca que, sem destinatário, a atividade perde seu sentido, sendo, por isso, sempre interpessoal. Observa-se a relevância da dimensão interpessoal do ofício para este servidor, já que atualmente tem a sua equipe de trabalho como um aspecto positivo da sua vida laboral. Os outros dois servidores que compõem a equipe técnico-pedagógica têm sido importantes para o desenvolvimento da atividade do pedagogo-instrutor, podendo ser considerado um fator de proteção à sua saúde. A importância entre as trocas realizadas pelos coletivos de trabalho é essencial ao desenvolvimento do ofício. Para Clot (2007 2010) as trocas entre os coletivos de trabalho tornam legítima a categoria profissional, capitalizando, mantendo e até renovando-a.

Clot (2007) considera que o trabalho não apenas preenche uma função psicológica exclusiva, e, portanto, não pode ser preenchida por qualquer outra atividade, como também tem um caráter central na sociedade contemporânea. Ao longo da IaS realizada com o pedagogo, fica evidente que há ausência de reconhecimento do seu trabalho bem feito, bem como carência de reconhecimento pelo outro.

Durante a IaS, o pedagogo relatou que a imprevisibilidade da tarefa instruída (condução da reunião pedagógica) tem causado ansiedade e sofrimento para ele, bem como para seus pares. A equipe acaba não conseguindo ter uma hora certa para fechar a pauta das reuniões pedagógicas, já que se trata de atividade que depende de outros profissionais. Considerando os pressupostos teóricos da abordagem Clínica da Atividade, o sofrimento subjetivo relacionado à atividade de trabalho está relacionado à vivência de impedimento da atividade. Esse sofrimento conecta-se à carência ou ausência de recursos para que os sujeitos realizem a atividade conforme sua aspiração, ou ocorrência de critérios desarticulados em relação aos anseios dos trabalhadores e dos coletivos de trabalho (Bendassolli, 2011; Osório da Silva & Ramminger, 2014).

A gente fica muito ansioso... [...] Muito, porque eu gosto de... eu planejo muito, então. Eu gosto de planejar e estar do jeito que planejei. Quase nunca sai do jeito que a gente planejou. (...) E ele denomina como triturador de mentes [grifo nosso].

A partir da definição de saúde tomada da obra de Canguilhem, mas também alimentada pela perspectiva vigotskiana, Clot (2013) afirma que o sujeito não é adaptado a viver em um contexto já dado, mas sim feito para fabricar contextos para nele viver. Segundo o autor, "uma vez que essa possibilidade esteja diminuída, e principalmente se ela desaparece de modo continuado, não vivemos, apenas sobrevivemos, submetidos que estamos aos contextos profissionais, sem poder verdadeiramente nos reconhecer naquilo que fazemos" (Clot, 2013, p. 5). Deste modo, a saúde pode ser perdida no ambiente laboral quando o ofício deixa de ser objeto de cuidados, tanto por parte da organização quanto pelos trabalhadores. Para o pedagogo entrevistado, tanto ele quanto os seus pares estão adoecidos ou adoecendo pelo trabalho; um trabalho que não está sendo objeto de cuidados. Para a abordagem clínica da atividade, o trabalho pode, assim, deixar de ser um recurso para a saúde e se transformar em fonte de doença.

O questionamento de sua competência profissional enquanto pedagogo (dimensão transpessoal) foi destacado como um dos gatilhos para o adoecimento. A relação de subordinação entre técnicos e docentes surge no discurso do trabalhador como um aspecto que traz incômodo e sofrimento. A respeito do fazer do técnico-administrativo em Educação, a literatura apresenta a queixa frequente dos agentes técnicos com relação a essa hierarquização do trabalho educativo, bem como sentimentos de invisibilidade e desprestígio (Ribeiro, 2011; Tardif & Levasseur, 2011).

O trabalhador destacou que não se considera um bom profissional e que não costuma receber reconhecimento pela chefia imediata, tendo sido surpreendido quando aconteceu um elogio durante uma reunião pedagógica. Na Clínica da Atividade a subjetividade é constituída pela e na atividade e o reconhecimento refere-se à capacidade do sujeito em reconhecer a si mesmo na atividade (Clot, 2010). O impedimento da atividade de trabalho pode assumir a configuração da impossibilidade ou dificuldade de realizar um trabalho bem feito, ou de discutir acerca dos critérios envolvidos na qualidade do que se faz; dificuldade ainda dos trabalhadores se reconhecerem no próprio trabalho (Canguilhem, 2009).

Segundo Clot (2007), a análise psicológica do trabalho acontece com base nas atividades realizadas ou impedidas dos sujeitos. Considerando que a atividade impedida é central para a Clínica da Atividade, destaca-se uma situação de atividade impedida: a formação docente durante as reuniões pedagógicas, respondida de ímpeto e com muita clareza pelo trabalhador.

E o que é que eu gostaria de fazer, mas fui impedida de fazer? As formações docentes. Eu acho que era importante fazer pelo menos uma vez no mês uma formação docente. (...) Mas a minha vontade mesmo é fazer a formação docente sobre questões de aprendizagem, sobre avaliação. Cheguei a fazer algumas vezes assim que cheguei, cheguei a fazer algumas vezes... [...] Gostaria muito disso, mas não dá. Acaba não dando...

Considera-se, através do colocado durante a IaS, que a realização (ou não) das formações docentes faz parte da dimensão impessoal do ofício do pedagogo. Quando questionado sobre outras possibilidades de atuação dentro da Pedagogia, o instrutor consegue pensar em alguns caminhos de instituir novas normas, não se fixando aquilo que está dado (Canguilhem, 2009). O trabalhador encontra possibilidades de realizar outras atividades pertinentes ao seu ofício. Aqui se observa a coanálise (Clot, 2006) em ação: o trabalhador tem a oportunidade de refletir sobre aquilo que é capaz, mesmo em situação de impedimento de sua atividade ou de adoecimento pelo trabalho.

Observa-se a existência de fragilidade no gênero profissional pedagogo, para quem "tudo sobra" e que precisa modificar o planejamento do dia para não desagradar os docentes. A fragilidade do gênero profissional ficou ainda mais evidente quando o pedagogo-instrutor relatou que os outros pedagogos colocam as mesmas dificuldades, na ocasião das reuniões entre os pares, inclusive com relato de adoecimento entre eles. Deste modo, observa-se a necessidade de se investir no fortalecimento do gênero profissional da atividade por meio da criação de espaços para uma constante análise coletiva do mesmo. Pode-se considerar como positivo que o gênero profissional esteja conseguindo perceber que existe uma dificuldade compartilhada, já que a função psicológica do coletivo de trabalho é fundamental para o desenvolvimento da atividade e da subjetividade do trabalhador.

Considerando a confrontação realizada, é possível destacar o impedimento da atividade em relação à realização das formações docentes como um dos potencializadores para o adoecimento deste trabalhador. Os outros fatores que merecem destaque para o desenvolvimento do adoecimento psíquico são: o questionamento do saber do pedagogo, especialmente pelos colegas docentes; a falta de treinamento prévio do servidor recém-chegado para as atividades a serem desenvolvidas no âmbito do campus; a ansiedade sentida pelo profissional que depende de outras equipes de trabalho para desenvolver suas atividades de trabalho; e a situação de assédio moral horizontal relatada. Esse trabalhador fora diagnosticado com depressão e transtorno de ansiedade. Embora já houvesse retornado da licença para tratamento de saúde, afirmava que estava totalmente infeliz, sentia-se pouco produtivo e um péssimo pedagogo, considerando seu rendimento inferior aos outros da equipe.

O Trabalho como Produtor de Saúde (e de Doença) em um Assistente de Alunos

Assim como o pedagogo, o assistente de alunos mostrou-se muito aberto à possibilidade de análise da sua atividade por meio da IaS. Embora a exigência mínima do seu cargo seja o nível fundamental, o servidor possui nível superior completo. A IaS foi realizada no campus onde o trabalhador está laborando há mais de um ano, após ter sido removido por motivo de saúde. O servidor relata que adoeceu pelo trabalho, após ter sido acusado de uma ação (erro) que não cometeu. No campus atual, o servidor voltou a sentir-se útil e poder exercer a sua atividade de trabalho. A tarefa escolhida para a IaS foi a "matrícula dos ingressantes na instituição".

Durante a IaS com o assistente de alunos a dimensão pessoal ficou evidente durante toda a instrução da tarefa, evidenciando um desenvolvimento saudável de sua atividade de trabalho. A possibilidade de criar e modificar a instância impessoal do ofício foi relatada em vários momentos da IaS. A dimensão pessoal do ofício do servidor revelou um importante potencial de saúde. Conforme aponta Canguilhem (2009) em seu conceito de saúde, observa-se que, diante da norma, o trabalhador faz escolhas possíveis, encontra "brechas" e consegue extrapolar as normas, de modo a seguir com saúde. Foi possível perceber que o servidor tem uma forma de trabalhar muito bem definida, embora às vezes um pouco divergente de seus pares.

O assistente de alunos relatou o seu adoecimento psíquico pelo trabalho a partir de uma situação ocorrida em seu antigo campus, em que ele fora acusado de ter cometido um erro (tal situação não será pormenorizada, visando preservar a identidade do trabalhador). Durante as investigações sobre o caso, o trabalhador perdeu o acesso aos seus instrumentos de trabalho. Conforme colocado por Clot (2011), a perda do poder de agir em sua atividade é também uma inatividade. Clot (2010) cita Ricoeur, para quem o sofrimento não é unicamente definido pela dor física ou mental, mas "pela diminuição, ou mesmo pela destruição da capacidade de agir, do poder-fazer, sentida como um atentado à integridade de si" (Ricoeur, 1990, p. 223).

Então assim, o que mais me preocupei foi que, assim... a quebra da confiança... mesmo falando que não tinha sido eu, continuou o clima de acusação. [...] Mas, mesmo assim, recolheu o trabalho, bloqueou meu acesso aos e-mails, aquela coisa toda do setor... então fiquei sem trabalhar meio que quase uma semana e nessa meia semana aconteceram as reuniões do setor, aquela coisa toda [...] Aí nesse dia, eu fui, comecei a usar o notebook pra fazer os trabalhos que tinha que fazer. Só que aí eles viram que eu ainda estava trabalhando, imprimindo as coisas... Aí quando foi no outro dia bloquearam meu acesso ao e-mail e bloquearam minha senha de acesso ao computador. [...] a. Então não tinha o que fazer...

O trecho acima evidencia que o trabalhador foi impedido em sua atividade, quando foi isolado do seu coletivo de trabalho. Para Clot (2007, 2010), a atividade impedida ocasiona o sofrimento e o adoecimento pelo trabalho. Ao mesmo tempo em que tramitava o Processo Administrativo Disciplinar (PAD) para apurar se o servidor tinha responsabilidade acerca de uma falha grave ocorrida em seu setor de trabalho, o assistente de alunos deu entrada em processo administrativo de remoção por motivo de saúde que culminou na sua lotação em outro campus, a pedido. A partir daí, observa-se a construção de outra relação com o trabalho.

De acordo com Canguilhem (2009), o trabalho pode ser operador de saúde quando abre espaço para a construção de novas normas. Para tanto, a atividade normativa no fazer laboral deve se dar no diálogo e no conflito entre as demandas do ofício (Osório da Silva & Ramminger, 2014). Se, neste diálogo, o trabalhador puder questionar o ofício e acrescentar algo de si, então, o ofício terá sido promotor de saúde. Observa-se que o assistente de alunos contribuiu com suas marcas, com sua subjetividade, como por exemplo: não deixou de matricular um aluno por causa da falta de uma foto, providenciou o nome social de um novo aluno e fez uma cópia de documento na máquina de outro setor. A abordagem Clínica da Atividade considera fundamental a existência dessa (re) normatividade para que o trabalho possa operar saúde.

Quando questionado sobre a importância do trabalho que executa, o servidor deixa claro que reconhece o seu trabalho bem feito, especialmente opta por não ser tão rígido em seu processo de trabalho. O assistente de alunos percebe também que seus pares e sua chefia imediata valorizam e confiam no seu trabalho. Clot (2010) defende que a discussão sobre o que constitui um trabalho bem feito é condição fundamental para a saúde no trabalho. Sem essa discussão, é possível que seja produzido um sentimento de insignificância nos trabalhadores, pois há uma ruptura, na atividade, entre as pré-ocupações dos sujeitos (seus planos e aspirações) e aquilo que são obrigados a realizar (trabalho prescrito): uma atividade vazia de significado (Bendassolli, 2011). Deste modo, o trabalho não conseguiria cumprir o seu papel de operador de saúde.

Observa-se que o servidor foi tolhido em seu trabalho, adoecendo diante da inatividade: o seu computador de trabalho foi retirado para investigação, bem como bloqueado seu acesso a e-mail e dados institucionais. Entretanto, não houve um movimento do coletivo de trabalhadores para dialogar acerca do conflito envolvendo o servidor que estava sendo acusado por algo que não fez, conforme vislumbrado posteriormente mediante o trâmite do PAD. Ocorreu uma individualização dos percursos profissionais. Segundo Clot (2010), todo indivíduo é capaz de lidar com qualquer situação no trabalho, desde que tenha a oportunidade de se confrontar consigo mesmo e que tenha o apoio dos coletivos do trabalho.

[...] e nesse meio tempo é óbvio que as coisas vão se espalhando, as pessoas já passaram a me ver de outra forma... E tudo ficou diferente: [antes] eu era visto como a pessoa que sabia de tudo que acontecia no campus; eu era responsável não só pelos alunos como também pelos professores, pela parte acadêmica toda, e, de repente, de uma hora para a outra, as pessoas já não me cumprimentavam, já não falavam comigo, ia pra uma sala e não tinha como trabalhar porque tinham levado os computadores. Então, assim, eu saí de uma época muito boa de trabalho, de produção, onde estava bem ativo, pra um nada, pra me sentir um zero à esquerda lá.

Para Clot (2010), os coletivos de trabalho são portadores de uma história comum, ao longo da qual são desenvolvidos recursos, estratégias e ferramentas que subsidiam seus membros na realização da atividade. O assistente de alunos teve sua atividade de trabalho bloqueada inicialmente quando teve seus instrumentos de trabalho retirados, e, novamente quando foi isolado de seu coletivo de trabalho, de modo que o conflito não pôde fluir entre o coletivo.

Ao final da IaS, foi possível perceber que o trabalhador fez muitas reflexões interessantes acerca do próprio trabalho: observou seu trabalho como produtor de saúde; refletiu sobre a relevância da sua atividade no campus atual e pensou sobre as novas oportunidades de atuação que estão por vir.

 

Considerações finais

A presente pesquisa, cujo propósito era analisar a relação entre o adoecimento psíquico e a atividade de trabalho dos servidores técnicos administrativos em educação (TAE) de uma instituição federal de ensino (IFE), trouxe uma contribuição no campo da saúde do trabalhador, não com a intenção de um estudo diagnóstico em supressão do adoecimento psíquico, mas de fornecer informações sobre a análise da atividade que possam produzir o desenvolvimento de ações de transformação das condições que podem vir a vulnerabilizar ou adoecer os trabalhadores.

De acordo com Clot (2010), o sofrimento no trabalho diz respeito a uma atividade contrariada, um desenvolvimento impedido da atividade de trabalho. Identificou-se que existe perda ou amputação do poder de agir em ambos os casos analisados, ao ponto de produzir impactos na qualidade de execução do trabalho: o pedagogo não consegue conduzir as reuniões pedagógicas como julga adequado e o assistente de alunos foi impedido de trabalhar, pois teve todo o seu material de trabalho para investigação de uma possível fraude (este sendo um possível caso de violência no trabalho). As características desse cenário laboral são típicas de diversos outros, não sendo possível através desse recorte de pesquisa emitir generalizações quanto à relação trabalho-saúde.

Quanto à categoria estudada, representada pelos casos apontados no estudo, é necessário pontuar que os servidores demoraram a dar entrada nas licenças para tratamento de saúde, trabalhando adoecidos por algum período – situação de presenteísmo muito comum nos ambiente e trabalho. O afastamento do trabalho por adoecimento profissional está marcado social e historicamente pela incapacidade para o trabalho. A lógica da produtividade acaba designando os trabalhadores afastados como incapazes e improdutivos. Acredita-se que esse estigma social seja uma das causas que levam o trabalhador adoecido a continuar laborando, até o seu limite.

Por meio das análises das atividades de trabalho, também foi possível observar mobilizações clínicas de caráter terapeutizante, a manifestação de afetos dos trabalhadores e a reflexão sobre as possibilidades de realizarem um trabalho bem feito. Em algumas situações, a consequências do uso técnica IaS foi a transformação no poder de agir do trabalhador, como observado no caso do assistente de laboratórios, que se sentiu estimulado a realizar novas tarefas após a entrevista de confrontação.

A técnica possibilitou analisar os desenvolvimentos possíveis e impossíveis dessas atividades laborais, diante de como o trabalho assumiu uma função psicológica específica de saúde ou adoecimento para cada servidor. Verificou-se que o sofrimento psíquico estava atrelado aos impedimentos da atividade, e que demandavam um esforço subjetivo do trabalhador para superá-las, necessitando muitas vezes do apoio do coletivo de trabalho, que comumente não esteve presente.

O desenvolvimento do poder de agir se fez mais notório para o trabalhador-instrutor assistente de alunos, que, após a mudança de local de trabalho, encontrou um coletivo de trabalhadores que possibilitou a expressão de seu fazer e de reconhecer o seu trabalho bem feito. Observou-se o alcance da técnica da Instrução ao Sósia em termos de elucidar ao trabalhador seu processo de adoecimento.

Assim como sugere a abordagem, a condução da Instrução ao Sósia demandou aos trabalhadores reflexões capazes de recriar suas próprias relações com o trabalho que desenvolvem, repensando meios de desenvolvimento da atividade de trabalho, manejos frente às normatizações e ao trabalho prescrito. Os impedimentos ali postos, também foram elementos contributivos para a função psicológica que o trabalho exercia na vida desses trabalhadores, seja como fonte de vida e produção de saúde, até como fonte de sofrimento e adoecimento.

Ademais, foi possível perceber que os trabalhadores coanalistas tornaram-se mais conscientes dos impedimentos na sua atividade de trabalho, dos meios pelos quais conseguiram superá-los e de como o desenvolvimento da atividade desembocou em um adoecimento psíquico. É possível que sejam agora ainda mais capazes de ampliar o poder de agir sobre o trabalho que desenvolvem. Entretanto, sabe-se que tomar consciência de um problema não significa necessariamente adquirir o poder de transformá-lo, mas a tomada de consciência de si e para si sinaliza a perspectiva de o sujeito vislumbrar um meio de superação da realidade em que se encontra, retomando o seu poder de agir.

Observa-se, portanto, que este estudo oferece contribuições significativas à medida que traz à tona as especificidades de uma categoria profissional pouco reconhecida e valorizada (TAE's), que já fora anteriormente classificada como profissão em situação de risco de sofrimento e de transtornos psíquicos (Monteiro, 2016). Os casos concretos apresentados problematizam o trabalho como um elemento que tem relação com o adoecimento psíquico e ilustram com clareza como a atividade impedida pode ocasionar o adoecimento do trabalhador. Desse modo, também é relevante a contribuição da pesquisa no sentido de utilizar o aporte teórico e metodológico da clínica da atividade, possibilitando dar visibilidade a essa importante clínica do trabalho.

Com relação aos limites do estudo, considera-se relevante pontuar que os trabalhadores em questão – técnicos administrativos em educação – compõem um grupo heterogêneo, impossibilitando a realização de uma análise clínica coletiva da atividade laboral. Assim, a IaS foi realizada individualmente, com trabalhadores de cargos distintos.

Como possibilidade de pesquisas futuras, sugere-se: a análise de trabalho da atividade docente em instituições federais de ensino; estudos que possam verificar se existem outros gêneros profissionais adoecidos (além dos pedagogos identificados na presente pesquisa); a análise clínica coletiva em grupo da atividade de trabalho dos gêneros profissionais vulneráveis; bem como estudos aprofundados sobre os casos de servidores removidos por motivo de saúde.

 

Referências

Batista, M., & Rabelo, L. (2013). Imagine que eu sou seu sósia: aspectos técnicos de um método em clínica da atividade. Cadernos de Psicologia Social do Trabalho, 16(1), 1-8. Recuperado de http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1516-37172013000100002&lng=pt&tlng=pt        [ Links ]

Bendassolli, P. (2011). Mal-estar no trabalho: do sofrimento ao poder de agir. Revista Mal-estar e Subjetividade, 10(1), 63-98. Recuperado de http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1518-61482011000100004&lng=pt&tlng=pt        [ Links ]

Bendassolli, P., & Soboll, L. (2011). Clínicas do trabalho: novas perspectivas para a compreensão do trabalho na atualidade. São Paulo: Atlas.         [ Links ]

Canguilhem, G. (2009). O normal e o patológico. Rio de Janeiro: Forense Universitária.         [ Links ]

Clot, Y. (2001). Clínica do trabalho, clínica do real. Le Journal dês Psychologues, 185. Recuperado de http://www.pqv.unifesp.br/clotClindotrab-tradkslb.pdf        [ Links ]

Clot, Y. (2007). A função psicológica do trabalho. Petrópolis: Vozes.         [ Links ]

Clot, Y. (2010). Trabalho e poder de agir. Belo Horizonte: Fabrefactum.         [ Links ]

Clot, Y. (2011). Clínica do trabalho e clínica da atividade. In P. Bendassolli & L. Soboll (Orgs.), Clínicas do trabalho: novas perspectivas para a compreensão do trabalho na atualidade. São Paulo: Atlas.         [ Links ]

Clot, Y. (2013). O ofício como operador de saúde. Cadernos de Psicologia Social do Trabalho, 16(spe), 1-11. Recuperado de https://www.revistas.usp.br/cpst/article/view/77855/81831        [ Links ]

Conceição, C. L., Rosa, R. P. F., & Osorio da Silva, C. (2017). A clínica da atividade no Brasil: por uma outra psicologia do trabalho. Horizontes, 35(3), 23-37. doi: 10.24933/horizontes.v35i3.514        [ Links ]

Da Silva, A. K. L., Caraballo, G. P., Prestes, M. G., Xavier, D. G. P., Da Rocha Falcão, J. T., & Torres, C. C. (2016). Apropriações da Instrução ao Sósia na análise da atividade de trabalho. Estudos de Psicologia, 21(4), 446-455. doi: 10.5935/1678-4669.20160043        [ Links ]

Editorial, C. (2008). Entrevista com Yves Clot. Mosaico: Estudos em Psicologia, 2(1), 65-70. Recuperado de https://periodicos.ufmg.br/index.php/mosaico/article/view/6241        [ Links ]

Guérin, F., Kerguelen, A., Laville, A., Daniellou, F., & Duraffourg, J. (2001). Compreender o trabalho para transformá-lo: a prática da ergonomia. São Paulo: Edgard Blücher.         [ Links ]

Leontiev, A. (1984). Activité, conscience, personnalité. Paris-Moscou: Éditions du Progrès.         [ Links ]

Lima, M. E. A. (2006). Resenha do livro A função psicológica do trabalho de Yves Clot. Cadernos de Psicologia Social do Trabalho, 9(2), 109-114. Recuperado de http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1516-37172006000200010&lng=pt&tlng=pt        [ Links ]

Lima, M. E. A. (2007). Contribuições da Clínica da Atividade para o campo da segurança no trabalho. Revista Brasileira de Saúde Ocupacional, 32(115), 99-107. doi: 10.1590/S0303-76572007000100009        [ Links ]

Monteiro, I. M. S. F. (2016). Atividade laboral como contexto de sofrimento e adoecimento psíquico: análise dos servidores públicos em instituição federal brasileira de ensino superior (Dissertação de Mestrado). Recuperado de https://repositorio.ufrn.br/handle/123456789/22358        [ Links ]

Osório da Silva, C. (2014). Pesquisa e Intervenção em clínica da atividade: a análise do trabalho em movimento. In P. F. Bendassolli & L. A. P. Soboli (Orgs.), Métodos de pesquisa e intervenção em psicologia do trabalho: clínicas do trabalho (pp. p. 83-99). São Paulo: Atlas.         [ Links ]

Osório da Silva, C., & Ramminger, T. (2014). O trabalho como operador de saúde. Revista Ciência & Saúde Coletiva, 19(12), 4751-4758. doi: 10.1590/1413-812320141912.15212013        [ Links ]

Pinheiro, F. P. H. A., Costa, M. F. V., Melo, P. B., & Aquino, C. A. B. (2016). Clínica da Atividade: conceitos e fundamentos teóricos. Arquivos Brasileiros de Psicologia, 68(3), 110-124. Recuperado de http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1809-52672016000300009&lng=pt&tlng=pt        [ Links ]

Ribeiro, C. V. S. (2011). Trabalho técnico administrativo em uma instituição federal de ensino superior: análise do trabalho e das condições de saúde (Tese de Doutorado). Recuperado de http://www.bdtd.uerj.br/tde_busca/arquivo.php?codArquivo=5149        [ Links ]

Ricoeur, P. (1990). O si-mesmo como um outro. Campinas: Papirus.         [ Links ]

Tardif, M., & Levasseur, L. (2011). A divisão do trabalho educativo. Petrópolis: Vozes.         [ Links ]

 

 

Recebido em 25.jan.19
Revisado em 09.nov.19
Aceito em 21.jul.20

 

 

Cynthia Araújo Mota, Mestra em Psicologia Organizacional e do Trabalho pela Universidade Potiguar (UnP), é Psicóloga no Instituto Federal de Educação Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Norte (IFRN). Endereço para correspondência: Rua Borges de Castro, 1225, Bairro Dix-Sept Rosado – Natal/RN, CEP: 59.062-640. Telefone: (84) 99911-3978. Email: cynthiamota@hotmail.com
Alda Karoline Lima da Silva, Doutora em Psicologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), Docente no mestrado profissional em Psicologia Organizacional e do Trabalho da Universidade Potiguar (UnP). Email: aldakarolinel@yahoo.com.br

Creative Commons License