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Estudos de Psicologia (Natal)

versão impressa ISSN 1413-294Xversão On-line ISSN 1678-4669

Estud. psicol. (Natal) vol.25 no.4 Natal out./dez. 2020

http://dx.doi.org/10.22491/1678-4669.20200041 

10.22491/1678-4669.20200041

TEMAS EM POLÍTICAS SOCIAIS: ASSISTÊNCIA SOCIAL E SISTEMA DE GARANTIA DE DIREITOS

 

Drogas e alienação: para além da droga-mercadoria e do capital

 

Drugs and alienation: beyond the drug-merchandise and capital

 

Drogas y alienación: más allá de la droga-mercancía y del capital

 

 

Luiza Miranda FurtuosoI; Telmo Mota RonzaniII; Pedro Henrique Antunes da CostaIII

IUniversidade Federal de Juiz de Fora
IIUniversidade Federal de Juiz de Fora
IIIUniversidade de Brasília

Endereço para correspondência

 

 


Resumo

O presente trabalho tem como escopo compreender, a partir da tradição marxista, a "questão" das drogas como um complexo mediador entre indivíduo e sociedade, centrando-se em sua relação com processos de alienação no âmbito da sociedade capitalista. Isto é, em como a relação indivíduo-drogas no momento histórico atual contribui para aprofundar a alienação humana, advinda da alienação primária posta pelo trabalho. No seu decorrer, são apontados subsídios teórico-metodológicos, através da dialética singular-particular-universal, a serem analiticamente incorporados para uma compreensão aprofundada sobre a temática. Por fim, busca-se estabelecer uma visão contra hegemônica nessa área, rompendo com moralismos e traçando horizontes emancipatórios que abarcam novas formas de nos relacionarmos com as drogas, com os outros e com nós mesmos, algo inseparável da tarefa histórica de edificação de uma nova sociedade.

Palavras-chave: drogas; alienação; capitalismo.


Abstract

This paper aims to understand, from the marxist tradition, the "issue" of drugs as a complex mediator between individual and society, focusing on their relation with processes of alienation within the capitalist society. In other words, on how the individual-drug relation in the current historical moment contributes to deepen human alienation, arising from the primary alienation posed by work. In its elapse, theoretical and methodological subsidies are pointed out, through the singular-particular-universal dialectic, to be analytically incorporated for an in-depth understanding of the thematic. Finally, we seek to establish a counter-hegemonic vision in this area breaking with moralisms and drawing emancipatory horizons that embrace new ways of relationg to drugs, others and ourselves, something inseparable from the historical task of building a new society.

Keywords: drugs; alienation; capitalism.


Resumen

El presente trabajo tiene cómo objetivo compreender, desde la tradición marxista, el "problema" de las drogas cómo un complejo mediador entre el individuo y la sociedad, centrándose en su relación con los processos de alienación dentro de la sociedad capitalista. Es decir, cómo la relación individuo-droga en el momento histórico actual contribuye a profundizar la alienación humana, que surge de la alienación primaria planteada por el trabajo. En su curso, se señalan subsídios teóricos y metodológicos, a través de la dialéctica singular-particular-universal, para ser incorporados analíticamente para una comprensión más profunda sobre el tema. Finalmente, buscamos estabelecer una visión contrahegemónica en esta área, rompiendo con los moralismos y trazando horizontes emancipatórios que abarquen nuevas formas de relacionarnos con las drogas, con los otros y con nosotros mismos, algo inseparable de la tarea histórica de construir una nueva sociedad.

Palabras-clabe: drogas; alienación; capitalismo.


 

 

A etimologia da palavra "droga" deriva do termo holandês droog que era uma forma de fazer menção aos produtos secos e de designar um leque de substâncias naturais empregadas nas áreas da alimentação, medicina e tinturaria entre os séculos XVI ao XVIII, bem como para caracterizar as substâncias que poderiam ser consumidas com a finalidade máxima de obtenção de prazer (Venâncio & Carneiro, 2005). Partindo da orientação dos principais organismos internacionais que orientam a abordagem do tema, a saber, a Organização Mundial da Saúde (OMS) e o Escritório das Nações Unidas para Drogas e Crimes (United Nations Office on Drugs and Crime – UNODC), no presente trabalho, o termo "droga" refere-se às substâncias exógenas capazes de alterar as atividades do organismo, em especial do Sistema Nervoso Central (SNC), e que são passíveis de abuso. Assim, o termo aglutina substâncias ilícitas e lícitas (álcool, tabaco, café, açúcar, medicamentos etc.), o que faz de todos nós consumidores(as) de drogas em algum momento da vida.

Não sendo um fenômeno exclusivo da sociedade capitalista, mas cuja prevalência fenomênica encontra-se em todas as sociedades, culturas e contextos históricos, as drogas fazem parte da sociabilidade humana. São inerentes à humanidade, anteriores ao atual modo de produção capitalista e existem para além dele, configurando uma atividade trans-histórica que responde às necessidades da práxis social - realidade como parâmetro de apreensão, compreensão e de exercício de objetivações e transformações -, de cada momento (Brites, 2006). Dessa forma, desvelar histórica e contextualmente o significado das drogas a partir de uma perspectiva da totalidade social, apreendendo as substâncias e os indivíduos em suas concretudes, é fundamental para que respostas mais coerentes com a realidade e com a humano-genericidade sejam alçadas.

Com o advento do capitalismo há uma transformação radical no uso, na produção e na relação do gênero humano com essas e outras substâncias. Embora as formas de uso milenares para fins terapêuticos e religiosos não tenham sido extirpadas do bojo da sociabilidade atual, estas são minorias diante da difusão da mercadoria para os mais variados âmbitos da vida, neste caso, para o das drogas, inclusive com algumas dessas antigas relações sendo influenciadas agora pelo imperativo mercantil.

Dialeticamente, a comercialização das drogas-especiarias no período das grandes navegações entre os séculos XVI e XVII foi um dos elementos basilares e impulsionadores dos processos de colonização, circunavegação do mundo e para a ascensão do capitalismo comercial ou mercantil, ao passo que também foi responsável pelo surgimento de uma nova relação homem-drogas. Portanto, o surgimento e a edificação do capitalismo dependem, além de outros fatores, da emergência e, consequentemente, do comércio das chamadas drogas-mercadorias, da mesma forma como estas dependem desse mesmo ordenamento do capital para existirem, conformando uma via de mão dupla responsável por transformações diversas que ultrapassam a dimensão econômico-política, envolvendo também processos de subjetivação, ideologização etc. (Lima, 2009).

É nesse sentido que, sob a égide do capitalismo, se corrobora com o emprego do termo "consumo " para se referir às drogas, uma vez que estas passam a ser conformadas por valor, gerando, como consequência da sua propagação massiva, expansão global, comércio e mercantilização, altas margens de lucro, sobretudo por meio do tráfico e das políticas proibicionistas e de "guerra às drogas " (Souza, 2012). No campo de atenção em álcool e outras drogas, são comuns algumas caracterizações de cunho clínico e diagnóstico, tais como: consumo abusivo ou nocivo, bem como a condição de dependência. Além da importância referente à própria condução do cuidado, seja na promoção de saúde, prevenção ou tratamento propriamente dito, servem como forma de clarificação de que nem todo consumo é problemático do ponto de vista clínico, de saúde, muito menos caracteriza uma relação de dependência. A despeito disso, cabem as problematizações acerca do que seria "problemático" ou "nocivo" de acordo com as singularidades de cada indivíduo, além do fato de tais especificações serem construções sociais, mesmo com a roupagem científica que evocam, referendadas por manuais diagnósticos. Por conta disso, nos valeremos de tais nomenclaturas e tipificações, mas levando em consideração tais reflexões e análises críticas, bem como a vinculação das drogas-mercadorias com a sociabilidade capitalista e suas implicações psicossociais, que serão aprofundadas no decorrer do trabalho.

Como postulado por Rocha (2015), a droga, ao ser produzida, modificada técnica e cientificamente e comercializada, explora a mais-valia do trabalho humano, tornando-se um negócio lucrativo, efetivando a transição da droga-produto com seu valor de uso, isto é, aquele que diz respeito às propriedades do objeto e de sua utilidade para o indivíduo, para a droga-mercadoria, que detém não apenas valor de uso, mas também valor de troca vinculado à circulação e ao atendimento prioritário às necessidades do mercado. Em suma, na sociabilidade mediada pelo consumo e calcada pela "enorme coleção de mercadorias", a droga tornou-se uma mercadoria, sendo esta a sua forma elementar. Dependendo de processos de trabalho para sua produção, distribuição e circulação, as drogas-mercadorias possuem como finalidade a satisfação das necessidades humanas, independente se a natureza e origem dessas necessidades "provêm do estômago ou da imaginação" (Marx, 1867/2017, p. 113), e vão além desse âmbito das necessidades e desejos dos indivíduos para atender, antes de tudo, aos anseios do capital no seu processo de acumulação (Carneiro, 2018).

No capital as mercadorias são demarcadas por relações fetichizadas, onde consumo e obtenção passam a ter e ser fins em si mesmos, configurando aquilo que Marx denominou como fetichismo da mercadoria. Ao contrário de serem meios para a satisfação das necessidades humano-genéricas, as mercadorias são tomadas como se tivessem vontade própria, independente de seus produtores. Do mesmo modo, as relações sociais entre pessoas convertem-se em relações entre coisas, eliminando as mediações sociais e subsumindo-as em uma "coisa" substantiva e autônoma, produzindo uma inversão: as coisas controlam as pessoas, as relações, bem como as necessidades (Marx, 1844/2010; 1867/2017; Netto, 1981). Complementarmente, a problemática do fetichismo é um aspecto indispensável e integrado à problemática mais abrangente da alienação – foco principal deste estudo –, a qual depende da primeira e vice-versa.

Na teoria de Marx, a alienação se constrói como um complexo teórico-crítico que abarca um amplo conjunto categorial. A alienação humana, fenômeno pelo qual transitar-se-á o presente trabalho, advém de uma forma primária de alienação pelo trabalho. Na sociedade capitalista, a classe trabalhadora fica mais pobre em função da riqueza que produz, cria mercadorias e se torna também uma mercadoria como outra qualquer, isto é, ao passo que as relações mercantis assumem a forma de relação entre coisas, as mercadorias que se fetichizam continuam, obrigatoriamente, tendo que ser produzidas por seres que se reificam. Assim, a alienação humana configura-se como uma espécie de mal-estar secundário que deriva de um mal-estar primário, este por sua vez oriundo da propriedade privada e da divisão social do trabalho. Ao converter-se em explorado e o produto de seu trabalho em objeto alheio, o trabalhador se torna alvo de um processo desumanizador e alienante em relação às suas ações, face a si mesmo e dos outros homens.

Em um mundo no qual existe grande dependência em relação às coisas, nesse caso, em relação às mais variadas drogas lícitas e ilícitas, o desprendimento e a alienação em relação ao outro e a nós mesmos nunca esteve tão elevado. A relação homem-drogas na atualidade está circunscrita no momento histórico onde "cada vez mais necessitamos das mercadorias produzidas por outrem, mas cada vez mais sofremos do estranhamento de nós mesmos e dos outros homens" (I. L. Paiva, Oliveira, & Valença, 2018, p. 1797). Seguindo a linha de raciocínio, lazer, diversão, fuga da realidade, tratamento, dentre outros aspectos que o uso e consumo de drogas pode propiciar, mesclam-se com outra função importante na contemporaneidade: o aprofundamento do fenômeno da alienação (Costa, 2017, p. 39).

Partindo de uma perspectiva da totalidade acerca da temática das drogas e de suas mediações, inevitavelmente englobando as esferas de produção, distribuição, comercialização e consumo, é imprescindível levar em consideração, também, a denominada "questão social" e suas variadas expressões e atravessamentos para uma abrangência condizente com a sociedade erigida sob a contradição central entre capital-trabalho. A "questão social" é uma expressão que tem gênese na terceira década do século XIX para dar conta do fenômeno do pauperismo na Europa, associado à transformação societária do sistema feudal para o capitalista, no qual passou a predominar a contraditória acumulação e centralização da riqueza socialmente produzida, ao passo que a pobreza e a miséria eram amplamente difundidas. O termo é empregado entre aspas por alguns estudiosos por dois motivos: primeiro, sob a afirmação de se tratar de um conceito, não de uma categoria, uma vez que não existe na realidade propriamente dita, o que existem são suas expressões; segundo, por se tratar de um conceito que não é unívoco, com múltiplas e diversas compreensões e atribuições (Netto, 2001). Dentre as expressões da "questão social" erigida a partir da égide do capital, podem ser citadas: a pobreza, a desigualdade, a fome, a violência estrutural, a criminalidade, os processos de adoecimento e os transtornos psicológicos, bem como o consumo nocivo e a dependência das drogas (Souza, Silva, & Silva, 2013).

Não existe uma relação mecânica-causal entre drogas e "questão social", isto é, analogias simplórias e reducionismos não têm espaço do ponto de vista analítico. Por exemplo, as ideias de que pobreza gera consumo de drogas ou vice-versa, não dão conta de explicar aquilo que se perfaz dialeticamente. Ao falarmos das drogas, não só a dimensão do consumo está inserida, mas as esferas da produção, distribuição e comercialização, e isso pressupõe levar em conta a pobreza, a desigualdade social e outras expressões da "questão social" como basilares e mediadoras no tocante à temática em questão. Portanto, assim como coloca Brites (2006), as drogas são um complexo de complexos.

A partir do exposto acima e da compreensão das drogas de forma circunscrita ao capitalismo, como expressão da contradição entre capital-trabalho e, logo, constituída e atravessada a todo momento pela "questão social", o foco do presente estudo centrar-se-á em compreender, a partir da tradição marxista, a "questão" das drogas como um complexo mediador entre indivíduo e sociedade, centrando-se em sua relação com processos de alienação na dinâmica da sociedade capitalista. Entende-se que a desumanização e a limitação das potencialidades humanas, materializadas nas relações alienadas, estranhadas e apequenadas estabelecidas com as coisas – assim sendo, também, com as drogas - são inerentes à esta ordem e atravessa a todos, contudo, busca-se distinguir as especificidades e particularidades da relação homem-drogas sob o enfoque contextualizado da "questão social" e dos altos índices de consumo associados a classe trabalhadora.

Dessa forma, coloca-se a necessidade de discussão da temática sob uma perspectiva contra hegemônica, isto é, na contramão dos enfoques moral-religioso, jurídico-criminal e médico-patologizante, comumente associados e coexistentes, que estão atrelados às noções individualistas, atomistas, reducionistas, meritocráticas e conservadoras de indivíduo e sociedade, sendo também responsáveis por reforçar práticas segregacionistas, repressivas, punitivas e de encarceramento de determinados grupos (Paiva & Costa, 2017; Ronzani, 2018). Assume-se, na direção contrária, uma perspectiva das maiorias populares, compromissada ética-politicamente com a compreensão e transformação do real, entendendo a urgência da tarefa histórica que se coloca perante não só à temática das drogas, mas diante da totalidade social, a fim de que sejam possíveis novas formas de nos relacionarmos com as drogas, com os outros e com nós mesmos.

 

O fenômeno da alienação e seus desdobramentos na relação indivíduo-drogas

A relação indivíduo-drogas na atualidade é marcada tanto por subjetividades quanto por drogas que se fazem e se desfazem, contínua e processualmente, em uma sociedade onde a forma da mercadoria, do fetichismo e da alienação se universalizaram. E, a fim de que seja possível delinear, ulteriormente, como a relação das drogas-mercadorias com os seus indivíduos consumidores se relaciona com o aprofundamento da alienação é, antes, imprescindível uma definição conceitual. A tematização da alienação é parte constitutiva da teoria marxista, cuja formulação visa apreender a particularidade desse fenômeno no âmbito do capitalismo, contudo, sem renunciar ao entendimento de sua anterioridade nas sociedades pré-capitalistas. Como explica Netto (1981, p. 61) "não é mais a alienação do homem moderno, abstratamente contraposto ao homem da pólis grega", mas sua forma específica e típica no capitalismo, a qual o autor refere-se como reificação. Assim, ela não está restrita apenas ao capitalismo, ao contrário, é comum a outros modos de produção, embora neste haja a sua dilatação.

Para compreender o fenômeno da alienação no capitalismo é importante relacioná-lo com a temática do fetichismo, previamente abordada e conceituada como a mudança da relação social entre homens para a relação entre coisas, inseparável da produção de mercadorias, neste caso, das drogas-mercadorias, que aparece como algo fora do humano, confrontando-o como um poder estranho (Mészáros, 2016). No entanto, o fetichismo não é idêntico, não substitui ou dissolve a teoria da alienação, mas constitui um aspecto, uma modalidade dessa problemática mais ampla. Em suma, o fetichismo da mercadoria instaura processos alienantes particulares que redundam em formas alienadas específicas, as reificadas (Netto, 1981).

Na atualidade, ocorre a exacerbação das formas de consumo fetichizadas das mercadorias e, em particular, das drogas. Assim, tal como a "organização social capitalista da vida social preenche todos os espaços e permeia todos os interstícios da existência individual" (Netto, 1981, p. 81), o fetichismo mercantil passa a ser o fetichismo de todo o intercâmbio humano, delimitando a relação homem-drogas, as relações sociais entre os homens e aquelas que afetam mais intimamente a interioridade dos indivíduos. Marx, ao examinar de forma acurada esse fenômeno, parte da análise do trabalho alienado ou estranhado com a justificativa de que a produção de mercadorias faz do próprio trabalhador, também uma mercadoria, uma coisa, um objeto ("o trabalhador se torna uma mercadoria tão barata quanto mais mercadorias cria"), uma vez que por meio dessa atividade vital e ontologicamente humana, o trabalhador vende a única coisa que possui para sobreviver: sua força de trabalho. Trabalha para viver e vive para trabalhar, num processo constante de desvalorização do humano (Marx, 1844/2010, p. 80).

A complexidade da alienação pode ser descrita em quatro aspectos fundamentais: 1) em relação ao objeto; 2) em relação à natureza; 3) em relação à atividade humana; e 4) em relação ao gênero humano. Em linhas gerais, a alienação em relação ao objeto se dá em razão de sua produção orientada ao mercado e não em benefício da humanidade; em relação à natureza porque o conhecimento e a transformação da mesma não se dão em prol das realizações humanas (o trabalhador não define mais o que, como, com qual objetivo e com quais meios vai produzir, com isso perde o conhecimento da natureza); em relação à própria atividade pois o trabalhador não mais se vê na própria atividade (trabalho), ela é um meio de vida, de sobrevivência e não uma realização humana; e, em última instância, em relação ao gênero humano, onde o largo desenvolvimento das potências humanas (tecnologia, conhecimento sobre a natureza, produção artística, intelectual etc.) acontece às custas da redução das subjetividades, da desfaçatez, da degradação, da deterioração e da impotência do gênero humano (Marx, 1844/2010).

Não será possível aqui deter-se aos aspectos filológicos do conceito de alienação, entretanto, cabem algumas considerações. Com primeira aparição nos Manuscritos de 1844, a alienação (entäusserung) aparece junto de outras categorias, como estranhamento (entfremdung), dentro de um complexo teórico unitário. Em Marx, alienação e estranhamento não são sinônimos, mas também não são categorias contrapostas, a primeira se refere mais diretamente a uma relação de separação enquanto a segunda traduz uma relação de antagonismo.

Por seu turno, o filósofo húngaro György Lukács, valendo-se das categorias de alienação e estranhamento, as diferencia. Para ele, o estranhamento representaria justamente o desenvolvimento de indivíduo e gênero humano em direções contrárias. Complementarmente à discussão sobre a alienação, trata-se, assim, do descompasso entre a humanidade que amplia cada vez mais suas conquistas, seu domínio sobre a natureza e que engendra cada vez mais riquezas, em contrapartida, à custa da disseminação da miséria (material e espiritual), algo inerente a esse avanço do capitalismo e do consequente aprofundamento do estranhamento, pois, no momento em que há a maior produção de riquezas pela humanidade, mais e mais a miséria torna-se o único bem comum. Essa miséria manifesta-se no plano material com a acentuação das desigualdades e da pobreza, mas também no âmbito das particularidades com o engendramento de pessoas pela metade, de personalidades obtusas, tacanhas e apequenadas. Isto é, as potencialidades humanas se alargam em demasia, porém as capacidades humanas se mantêm diminutas. Está em curso um desenvolvimento nunca dantes visto na humanidade, que se dá mediante um processo histórico em que os indivíduos são solapados, são sacrificados. Nas palavras de Lukács (2013, p. 586), existe um "(...) progresso objetivo inquestionável, que, ao mesmo tempo, leva necessariamente à deformação da vida humana".

Ilustrando, atualmente temos uma tecnologia de ponta (inteligência artificial, robótica, tecnologias de informação e comunicação, nanotecnologia etc.), que poderiam eliminar ou atenuar a faina e o cansaço dos trabalhadores, possibilitando inclusive maior tempo livre para outras atividades com vistas a engrandecer o gênero humano. Contudo, esses mecanismos, ao serem subservientes ao capital, conseguiram ampliar a base de exploração do sistema criando inclusive um exército de desempregados e de trabalhadores cada vez mais precarizados; remédios que poderiam oferecer a cura para algumas doenças são eliminados de circulação por não serem rentáveis para a indústria farmacêutica que sobrevive da e através das doenças; algoritmos computacionais decidem por nós e sabem mais sobre nós do que nós mesmos; dentre vários outros exemplos.

O que se almeja levantar é que a alienação está ancorada nas lógicas que regem nossa sociabilidade, no modo de produção da vida, não se tratando de uma característica intrínseca, individual e isolada dos indivíduos, o que forneceria um terreno profícuo para as concepções moralizantes e culpabilizantes. Nesse sentido, a alienação tampouco é algo inerente ou reduzido ao consumo das drogas, assim como nem todo consumo é, por princípio, alienante. Mas, ao contrário, a alienação pode ser expressa, contundentemente, em todos os âmbitos da vida humana, inclusive nas relações estabelecidas entre os indivíduos e as substâncias, naquilo que seria uma de suas manifestações mais elementares e com um fundamento sensível mais evidente.

O homem enquanto ser genérico sofre, nesta sociabilidade, um rebaixamento. Retomando Marx (1844/2010, p. 83), funções como comer, beber e procriar são comuns aos humanos e aos animais, porém, uma vez separadas do resto da atividade humana e sendo estas finalidades últimas e exclusivas, tornam-se funções animalescas ("o animal se torna humano, e o humano, animal"). No processo de autoalienação do humano há uma redução às funções naturais (beber, comer e procriar), onde algo só é nosso quando existe enquanto capital e mercadoria ou quando "é por nós imediatamente possuído, comido, bebido, trazido em nosso corpo, habitado por nós etc., enfim, usado" (Marx, 1844/2010, p. 108). Os sentidos e as necessidades genuinamente humanos foram solapados e ocupados pelo estranhamento, pela dominação do "ter" em detrimento do "ser" (Mészáros, 2016, p. 164). E justamente o "ter", a posse, o consumo, o valor de troca, a mercadoria, que representam a força motriz determinante para o estranhamento no âmbito do capital.

Somado a isso, a fase tardia do capitalismo contemporâneo é responsável por acentuar a desintegração nos mais variados âmbitos da vida humana e por reforçar uma dinâmica de existência estressante, alienante, fatigante, aviltada e exploratória-predatória, na qual, a publicidade voraz e o incentivo ao consumo tornam-se mecanismos para adaptação à uma realidade repleta de contradições. Comportamentos compulsivos são incentivados a fim de fornecer uma narrativa de sentido para a vida humana, onde a máxima "você é aquilo que consome" se sobressai (Carneiro, 2018). É nesse cenário propício de potencialização das dependências às coisas, de consumo exacerbado e de ode à posse material como suposta demonstração de sucesso, que o consumo da droga-mercadoria assume um papel central.

O consumo torna-se uma maneira de recuperar, ainda que de forma deficitária, aquilo que nos foi confiscado e expropriado no momento da produção de objetos e da produção de nossa própria subjetividade. No entanto, sem romper com as engrenagens que sustentam e reafirmam a alienação e o estranhamento, a saída por meio do consumo, seja ela para obtenção de prestígio social, para fuga da realidade, obtenção de prazer etc., é imediata, se atém ao âmbito da pseuconcreticidade sem apreender o real movimento das coisas, o que a caracteriza como uma concepção idílica, um mero desejo ou volição tal como o voo de Ícaro, que movido unicamente pelo desejo de voar perto do Sol, despencou, ele tomado por sua vontade, no mar Egeu. Se não se rompe com os pilares de sustentação do ordenamento social que se alimenta e se retroalimenta da alienação, não há saída. Portanto, é preciso que fique claro que a alienação não surge como um raio em um céu azul, mas como uma deformação histórica inscrita na tessitura do contexto social, na urdidura do modo de produção atual que se assenta sobre o tripé capitalismo-racismo-patriarcado e no qual a alienação, originalmente posta pelo trabalho alienado, difunde-se para todos os interstícios da vida humana a fim de beneficiar e prolongar todas as formas sistêmicas de exploração e opressão. Ou seja, quanto mais intensamente a alienação e o estranhamento se apoderarem de toda a vida, tanto mais desimpedida e efetivamente poderá funcionar a dominação do grande capital (Lukács, 2013).

 

Reverberações da alienação na atualidade sob a análise da dialética singular-particular-universal

Ao examinarmos a relação homem-drogas com ênfase no fenômeno da alienação, é importante fazer um breve retorno ao tecido social no qual desenha-se a temática das drogas na contemporaneidade, sobretudo no contexto brasileiro, e as implicações dessas condições para a edificação das subjetividades de seus consumidores(as). Para tanto, o ponto de partida está no desvelamento das conexões entre singular-particular-universal, proposta por Lukács, como requisito para a apreensão dos fenômenos em sua essencialidade, processualidade e dinamicidade histórica. Em anuência à perspectiva de totalidade, o princípio fundamental da dialética singular-particular-universal lukácsiana rompe com as afirmações de uma possível natureza humana a-histórica, perene, eterna e incapaz de ir além da singularidade imediata e aparente (pseuconcreticidade), como ocorre no terreno da Psicologia tradicional, que incorre em um individualismo exacerbado como se, em si mesmo, o indivíduo pudesse se autoexplicar (Paiva et al., 2018; Pasqualini & Martins, 2015), assim como rompe com reducionismos objetivistas e economicistas que tolhem as individualidades e as circunscrevem de forma determinística à uma universalidade abstrata.

Explorando os conceitos, a singularidade é a manifestação imediata, específica e aparente dos fenômenos (nível individual), enquanto a universalidade, suas manifestações objetivas e gerais (nível do gênero humano). Sendo opostos, singularidade e universalidade pressupõem constantes tensões dialéticas, estas mediadas pelo conceito de particularidade, isto é, pela síntese e reconhecimento de que não só o todo (universalidade) contém as partes (singularidades), mas, da mesma forma, que as partes contêm algo do todo. Uma vez que "singular e universal coexistem como dimensões instituintes do indivíduo e estas dimensões sintetizam-se em suas expressões particulares" (Pasqualini & Martins, 2015, p. 366), estão colocadas as premissas para superação de uma visão dual e dicotômica entre indivíduo versus sociedade e para uma apreensão das relações e dos nexos dinâmico-causais que sustentam não mais a pseuconcreticidade, mas a concreticidade, a realidade e a própria existência de nós enquanto seres sociais.

O ser social, uma totalidade complexa cuja essência expressa as particularidades do grau de desenvolvimento de suas capacidades, que postas em movimento, se desdobram em conteúdos cada vez mais puramente sociais (Brites, 2006), ao contrário do que muito se apregoa no âmbito das ciências humanas (e da própria Psicologia), não está situado no vácuo ou apartado de um contexto, mas situado historicamente e movido de acordo com as condições específicas de cada momento onde, enquanto um ser criativo, incide transformações na realidade por meio da ação humana ao mesmo tempo em que por ela é transformado, dialeticamente. O entendimento dessa dialética singular-particular-universal é imprescindível para a fundamentação de como, enquanto seres sociais, os(as) consumidores(as) de substâncias psicoativas singularizam a universalidade nas constituições particulares de suas próprias existências, ao passo que, também, a universalidade se concretiza em suas singularidades através da mediação da particularidade.

A partir do exposto, foi traçado um posicionamento a respeito de quem é o público-alvo principal do trabalho: a classe trabalhadora. Não porque não exista o consumo recreativo e, principalmente, nocivo e abusivo, entre os setores dominantes da sociedade, mas porque entende-se que as drogas, ao serem consideradas, impreterivelmente, como mais uma das expressões da "questão" social ou atravessada por ela, bem como a sua abordagem hegemônica, materializada nas e pelas políticas na área, afetam de forma mais aguçada os setores pauperizados da sociedade.

Ao produzir um amplo estudo acerca da situação da classe trabalhadora inglesa no século XIX, Engels (1845/2010) constatou que diante da exploração cotidiana no insalubre e hostil ambiente fabril e diante das condições degradantes e desumanizantes de vida, o alcoolismo desponta e se expande como um fenômeno social oriundo da práxis social capitalista. A miséria, a pobreza, as privações materiais e espirituais, típicas desse modo de produção, fazem com que o álcool seja "a única coisa que torna a vida digna de ser vivida" (p. 133), levando os trabalhadores a gastarem todo o dinheiro que ganham com a bebida como forma de resistir àquilo que Engels denominou de "assassinato social", uma forma de homicídio por omissão na qual milhares de trabalhadores são expostos à uma situação tão degradante que os conduz à morte prematura, antinatural e quase "tão violenta quanto a provocada por uma espada ou um projétil", ao negá-los e privá-los de tudo aquilo que é fundamental para até mesmo subsistir. Sobre isso, o autor questiona: "Como poderia ser diferente? Como pode a sociedade – que o relega a uma situação em que se tornará alcoólatra quase por necessidade, deixa-o embrutecer-se e não se preocupa com ele – acusá-lo quando, de fato, ele se torna um bêbado?" (Engels, 1845/2010, p. 134).

Dentre a miríade de motivações e finalidades para o uso e consumo de substâncias ao longo da história, salienta-se o propósito lenitivo e consolador do álcool, tal como no caso da Inglaterra do século XIX e, ainda, hodiernamente. Sendo, muitas das vezes, a única fonte de prazer e distração em meio a uma existência desprazerosa e limitadora, o álcool atua, após uma jornada extensa de trabalho, como algo que faz o trabalho extenuante, atrofiador e embrutecedor valer a pena, viabilizando suportar o amargo do dia seguinte e concedendo "a certeza de esquecer, ainda que por algumas horas de embriaguez, a miséria e o peso da vida" (Engels, 1845/2010, p. 142). As condições de existência, ou melhor, de negação e privação dela para muitos, impõe uma carga mais pesada sobre o espírito, sobre as singularidades, do que o álcool e seu consumo abusivo sobre o organismo humano. Aproximando do contexto brasileiro, a escritora Carolina Maria de Jesus, ao retratar seu cotidiano de luta pela sobrevivência na periferia paulista, afirma: "A tontura da fome é pior do que a do álcool. A tontura do álcool nos impele a cantar. Mas a da fome nos faz tremer. Percebi que é horrível ter só ar dentro do estômago" (Jesus, 2014, p. 44).

Ademais, a bebida alcóolica oferece a caloria mais barata que a classe trabalhadora pode comprar, como é no caso da aguardente/cachaça, onde a produção desse destilado da cana demanda parcos recursos (o alambique pode ser confeccionado de barro e a cana pode ser moída por engenhocas manuais), favorecendo a popularização e comercialização desse tipo de bebida. A aguardente, por exemplo, possui relação íntima com a constituição da identidade brasileira, tendo sido integrada no período colonial como: intermediadora de relações sociais, moeda na aquisição de escravos – comercialização da aguardente brasileira no continente africano em troca de povos inteiros escravizados e explorados –, aliada na luta contra a fadiga do trabalho escravo nas plantações e engenhos coloniais, suplemento de dietas inadequadas advindas da condição de cativo e, principalmente, partícipe do cotidiano de luta e de resistência nos quilombos brasileiros (Venâncio & Carneiro, 2005).

Outro exemplo que demonstra a comunhão existente entre o papel das substâncias psicoativas e o momento histórico está no reforçamento do consumo de estimulantes, sedativos e inebriantes na formação da cultura e economia moderna. Não somente as drogas ilícitas, mas as lícitas, incluindo alcaloides como a cafeína, nicotina, teína (base da folha de chá e análogo à cafeína) e teobromina (base do cacau normalmente presente nos chocolates), mais do que fontes comerciais lucrativas e commodities globais, são emblemáticos da atmosfera atual valorativa dos ideais de rapidez, produtividade, eficiência, atenção, desempenho e resistência à fadiga e sono compatíveis com a superexploração da força de trabalho, múltiplas jornadas, trabalho noturno e outros tipos de desempenho como intelectual, militar, sexual etc. (Carneiro, 2018).

Destarte, é importante não transferir para a natureza das drogas e das substâncias o que está enraizado na dinâmica do capitalismo, ou seja, não existe uma "questão" das drogas per si, estas não podem ser consideradas as causadoras da dependência por si só, não se expressando na realidade dessa maneira abstrata, autocentrada e ensimesmada, mas circunscritas em um momento histórico-material que, ao mesmo tempo, lhe conforma e é conformado por ela (Costa, 2017, p. 46). As drogas e, logo, seu uso e consumo, são práticas que atendem necessidades sócio-históricas (Brites, 2006, p. 43) e, contemporaneamente, também se inserem enquanto mercadorias numa lógica de exploração imanente ao capitalismo – sobretudo com a fase monopólica – da qual deriva o consumo nocivo ou a dependência em detrimento do recreativo, religioso e terapêutico. Concomitantemente, ao historicizar o uso e o consumo de drogas é possível suplantar a concepção de que qualquer relação com as drogas em qualquer momento histórico é, por princípio, deletéria. Já existiram formas distintas de nos relacionarmos com as substâncias no passado, bem como existe um campo de possibilidades de maneiras de nos relacionarmos com elas no presente e no futuro, de forma menos mercantil e mais desalienadora, desestranhada e emancipada.

Carneiro (2018) sinaliza o crescimento da compulsividade como proporcional às realidades insuportáveis de vida, em que as dependências (químicas, tecnológicas, alimentícias, por compras) se tornam meios indispensáveis para fornecer sentido a uma existência sem propósito e um meio comum de existência coletiva para uma vida que apregoa o isolacionismo e o individualismo em seu grau máximo e a atomização do mundo levada às suas extremas consequências. Dessa maneira, possíveis excessos, presentes no consumo nocivo e na dependência de drogas, não fazem parte de um fenômeno cultural necessário e a-histórico, nem de um vício de responsabilidade individual, mas de uma consequência necessária e inelutável de determinadas circunstâncias que agem sobre um indivíduo que busca meios de fugir da implacável dor da exploração do trabalho e remédios contra o sofrimento. Isso faz com que tais meios não possam ser condenáveis em si mesmos, visto que seria abominável subtrair dos que sofrem os seus bálsamos e paliativos. Porém, entende-se que os floreios anestésicos que hoje cumprem o papel de disfarçar a miséria material e espiritual no âmbito do capital, poderão assumir novas funcionalidades ou até mesmo serem dispensáveis uma vez rompidos os grilhões da exploração e da opressão capitalista (Carneiro, 2018; Marx, 1844/2013).

Quanto ao contexto e às estruturas que circundam e conformam, de maneira dialética, as singularidades dos indivíduos e suas relações com as substâncias, é peremptório examiná-los com acuidade. Todavia, no presente trabalho serão delineados apenas alguns aspectos fundamentais para compreensão da relação indivíduo-drogas, sem aprofundá-los, a fim de que seja possível alçar um panorama breve e atualizado sobre a temática, fornecendo o terreno necessário para a análise do fenômeno da alienação e de sua relação com o consumo de drogas. Um profícuo ponto de partida consiste na compreensão das transformações e reestruturações no âmbito do capitalismo ao longo das últimas décadas, bem como das particularidades latino-americanas e brasileiras de um capitalismo dependente, periférico e tardio descrito de forma cirúrgica por Galeano (1983, p. 14):

(...) a história do subdesenvolvimento da América Latina integra, como já se disse, a história do desenvolvimento do capitalismo mundial. Nossa derrota esteve sempre implícita na vitória alheia, nossa riqueza gerou sempre nossa pobreza por nutrir a prosperidade dos outros: os impérios e seus agentes nativos (...) a chuva que irriga os centros do poder imperialista afoga os vastos subúrbios do sistema. Do mesmo modo, e simetricamente, o bem-estar de nossas classes dominantes – dominantes para dentro, dominadas de fora – é a maldição de nossas multidões, condenadas a uma vida de bestas de carga.

Fica evidente no trecho que, embora o modo de produção capitalista corresponda a uma etapa do dinâmico e contraditório curso do desenvolvimento histórico mundial das formas sociais (Morais & Lacerda, 2019), ele sofre modificações de acordo com o espaço e o tempo. Ou seja, embora as condições deploráveis de vida dos trabalhadores ingleses no século XIX examinadas por Engels e mencionadas anteriormente possuam similitudes com o contexto latino-americano atual, não são situações idênticas. Da mesma forma, as condições atuais de vida da classe trabalhadora nos países centrais do capitalismo diferem em muito das experienciadas na periferia do sistema, que inclui países periféricos como o Brasil. A história da América Latina possui particularidades: é duramente marcada pela violência, dominação, exploração, opressão e extermínio de nossos povos, ora por meio dos processos de invasão e de colonização, ora por guerras e ditaduras perpetradas e financiadas pelo imperialismo. Essa condição bárbara na qual multidões estão subjugadas, processo que não é natural, estático, nem permanente, tem sido agudizada e atualmente se expressado através de uma nova morfologia do trabalho, da exploração predatória dos recursos naturais, da criminalização da pobreza e das políticas neoliberais etc. (Cruz, Minchoni, Matsumoto, & Andrade, 2017).

Trazendo destaque para a temática das drogas, os aspectos descritos das contradições latino-americanas permeiam vários aspectos como, por exemplo, a política do proibicionismo e de "guerra às drogas", que contendo um forte cunho racista, classista e punitivista, encarcera e extermina em massa segmentos da classe trabalhadora, notadamente, a juventude pobre, negra e periférica. Trata-se de uma política de Estado que encontra respaldo jurídico e ideológico para sustentar uma militarização da vida social que nunca para de crescer, para aqueles (não todos) os indivíduos e grupos sociais tidos como "inimigos", "traficantes" e "vidas matáveis" (Cruz et al., 2017; Lima, 2009; 2017; Rocha, 2015), que em nada responde à critérios científicos e de saúde pública, uma vez que danos de saúde associados a certas substâncias não se resolvem com ilegalidade, e que é sumariamente contraditória (Brites, 2006; Carneiro, 2018). A seletividade (na escolha das substâncias taxadas como ilícitas e dos indivíduos e grupos que supostamente as produzem, distribuem e consomem) permite que a contraditória matriz proibicionista possa ser exemplificada pela notícia dos 39kg de cocaína encontrados no avião presidencial da Força Aérea Brasileira (FAB) demonstrando que, enquanto nas periferias brasileiras matam e prendem cotidianamente em nome da "guerra às drogas", o avião presidencial brasileiro faz tráfico internacional.1

Funcional ao sistema e mantenedora do status quo dessa sociabilidade, a matriz proibicionista favorece uma minoria dominante submissa aos interesses do imperialismo nos países latino-americanos, principalmente quando associada com outros mecanismos mais sutis (e não menos perversos) de individualização, culpabilização, redução dos indivíduos às substâncias que consomem, medicalizações, patologizações etc. E mais do que isso, a matriz proibicionista é importante aliada na edificação e sustentação da relação alienada do homem em relação às drogas e em relação a si próprio, visto que reforça o caráter mercantil das substâncias psicoativas, dos indivíduos (enquanto vendedores de sua força de trabalho) e das relações estabelecidas entre eles. E, a despeito dessa matriz, o mais danoso ao organismo e com maiores índices de dependência, o álcool, não só é uma substância lícita incentivada e estimulada midiática e culturalmente, como movimenta uma indústria bilionária, cujos lucros expandem até mesmo em contextos de crise.

Acoplado aos elementos descritos anteriormente, as configurações societárias atuais possuem outro aspecto de suma importância para compreensão da emergência do consumo dependente de substâncias, trata-se do individualismo em sua faceta mais ampliada que condicionou o surgimento do indivíduo de modo atomizado, fraturado e clivado como uma mônoda solipsista, isto é, enquanto algo ensimesmado e fechado em si mesmo (Morais & Lacerda, 2019). A lógica individualista e isolacionista que nos permeia, na contramão da dialética singular-particular-universal, situa o consumo de drogas como ato e escolha meramente individual e o identifica como manifestação de natureza individual, de caráter ou de traço de personalidade, podendo levar inclusive ao malogro de conceber a pobreza, a fome e outras expressões da "questão social" como advindas de uma base intrapsíquica. Esses elementos são centrais, pois conduzem o humano a uma existência inautêntica, apartada do gênero humano, na qual cada indivíduo está, supostamente, isolado dos demais, como um entre milhões, numa solidão em massa, onde "cada um é estranho de si e todos são estranhos entre si" (Marx, 1846/2006, p. 42). Assim, diante do individualismo, as moléculas psicoativas ganham o espaço do outro, do sentido, como recurso de consolo na perspectiva de um hedonismo individualista diante da ausência de felicidade coletiva (Carneiro, 2018).

Os mecanismos descritos acima introduziram transformações na sensibilidade humana, consolidando um novo tipo de subjetividade específica da sociabilidade do capital na qual as dependências em relação às drogas (e, em relação à tecnologia, alimentos, compras etc.), em suma, em relação às coisas, se excedem ao ponto de tornarem-se regra, imprimindo a valorização do mundo das coisas em proporção direta à desvalorização do mundo dos homens (Marx, 1844/2010, p. 80), ampliando aquilo que denominamos alienação. O que se pretende mostrar é que a "questão" das drogas não diz respeito somente à substância material, concreta, psicoativa, inebriante e entorpecedora, nem só às políticas regulatórias e à "guerra às drogas", mas diz respeito ao mais íntimo e profundo de nossa sociedade atual e dos indivíduos que a criaram e que são por ela conformados.

Evidentemente, não é possível desconsiderar o consumo de drogas-mercadorias na sociedade, nas suas variadas formas, como uma forma de resposta à toda incongruência e a incompatibilidade desse modo de produção com a existência de nós enquanto seres sociais. As drogas-mercadorias, pelas quais nossa sociedade é dependente - o que inclui todos nós em maior ou menor grau - representam mais uma contradição dessa sociedade: ao mesmo tempo, podem atuar de modo a aprofundar nossa alienação representando formas de manutenção do status quo, de assegurar a resignação, docilização, apassivamento dos indivíduos e funcionalidade ao modus operandi do capital mantendo sua desigual estrutura de dominação; e também sinalizam revoltas, ainda que no plano individual, demonstrando a necessidade de novas formas de existência, de novas formas de nos relacionarmos com as drogas, com os outros e com nós mesmos. Seria, então, o consumo de drogas apenas uma forma de resignação, de submissão a uma realidade alienante e de busca por prazer em meio a uma existência de desprazeres? Ou o consumo e abuso de drogas dão indícios de formas de revolta ainda que de modo individual? Independente disso, é inelutável que a alienação que perpassa, como apresentado, inclusive a relação dos indivíduos com as drogas-mercadorias, engendra limites e reduz as possibilidades de existência, mas compreendê-la e desvelá-la deve, necessariamente, apontar outros caminhos.

 

Considerações finais: para além da droga-mercadoria e do capital

Partindo de uma concepção da totalidade, as considerações feitas a priori nos permitem chegar a algumas teses e, obrigatoriamente, a alguns apontamentos para que não se incorra em uma posição desanimadora e fatalista. Em primeiro lugar, as drogas fazem parte da humanidade com papéis específicos em cada momento histórico e são, por isso, inextirpáveis. As argumentações acima buscaram demonstrar o papel de determinadas substâncias no âmbito do capitalismo (drogas-mercadorias) e como a infeliz tentativa de se consolidar uma sociedade "sem drogas", impossível do ponto de vista concreto, almeja, na verdade, sobrepor vidas humanas. Afinal, considerar as drogas como o "problema" ou culpabilizar os indivíduos pelo consumo, como se fossem escolhas e atos meramente individuais, através de uma posição moralista, punitiva e individualista, oculta a gênese desumanizadora da sociedade capitalista, que alimenta e se retroalimenta das ditas dependências. Além disso, foi demonstrado que as drogas e os indivíduos que com elas se relacionam, são complexos, multideterminados e estão circunscritos em um tecido social, no qual as drogas, os indivíduos, suas necessidades e até mesmo suas relações mais íntimas e profundas, atualmente, estão guiados pela forma mercadológica, fetichista e alienante da sociabilidade capitalista.

Portanto, não são as drogas ou os indivíduos, mas a forma das drogas enquanto mercadorias fundamentadas na própria base material do capitalismo, e que só servem para agudizar esse descompasso entre as capacidades e as potências postas pelo gênero humano, que devem ser superadas. Em última instância, não se tratando de algo metafísico, mas de um processo histórico com raízes na própria forma como os indivíduos constroem e organizam a sua sociabilidade, a superação das drogas-mercadorias não somente é possível como passa, inevitavelmente, pela superação deste tipo de sociabilidade que é necessariamente fetichizada, alienada e desumana e que reforça essa configuração das drogas-mercadorias e das ditas dependências na contramão do humano.

O horizonte deve estar, portanto, em uma "atitude revolucionária, frente aos próprios fundamentos dessa sociedade" (Lukács, 1979, p. 79), a fim de que seja possível a apropriação de tudo que o gênero humano produz e produziu pelo terreno das individualidades, engendrando novas subjetividades e, também, novas formas de relações com os outros, com a natureza, com as drogas e com nós mesmos. Seguindo a tradição marxista, o homem é um ser genérico que se autoproduz sempre em continuidade e descontinuidade, e não se apresentando como algo pré-definido e de natureza imutável, estão abertos os caminhos para mudanças e transformações. Ou seja, se o ser produz a si próprio, está colocada uma condição brilhante: o homem produz uma sociabilidade que desfaz a si mesmo, que desumaniza a si próprio, que o aliena em relação ao outro, às coisas, às drogas e em relação à si mesmo, porém, esse ser pode também refazer a si mesmo de forma distinta - mais plena e autenticamente - e, também, à sua própria sociabilidade, sua relação com os outros, com as drogas etc. O horizonte, portanto, está para além da droga-mercadoria e para além do capital, por uma sociedade radicalmente diferente, não mais baseada na alienação, que não produza riqueza às custas da desfaçatez e da deterioração do gênero humano, mas que garanta o mais amplo desenvolvimento sob as rédeas dos próprios indivíduos, não apenas porque é algo necessário, sobretudo, porque é possível.

 

Referências

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Endereço para correspondência:
Rua Almir Monteiro, 346
Santa Cecília - Juiz de Fora, Minas Gerais.
Email: mirandafurtuoso@gmail.com

Recebido em 28.nov.19
Revisado em 20.nov.20
Aceito em 26.jan.21

 

 

Luiza Miranda Furtuoso, Graduanda em Psicologia pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF).
Telmo Mota Ronzani, Doutor em Ciências da Saúde pela Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP), Pós-Doutor pela Universidade de São Paulo (USP) e estágio pós-doutoral pela University of Connecticut Health Center (UCHC), é Professor da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), Bolsista de Produtividade CNPq 1D. Email: tm.ronzani@gmail.com
Pedro Henrique Antunes da Costa, Doutor em Psicologia pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), é Professor da Universidade de Brasília (UnB). Email: phantunes.costa@gmail.com
1. https://exame.abril.com.br/brasil/militar-de-voo-presidencial-foi-preso-com-39-kg-de-cocaina-na-espanha, acessado em 29, julho, 2019.

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