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Estudos de Psicologia (Natal)

Print version ISSN 1413-294XOn-line version ISSN 1678-4669

Estud. psicol. (Natal) vol.26 no.1 Natal Jan./Mar. 2021

http://dx.doi.org/10.22491/1678-4669.20210007 

10.22491/1678-4669.20210007

TEMAS EM POLÍTICAS SOCIAIS: ASSISTÊNCIA SOCIAL E SISTEMA DE GARANTIA DE DIREITOS

 

Jovens estudantes da periferia urbana de Garanhuns/PE: discursos relacionados à sexualidade

 

Young students from the urban periphery of Garanhuns/PE: discourses related to sexuality

 

Jóvenes estudiantes de la periferia urbana de Garanhuns/PE: discursos relacionados con la sexualidade

 

 

Roseane Amorim da SilvaI; Jaileila de Araújo MenezesII

IUniversidade Federal Rural de Pernambuco
IIUniversidade Federal de Pernambuco

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

No presente estudo abordamos algumas discussões realizadas na pesquisa com os/as jovens de uma escola de Garanhuns/PE sobre sexualidade, considerando que esse marcador social é constituído por gênero, classe, religião, entre outros. Participaram jovens de ambos os sexos, com idade dos 15 aos 20 anos. A pesquisa foi realizada em três momentos; no primeiro realizamos observação participante no contexto escolar, no segundo cinco oficinas com os/as jovens, uma específica sobre sexualidade, no terceiro momento fizemos quatro entrevistas semiestruturadas. Os resultados foram analisados a partir da análise temática, considerando a interseccionalidade dos marcadores sociais referidos acima. Observamos que as práticas LGBTfóbicas são algo muito presente no contexto escolar, várias situações de violência contra os/as estudantes perpetradas tanto pelos discentes quanto por professores/as e a gestão da escola. Refletimos sobre a importância da existência de um espaço em que haja a discussão sobre sexualidade e diversidade sexual e a responsabilização social escolar.

Palavras-chave: sexualidade; escola; juventude; interseccionalidade.


ABSTRACT

In the present study we discuss some discussions carried out in the research with young people from a school in Garanhuns/PE on sexuality, considering that this social marker is constituted by gender, class, religion, among others. Young men and women participated, aged 15 to 20 years. The research was carried out in three moments, in the first we conducted participant observation in the school context, in the second five workshops with the young people, a specific one about sexuality, in the third moment we did four semi-structured interviews. The results were analyzed from the thematic analysis, considering the intersectionality of the social markers mentioned above. We observed that LGBTphobic practices are very present in the school context, several situations of violence against students perpetrated by both students and teachers and school management. We reflected on the importance of the existence of a space where there is a discussion about sexuality and sexual diversity and school social responsibility.

Keywords: sexuality; school; youth; intersectionality.


RESUMEN

En el presente estudio discutimos algunas discusiones llevadas a cabo en la investigación con jóvenes de una escuela en Garanhuns/PE sobre sexualidad, considerando que este marcador social está constituido por género, clase, religión, entre otros. Participaron hombres y mujeres jóvenes, de 15 a 20 años. La investigación se llevó a cabo en tres momentos, en el primero realizamos observación participante en el contexto escolar, en los segundos cinco talleres con los jóvenes, uno específico sobre sexualidad, en el tercer momento hicimos cuatro entrevistas semiestructuradas. Los resultados se analizaron a partir del análisis temático, considerando la interseccionalidad de los marcadores sociales mencionados anteriormente. Observamos que las prácticas LGBTfobicas están muy presentes en el contexto escolar, en varias situaciones de violencia contra los estudiantes perpetradas tanto por los estudiantes como por los maestros y la administración de la escuela. Reflexionamos sobre la importancia de la existencia de un espacio donde haya una discusión sobre sexualidad y diversidad sexual y responsabilidad social escolar.

Palabras clave: sexualidad; escuela; juventud; interseccionalidad.


 

 

No presente estudo buscamos refletir sobre as experiências acerca da sexualidade dos/as jovens da periferia do município de Garanhuns/PE, compreendendo que a mesma é constituída por gênero, classe, geração e religião, que de modo interseccionados podem produzir opressões e desigualdades nas formas como os/as jovens vivenciam a sexualidade. Iremos abordar aqui algumas discussões realizadas com os/as jovens a partir de uma pesquisa realizada em uma escola do município referido acima, de modo a evidenciarmos como a instituição escolar é um lócus fundamental nas experiências juvenis, e o quanto essa pode atuar de modo a reproduzir práticas colonizadoras na sociedade. Buscamos também abordar a percepção e o posicionamento dos/as jovens sobre algumas situações vivenciadas relacionadas à sexualidade.

Existem diversas formas de expressão da sexualidade humana, mas muitas são oprimidas pela imposição de um padrão de sexualidade considerado hegemônico e válido na sociedade. O que revela que ao falarmos sobre sexualidade é importante pensarmos que esse é um campo com relações de poder imbricadas. A sexualidade "é um terreno político por excelência" (Simões & Facchini, 2009, p. 12). Tem sido um campo utilizado para regulação da vida social através da construção do que é socialmente aceito, em termos sexuais, bem como sobre o que deve ser excluído. A sexualidade "tem sido um ponto muito importante de articulação de políticas de discriminação, de interferência autoritária sobre os corpos dos cidadãos, por parte dos diferentes Estados Nacionais. [...] É, portanto, um plano de regulação pública fundamental" (Carrara, 2004, p. 18-19).

É um campo importante para pensarmos na intersecção dos marcadores sociais gênero , classe, raça e geração, haja vista o quanto esses marcadores de modo relacionados têm produzido efeitos sobre os corpos, controlando-os, estigmatizando-os, excluindo-os da sociedade, ora os/as que têm uma orientação sexual diferente da heteronormativa, o que nos faz pensar sobre as opressões sofridas por jovens negros gays, jovens negras lésbicas, jovens trans; ora homens jovens héteros, mulheres jovens héteros que têm suas vivências sexuais controladas se não quiserem ficar mal faladas na sociedade, entre tantas outras situações.

A idade, assim como raça, gênero, território, tem uma grande interferência no amálgama corpo sexualidade – informando muitas das (im)possibilidades de pensar como a suposta coerência entre sexo, gênero e sexualidade possam se expressar, a partir das contingências específicas de cada idade ou momento biográfico. A idade, enquanto dispositivo, opera de forma ampla na regulação e normalização dos corpos e das vivências sexuais, no que diz respeito especialmente à autonomia do sujeito sobre seu corpo, desejos e prazeres, e de forma abrangente sobre os modos como são pensados e considerados nas políticas públicas (Couto Junior, Oswald & Pocahy, 2018).

Couto Junior, Oswald e Pocahy (2018) chamam a atenção para o perigo de conceber a juventude como uma fase transitória da vida, o que suspende a possibilidade de perceber os/as jovens como protagonistas e cidadãos, com uma maior liberdade e autonomia sobre seus próprios corpos e vivências sexuais, sem o constante monitoramento dos adultos. Mas, ainda que haja inúmeras tentativas de silenciar determinados modos de ser que causam estranhamento e incomodam, alguns e algumas jovens têm transgredido as regras heteronormativas e encontrado meios para vivenciarem masculinidades e feminilidades múltiplas, negociam e reinventam suas vidas, notadamente a partir das redes de subjetividade e de significação que se constituem a margem das instituições que supostamente protegeriam esses sujeitos, a exemplo da escola. No entanto, muitas escolas silenciam e oprimem qualquer comportamento que não siga as normas estabelecidas socialmente. Existe um padrão heterossexista construído na sociedade, de modo que aqueles/as que não seguem essa orientação sexual são oprimidos/as, colocados/as à margem da sociedade.

Uma das abordagens da Psicologia para a homofobia é relacionada aos sentimentos e percepções negativas a respeito da homossexualidade e às consequências na conduta individual. Já a abordagem da sociologia para a homofobia analisa os mecanismos de reprodução da hostilidade contra o desvio da norma heterossexual (Barreto, Araújo & Pereira, 2009). Homofobia é definida por Borrillo (2010, p. 34) como "a hostilidade geral, psicológica e social contra aquelas e aqueles que, supostamente, sentem desejo ou têm práticas sexuais com indivíduos de seu próprio sexo", ou ainda, de forma mais sintética, o termo pode ser usado para designar "atitude de hostilidade contra as/os homossexuais". No presente estudo iremos usar também o termo LGBTfobia por esse abranger as situações de preconceito e discriminação vivenciadas por pessoas de diferentes grupos LGBTs.

Importante destacarmos também o que significa falar em gênero quando falamos sobre sexualidade. As discussões de gênero perpassam várias conceituações e estudos, a construção do masculino e feminino, a formação da identidade dos sujeitos, a sexualidade, o enfoque na violência contra a mulher, às discussões sobre as masculinidades, colocando em evidência que a subordinação feminina não é natural, estática e imutável. Com o processo histórico, percebeu-se que as identidades não são fixas, mas mutáveis, além de serem plurais e diversas .

Assim, a concepção de gênero foi construída como relacional, ou seja, pertencente às relações sociais entre os sujeitos, como um modo de significar as relações de poder. Falar em gênero implica em considerar que as desigualdades existentes entre mulheres-homens, mulheres-mulheres, homens-homens são perpassadas por processos históricos que caracterizam um padrão de relações. Sendo uma construção social, as relações de gênero não somente são diversas entre as sociedades ou em distintos momentos históricos, mas também podem se diferenciar no interior de uma mesma sociedade. É importante lembrar a questão do poder que perpassa essas relações. O que torna importante perceber como o gênero se intersecta com um conjunto de outros sistemas de opressão. No presente estudo, estamos considerando que gênero é constituído por outros marcadores: classe, sexualidade, religião, geração e também constitui esses.

Na pesquisa que realizamos, discutimos com os/as jovens várias questões sobre sexualidade, incluindo a questão da orientação sexual, uma vez que partimos do ponto de que esta não deve ser realizada a parte da discussão sobre sexualidade e gênero, que é constituído por classe, geração e outros, e porque vimos o quanto os/as jovens da escola que fez parte do estudo, ainda sentem necessidade de falar de questões "básicas" para as vivências das práticas sexuais. No tópico a seguir abordaremos como a pesquisa foi realizada e, em seguida algumas das questões que foram discutidas com os/as jovens estudantes da periferia de Garanhuns/PE sobre as vivências sexuais.

 

Metodologia

Trata-se de uma pesquisa qualitativa, construída a partir de métodos que favoreceram a participação dos/as jovens em diferentes etapas e a relação com as pesquisadoras, observação participante, oficinas e entrevistas (Silva, 2019). O público da pesquisa foi formado por jovens de ambos os sexos, com idade dos 15 aos 20 anos, estudantes de uma escola pública localizada na periferia de Garanhuns/PE que recebe um quantitativo considerável de estudantes residentes nas periferias da cidade. Não iremos especificar o nome e onde a escola fica localizada no intuito de preservar a identidade da mesma, devido alguns dos resultados construídos na pesquisa poderem identificar profissionais e estudantes da instituição. Os nomes usados para representar os/as jovens na discussão dos resultados são fictícios .

Garanhuns é um município da Mesorregião do Agreste de Pernambuco, que dista cerca de 230 km da capital Recife, e possui cerca de 138.642 habitantes. É datado do século XVII sendo contemporâneo às guerrilhas dos escravos fugidos para o Quilombo formando fazendas e sítios. Atualmente destaca-se no setor cultural com a realização de grandes eventos, como o Festival de Inverno de Garanhuns que acontece todos os anos em julho e atrai turistas de várias localidades do Brasil para a região, o Festival Viva Dominguinhos, que acontece em abril, entre outros. No presente ano esses eventos não aconteceram devido à pandemia que assola o mundo.

A pesquisa aconteceu em três momentos. No primeiro realizamos observação participante na escola. Durante um período de dois meses íamos à escola todos os dias e ficávamos nos corredores, no pátio, sentadas próximas ao refeitório da escola observando e conversando com os/as estudantes e alguns/mas profissionais. Conversamos sobre diversos assuntos, sobre os projetos de vida dos/as estudantes, sobre as situações homofóbicas frequentes na escola, as situações de preconceito racial e de classe, a discriminação dos/as alunos que moram em regiões consideradas perigosas na cidade e são estigmatizadas por habitarem nessas localidades, entre outras. Todas as observações e conversas realizadas com os/as estudantes de diferentes idades foram registradas no diário de campo. Foi feita uma análise do mesmo que serviu de base para realizarmos a segunda etapa da pesquisa.

Na segunda etapa, realizamos cinco oficinas na escola, abordando diversos temas, a exemplo de questões raciais, uso de álcool, acesso dos/as jovens aos espaços/lugares da cidade, entre outros/as. Uma das oficinas foi sobre sexualidade, e são as informações construídas nessa que abordaremos aqui ; participaram 20 jovens na faixa etária dos 15 aos 20 anos, cursando diferentes anos do Ensino Médio. As oficinas foram vídeo gravadas. Fizemos a transcrição e analisamos o material construído, na mesma foi falado sobre LGBTfobia na escola, dificuldade dos/as jovens em falarem sobre sexualidade, em irem a uma Unidade de Saúde tirar dúvidas, realizar exames ginecológicos e pegar camisinha, culpabilização da mulher que não se protege nas práticas sexuais, entre outras temáticas.

Observamos que seria importante aprofundarmos essas questões abordadas com os/as jovens, para uma melhor compreensão das intersecções da sexualidade com outros marcadores sociais, a exemplo de gênero, classe e religião. Assim realizamos uma terceira etapa, onde foram feitas quatro entrevistas semiestruturadas com os/as jovens, duas jovens entrevistadas participaram da oficina e dois jovens da escola, mas que não participaram da oficina, estavam participando do projeto, mas no dia da oficina sobre sexualidade não estavam na escola.

Todo o material foi analisado a partir de uma análise temática (Bardin, 1979) considerado a perspectiva da interseccionalidade dos marcadores sociais (gênero, geração, classe, religião e sexualidade). Compreendemos com a interseccionalidade que esses marcadores estão entrelaçados na constituição das desigualdades e nas formas de enfrentamento às mesmas, constituindo uns aos outros e sendo constituídos ao mesmo tempo. (Collins, 2015; Crenshaw, 2002). Assim, observamos a interseccionalidade nos discursos dos/as jovens, a fim de compreender os efeitos produzidos por esses marcadores nas experiências sobre sexualidade que constitui a juventude periférica estudada no contexto escolar.

A análise temática nos ajudou a construirmos os eixos analíticos de acordo com os objetivos do estudo e da visibilização da interseccção entre as categorias. Assim, construímos quadros abordando os objetivos da pesquisa e temas novos construídos com os/as participantes. Os quadros possuíam dupla entrada, na coluna vertical os marcadores que estamos trabalhando: sexualidade, gênero, classe, geração, e religião, e na parte superior horizontal cada coluna iniciava com um objetivo da pesquisa. Desse modo, apresentamos nossas reflexões em dois tópicos: situações de preconceito e discriminação no contexto escolar relacionadas à sexualidade, onde abordamos reflexões a partir da intersecção entre sexualidade, gênero, classe e religião; e o segundo: percepções dos/as jovens sobre vivências relacionadas à sexualidade, onde abordamos a intersecção da sexualidade com gênero, classe e geração.

Temos o intuito de não reproduzir concepções arraigadas e, por vezes, que estigmatizam as juventudes, para isso, observamos nos discursos as expressões de poder, naquilo que resultam em desigualdades e que são hegemônicos nos grupos pesquisados; e os movimentos que se apresentam contra a hegemonia.

 

Resultados e discussões

Situações de Preconceito e Discriminação no Contexto Escolar Relacionadas à Sexualidade

Na pesquisa com os/as jovens na escola, durante nossas observações percebemos a LGBTfobia muito presente nos discursos dos/as jovens, alguns e algumas faziam questão de dizer que na escola tem muitos gays e lésbicas, e não negavam que têm preconceito. Outros/as relatavam que não concordam com as situações que presenciam. A discussão sobre sexualidade e diversidade sexual na escola é bem ausente pelo que percebemos nas conversas que tivemos com os/as alunos/as. Pudemos observar como essas questões são vivenciadas pelos/as jovens, os gays e as lésbicas são vistos como pessoas que é melhor não chegar perto, a homossexualidade como algo errado. Fomos surpreendidas durante as observações pela quantidade de vezes que os/as jovens falaram sobre essa questão e que nos fizeram refletir sobre a homofobia e a lesbofobia sofrida pelo/as jovens pobres daquela região. O que nos fez pensar também na pesquisa que estávamos realizando que havia um interesse e uma necessidade daqueles/as estudantes falarem sobre essas questões. Em conversa com uma estudante, a mesma relatou:

essa semana um professor fez uma dinâmica na sala, cada pessoa tinha um barquinho de papel, ai fora você escrevia as qualidades e dentro os defeitos, todo mundo escrevia no barquinho de todo mundo. No meu escreveram sapatão, lésbica safada e um monte de coisa. Ai o professor pediu pra ler, quando eu li, ele perguntou o que eu achava disso, eu disse que achava muito errado, que era uma falta de respeito de gente que não tem nada na cabeça. Ai quando foi depois que acabou a aula, o menino que escreveu veio brigar comigo e me deu um soco [mostrou a marca no rosto]. Eu fui falar com a gestão, minha mãe veio, a família dele não veio, mas ninguém fez nada, ele tá aí, assistindo aula, na minha sala. E é errado homem bater em mulher, mas ninguém fez nada, disseram a minha mãe que iriam resolver com ele, mas nada. (Diário de campo, 07/02/2017)

Nesse relato da jovem, observamos as várias violências que a mesma sofreu, a não intervenção da gestão em relação à situação. Algumas outras estudantes relataram esse caso, indignadas com essa violência. Em um Estado em que os índices de violência contras as mulheres em suas diferentes modalidades são alarmantes, os números de feminicídio crescem a cada hora, a gestão da escola ser conivente com uma situação dessas e não tomar o ocorrido para problematizar e discutir essas questões, nos chama atenção e nos diz da falta de responsabilização social da instituição. Sabemos que esse não é um caso isolado e que omissões como essa reforçam o sistema patriarcal e colonial presente na sociedade.

Tanto no período das observações, quanto no das oficinas e das entrevistas, fomos percebendo o que significa não seguir os padrões heteronormativos naquele contexto.

Em uma conversa com uma jovem, a mesma relatou:

Aqui é tranquilo, e eu fico muito na minha, tem esses gays, as lésbicas [mostrou os meninos que estavam passando no pátio da escola], eu não tenho preconceito, mas não gosto de ficar perto, se eles estiverem em um lugar, e eu puder não ficar perto, eu acho melhor, acho que é também por conta da minha religião, que eu sou evangélica. (Diário de campo, 09/02/2017)

Em uma terça-feira, à tarde, conversando com dois jovens no pátio da escola, a jovem disse: "Aqui as pessoas não aceitam a diversidade" (olhou para o amigo e disse: Posso contar? Ele fez sinal de sim). "Porque ele é homossexual e os alunos não aceitam". O jovem disse:

Eles ficam dizendo coisa comigo, me chamam de bichona, me ameaçam, dizem que vão me pegar, eu já contei tudo a minha mãe. Ela disse que eu não desse atenção, que não entrasse em confusão, mas eu tô me sentido apreensivo, com medo de vir pra'qui e acontecer alguma coisa". (Diário de campo, 08/02/2017)

Pelos trechos do diário de campo acima, podemos perceber o quanto as situações de preconceito e discriminação em relação aos homossexuais e às lésbicas se fazem presentes na escola em que estávamos realizando a pesquisa. Em um estudo realizado por Pocahy e Dornelles (2019, p.43) sobre sexualidade no contexto escolar, foram relatados "casos de homofobia que ocorrem rotineiramente, sendo a violência verbal a mais comum. A injúria surge assim como ato de humilhação e de demarcação de um sujeito possível na escola, mas também o sujeito a ser corrigido".

A frase que a jovem proferiu no relato acima "eu não tenho preconceito, mas não gosto de ficar perto" dos gays e das lésbicas, foi algo afirmado no presente estudo por outros/as jovens em diferentes momentos, o que nos diz o quanto as situações de discriminação são sutis e a ideia da homossexualidade como algo contagioso. Uma das alunas contou que a mãe foi chamada na escola porque ela estava andando com outras meninas que são lésbicas, e as meninas foram suspensas, pois a gestão da escola não aceita casais homossexuais na instituição. A mãe quando foi à escola disse: "Eu não tenho preconceito, só não quero minha filha com elas".

Observamos também, acima, o quanto as situações de discriminação em relação à orientação sexual são violentas. As alunas foram suspensas, ficaram impossibilitadas de assistir aulas, porque uma dessas fez uma comemoração de namoro para a outra na escola e a gestão não aceita. E o relato do jovem acima, que afirmou estar com medo de ir à escola por não saber o que poderia acontecer e por não se sentir bem em um espaço que deveria ser acolhedor e construtivo. No estudo realizado por Albuquerque e Williams (2015), foi visto que os/as jovens vítimas da homofobia tendiam a se isolar, a desistir dos estudos, a terem problemas com a autoestima e a saúde mental. Na oficina sobre sexualidade uma jovem relatou:

O pessoal daqui é muito oportunista. Tem dois tipos de homossexual aqui, o tipo que o pessoal se dá bem, e o tipo que o pessoal não se dá, porque o que se dar bem é porque esse favorece, que dá alguma coisa, da status, aí a pessoa pode ser negra mas se ela oferecer alguma coisa, eu falo com ela, sou amiga dela, a mesma coisa acontece com o homossexual, se for um coitado que não sabe se defender nem nada, eu vou zoar, até tirar o couro, agora se tiver status para me oferecer, se tiver até um refrigerante na fila do almoço eu vou ser amigo dele, aí não vou destratar ele, se ele tiver alguma coisa para me oferecer. (Valentina, 3ª oficina realizada na área urbana)

O que se percebe é que, nesse contexto, as discriminações estão atreladas também a outras questões que poderíamos elencar, por exemplo, a classe social, ser homossexual, mas poder oferecer algo ao grupo como a jovem relatou, faz diferença. E aqui estamos entendendo classe social (Barata, 2009) não apenas como renda financeira, mas como posição social, condições de vida, acesso a bens e serviços, a práticas de lazer, as relações sociais (Santos, 2010) e aos efeitos positivos dessas relações nos processos de subjetivação. Diante dos vários relatos de LGBTfobia e de alguns e algumas jovens mostrarem que não concordavam com isso, questionamos o que poderia ser feito em relação a essa situação e uma jovem relatou:

Porque os professores que a gente imaginava ser cabeça aberta estão fazendo isso, a direção, que era pra ser o exemplo, tá sendo pior do mesmo jeito, então fica difícil você querer combater uma coisa se as autoridades, que querendo ou não são maiores, têm preconceito. (Agatha, 3ª oficina realizada na área urbana)

Mais uma vez, a escola e os/as profissionais aparecem em uma posição de quem reforça as situações de preconceito e discriminação. Abramovay, Cunha e Calaf (2010) destacam que a discriminação por a pessoa ser ou parecer homossexual corresponde a 63,1% das já observadas pelos/as alunos/as em escola, o que é um número alarmante que revela o nível de intolerância com as práticas sexuais que não seguem o padrão heteronormativo. Em um estudo realizado por Pocahy e Dornelles (2019), foi visto que o discurso dos/as professores/as se aproxima dos princípios religiosos da caridade e do acolhimento, porém não visa uma aceitação integral da pessoa (com sua sexualidade singular).

A escola é um ambiente inserido em um contexto maior e não só reproduz, mas também produz arranjos capazes de favorecer e fortalecer o preconceito e a discriminação frente às pessoas que estabeleçam uma relação homoafetiva ou apresentem características comumente associadas ao outro sexo. É importante lembrarmos o papel da responsabilização que a escola deve ter como instituição social de regime democrático. É preciso construir ações no sentido de romper com esses tipos de violência. Podemos ver abaixo uma situação narrada por um jovem sobre o preconceito existente na sua turma com um homossexual:

uma pessoa que é homossexual na minha turma queria entrar no grupo pra fazer dupla com as pessoas, todo mundo estava fazendo e a professora mandou fazer duplas, e ninguém quis ficar com ele, pela orientação sexual, e aí essa professora pegou e falou, mas será que a culpa não é sua, aí eu peguei: ô professora porque a culpa é dele? E ela: Porque ele é assim muito alegre. Mas isso aí é a condição dele, o problema tá nas pessoas que não aceitam ele, as pessoas que têm que aceitar como ele é. Comecei a falar assim, mas aí esse acontecimento teve preconceito dos alunos que não quiseram fazer dupla com ele, e teve o preconceito da professora que achava normal, por ele ser alegre, as pessoas não querer fazer dupla com ele. Então acho que isso acontece muito na escola. (Benjamim, 1ª oficina realizada na área urbana)

Comumente, ocorre que, nesse processo de discriminação, as vítimas são consideradas "culpadas" pela agressão, por ultrapassarem as fronteiras, por assumirem expressões de gênero e sexualidade diferentes dos padrões normativos. No relato acima, a professora não tomou os processos de discriminação como objeto de problematização, contribuindo para naturalização da situação ocorrida. A atitude da professora sugere que a heterossexualidade é a única forma de vivência sexual possível.

Importante ressaltarmos que na formação de muitos/as professores/as a temática da diversidade sexual não foi algo presente, e que muitas instituições não contribuem para uma formação continuada, com isso práticas colonizadoras são reproduzidas e reforçadas, ocasionando efeitos negativos na vida dos/as discentes ao controlar os corpos, e as vivências de suas sexualidades de forma saudável e segura, uma vez que a postura e as práticas de vários/as docentes são preconceituosas e discriminatórias. Sobre essa questão, Junqueira (2009) lembra que os/as profissionais da educação, não contam com suficientes diretrizes e instrumentos para lidar com os desafios relacionados aos direitos sexuais e à diversidade sexual.

O debate da homofobia como elemento higienizador de uma sociedade na qual a heteronormatividade é condição obrigatória de normalidade, sobretudo quando a diferença é princípio produtor da identidade e não o contrário, é algo que precisa ser discutido nos diferentes contextos . "A identidade não é aquilo que somos, mas somos em função das multiplicidades do ser " (Silva & D'Addio, 2012, p. 221-222).

Segundo Louro (2007), na escola os sujeitos que fogem à norma sexo/gênero/sexualidade e destoam da maioria social, são colocados à margem. No âmbito escolar, essa exclusão é refletida na elaboração do projeto curricular, no qual a atenção é voltada para os que são vistos como "normais". Ainda sobre esse contexto, Junqueira destaca ser esse um ambiente que se configura como um lugar de opressão, discriminação e preconceitos, no qual e em torno do qual existe um preocupante quadro de violência a que estão submetidos milhões de jovens e adultos LGBT – muitos/as dos/as quais vivem, de maneiras distintas, situações delicadas e vulnerabilizadoras de internalização da homofobia, negação, autoculpabilização, autoaversão. E isso se faz com a participação ou a omissão da família, da comunidade escolar, da sociedade e do Estado (Junqueira, 2009).

Na escola, bem como em outros contextos, a homossexualidade é encarada como "contagiosa", o que promove, consequentemente, a exclusão dessas pessoas, uma vez que a aproximação pode ser compreendida como uma identificação a tal identidade, o que vem a reforçar a marginalização desse grupo (Louro, 2007).

Os discursos sobre homossexualidade ligados à religião também surgiram durante as conversas no período da observação, a exemplo dos relatos abaixo, em conversa com algumas jovens: eu estava sentada próximo ao refeitório, chegaram três jovens e ficaram conversando comigo. De onde estávamos sentadas, dava para ver um casal hétero que trocava carícias. Uma das jovens ao ver o casal, comentou: "aqui na escola eu acho feio o povo fica se agarrando por aí, eu já vi duas lésbicas se beijando no corredor". E a outra: "Eu acho que era para deixar só os héteros, porque Deus fez o homem e a mulher, não foi dois homens, nem duas mulheres. A outra discordou e disse: "Não seria certo, ou deixa todo mundo ou não deixa ninguém". (Diário de campo, 10/02/2017).

Esse relato acima lembra também a pesquisa realizada por Junqueira (2009), em que foi questionado aos participantes sobre a concordância de que casais gays e lésbicas façam o que desejarem em suas casas, 75% concordaram. Quando questionados quanto a casais de gays ou de lésbicas andarem abraçados ou se beijarem em público, 64% declararam discordarem totalmente. Esses números dizem o quanto existe uma intolerância de gestos homoeróticos em público sob a égide de que esses comprometam a ordem heterossexual. Vimos ainda, na pesquisa realizada por Toneli (2006), que mais de um informante citou a influência religiosa na não aceitação da homossexualidade, como na seguinte afirmação:

Não, não têm direito. Se Deus fez o homem e a mulher é porque o homem é pra mulher e a mulher pro homem. Não tem essa de você e ela. Só porque inventaram o veado, veado é um animal. (p. 34)

Sobre essa questão do uso do discurso religioso para reproduzir e reforçar o preconceito, Prado e Machado (2008) ressaltam que: no âmbito da sexualidade, o preconceito social produziu a invisibilidade de certas identidades sexuadas, garantindo a subalternidade de alguns direitos sociais e, por sua vez, legitimando práticas de inferiorizações sociais, como a homofobia. O preconceito, neste caso, possui um funcionamento que se utiliza, muitas vezes, de atribuições sociais negativas advindas da moral, da religião ou mesmo das ciências, para produzir o que aqui denominamos de hierarquia sexual, a qual é embasada em um conjunto de valores e práticas sociais que constituem a heteronormatividade como um campo normativo e regulador das relações humanas.

Para fazer essa discussão sobre preconceito como produtor de práticas de subalternidade e inferiorizações sociais, os autores mencionados acima fazem uso das ideias de Mouffe (1992) para diferenciar as referidas práticas. As consideradas de subordinação seriam uma relação de opressão ainda não politizada, ligadas à hierarquia, não reconhecida pelos atores em reciprocidade, como uma relação de injustiça e inferiorização social. As práticas de inferiorização estariam ligadas à opressão, no sentido de impedir que as relações subordinadas se transformem em política. E é neste jogo, entre hierarquizações e inferiorizações, que mecanismos importantes como o preconceito social atuam.

Observamos também que as situações de preconceito e discriminação devido à orientação sexual são maiores quando as relações homoafetivas ocorrem entre mulheres. Os xingamentos e a forma pejorativa como alguns e algumas jovens fizeram referência a casais de lésbicas revelaram que há menor tolerância para essas relações. Isso nos lembra quando as mulheres negras chamaram atenção e fizeram críticas ao feminismo por não contemplar as necessidades de todas as mulheres, mostrando as hierarquias existentes na relação entre mulheres devido à raça e classe social distintas, e aqui vê-se também a orientação sexual. Sobre isso Mayorga, Coura, Miralles e Cunha (2013, p. 475) fazem referência ao pensamento de Monique Wittig, feminista que enfatizou em seus estudos que "as lésbicas não podem ser consideradas mulheres, pois se recusam a fazer parte da relação de escravidão que constitui a relação heterossexual e as categorias sexuais". Isso faz pensarmos mais uma vez o quanto à categoria gênero considerada de modo isolado não desconstrói as desigualdades de classe e orientação sexual.

Percepções dos/as Jovens sobre Vivências Relacionadas à Sexualidade

Após os/as jovens terem abordado várias situações de preconceito e violências devido à orientação sexual diferente da heteronormativa no contexto escolar, questionamos o que eles pensavam sobre isso, porque existe na sociedade, eles/as relataram:

Apolo: O machismo, a criação das pessoas que vem de casa com ignorância, porque eu mesmo fui criado ouvindo tu é homem e mulher é mulher, quero nada aqui não.

Brenda: Eu também fui criada assim, só que...

Apolo: Aí a gente leva pra vida toda né?

Levi: Eu também fui criado assim homem é homem e mulher é mulher, mas eu não sou.

Brenda: Você não quis.

Levi: Eu não quis não, eu não era.

(3ª oficina realizada na área urbana).

Interessante observarmos, nesse diálogo, a ideia de homossexualidade colocada pela jovem como algo que "não se quer" seguir o padrão homem, mulher, heteronormativo. E um dos jovens que é homossexual, no momento que ela fala, já revida: "Eu não quis não, eu não era". Isso nos remete à visão sobre homossexualidade por muitos/as na sociedade, que é algo que se escolhe, que têm relações homoafetivas porque é "safadeza", é "doença", entre outras formas preconceituosas de perceber uma orientação sexual diferente do que a cultura sexista e patriarcal construiu. Com essa fala do jovem na oficina, pudemos discutir sobre essas questões, os padrões construídos socialmente, os preconceitos e violências em relação à orientação sexual.

O posicionamento de muitos/as jovens em relação à homossexualidade nos chamou atenção, pois os números sobre as mortes de pessoas LGBTs no Brasil são alarmantes. Quando observamos o quanto os/as jovens participantes do presente estudo vivem em contextos homofóbicos e olhamos para os dados, vemos o quanto é preciso abordar esse tema. Em 2017, 445 LGBTs (lésbicas, gays, bissexuais e transexuais) morreram no Brasil, (incluindo três mortos no exterior) vítimas da homotransfobia: 387 assassinatos e 58 suicídios. Nos 38 anos em que o Grupo Gay da Bahia (GGB) tem coletado e divulgado tais estatísticas, o ano de 2017 foi o que houve o maior número de casos e um aumento de 30% em relação a 2016, quando registraram-se 343 mortes (Mott, Michels & Paulinho, 2017).

Ainda de acordo com o relatório do Grupo Gay da Bahia (GGB), foi visto que, a cada 19 horas, um LGBT é barbaramente assassinado ou se suicida vítima da "LGBTfobia", o que faz o Brasil estar na 1ª posição mundial de crimes contra as minorias sexuais. Segundo agências internacionais de direitos humanos, matam-se muitíssimo mais homossexuais aqui do que nos 13 países do Oriente e África onde há pena de morte contra os LGBTs. E as mortes crescem assustadoramente: de 130 homicídios em 2000, saltou para 260 em 2010 e 445 mortes em 2017 (Mott et al., 2017).

Percebemos também o quanto os direitos sexuais e reprodutivos não são garantidos aos/as jovens da periferia. As estudantes narraram várias situações que dificultam as mesmas irem, por exemplo, a Unidade de Saúde das localidades que moram para fazer uma consulta com um/a ginecologista, buscar preservativo e/ou tirar dúvidas sobre questões acerca da sexualidade. Os Direitos Sexuais e Reprodutivos são Direitos Humanos reconhecidos em leis nacionais e documentos internacionais. Os Direitos Reprodutivos são os direitos das pessoas de decidirem, de forma livre e responsável, se querem ou não ter filhos, quantos filhos desejam ter e em que momento de suas vidas. Os Direitos Sexuais são os direitos de viver e expressar livremente a sexualidade sem violência, discriminações, imposições e com respeito pleno pelo corpo do/a parceiro/a (Ministério da Saúde, 2009).

A seguir podemos observar alguns relatos sobre a dificuldade para buscar preservativo na Unidade de Saúde – US:

Amora: É porque no posto né, tem aquelas velhas curiosas, vizinhas de vovó, que ficam perguntando: minha filha namora, tem relacionamento sério? Aí se ver a pessoa no posto, vai encher a rua [todos vão ficar sabendo].

Aiane: E vai perguntar pra que você quer camisinha, aí eu vou dizer eu vou encher e ficar brincando em casa.... risos... muitos risos...

Amora: Vocês lembram do trabalho? A gente foi buscar camisinha no posto para fazer um trabalho, mas o povo olhava com as cara para gente.

Roseane: Quem olhava com essas caras?

Chiara: As funcionárias, balconistas, já disseram pra que vocês querem a camisinha? Eu já disse que é um trabalho.

Amora: E geralmente as que ficam no balcão são conhecidas, elas perguntam e além de perguntar, elas vão comentar com sua mãe.

Valentina: Têm muitas mulheres que engravida por isso, por receio, e por vergonha de ir no posto.

(3ª oficina realizada na área urbana).

É possível observarmos nos discursos acima, como o modo que os/as profissionais recebem os/as jovens na Unidade de saúde é um fator que dificulta o acesso dos/as mesmos/as às informações, a buscarem preservativo, a cuidarem-se. Essa questão da fofoca nas Unidades de Saúde é algo que em outras pesquisas realizadas em diferentes localidades também foi encontrado. Em uma pesquisa realizada sobre Direitos sexuais e Direitos reprodutivos com homens e mulheres jovens da região de Suape/PE, foi visto que a fofoca na região funcionava como um controle das vivências sexuais dos/as jovens, por receio de ficarem mal faladas, principalmente, as jovens não frequentavam a Unidade de Saúde para buscar preservativo ou para consultas com o/a ginecologista, as mesmas faziam uso de algumas estratégias, pediam, por exemplo, para uma tia ou uma amiga mais velha ir buscar o preservativo ou iam como acompanhante das mesmas, mas no momento da consulta eram as pacientes (Menezes et al., 2016). Mas se algumas jovens conseguiram algumas estratégias para lidar com essa situação, outras não tiveram acesso à Unidade, e isso é um fator que dificulta as vivências sexuais de maneira segura e saudável.

Vimos, nos discursos dos/as jovens, que, muitas vezes, as mulheres são culpabilizadas por terem engravidado, sendo responsabilizadas pela prevenção. Pensar em uma prevenção compartilhada, negociar o uso do preservativo com o companheiro é uma realidade que se mostra difícil para essas jovens:

Apolo: A responsabilidade não é só da mulher, a mulher, às vezes, tem pouca mentalidade.

Analu: Mas a culpada é mais a mulher, eu acho, porque às vezes a mulher sabe que o homem não quer nada com ela, e quando ele quer fazer sexo com ela, ela vai lá e ainda não se previne.

(3ª oficina realizada na área urbana).

Embora o jovem afirme que a responsabilidade não é só da mulher faz isso porque a coloca em uma posição inferior ao homem. Esses relatos nos dizem o quanto as desigualdades de gênero interseccionadas com geração e classe interferem na vida sexual, sobretudo das mulheres jovens. O direito das mulheres ao controle de sua sexualidade e sua capacidade reprodutiva é fundamental para a cidadania igual de mulheres e homens. Sua negação retira das mulheres o domínio sobre seu corpo, restringindo também seu direito à privacidade na decisão sobre questões de forte relevância ética e moral para os indivíduos (Biroli, 2014). As formas de controle sobre as mulheres são, quase sempre, determinadas por agendas morais de grupos religiosos ou tradicionalistas, que tendem a operar contrariamente a relações de gênero igualitárias e à autonomia das mulheres.

Em uma pesquisa realizada por Bordignon, Liberali e Bordignon (2017), foi visto que um dos fatores que dificulta o uso do preservativo nas relações sexuais são as questões desiguais de gênero, que impedem o diálogo e a negociação na prevenção durante as práticas sexuais. Viram também que a confiança no parceiro/a produz uma redução gradual do uso do preservativo, principalmente quando aumenta o tempo do relacionamento, por serem considerados/as "parceiros/as fixos/as", não acreditam na possibilidade de casos fora do relacionamento e, dessa forma, não pensam em Infecções Sexualmente Transmissíveis - ISTs. Outro motivo frequente é o desconhecimento acerca dos métodos de barreira e demais temas relacionados à sexualidade. Nesse sentido, foi percebida a relação entre grau de escolaridade/nível de informações e comportamentos de risco. Alguns jovens desconhecem a transmissão das ISTs e dos métodos de prevenção contra uma gravidez.

Os autores mencionados acima encontraram também, na revisão de literatura realizada, que uma justificativa para a não utilização do preservativo é a não disponibilidade do mesmo no momento dos encontros, e a dificuldade de conseguir pegar nas Unidades de Saúde devido à falta de informações (alguns não sabem dessa possibilidade) e aos julgamentos sociais, a exemplo das fofocas, principalmente em relação às mulheres, que passam a não ser vistas como "direitas", e que não "servem para casar" por já terem iniciado as práticas sexuais. Observamos também que não são só os/as profissionais das Unidades de saúde que atendem os/as jovens com práticas preconceituosas e discriminatórias, como podemos ver a seguir:

Amora: Eu fui comprar um teste de gravidez para minha mãe, aí eu disse na farmácia é para minha mãe, aí a mulher ficou fazendo careta, sério? Invente uma desculpa melhor. Na hora eu fiquei assim... nossa!

Aiane: Minha ginecologista disse que a virgindade é o diamante da mulher. Mainha escutou ela falar, pronto, fica repetindo isso, você tem que presentear só aquela pessoa que você for casar.

Chiara: eu fui comprar teste de gravidez na farmácia para minha amiga, aí quando eu cheguei na farmácia tinha uma pessoa conhecida, aí disse, mas Chiara, aí eu disse: mais não é para mim é para minha amiga, e apontei pra ela, ela saiu correndo.

Valentina: mas Chiara! Por que isso? Tu não pode não é , tu não tem direito não ? Tem que ser o que, reprimida ?

(3ª oficina realizada na área urbana).

Nos discursos acima, podemos observar como a sexualidade é considerada, sobretudo para as mulheres jovens. As práticas sexuais são vistas como algo errado, em que as jovens são vigiadas e punidas caso tenham vivências dessa ordem antes do casamento. Chama atenção também o discurso de Valentina que não concorda com as reações que as pessoas fazem, sobretudo, adultos/as, diante do exercício da sexualidade por jovens, ela questiona a colega: "Tu não pode não é, tu não tem direito não?" A colega questionada silencia, mas percebemos nessa pergunta que foi o modo encontrado para dizer que sim todos/as têm direito de terem práticas sexuais e é preciso se impor, afirmar esse direito. Inclusive, porque se fosse um homem jovem a reação poderia ser diferente, já que se espera, até como meio de provar a masculinidade que os jovens iniciem suas práticas sexuais, independente de casamento e idade.

Ainda, podemos observar a postura da ginecologista que reproduz a cultura machista e conservadora já tão presente na sociedade. Existe uma íntima relação entre a sociedade e as relações de gênero, que pode comportar consequências drásticas a qualquer pessoa que ouse descumprir preceitos socialmente impostos sobre o que significa ser homem e ser mulher. Sobre essa questão das desigualdades entre homens e mulheres, uma jovem também se posicionou na entrevista:

Amora: porque se eu quero ficar, eu vou ficar, é de quem a vida? Minha. Os homens ficam com três mulheres na festa e ninguém diz nada, e a mulher não pode ficar com um menino que já tem quem fale mal. Eu fico, se eu tiver vontade, e não quero saber se falam mal

(Jovem, 17 anos)

Algumas jovens percebem que os discursos e práticas na sociedade não são igualitários e isso precisa ser mudado, algumas têm afirmado esse direito de exercerem seus desejos, sua sexualidade como um meio de resistir ao sistema de opressão imposto pelo sistema sexo/gênero/sexualidade. Essa discussão esteve presente no discurso de outras jovens também:

Brenda: antigamente a mulher tinha que casar virgem, querendo ou não a mulher fazia o que o homem queria e hoje em dia não, a mulher não pode deixar ser mandada, ela tem que ocupar o lugar dela, e não ser mandada por ninguém, você é independente. Antigamente era mais preso, não podia trabalhar, era só em casa, filho, comida, daí surgiu à ideia de que mulher foi feita para cozinhar, mas hoje em dia a gente tem mostrado que não é isso .

Analu: tem mulher que é arquiteta, que é policial, tem engenheira, tem vários exemplos.

(3ª oficina realizada na área urbana)

Os discursos acima mostram a polifonia existente na escola, pois se alguns/mas jovens acham errado algumas práticas e alguns comportamentos realizados por mulheres, outras jovens ressaltam que a sociedade tem mudado, e se colocam também nesse lugar de operar essa mudança, "hoje em dia a gente tem mostrado que não é isso".

 

Considerações finais

No presente estudo percebemos que no que se refere às situações de homofobia, esse foi um assunto muito falado por quem não concorda com a existência de relações homoafetivas e várias situações foram relatadas. Observamos que a escola é um contexto em que várias situações de discriminação e violências devido à orientação sexual estão presentes, e que há um silenciamento por parte dos/as docentes diante das situações. Vimos que a ação que eles/as têm realizado em muitas situações é a proibição no contexto escolar de relações homoafetivas, inclusive com punições, suspensão dos/as estudantes, convocação dos pais a escola, mas não há uma discussão sobre sexualidade, diversidade sexual, a importância de respeitar quem não segue os padrões heteronormativos. Ainda, no que tange aos/as profissionais, quando estes/as se deparam com as cenas de agressão contra homossexuais, de desistência de alunos/as porque eram vítimas de agressões em virtude da orientação sexual, bem como da indiferença da gestão da escola frente a essa situação, é frequente a banalização do fato por parte dos/as professores/as.

Observamos que os/as jovens não têm um espaço para falar sobre sexualidade na escola, e não têm os direitos sexuais e reprodutivos garantidos. Enfrentam dificuldades para ir à Unidade de Saúde realizar uma consulta com um/a ginecologista, pegar anticoncepcional, preservativo, tirar dúvidas, devido ao receio principalmente das jovens, de a família ficar sabendo de suas vidas sexuais ou de ficarem mal faladas. Também a culpabilização da mulher nos casos em que ocorre uma gravidez não planejada, o que nos diz que a cultura sexista, patriarcal se faz presente de forma bastante arraigada na periferia, assim como os modos como esta se apresenta, no sentido da sexualidade, são bem semelhantes.

Com as observações e os discursos proferidos pelos/as jovens percebemos que a instituição escolar pesquisada reproduz desigualdades de gênero e violências de diversas ordens à vida dos sujeitos, violências essas cometidas pelos/as profissionais e pelos/as estudantes, a exemplo da já referida suspensão de estudantes lésbicas, violência de um jovem contra uma estudante por essa ser lésbica, suicídio de um estudante fora do contexto escolar, mas que sofria bullying na escola por ser gay, entre outras. O único momento que os/as estudantes afirmaram que discutiram algo sobre sexualidade foi nas aulas de Biologia, o que é comum acontecer em várias escolas, onde a discussão segue a lógica biologizante de falar sobre o corpo e os métodos de proteção contra uma gravidez indesejada e/ou uma infecção sexualmente transmissível – IST, mas outras questões não são abordadas, ou são de forma muito superficial.

Destacamos a importância de que nas instituições escolares tenha um espaço para serem realizadas discussões com os/as estudantes, que as mesmas cumpram com seu papel de responsabilização social perante a comunidade escolar e a sociedade como um todo, ao não ser conivente com situações que violem os direitos das pessoas e que não contribuam para reforçar o ciclo das desigualdades de gênero e opressões que já são tão presentes na sociedade.

O trabalho sobre diversidade sexual na escola é imprescindível, haja vista a forte

existência da cultura LGBTfóbica e machista nos discursos e práticas entre estudantes e docentes, sobretudo no momento atual do país em que grupos conservadores têm tentado esvaziar a discussão, retirando a relevância dessa ser trabalhada na escola, alegando que a mesma não é lugar para discussão sobre questões referentes à sexualidade e delegando a responsabilidade às famílias, quando se sabe que a escola não é uma Instituição à parte da sociedade, mas que pode reproduzir práticas que contribuem para exclusão, violências, adoecimentos e problemas de diversas ordens. Com isso, não queremos submeter a escola ao crivo da responsabilização individual pelos discursos heteronormativos que circundam seu cotidiano e os efeitos desses discursos em seu projeto político-pedagógico, e na vida dos/as dicentes, mas visibilizar problemáticas presentes no contexto escolar que são de responsabilidade dessa e de todos/as na sociedade.

 

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Endereço para correspondência:
Av. Gregório Ferraz Nogueira, s/n
Serra Talhada - PE
Telefone: (87) 3929-3001
Email: roseaneamorims@gmail.com

Recebido em 27.mar.20
Revisado em 20.out.20
Aceito em 11.mar.21

 

 

Roseane Amorim da Silva, Doutora em Psicologia pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), é Professora Adjunta na Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE), Unidade Acadêmica de Serra Talhada (UAST).
Jaileila de Araújo Menezes, Doutora em Psicologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), é Professora Associada da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Email: jaileila.araujo@gmail.com

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