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Estudos de Psicologia (Natal)

versión impresa ISSN 1413-294Xversión On-line ISSN 1678-4669

Estud. psicol. (Natal) vol.26 no.2 Natal abr./jun. 2021

http://dx.doi.org/10.22491/1678-4669.20210017 

10.22491/1678-4669.20210017

TEMAS EM POLÍTICAS SOCIAIS: ASSISTÊNCIA SOCIAL E SISTEMA DE GARANTIA DE DIREITOS

 

O Iluminismo tardio no cemitério dos vivos: o manicômio judiciário na fronteira da reforma psiquiátrica brasileira

 

The late enlightenment in the cemetery of the living: The judicial asylum on the border of the Brazilian psychiatric reform

 

El Iluminismo tardío en el cementerio de los vivos: el manicomio judicial en la frontera de la reforma psiquiátrica brasileña

 

 

Waldeci Gomes Confessor JuniorI; Magda DimensteinII

ITribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Norte
IIUniversidade Federal do Rio Grande do Norte

 

 


RESUMO

O artigo objetiva analisar os saberes e práticas dos operadores do direito e da psiquiatria em relação à Unidade Psiquiátrica de Custódia e Tratamento e seu lugar no contexto da Reforma Psiquiátrica brasileira. Analisa os argumentos que fundamentam as medidas de internação do ponto de vista jurídico e psiquiátrico e as soluções viáveis para o problema do manicômio judiciário frente ao imperativo da desinstitucionalização trazido pelo novo paradigma de Atenção Psicossocial. A investigação, pautando-se nos postulados da Análise Institucional, detectou como esses saberes e práticas atravessam o espaço institucional, moldando-o como um conjunto molar enrijecido e praticamente indiferenciado de outras estruturas prisionais comuns, diante da falência completa de um projeto terapêutico direcionado ao louco infrator.

Palavras-chave: periculosidade; manicômio judiciário; reforma psiquiátrica; internação compulsória.


ABSTRACT

The article's objective is to analyze the knowledge and practice of operators of laws and psychiatry in relation of Custody and Treatment Psychiatric Unit (UPCT in Brazilian Portuguese) and your place in the context of psychiatric Brazilian reform. It analyses the arguments that base the internment measures from the judiciary and psychiatric perspective, and the possible solutions to the judiciary asylum towards the mandatory of uninstitucionalization obliged from the new social attention paradigm. The research, based on Insitutional analysis postulates, detected how this knowledge and practice pass through the institutional space, shaping it like a stiffened molar set and practically non different of the regular prison structures, faced with the total failure of the therapeutics projects directed to the insane transgressor.

Keywords: dangerousness; judiciary asylum; psychiatric reform; compulsory internment.


RESUMEN

El artículo objetiva analizar los saberes y las prácticas de los profesionales del derecho y de la psiquiatría en relación con la Unidad Psiquiátrica de Custodia y Tratamiento y su lugar en el contexto de la Reforma Psiquiátrica brasileña. Analiza los argumentos que fundamentan las medidas de internación del punto de vista jurídico y psiquiátrico y las soluciones viables para el problema del manicomio judicial frente al imperativo de la desinstitucionalización transmitido por el nuevo paradigma de Atención Psicosocial. La investigación, pautándose en los postulados del Análisis Institucional, detectó como esos saberes y prácticas cruzan el espacio institucional, moldeándolo como un conjunto molar endurecido y prácticamente indiferenciado de otras estructuras penitenciarias comunes, delante de la quiebra completa de un proyecto terapéutico direccionado al loco infractor.

Palabras-clave: peligrosidad; manicomio judicial; reforma psiquiátrica; internación compulsiva.


 

 

Os manicômios judiciários, estabelecimentos destinados à internação de portadores de sofrimento mental que cometeram crimes (Oliveira & Damas, 2016), constituem, em pleno século XXI, as portas de entrada para o asilo. Concebidos como espaços destinados a abrigar pessoas acometidas de transtornos mentais em conflito com a lei, representam os últimos redutos de asilamento que tangenciam o processo de Reforma Psiquiátrica brasileira.

Essas instituições constituem a síntese do encontro entre o poder médico e o poder judiciário, configurando-se como o lugar no qual prisões e manicômios se articulam para instituir o locus próprio para a segregação daquilo que representa a radicalidade da diferença, simbolizado pelo louco infrator, promovendo uma "demarcação dicotômica entre doença e responsabilidade, entre causalidade patológica e liberdade do sujeito jurídico, entre terapêutica e punição, entre medicina e penalidade, entre hospital e prisão" (Foucault, 2002a, p. 39). Os manicômios judiciários são, portanto, dispositivos que se configuram atualmente como verdadeiros desafios éticos diante das inovações introduzidas pela Lei nº 10.216, de 06 de abril de 2001, que estabeleceu um novo paradigma de atenção às demandas no campo da saúde mental. No Brasil, esses estabelecimentos sempre tiveram função eminentemente asilar, uma vez que idealizados para que neles se cumpra a medida de segurança de internação dos agentes em sofrimento mental e colhidos pelo aparato jurídico-penal. Desta maneira, representam ambientes nos quais ainda não se veem presentes os princípios iluministas que inspiraram o século XVIII, configurando-se como verdadeiros cemitérios dos vivos, na feliz definição de Lima Barreto (1956/1993) acerca da instituição psiquiátrica.

Nos últimos anos, os manicômios judiciários têm despertado maior interesse da comunidade científica, sobretudo após a realização de inspeções pelo Conselho Federal de Psicologia, Ordem dos Advogados do Brasil e Associação Nacional do Ministério Público em Defesa da Saúde, entre os meses de abril e junho de 2015, nas quais se descortinou, em todo o país, uma realidade bastante preocupante de afronta aos direitos e garantias fundamentais dos internos, à semelhança do que se verifica em outros estabelecimentos componentes do sistema de execução penal brasileiro.

Ao abordar o problema do aumento acelerado das prisões ocorrido na virada do século XX, Abramovay (2010) afirma que no curso da evolução de um modelo liberal de Estado, o Direito Penal foi frequentemente convocado a ocupar o lugar de garantidor da estabilidade social e principal instrumento de política criminal. O vertiginoso processo de inflação legislativa em matéria penal verificada no Brasil, especialmente a partir da promulgação da Constituição da República de 1988, demonstra claramente esse fenômeno. Parece bastante evidente que essas ações são parte da formação de uma cultura autoritária que naturalmente repercute na forma com que o Estado aplica o Direito. Contudo, é de se notar que, em meio ao cenário crítico em que se encontra o sistema prisional brasileiro, noticiada cotidianamente pelos meios de comunicação de massa, a discussão sobre os rumos do sistema penitenciário nacional parece desconsiderar o problema dos manicômios judiciários, atualmente denominados de hospitais de custódia e tratamento psiquiátrico, a ponto de não se verificar a implementação de ações efetivas que impliquem modificação da realidade dos internos dessas instituições, o que nos sugere que a crise no sistema carcerário atual de alguma maneira acentua a invisibilidade dos internos, contribuindo para maior vulnerabilidade das pessoas inseridas nesse contexto.

Diante disso, esse artigo reflete acerca dos saberes e práticas dos operadores do direito e da psiquiatria em relação à Unidade Psiquiátrica de Custódia de uma das capitais do Nordeste brasileiro, única instituição dessa categoria no Estado, e sua posição no contexto Reforma Psiquiátrica, com ênfase na análise dos argumentos que fundamentam as medidas de internação, do ponto de vista jurídico e psiquiátrico, e nas soluções viáveis para o problema do manicômio judiciário frente ao imperativo da desinstitucionalização imposta pelo novo paradigma da Atenção Psicossocial.

 

Uma pedra no meio do caminho1: o manicômio judiciário frente ao novo estatuto social do sujeito em sofrimento mental

A partir do final da Segunda Guerra Mundial e mais acentuadamente nos anos 1960, com a publicação dos trabalhos de autores que construíram uma crítica aguda em relação ao modelo de psiquiatria centrado no manicômio, tais como Ronald Laing (1960), Michel Foucault (1961), Thomas Szasz (1974) e Franco Basaglia (1968), os contornos do atual movimento de Reforma Psiquiátrica e de Luta Antimanicomial são delineados. Nas últimas décadas do século XX, o movimento de Reforma Psiquiátrica apresenta um novo momento de crítica e controvérsia ao padrão de produção da verdade no campo da saúde mental, buscando não mais o aperfeiçoamento do sistema asilar, mas incidindo sobre os pressupostos e fundamentos da própria psiquiatria, concebida como instrumento violento de controle e normatização, que reconfigura o sofrimento mental em doença, para a qual se reserva sempre uma medicação para fazê-la cessar ou diminuir sua intensidade, embora sem compreendê-la totalmente (Rauter, 2010).

No Brasil, essa luta acontecerá concomitantemente ao movimento sanitário dos anos 1970 e estará estreitamente vinculada ao questionamento do sistema político. É, portanto, no ambiente da abertura do regime militar que surgem as primeiras manifestações no setor de saúde, "principalmente através da constituição, em 1976, do Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (CEBES) e do movimento de Renovação Médica (REME) enquanto espaços de discussão e produção do pensamento crítico na área" (Luchmann & Rodrigues, 2007, p. 402). Sua eclosão, portanto, se dá no contexto dos movimentos de restauração da normalidade democrática, constituindo um "processo histórico de formulação crítica e prática e que tem como objetivos e estratégias o questionamento e a elaboração de propostas de transformação do modelo clássico e do paradigma da psiquiatria" (Amarante, 1995, p. 87). Situado no plano de questionamento quanto ao paradigma então vigente e objetivando não ao seu ajuste, senão à sua superação, o processo de Reforma Psiquiátrica brasileira vem alcançando resultados significativos relativamente à alteração da concepção de atendimento às demandas em saúde mental, com a introdução de serviços substitutivos ao confinamento manicomial como destino inevitável. Após a edição da lei de Reforma Psiquiátrica (Lei nº 10.216, de 06 de abril de 2001), empreende-se um esforço no sentido de efetivar mudanças na política de saúde mental que signifiquem uma ruptura com as experiências consolidadas a partir lógica psiquiátrica historicamente estabelecida. O fechamento de hospitais psiquiátricos e a introdução de estratégias de cuidado a partir de serviços substitutivos e territoriais, articulados em uma Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) e direcionados pelos princípios do Sistema Único de Saúde (SUS) tornam-se os propósitos de uma nova perspectiva que considera a humanização e a integralidade nas ações em saúde mental. A partir de então, observa-se um processo de redução progressiva de leitos psiquiátricos no sistema de saúde do país, resultante das iniciativas para promoção de melhorias nas condições de tratamento das pessoas em sofrimento mental, levando ao descredenciamento de hospitais psiquiátricos por meio do Programa Nacional de Avaliação de Serviços Hospitalares (PNASH), bem como a implantação de outras estratégias de Atenção Psicossocial, como os serviços territoriais, dos quais se destacam os Centros de Atenção Psicossociais (CAPS). Em 2014, registrou-se a efetivação de 2.209 CAPS espalhados pelo país (Ministério da Saúde, 2015), apontando para a consolidação do serviço de atendimento às demandas em saúde mental alternativo à internação asilar.

A despeito dos avanços e conquistas do processo de Reforma Psiquiátrica no Brasil, e mesmo diante do conjunto de etapas a superar para aprofundamento do movimento de reorientação de Atenção Psicossocial, o manicômio judiciário permanece como a face esquecida desse esforço de contestação do modelo segregativo. Alocada numa zona de impasse entre as políticas de segurança e de saúde pública, os internos do manicômio judiciário vivenciam as misérias do nosso sistema penitenciário e a ausência de práticas efetivas de atendimento das suas demandas na Rede de Atenção Psicossocial. O manicômio judiciário, enquanto estrutura atrelada ao sistema de execução penal, permanece eminentemente fundamentada na lógica de controle e confinamento, que é a mesma que norteia tanto o sistema penal, fundamentado na prisão, como a resposta psiquiátrica tradicional, ancorada prioritariamente na hospitalização.

Essas instituições, portanto, constituem o ponto fraco do processo de efetivação do novo paradigma da Atenção Psicossocial. Embora existam experiências de superação do modelo tradicional de tratamento do louco infrator, como Programa de Atenção Integral ao Louco Infrator (PAILI), implantado pela ação conjunta do Ministério Público, entidades ligadas à saúde mental e o Estado de Goiás; o Programa de Atenção Integral ao Paciente Judiciário (PAI-PJ), executado pelo Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais; e, no nível internacional, as Residências para Execução de Medidas de Segurança (REMS), implantadas na Itália, em caráter residual e a partir de práticas de atendimento alternativas, além da oferta de abrigo nos serviços territoriais de saúde mental (Venturini, 2016), o manicômio judiciário permanece como grande desafio à consolidação do processo de Reforma Psiquiátrica no país. Atualmente, segundo dados divulgados pelo Conselho Nacional de Justiça (Ministério da Justiça, 2014), a vigência das novas diretrizes de Atenção Psicossocial está negada a 3.425 pessoas que habitam os 23 hospitais e unidades psiquiátricas de custódia em funcionamento em todo o território nacional. Recentemente, o Ministério da Saúde considerou o problema da destinação dos internos dos hospitais de custódia, ainda que superficialmente, ao versar sobre seu direcionamento prioritário aos serviços residenciais terapêuticos e a tratar da transferência de recursos federais para as ações do Sistema Único de Saúde, conforme constam das Portarias de Consolidação de números 03 e 06, de 28 de setembro de 2017.

Nessa perspectiva, o manicômio judiciário emerge, na contemporaneidade, como o ponto final no qual se aglomeram "toda a série de impasses dos discursos jurídico e psiquiátrico em sua abordagem específica do louco infrator e seu destino, destino funesto que se faz antever em um horizonte irremediavelmente perene" (Senra, 2011, p. 199). Do encontro entre o jurídico e o psiquiátrico, segundo Zimmer (2011), elabora-se um campo de forças que fabrica lógicas aparentemente afinadas com o discurso do cuidado, da proteção e da garantia de direitos, mas que, em realidade, servem a uma lógica perversa, produtora de posturas segregacionistas, harmonizado com a economia do biopoder, que deixa morrer os diferentes e, como consequência, a própria diferença, em nome da estratégia de controle sobre a vida (Foucault, 2005).

 

Método

Esta pesquisa se caracterizou como um estudo de natureza qualitativa, interessada em compreender sentidos e acontecimentos da vida, isto é, perseguir "o mundo social através das interpretações dos fenômenos, buscando as vivências, as experiências e a cotidianidade" (Romagnoli, 2009, p. 167). Teórica e metodologicamente, a investigação se fundamentou nos pressupostos da Análise Institucional, buscando construir um campo de problematização em que o manicômio judiciário emergiu como uma "dinâmica contraditória construindo-se na (e em) história, ou tempo" (Lourau, 1993, p. 11). Mais que isso, a Análise Institucional permitiu visualizar o manicômio judiciário como o instituído, atuando como um jogo de forças violento, produtor de imobilidade (Lourau, 1993). Tal perspectiva favoreceu o descortino dos mecanismos que atuam nesse espaço, com ênfase sobre a sua funcionalidade social, bem como nas possibilidades de que uma dimensão instituinte e transformadora possa ocupar esse lugar do instituído (Bravo, 2007).

Dessa forma, objetivando analisar a articulação entre duas ordens de discursos produtores de políticas que atuam na conservação da lógica manicomial, a exemplo do discurso jurídico e psiquiátrico, concebeu-se a pesquisa em três etapas. O primeiro momento foi caracterizado pelo contato com o manicômio judiciário e pela observação do ambiente hospitalar e prisional. Como ferramenta, o diário de campo foi utilizado, tanto para a documentação do cotidiano, quanto para o registro das sensações, emoções e afetos que o ambiente despertava. Contudo, essa etapa foi afetada pela eclosão da maior crise do sistema penitenciário da história do Estado, cuja repercussão foi amplamente divulgada em nível nacional pelos veículos de comunicação. Isso frustrou a execução da primeira fase na extensão originalmente planejada. As sucessivas rebeliões no interior dos estabelecimentos prisionais e a disputa entre facções pelo controle dos presídios acarretaram a completa perda da gestão penitenciária e mobilizou diversos setores vinculados à área da segurança pública, inclusive a atuação da Força Nacional, além da mobilização constante dos agentes penitenciários estaduais. Houve, assim, um retardamento da etapa de campo, que somado ao hermetismo característico da instituição, inviabilizou uma imersão mais demorada no espaço asilar. Apesar disso, foi possível coletar dados acerca da instituição, de maneira a compor um panorama atualizado da Unidade de Custódia e Tratamento, de seu funcionamento e de sua posição no contexto das políticas de segurança pública.

A segunda etapa da pesquisa envolveu o exame dos argumentos utilizados pelos operadores do Direito e da Psiquiatria para o estabelecimento da medida de internação institucional ao paciente judiciário, constantes dos autos processuais relacionados aos internos da unidade e em tramitação perante a Vara de Execuções Penais da capital. Foi a etapa mais descritiva da investigação e abrangeu a verificação das sentenças judiciais proferidas nos 38 processos de execução de medidas de internação, assim como dos primeiros laudos psiquiátricos produzidos, que concluíram pela inimputabilidade penal dos sujeitos. A análise focou nos seguintes aspectos: a) diagnóstico fixado no laudo psiquiátrico; b) descrição acerca das formas periciais utilizadas; c) indicações terapêuticas e sua adequação ao contexto da instituição. Quanto às sentenças proferidas nos processos, a atenção recaiu sobre os seguintes pontos: a) prazo mínimo de cumprimento da medida de internação, comparado com o tempo de efetiva internação; b) eventual rejeição total ou parcial do laudo psiquiátrico pela autoridade judiciária. As informações foram registradas em diário, o que possibilitou o posterior exame dos analisadores que emergiram dos discursos, examinando o quanto "significam e se referem às práticas e jogos institucionais de poder" (Bravo, 2007).

Por fim, a terceira etapa da investigação foi constituída por entrevistas semiestruturadas com sete (07) juízes criminais da capital, que aceitaram participar da investigação, bem como com a única médica psiquiatra responsável pelo atendimento aos internos da instituição. Para a execução da etapa, os participantes assinaram Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, protocolo indispensável à garantia ética da pesquisa. Concebeu-se um roteiro de entrevista, contendo 13 questões, subdivido em três eixos, destinados a: 1. investigar os critérios e argumentos que fundamentam a aplicação das medidas de internação; 2. verificar possíveis efeitos da lei de Reforma Psiquiátrica no cotidiano da atividade profissional junto aos internos da instituição; e 3. avaliar a Unidade e a indicação de possíveis soluções para eventuais problemas apontados. Todas as entrevistas foram gravadas com consentimento dos participantes e posteriormente transcritas. Esta última etapa não deixa de ser complementar à anterior, na medida em que a reflexão se direciona ao momento anterior à produção dos documentos responsáveis, em última instância, pela internação institucional.

O exame do conteúdo possibilitou identificar alguns analisadores que ensejaram a discussão, revelando dimensões institucionais ocultas, ao tempo em que tornou visível práticas institucionais com força suficiente para mantê-la distanciada de qualquer processo de mudança na lógica manicomial que lhe é inerente. A integração de dados extraídos de etapas tão distintas da investigação foi efetuada a partir da composição de um panorama acerca das forças que atravessam o espaço asilar fornecido pela verificação dos analisadores. Um analisador constitui um conceito-ferramenta "que provoca análise, quebra, separação, explicitação dos elementos de dada realidade institucional" (Rossi, & Passos, 2014) e que, portanto, comporta a função tanto de denúncia da realidade, como evidencia a emersão de uma dimensão instituinte, transformadora desta realidade.

 

Resultados e discussões

A Unidade Psiquiátrica de Custódia e Tratamento

Fundada em 1997, possui disponibilidade para custodiar 52 internos, contando atualmente com 43, todos do sexo masculino, que são acomodados em celas coletivas, aos pares ou trios. Todos registravam longos períodos de permanência, sendo que um ali se encontrava desde a fundação da unidade. Não há vagas destinadas ao público feminino. As mulheres submetidas à medida de segurança permanecem em outros estabelecimentos componentes do sistema penitenciário estadual, em isolamento. Também não há disponibilidade de vagas para internação provisória. Sete internos foram transferidos para o estabelecimento por serem acometidos de transtorno mental de maneira superveniente à execução penal. Apesar de apresentar problemas muito similares àqueles encontrados no sistema penitenciário geral, não se verificou superlotação na unidade, pois, não obstante exista uma demanda bastante razoável de internação, já que se constitui na única instituição do Estado, a internação é controlada pelo juízo das execuções penais da capital, que decide, como última instância, quem deve ingressar no estabelecimento.

A infraestrutura da Unidade Psiquiátrica é bastante precária, semelhante ao que ocorre em outros estabelecimentos prisionais componentes do sistema penitenciário estadual. As alas de internação são constituídas por dois pavilhões, sendo o primeiro com 14 celas; e o segundo, com 12. Cada cela possui duas camas de alvenaria. Em geral, as celas são escuras, úmidas e pouco higienizadas. Há ainda um pequeno espaço sem gramado ou qualquer equipamento de lazer, utilizado como área de banho de sol. É o único ambiente onde os internos podem manter algum contato interpessoal mais próximo. Registra-se uma organização e uma rotina bastante semelhante àquelas próprias das cadeias públicas e penitenciárias. Na instituição observa-se a coexistência de um grupo de servidores vinculados à secretaria estadual de segurança pública, composto por 16 agentes penitenciários, ao lado da equipe de saúde, que inclui uma médica psiquiatra, uma assistente social, uma farmacêutica, dois enfermeiros e 16 técnicos de enfermagem.

Como a instituição necessita do apoio de outros órgãos públicos, é bastante frequente atrasos na realização de perícias e na entrega dos resultados. Há grande lentidão dos serviços relacionados aos internos, inexistindo obediência à periodicidade mínima anual de realização dos exames para as pessoas internadas em cumprimento de medida de segurança. Como ocorre em outras instituições do país, não há quadros da Defensoria Pública ou qualquer outra instituição de assistência jurídica realizando o acompanhamento dos internos, o que é feito somente na vara de execuções penais, situada no Fórum central da capital.

Análise dos Processos de Execução de Medidas de Internação

Dentre os comportamentos tipificados na lei penal cometidos pelos internos, destacam-se os crimes contra a vida, os crimes contra o patrimônio, os crimes contra a dignidade sexual e os crimes contra a pessoa. Em menor número, registram-se crimes relacionados ao tráfico de drogas e porte ilegal de arma. A totalidade dos crimes contra a vida se refere ao crime de homicídio. Em relação aos crimes contra o patrimônio, a maior parte dos casos se refere ao cometimento de roubo. Há, no entanto, casos considerados menos graves, como furtos, estelionato e receptação.

Em todos os casos, o exame médico-legal que atesta a inimputabilidade do agente consistiu em uma única consulta psiquiátrica, realizada na sede do Instituto Técnico e Científico de Polícia da capital. É iniciada por uma etapa de anamnese, que se segue à coleta da versão dos fatos que ensejaram a instauração do incidente de insanidade mental. Realiza-se o exame mental, cuja conclusão estabelece o diagnóstico. Por fim, os peritos respondem aos quesitos remetidos pelo Ministério Público e pela defesa. É relevante registrar o descompasso com as prescrições legais estabelecidas na legislação processual penal, que estabelecem a prévia internação do periciando, caso esteja preso, e, em seguida, a submissão a exame, que não durará mais de 45 dias, salvo se os peritos demonstrarem a necessidade .

Verificou-se ainda que condutas de diferentes potencialidades ofensivas são sancionadas de igual forma, com a aplicação da mesma medida de segurança detentiva e, assim, a natureza do crime não exerce influência em relação ao maior ou menor tempo de permanência do interno no ambiente manicomial. Os dados nos mostram a submissão a longos períodos de internação, que superam até mesmo o limite máximo de pena atribuída a determinados crimes. Em 12 processos, os laudos contêm indicações terapêuticas, sendo que apenas três registram a sugestão do tratamento ambulatorial. Em um desses processos, a autoridade judiciária rejeitou a sugestão médica, aplicando a medida detentiva, o que é bastante revelador da crença no projeto punitivista como proposta de estabilização social, crença esta que se encontra imersa no sentimento partilhado pela maioria das pessoas de que o sistema de justiça penal é uma resposta razoável ao crime (Scheerer, 1997). No que se refere à situação clínica dos internos, é importante destacar que os diagnósticos convergem, na maioria das vezes, para esquizofrenia, e, por vezes, esses diagnósticos envolviam mais de um transtorno mental, em situação de comorbidade.

As Entrevistas

Os magistrados entrevistados apresentaram um critério predeterminado que sempre orienta a decisão de fixar a medida de segurança detentiva: o resultado do exame de sanidade mental que concluiu pela inimputabilidade penal do agente. O laudo psiquiátrico configura-se, assim, como o elemento essencial à aplicação da medida de segurança, que propicia o ingresso do louco infrator no sistema prisional. É, portanto, a peça que revela o engendramento do Direito com a Psiquiatria, desde que se expõe o contínuo perversão-perigo que o louco representa (Foucault, 2002b), compondo uma figura monstruosa que demanda a tutela estatal. Seu propósito, em realidade, não é propriamente clínico, mas jurídico, possibilitando o sancionamento da loucura e do mal-estar psíquico quando associado a uma infração da lei (Bravo, 2007). Para além de um papel meramente coadjuvante no processo, a psiquiatria efetivamente coloniza o direito para conceber uma estratégia de punição (Rauter, 2010), direcionada ao irresponsável.

Mediada pelo recurso ao ordenamento jurídico e restrita aos termos do tratamento que a lei penal confere ao problema do inimputável em conflito com a lei, a temática da periculosidade social do louco infrator emergiu em todas as entrevistas, o que evidentemente determina consequências na forma como o interno é visto durante todo o processo, confirmando sua configuração enquanto operador por excelência da internação institucional, desde que se sobrepõe à doença, negando a subjetividade do louco, negando sua identidade mediante o processo de objetivação da pessoa como objeto de saber (Amarante, 1996). Repete-se com o paciente psiquiátrico judiciário o mesmo monitoramento a partir do dispositivo da periculosidade que se realiza em relação a toda uma classe de criminosos, conforme bem assinalado por Reishoffer e Bicalho (2017).

Os discursos afinam-se às críticas direcionadas à gestão do sistema penitenciário estadual, desviando o problema do manicômio judiciário da lógica subjacente ao seu funcionamento. Com isso, a principal solução apontada pelos juízes para o problema do manicômio judiciário enquanto projeto terapêutico voltado ao louco infrator, longe de ser a sua extinção e a aplicação das diretrizes traçadas pela Lei de Reforma Psiquiátrica brasileira, com a absorção da demanda nos serviços territoriais de saúde mental, centralizou-se na ideia de reestruturação e ampliação do hospital de custódia, isto é, no estabelecimento de um novo projeto manicomial institucional capaz de absorver a demanda e ofertar o tratamento psiquiátrico hospitalar aos custodiados. O discurso médico, por sua vez, pouco se diferenciou em relação ao discurso jurídico, partilhando da mesma crença no funcionamento da instituição manicomial. Indiscutivelmente é uma visão que reforça a ideia de loucura e de criminalidade como impureza social que precisa ser extirpada, como pontua Shecaira (1997) e que, por isso, reforça a convicção de "que o trajeto percorrido neste século deixou inalterado o sentido do castigo e da recompensa como formas de sociabilidade, pretendendo ajustá-los às novas conformações acerca da produção da vida" (Passetti, 1999, p. 56).

Em outras palavras, observou-se uma posição radicalmente refratária ao processo de Reforma Psiquiátrica e, ao mesmo tempo, a defesa do funcionamento da psiquiatria clássica, que se baseia na hospitalização do sujeito em sofrimento mental. É uma visão que despreza o poder político de que o movimento de Reforma Psiquiátrica se reveste e está na base do modo como o manicômio judiciário funciona, em que seus habitantes são abandonados em tratamentos que podem se estender por tempo indeterminado (Diniz, 2013). Desse modo, os internos vivenciam a contradição de estarem submetidos à precarização das condições de saúde em um espaço que, em tese, se presta a finalidade terapêutica.

Os dados construídos no curso da investigação acerca da Unidade Psiquiátrica de Custódia e Tratamento permitem concluir que apesar da denominação que carrega, o estabelecimento pouco se diferencia de qualquer unidade prisional componente do sistema carcerário estatal. Diante disso, verifica-se a completa falência da ideia de um projeto terapêutico direcionado ao louco infrator, articulado à Rede de Atenção Psicossocial, que poderia favorecer a integração da pessoa à sua família e à sua comunidade.

A exemplo do que se verifica na quase totalidade do país, não se identifica qualquer política pública voltada para a reorientação do modelo assistencial aos internos. Inexiste vinculação da instituição ao Sistema Único de Saúde (SUS), de maneira que o Estado tem mantido os inimputáveis controlados sob segregação, deixando-os à margem das inovações no campo da saúde mental introduzidas no Brasil a partir da edição da Lei nº 10.216/2001. Ao contrário da experiência mineira do Programa de Atenção Integral ao Paciente Judiciário (PAI-PJ) e da experiência goiana do Programa de Atenção Integral ao Louco Infrator (PAILI), que romperam com o modelo custodial de atenção ao louco infrator por direcionarem o atendimento à Rede de Atenção Psicossocial, verifica-se em relação à Unidade de Custódia e Tratamento uma total desconexão com essa ideia, negando ao paciente psiquiátrico judiciário aquilo que deveria ser o cerne da sua existência, que é o tratamento, na perspectiva delineada pela Política Nacional de Saúde Mental, Álcool e outras Drogas.

A observação direta da instituição permite afirmar que se comporta como mais um dispositivo de controle, como uma especialização de cárcere onde se aglomeram as pessoas em um sistema penal que concebe o aprisionamento como projeto de solução principal de regulação da vida social e que, portanto, estabelece uma sociabilidade segregacionista, que opera a partir da negação do outro, ficando muito claro, pois, "que nossas prisões jamais foram inteiramente disciplinares, jamais nelas funcionou um verdadeiro panopticom, pois elas sempre foram, com grande facilidade, uma região de amontoados humanos, ainda que aqui e ali possam aparecer exceções" (Rauter, 2016, p. 48).

A Lei, a Ordem e a Vigilância

A análise dos dados indica a centralidade que a estrutura prisional continua mantendo em termos de resposta social à suposta periculosidade representada pelo louco infrator. Esse lugar de destaque que a prisão ocupa no interior do nosso sistema penal demonstra como a nossa sociedade foi forjada a partir de um processo civilizatório pouco tolerante para com a diferença, para com aquilo que, por ser diverso, pode representar um perigo. Por isso, contrariamente ao fim do hospital psiquiátrico judiciário, reivindica-se a sua reforma, através de um novo projeto manicomial institucional, diante da suposta necessidade de aprisionamento do inimputável em conflito com a lei, para resguardo da sociedade, fortemente turbada por seu comportamento desviante.

Discursivamente, essa lógica se evidencia ao se questionar acerca da possível extinção do manicômio judiciário. Todos os participantes da pesquisa discordaram radicalmente dessa possibilidade, defendendo sua manutenção e reestruturação. Nessa perspectiva, afirmaram que "ele é mais uma medida de proteção para o próprio doente e a sociedade"; ou ainda que "talvez ele seja um mal necessário, como a prisão, ele é um mal necessário". As palavras exprimem claramente a solução penal como a forma básica de controle social formal, exercido através do apego acrítico à letra da lei (que é sempre o produto de determinada ideologia dominante) e impõe a punição como meio de garantia do respeito à ordem.

No que se refere ao advento da sociedade disciplinar, Foucault (2002a), afirma que a partir da virada do século XVIII para o século XIX, operou-se uma redefinição do crime, que passou a ser considerado como algo capaz de ofender a sociedade, de danificá-la, abandonando sua vinculação com conceitos de ordem moral. Nesse contexto, o criminoso converte-se no inimigo social e o cárcere em sinônimo de defesa social. Ora, se a prisão é a garantia de manutenção da estabilidade social diante do evento criminoso, parece lógica uma solução semelhante para o louco criminoso: tutelá-lo na velha estrutura asilar, sob regime de prisão. É o discurso que possibilita a retirada do sujeito da cena social. O manicômio judiciário emerge como símbolo do projeto de sociabilidade moderna, efetivada à base da inculcação do dogma da pena, que faz funcionar os dispositivos de controle "por todo o corpo social com seus dois braços: medicalização e judiciarização" (Coimbra, 2010, p. 184).

A prevalência do discurso psiquiátrico sobre o jurídico, que ficou muito evidente ao longo da pesquisa e que está na base do apelo pela reestruturação do asilo de alienados na atualidade, eleva a psiquiatria, conforme assinalam Rauter e Peixoto (2009), à categoria de um poderoso dispositivo de controle contemporâneo, cuja principal característica é seu caráter global e abrangente.

Verificou-se o acolhimento integral das conclusões dos laudos periciais pelas autoridades judiciárias na totalidade dos casos. Nos 38 processos examinados, os juízes, ao elaborarem as suas sentenças, acolhiam integralmente o laudo psiquiátrico produzido ao final do exame de sanidade mental. Essa conclusão foi possível extrair mesmo daqueles processos em que os laudos estavam ausentes, porque as sentenças faziam referência ao diagnóstico de inimputabilidade do agente, quando do cometimento do crime, e que a aplicação de medida de segurança se baseava inteiramente nas conclusões da perícia psiquiátrica.

Essa adesão absoluta às conclusões médicas, que revela uma perfeita associação entre o discurso jurídico e o discurso psiquiátrico, legitima a posição do psiquiatra enquanto autoridade exclusiva no campo da saúde mental, estabelecendo um discurso de verdade que se vincula diretamente aos destinos do interno, demonstrando que efetivamente quando a doença entra em cena, o crime cede espaço, pois que com ele se incompatibiliza de maneira absoluta. Nesse sentido, a "periculosidade" atestada pelo perito emerge como um analisador que demonstra como o interno pode ser compulsoriamente atado a um tratamento baseado na restrição absoluta da liberdade, independentemente da gravidade social do crime que cometeu, pois, o diagnóstico psiquiátrico, independente da categoria nosográfica em que se enquadre, presume essa condição, que leva sempre à mesma consequência.

Baremblitt (1992) afirma que cada sociedade, em seus aspectos instituintes e organizantes, evidencia sempre uma utopia, uma orientação histórica de seus objetivos. Essa utopia frequentemente é desvirtuada ou comprometida, deformando-se na exploração de alguns homens por outros, na dominação e imposição da vontade de uns sobre outros, no desrespeito à vontade coletiva e, enfim, na administração arbitrária daquilo que se considera saber e verdade, substituindo-se por mentiras, enganos, ilusões e sonegação de informações. O autor vai além, ao demonstrar que as instituições desempenham funções que estão sempre a serviço das formas históricas de exploração e dominação.

Desse modo, a análise do material recolhido nos autoriza a perceber como, dentro da instituição manicomial, os argumentos jurídico e psiquiátrico instrumentalizam um sistema de poder que se expressa em práticas normatizadoras, que, por sua vez, acentuam a rigidez do dispositivo prisional e exprimem tecnologias de poder sobre o homem-corpo "doente", somente possível em um ajuste biopolítico, como "uma estratégia do biopoder pretendendo o controle sobre a vida por meio da manipulação e adestramento dos corpos" (Severo & Dimenstein, 2009, p. 60). É que tais discursos reproduzem modelos que não permitem, como assinalam Guattari e Rolnik (1996), a criação de saídas para processos de singularização, atuando sempre na manutenção de equipamentos segregativos e na marginalização de determinados grupos. Portanto, as práticas dos operadores do direito, fundamentadas no estrito apego à norma penal, assim como a prática médica, mediada pela especialidade psiquiátrica, forjam uma práxis que, na perspectiva de uma micropolítica, reproduz o sistema de produção de subjetividade dominante (Guattari & Rolnik, 1996). Mas, esses instituídos se exprimem como naturais e mesmo desejáveis (Baremblitt, 1992).

O manicômio judiciário mantém, com isso, uma função dentro do sistema de organização social que é conservativo: trabalha no nível da manutenção da ordem dominante. Compreende-se assim que o próprio funcionamento da unidade envolve a aplicação de um exercício de violência que não busca prevenir o evento criminoso, mas que é dirigido ao autor do fato. É essa identidade do louco infrator que o distingue como inimigo da sociedade, justificando um tratamento que não respeita garantias mínimas como, por exemplo, a limitação temporal da sanção penal imposta.

Nesse horizonte, parece claro que o manicômio judiciário não constitui uma instituição ultrapassada, desprovida de uma funcionalidade social. Em realidade, a instituição manicomial, concebida como um projeto de higienização do espaço urbano, permanece nos dias de hoje porque cumpre uma função específica dentro de determinada ordem econômico-social, que é aquela de se comportar como a "máquina mortífera" dos nossos dias (Brasil, 2012), como o "moinho de gastar gente", na expressão que Ribeiro (1996), utilizava ao se referir a lógica autoritária, baseada no controle e punição que está na raiz de nossa sociabilidade, que consome os indesejáveis de nosso tempo, os homens infames que, como afirma Foucault (2003), não têm sido nada na história, não desempenham papéis de relevância nos acontecimentos ou entre as pessoas importantes, mas, sobretudo que não têm (e nunca terão) existência fora daquilo que dizem os autos de um processo penal.

A instauração de um pensamento instituinte relacionado ao manicômio judiciário (aqui compreendido como um exemplar de um conjunto molar, de um dispositivo de poder atravessado por essas linhas de força que estabelecem a separação radical entre o normal e o patológico), e mediado pelo processo de Reforma Psiquiátrica, certamente passa pelo questionamento (e desconstrução) da sua justificativa tutelar, isto é, da necessidade de proteger o louco infrator de si, alienando-o dos direitos perante os demais, como afirmam Fonseca, Thomazoni, Costa, Souza, e Lockmann (2008), mas, sobretudo pelo esforço de desconstrução de determinada organização funcional que estrutura o imaginário social e que possibilita a sua permanência nos dias de hoje, ainda cumprindo uma função específica dentro da atual ordem econômico-social. A superação do manicômio vincula-se, portanto, ao cultivo de uma crítica relacionada àquela sociabilidade segregacionista que nos condiciona e que está na base de nossos "desejos de manicômio", aqui compreendidos como modos de subjetivação que "sabotam as forças vivas da vida, a potência do novo, do desconhecido, do inusitado, da diferença" (Dimenstein, 2006, p. 77).

 

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Endereço para correspondência:
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Recebido em 26.set.19
Revisado em 12.set.20
Aceito em 07.jun.21

 

 

Waldeci Gomes Confessor Junior, Mestre em Psicologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), é servidor público efetivo do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Norte.
Magda Dimenstein, Doutora em Saúde Mental pelo Instituto de Psiquiatria da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), é Professora Titular aposentada da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Email: mgdimenstein@gmail.com
1. Referência ao poema "No meio do caminho", de Carlos Drummond de Andrade, publicado originalmente no livro "Alguma Poesia", de 1930.

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