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Estudos de Psicologia (Natal)

versión impresa ISSN 1413-294Xversión On-line ISSN 1678-4669

Estud. psicol. (Natal) vol.26 no.2 Natal abr./jun. 2021

http://dx.doi.org/10.22491/1678-4669.20210018 

10.22491/1678-4669.20210018

TEMAS EM POLÍTICAS SOCIAIS: ASSISTÊNCIA SOCIAL E SISTEMA DE GARANTIA DE DIREITOS

 

O fatalismo no cotidiano da pobreza: do individualismo forjado ao horizonte coletivo

 

Fatalism in poverty's daily life: from a forged individualism to a collective horizon

 

Fatalismo en la vida cotidiana de la pobreza: del individualismo forjado al horizonte colectivo

 

 

Mariana de Almeida PintoI; Fernando Santana de PaivaI

IUniversidade Federal de Juiz de Fora

 

 


RESUMO

O presente trabalho objetiva analisar como o fatalismo se manifesta no cotidiano de sujeitos que vivenciam a condição de pobreza. Foram realizadas 10 entrevistas semiestruturadas com sujeitos atendidos em um Centro de Referência de Assistência Social (CRAS) de um município do estado de Minas Gerais. Apoiando-se, sobretudo, nas elaborações de Ignacio Martín-Baró, refletimos sobre o modo como a predominante resignação fatalista se forja por meio das estruturas desiguais e das ideologias estabelecidas e aprofundadas no cotidiano da pobreza. Os processos de naturalização da realidade social reforçados pelo imediatismo e precariedade da vida cotidiana sufocam os sentimentos de revolta, indignação e coletividade que insurgem, sendo estes, no geral, canalizados pela lógica meritocrática, individualista e religiosa. Torna-se, assim, importante a adoção de uma perspectiva histórica e dialética para compreendermos as possibilidades de ruptura com o fatalismo no âmbito da sociedade brasileira, de modo a superar as mazelas subjetivas e materiais produzidas na e pela ordem social vigente.

Palavras-chave: fatalismo; ideologia; pobreza; realidade brasileira.


ABSTRACT

This paper aims to analyze how fatalism manifests itself in the daily life of those who live under poverty conditions. Ten semi-structured interviews were conducted with subjects who were attended at a Social Assistance Reference Center (CRAS) at a city in the Brazilian state of Minas Gerais. Based mainly on Ignacio Martín-Baró's elaborations, this study reflects on the way in which the predominant fatalistic resignation is forged through unequal structures and through ideologies established and deepened in poverty's daily life. Social reality's naturalization processes, reinforced by the immediacy and precariousness of everyday life, suppresses feelings of revolt, indignation and collectivity, which, in general, are channeled by a meritocratic, individualistic and religious logic. Thus, it is important to adopt a historical and dialectic perspective to understand the possibilities of breaking off with Brazilian society's fatalism, in order to overcome subjective and material problems produced in and by the current social order.

Keywords: fatalism; ideology; poverty; brazilian reality.


RESUMEN

Este artículo tiene como objetivo analizar cómo se manifiesta el fatalismo en lo cotidiano de las personas que vivencian la condición de pobreza. Se realizaron 10 entrevistas semiestructuradas con sujetos atendidos en un Centro de Referencia de Asistencia Social (CRAS) de una ciudad del estado brasileño de Minas Gerais. Basados principalmente en las elaboraciones de Ignacio Martín-Baró, buscamos reflejar sobre la forma en que si presenta la resignación fatalista predominante mediante las estructuras e ideologías desiguales establecidas y profundizadas en lo cotidiano de la pobreza. Los procesos de naturalización de la realidad social están reforzados por la inmediatez y la precariedad de la vida cotidiana y impeden los sentimientos de revuelta, indignación y colectividad que emergen, en general, siendo canalizados por la lógica meritocrática, individualista y religiosa. Por lo tanto, es importante adoptar una perspectiva histórica y dialéctica para comprender las posibilidades de romper con el fatalismo en el contexto de la sociedad brasileña, buscando superar los problemas subjetivos y materiales producidos por la orden social actual.

Palabras clave: fatalismo; ideologia; pobreza; realidad brasileña.


 

 

A condição de pauperismo que marca a constituição da realidade social brasileira apresenta diferentes facetas e dimensões, que se articulam no plano material e subjetivo. No Brasil, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística [IBGE] (IBGE, 2018) referentes ao ano de 2017, mais de 15 milhões de pessoas enfrentam a condição de extrema pobreza - avaliada, aqui, com base nos parâmetros do Banco Mundial (renda per capita na faixa de R$140,00 mensais). Somado a isso, o crescente índice de desemprego já superava, neste mesmo ano, a marca de 13 milhões de brasileiros(as), sendo a informalidade, fruto da precarização do trabalho, uma realidade imposta a mais de 40% da população ocupada (IBGE, 2018). Esse penoso quadro, cada vez mais intensificado, coloca o Brasil entre os países mais desiguais do mundo, tendo como marca sua elevada concentração de renda entre o 1% mais rico.

Conforme afirma Netto (2007), a despeito das inúmeras problemáticas em torno de sua mensuração, a pobreza e a desigualdade social se expressam por meio de aspectos pluridimensionais, podendo apresentar diferentes padrões e níveis de desenvolvimento, ainda que o entendimento de suas determinações econômicas torna-se fundamental para evitar a naturalização de tais fenômenos. Isso porque os estudos sobre a pobreza e a chamada "questão social" - expressão cunhada sob influência da visão positivista e, portanto, fragmentada para explicar os problemas sociais erigidos pelo capitalismo - são diversos e, muitas vezes, insatisfatórios.

Na tradição marxista à qual nos vinculamos, conforme discute ainda Siqueira (2014), a pobreza é compreendida não apenas como uma manifestação da "questão social", mas como "resultado da relação de exploração entre capital e trabalho inerente ao modo de produção capitalista" (p. 246), constituindo-se, pois, no cerne de sua lei geral de acumulação. Adotar o pressuposto de que a pobreza é estrutural, portanto, necessária ao desenvolvimento do capitalismo implica em superar as explicações economicistas que sustentam a adoção de medidas paliativas como forma de "erradicar" a pobreza, sem, contudo, atingirem as raízes da desigualdade social, esta que se expressa nos países dependentes de maneira ainda mais complexa e maximizada (Netto, 2007). Nesse terreno, se inserem as políticas sociais que margeiam nosso estudo, em particular, a política de assistência social, ainda que não seja nosso foco, neste momento, adentrar nas contradições e problemáticas que as concernem.

Diante da discussão aqui proposta, portanto, consideramos que a visão marxista sobre a pobreza e a desigualdade social torna-se fundamental para contrapor teorizações que defendem, direta ou indiretamente, a responsabilização dos próprios sujeitos pela desigualdade e por sua condição de vida. As concepções individualizantes da realidade, bastante disseminadas pela ideologia (neo)liberal, são altamente funcionais para a manutenção das relações de exploração dominantes, o que se intensifica em tempos de crise econômica e acirramento das mazelas sociais (Euzébios Filho, 2010; Siqueira, 2014). Sobretudo porque tais discursos e práticas de dominação são, muitas vezes, introjetados e reproduzidos pelos próprios sujeitos, em especial, aqueles submetidos à batalha cotidiana contra a pobreza, forjando, por vezes, a predominância de subjetividades dominadas, subalternizadas e resignadas. Partindo desses direcionamentos, portanto, buscamos analisar como o fatalismo se manifesta no cotidiano de sujeitos que vivenciam a condição de pobreza.

 

Breves apontamentos sobre ideologia do fatalismo e pobreza

O estudo sobre a ideologia, por mais plurais que possam ser as perspectivas adotadas (Konder, 2002), ocupa um importante espaço na investigação das formas pelas quais os sujeitos se apropriam da realidade social, em especial, numa sociedade movida pela luta de classes. Ao estabelecer diálogos com a visão materialista histórico-dialética de sujeito e sociedade, o psicólogo espanhol Ignacio Martín-Baró desenvolveu importantes estudos centrados na realidade latino-americana e nos processos psicossociais que a atravessam, dando uma especial atenção à temática da ideologia e às formas através das quais permeia a ação humana, de modo a defender, assim, uma psicologia que se ocupasse dessa questão e superasse as debilidades de perspectivas individualistas e reducionistas tradicionais do campo (Martín-Baró, 1990).

Conforme investigado por Mendonça, Souza, e Guzzo (2016), torna-se difícil buscar uma fundamentação e definição únicas de ideologia na vasta obra do autor. No entanto, em suas principais elaborações, ganha destaque uma das interpretações marxistas que conceitua ideologia como "falsa consciência", em seu sentido negativo, sendo (re)produzida pelas estruturas dominantes de classe. Partindo dessa concepção é que Martín-Baró (2017a) discorre sobre determinadas funções da ideologia exercidas na atualidade:

Oferece uma interpretação da realidade; fornece esquemas práticos de ação; justifica a ordem social existente; legitima essa ordem como válida para todos, isto é, converte em natural o que é histórico; efetiva uma relação de domínio existente; e reproduz o sistema social estabelecido (p. 119).

Inserido nesse melindroso debate, na medida em que as ideologias são compreendidas a partir das relações sociais concretas estabelecidas, o conceito de fatalismo é resgatado e aprofundado pelo autor na busca por entender a forma peculiar como os povos latino-americanos produzem sentidos e significados sobre o seu cotidiano, tendo em vista o percurso histórico marcado pela colonização violenta, pela dominação imperialista e pela experiência dos regimes ditatoriais no continente (Martín-Baró, 2017b). Conforme expõe Lacerda Jr. (2014), portanto, na concepção de psicologia social da qual parte Martín-Baró, o conceito de fatalismo não expressa "uma atitude individual nem um processo cognitivo interno, mas sim um produto das relações de poder" (p. 690).

Partindo desse pressuposto, Martín-Baró (2017b) descreve a ideologia fatalista a partir de três características, as quais estão, estritamente, articuladas: a) a ideacional, que corresponde à naturalização da realidade e à crença de que o destino da vida já está traçado e controlado por forças alheias, como Deus, e que, diante disso, nada pode ser feito para modificá-lo; b) a dimensão afetiva, relacionada à resignação, ao baixo envolvimento emocional com as circunstâncias da vida e à aceitação e adaptação frente aos fracassos e dificuldades enfrentados; c) e, por fim, "as tendências comportamentais", relativas à predominância de posturas conformistas, submissas e passivas, bem como à tendência ao presentismo e à perda da memória histórica.

O próprio autor, nesse sentido, busca escapar de qualquer análise mecanicista da realidade social e dos processos de consciência e subjetividade ao afirmar que o fatalismo não pode ser encarado como um fenômeno dado e imutável, nem como homogêneo e absoluto, devendo ser considerado à luz das particularidades históricas e sociais. Blanco e Diaz (2007) já sinalizavam que em um cenário de avanço do culto ao individualismo posto sob o caráter cada vez mais destrutivo do capitalismo ao planeta - cujo aumento da exploração humana e da natureza, do desemprego, da violência e demais expressões da desigualdade imperante torna-se escancarado -, o fatalismo, como mecanismo ideológico de controle, segue desenvolvendo-se e adquirindo novos contornos e manifestações.

Nesse sentido, entendendo as contradições e movimentos implicados nos processos psicossociais conformados em nossa sociedade, consideramos pertinentes os estudos a respeito do fatalismo para compreender nossa realidade brasileira, cuja expressiva desigualdade social, típica dos países periféricos do capitalismo, empurra milhares de pessoas para condições sub-humanas de sobrevivência. É, portanto, com foco na pobreza que buscamos refletir a partir dos estudos sobre fatalismo. Compreendemos que tal processo, como discute Martín-Baró (2017b), pode (ou não) se expressar de distintas maneiras, graus e intensidades no seio da população trabalhadora oprimida e explorada, o que acompanha, ainda, a dinâmica e a correlação de forças na disputa entre as classes e as relações sociais e econômicas em curso.

Dessa forma, conforme discorrem Martín-Baró (2017b) e Blanco e Diaz (2007), o contexto de pobreza, seja no campo ou na cidade, ganha um significativo destaque nas diferentes análises realizadas a respeito do fatalismo latino-americano. Ao vivenciar concreta e materialmente as facetas mais severas da desigualdade social capitalista, a população pauperizada enfrenta condições históricas e específicas que se intensificam nas e pelas ofensivas ideológicas.

A histórica individualização da "questão social" e a noção meritocrática e (neo)liberal recaem sob a construção de um ideário negativo e difamatório da figura do trabalhador pobre que o responsabiliza tanto pelas condições e "fracassos" vivenciados quanto por toda a (des)ordem social, pela violência e pelas desigualdades instauradas (Euzébios Filho, 2010). Os pobres são cada vez mais bombardeados com concepções que os incapacitam e os desvalorizam, rebaixando-os à condição de acomodados, marginais, criminosos, carentes e indolentes, o que, somado às reais barreiras sociais e econômicas impostas para a superação da condição subalterna, age no sentido de reforçar sentimentos e perspectivas de desesperança, submissão e resignação frente à realidade (Siqueira, 2014; Yazbek, 2012).

Em concordância com Martín-Baró (2017b), consideramos que tais fenômenos investigados, muitas vezes, sob a ótica da "cultura da pobreza" não podem ser reduzidos a um universo autônomo e isolado dos fenômenos que estruturam o complexo das relações sociais e econômicas dominantes. Os processos de subalternização, precarização e pauperização do modo de vida de uma significativa parcela da classe trabalhadora - que pode, inclusive, refletir seu não reconhecimento como tal - são extremamente funcionais para o sistema que privilegia a manutenção da propriedade privada em detrimento da vida humana (Siqueira, 2014).

Nesses termos, podemos afirmar que o fatalismo e a cultura da pobreza estão fortemente imbricados na lógica da produção e reprodução das mazelas sociais. A realidade, no entanto, com seu dinamismo e particularidades históricas, se faz nas e pelas contradições. Frente a uma estrutura econômico-social desigual e alienante, torna-se igualmente necessário compreender (para impulsionar) os movimentos e possibilidades de fissuras; as "sementes de rebeldia" mencionadas por Martín-Baró (2017b) e que, por vezes, se fazem escamoteadas diante da imperante lógica de fatalização da vida e dos sujeitos.

 

Percurso metodológico

As reflexões contidas nesse trabalho, fruto de uma pesquisa de mestrado acadêmico, partem dos relatos de dez participantes construídos através de entrevistas semiestruturadas (Minayo, 2009) realizadas entre fevereiro e maio de 2019, em um Centro de Referência de Assistência Social (CRAS), localizado em um município do estado de Minas Gerais. As entrevistas foram realizadas, de maneira individual, com o público atendido no referido dispositivo durante o período em que a pesquisadora esteve inserida no campo de pesquisa. No que cabe à discussão destacada no presente artigo, as questões do roteiro direcionavam-se à compreensão/enfrentamento da desigualdade social e da pobreza, como: "Qual sua opinião sobre a desigualdade social no Brasil?", "Por que a desigualdade existe, em sua opinião?", "Como você a percebe em seu dia a dia?", "Como você enfrenta a sua realidade de pobreza/dificuldades?", "As pessoas costumam dizer que o povo brasileiro é um povo passivo. O que você pensa sobre isto?".

O processo de seleção das(os) participantes ocorreu a partir do acompanhamento das atividades desenvolvidas no CRAS (grupos, atendimentos individuais, visitas domiciliares), contando com o apoio da equipe profissional na "escolha" e contato prévio com as(os) entrevistadas(os). A idade das(os) participantes varia de 29 a 51 anos, sendo que oito são mulheres e apenas duas se declaram brancas, conforme informações apresentadas, sucintamente, na Tabela 1. Vale destacar que os nomes designados são todos fictícios.

 

 

Os dados da presente investigação foram analisados a partir da Análise de Conteúdo do tipo temática. De acordo com Gomes (2009), essa técnica permite estudar o conteúdo manifesto da comunicação humana, classificando a mensagem em categorias determinadas a priori e a posteriori da realização da pesquisa de campo, a partir do processo dialógico estabelecido com os sujeitos da pesquisa. Para o processo de análise, as entrevistas foram integralmente transcritas, sendo utilizado o Software Atlas.ti. (6.2) como auxílio na organização e tratamento dos dados. A construção das categoriais passou, portanto, pelas etapas de pré-análise, exploração do material, tratamento dos resultados obtidos, a inferência e interpretação dos pesquisadores.

Os resultados, aqui, expostos e discutidos foram abarcados nos seguintes eixos: I) Da vivência à (in)compreensão - O que é desigualdade social; II) Cotidiano da pobreza e seu enfrentamento; III) Entre o conformismo e a indignação: fatalismo, contradições e conjuntura.

 

Discutindo os resultados

Da Vivência à (In)Compreensão - O Que é Desigualdade Social?

A trajetória e a condição atual de vida dos(as) participantes de nossa pesquisa demonstram que a desigualdade social e a pobreza representam, nelas, uma marca comum, sendo não apenas manifestadas, como, também, reconhecidas em diferentes âmbitos de suas vidas. Nas palavras do participante Rodrigo,a desigualdade social pode ser percebida"no bolso, na cor, na roupa, na casa"e complementa: "que nós hoje da minha cor escura (...) se eu passar ali agora e acontecer um, qualquer tipo de problema, passar um branco correndo e o preto tiver o contrário, a gente escura pega o fardo",refletindo sobre as consequências da estrutura racista que engendra as relações sociais histórica e atualmente desenvolvidas e que, somada ao machismo também enraizado, perfazem a vida cotidiana - material e subjetiva - de nossas(os) entrevistadas(os).

Mesmo quando as dúvidas surgem como primeira reação ao questionamento sobre a desigualdade social - conforme exemplificado na fala de Luiz: "Desigualdade, esses negócio de racismo e essas coisas? O que que é desigualdade?" -, percebemos que a vivência concreta a partir de sua máxima expressão compromete as tentativas das classes dominantes de camuflar, por completo, a realidade (Iasi, 2011). A precarização no acesso a determinados direitos como no campo do trabalho e moradia, as desigualdades de renda, de poder de consumo, de raça e de gênero, o "estilo de vida", a reprodução de preconceitos, bem como as formas de marginalização e criminalização da pobreza foram algumas das dimensões das relações sociais injustas consideradas pelos(as) participantes, seja na vivência particular, seja no âmbito societário e coletivo.

No entanto, entendemos que a importante percepção da realidade através da forma como ela se mostra se faz, por si só, insuficiente para a compreensão de suas raízes, indo além da superficialidade e do imediatismo que são atravessados e alimentados pelas ideologias (Konder, 2002). A perspectiva fatalista pautada na fragmentação e naturalização da vida social predominou nos relatos de nossos(as) entrevistados(as) ao refletirem sobre as condições e obstáculos vivenciados, sendo reproduzidos diferentes discursos de responsabilização dos sujeitos, sobretudo, os mais pobres (Accorssi & Scarparo, 2016; Siqueira, 2014). A seguinte fala de Rodrigo reflete essa questão:

Nós tem três pobrezas hoje (...) O pobre dos pobre é aqueles que ficam morando na rua. O pobre mais ou menos é aquele que tá correndo atrás de um serviço, correndo pra melhorar sua vida. E tem o pobre orgulhoso, tá passando necessidade, tá passando aperto, mas não pede arrego.

Nessa mesma direção, em diferentes momentos, pudemos observar como a noção fragmentada e ideológica da pobreza - que a desvincula das estruturas econômicas produtoras da desigualdade social - atravessa a fala dos(as) entrevistados(as). Isso ocorre tanto no reconhecimento da pobreza a partir da (in)capacidade e poder de consumo, quanto, também, por concepções depreciativas e/ou moralizantes do pobre como necessitado, humilhado e acomodado (Yazbek, 2012).

O participante Luiz, por exemplo, se posiciona: "Pessoa pobre? Necessitada. Que não tem onde morar ou tendo que se humilhar, pedir pra comer, chega a dormir no banco de praça. É isso aí. Pobre eu considero isso". A participante Camila, ao compreender a pobreza a partir de uma moral religiosa e espiritual, acaba por reproduzir uma lógica individualizante:

Porque tem pessoas que é pobre de espírito porque não tem Deus, não procura religião, não tem nada. Então essa pessoa é mais pobre ainda, porque aí já não tem nada. Tá vendo que a vida tá difícil e não quer procurar ninguém, não quer procurar uma ajuda.

A introjeção e reprodução da cultura da pobreza reflete, diretamente, processos de naturalização da realidade social que, vinculados à perspectiva fatalista provocada no cotidiano de extremas desigualdades, fortalecem, ainda, o apego e a busca por respostas através da religiosidade e transcendentalidade (Konder, 2002). Conforme afirma Martín-Baró (2017b), "o fatalismo supõe a mistificação das forças históricas como natureza ou como Deus" (p. 195).

Retomando a conversa com o participante Luiz, ao pedir que refletisse sobre as dificuldades, por ele, vivenciadas e as possíveis explicações para sua dura trajetória de vida, o mesmo foi bastante enfático: "Destino de Deus. Ninguém pede pra ser pobre, nem ser rico ou milionário. Então, é pelo que Deus falou. Isso aí a gente não pode fazer nada".

As raízes históricas e econômicas da desigualdade social capitalista, dessa forma, ao serem naturalizadas, são concebidas ora como fruto da ação divina, ora como da ordem do mero acaso ou sorte, ora como consequência do esforço meritocrático e individual. Os relatos da participante Ângela são expressivos nesse sentido: "Deus dá o dom e a inteligência, o milagre quem faz é a gente. Existem pessoas que tem sorte de ter coisas melhores (...) Tem gente que não tem sorte de conseguir nada".No entanto, ao ser questionada sobre a dimensão da "sorte", ela reconsiderou ao afirmar que a dinâmica da vida real não se limita a essa questão: "não é só sorte, mas empenho. Eu me esforço pra melhorar a minha vida, então, a vida vai melhorar".

Outros relatos obtidos nas entrevistas contribuem nessa discussão. Conforme manifestou Clara, a constatada realidade injusta e desigual - reproduzindo seus dizeres -"é bem desleal. Mas é a realidade, né (...) tem gente que corre atrás, tem gente que não corre... Deixa por isso mesmo. Tem gente que não vai à luta". A participante Camila, por sua vez, considerou que as desigualdades existem, em suas palavras, "por causa do governo mesmo, por causa do presidente, por causa de tudo". Ao mesmo tempo, a justificativa, por ela, encontrada para o processo de ascensão social acompanha a sorte e o mérito pessoal, complementando: "(...) Eu falo com a minha filha todo dia que ela tem que trabalhar (...) porque pra ser rico a gente tem que conquistar isso".

Até mesmo quando elementos da história aparecem como possíveis causas da desigualdade social que se escancara, de maneira particular, na realidade brasileira, a forma de se conceber fenômenos do passado que estruturam a "questão social" na atualidade é permeada por confusões ideológicas que os transformam em uma condição natural da humanidade diante da suposta inevitabilidade da vida (Martín-Baró, 2017b).

O participante Rodrigo explicita essa questão ao afirmar que a desigualdade: "faz parte desde a época da escravidão, desde meus 'tatataravô', só que vem mudando, assim, um pouco o estilo, só vem modernizando". Em suas palavras, no entanto, a compreensão de tal fenômeno constitutivo de nossa realidade passa por questão de "geração mesmo e isso aí vem de linhagem" e, assim, declara: "Tá difícil de acabar, mas que sempre vai ter, vai. Acabar, acabar não vai, não (...) Enquanto eu tiver vida e tiver enxergando os ponto objetivo, não vai não. É que isso aí é do ser humano".

Cotidiano da Pobreza e seu Enfrentamento

Viemos discutindo até aqui que a maneira como os sujeitos elaboram sentidos e significados sobre suas realidades se constitui, dialeticamente, a partir das circunstâncias concretas estabelecidas. A condição de pobreza, marcada pela negação de direitos e atendimento das necessidades humanas mais basilares, reforça um cotidiano cuja espontaneidade e imediatismo prevalecem nas posturas e ações dos sujeitos centralmente voltadas para a tentativa de sobrevivência.

As formas encontradas para lidar com as atividades diárias e exaustivas comprometem, muitas vezes, as condições objetivas e subjetivas que fomentem o senso crítico e a reflexão nas decisões e ações tomadas frente às circunstâncias postas, o que tende a favorecer a reprodução das ideologias (Konder, 2002). Nesse contexto, produzido numa sociedade erguida sob valores individualistas e meritocráticos, portanto, o fatalismo encontra um terreno fértil para se manifestar.

Martín-Baró (2017b) discute o caráter ideológico e funcional do fatalismo a partir de suas contradições e dialeticidade: ao mesmo tempo em que representa uma forma de mistificação da realidade, ele se mostra verdadeiro ao se constituir nas e pelas bases reais da vida. Na medida em que os esforços - sejam eles individuais ou até mesmo por meio de fracassadas experiências coletivas e sociais - realizados para a mudança de sua situação social não vem acompanhados de resultados significativos, os processos de adaptação, resignação e conformismo, muitas vezes, se impõem nas formas a partir das quais os mais pauperizados buscam enfrentar suas realidades cotidianas.

A participante Clara, por exemplo, nos conta que enfrenta a pobreza e o desemprego através da busca constante por melhorias nas condições de vida e pontua: "A gente vai levando, né. Fazer o quê? Por que... Se for o melhor, é o melhor, né, se não for...". Ao ser questionada sobre o significado de "ir levando", Clara demonstrou seus sentimentos: "A... Sei lá... Se a gente parar pra pensar mesmo, a gente acaba ficando doida, né. Eu acabo surtando. Não tem como... Vai roubar? Não tem como roubar. Não tem como tirar (...)". Nesse mesmo sentido, ao naturalizar essa dura realidade social e toda a sua trajetória de vida, Rodrigo expõe como lida com as dificuldades colocadas: "Suave. Tipo assim, no caso, passo aperto desde pequeno mesmo, se eu não conseguir hoje, eu vou conseguir amanhã... Tranquilo".

A participante Célia, por sua vez, enfrenta um quadro de depressão desde o assassinato de seu filho no bairro onde moravam. Na entrevista, ela expôs a maneira como se afeta, com momentos de dor e sofrimento, ao encarar sua condição material precária de vida:

Às vezes, triste . Às vezes, não . Porque tô viva, né ? Posso correr atrás . Eu fico triste quando meu neto pede as coisas, minha filha pede as coisas e eu não tenho. Mas fora disso ... Tem gente que tá em cima de uma cama de hospital que não pode fazer nem isso. Quer dizer, enquanto eu tiver vida, posso correr atrás de ter oportunidade e ter.

Dessa forma, ao mesmo tempo em que as circunstâncias desiguais estabelecidas provocam angústias, dores e emoções diversas, a predominante resignação fatalista se manifesta por meio da repressão (opressão) das possibilidades subjetivas e materiais de vida. O presentismo é, então, forjado por uma realidade desigual que, ao perdurar em suas trajetórias de vida, se mostra como natural e inevitável pois, em última instância, complementando com Martín-Baró (2017b), "o que importa na existência é aceitar o próprio destino com coragem e conduzi-lo com dignidade" (p. 176).

Como já mencionado, o autor resgata a construção histórica das sociedades latino-americanas, em especial, o papel de dominação das Igrejas cristãs, para refletir sobre como a noção fatalista de inevitabilidade e incontrolabilidade do destino está, fortemente, atrelada à dimensão religiosa que, frente à desalentadora realidade concretamente conformada, surge como forma de explicar, confortar e dar sentido à existência. A crença e esperança na intervenção de um ente superior e transcendental, nesse sentido, se coloca como um importante mecanismo para suportar e enfrentar às dificuldades vivenciadas no cotidiano.

Vou falar para você, para viver essa vida que eu vivo, só Jesus na minha vida mesmo. Se não fosse Jesus, acho que já teria morrido. Se não fosse Deus na minha vida, não aguentaria os baques, não (...) E de vez em quando eu passo um aperto, aí eu oro a Deus, peço a Deus pra me ajudar.

O desabafo de Camila reflete o sentido dialético constitutivo da religião que, como destacou Marx (1843/2010), representa "ao mesmo tempo a expressão da miséria real e o protesto contra a miséria real" (p. 145, grifos do autor). Ainda que o debate sobre o papel da religião seja complexo (e, portanto, demasiado para esse artigo), ao situá-lo nas particularidades do presente momento histórico, cuja ascensão do fundamentalismo e conservadorismo religioso se reafirma como estratégia de poder (Martín-Baró, 1989; Almeida, 2017), percebemos como a perversa combinação entre o ideário individualista, a meritocracia e a religiosidade favorece o encobrimento das raízes da desigualdade social, "levando à passividade, à consolação, com esperança da recompensa celeste, ao conformismo e à resignação, que colabora com o status quo e legitima as condições inumanas existentes" (Chagas, 2017, p. 136).

Retomando as entrevistas de nossa pesquisa, os relatos do participante Luiz são sugestivos nesse sentido. Embora Luiz tenha declarado não possuir filiação religiosa, sua entrevista foi bastante atravessada pela dimensão da fé e esperança divina: "Eu tenho minha própria fé em Deus". É com essa fé que Luiz relata enfrentar as dificuldades vivenciadas: "Muita fé. E 'ocê' também trabalhando, né?!". A aposta na fé e no próprio esforço reflete a descrença na humanidade diante das incertezas e injustiças que permeiam sua trajetória de vida. Ao refletir sobre as possibilidades de mudança e superação da desigualdade social, Luiz opinou:

A, posso falar uma coisa com você, acho que assim, o ser humano não tem capacidade pra isso mais não... Só Deus chegando mesmo. Só Deus. Acho que isso aí é igual a vida, você nasce, morre, sem saber de nada. Ou você nasce, você aprende, vira um especialista, por exemplo na minha área, em colocar um piso lindo de porcelanato, mas eu vou morrer sem saber de nada. Morri por quê? Por que que eu não fiquei mais, então? Acho que é isso aí. Sei lá. Só Deus mesmo.

Entre o Conformismo e a Indignação: Fatalismo, Contradições e Conjuntura

Pudemos observar, até o momento, a predominante imposição de ideologias individualistas, naturalizantes e fatalistas no modo como os sujeitos pesquisados refletem, agem e vivenciam suas realidades, o que se constitui por meio das contradições e conflitos próprios dos fenômenos sociais e subjetivos (Iasi, 2011). Retomando os ensinamentos de Martín-Baró (2017b), o fatalismo nunca se manifesta como definitivo; a predominância de processos como resignação e submissão se constituem por meio da docilização dos movimentos de indignação e contestação provocados pela própria (des)ordem social.

Costa e Mendes (2020) aprofundam nessa relação contraditória do fatalismo ao discutirem a dialética constitutiva dos movimentos de resignação e revolta, adentrando nas particularidades da formação social brasileira. Partindo dessas análises e em consonância, ainda, com o estudo de Euzébios Filho (2010), tensionamentos constantes foram percebidos a partir das falas dos(as) participantes de nossa pesquisa, sugerindo a transição dialética "entre os ascensos reivindicatórios e os descensos fatalistas, entre a ação coletiva e as soluções individuais" (p. 193).

Nesse sentido, ao mesmo tempo em que percebemos uma culpabilização e responsabilização do pobre e de si mesmos(as) pelas desigualdades vivenciadas, há indignação diante da "desassistência" social e da negação de direitos que ferem suas possibilidades. Ao mesmo tempo em que há descrença e resignação diante das mazelas sociais, há desejo e esperança por alternativas mais igualitárias de vida e de sociabilidade. Ainda que a passividade e o conformismo prevaleçam diante da batalha exaustiva e, no geral, solitária contra a pobreza, a luta e organização coletiva, mesmo que não se efetivem em seus cotidianos, surgem como um horizonte necessário para a conquista de justiça e transformação social.

Eu acho que se tivesse um pouco mais de luta a gente viveria melhor (...) pelo menos, pela igualdade. Não viver em guerra, igual nos outros países, mas, pelo menos, se impor, colocar a opinião sobre aquilo que aceita ou não. (Joana)

A fala em destaque é reafirmada por Márcia ao considerar o brasileiro, no geral, "acomodado"diante das desigualdades: "porque se todo mundo se juntasse, fizesse uma passeata, um mutirão, com certeza as coisas ia mudar. Mas que que adianta, uns vai e outros não vai? Tem que ser todo mundo junto". A participante Camila, também, se posicionou favorável à luta e organização coletiva como importante passo para a mudança social, e, nesse sentido, se colocou na posição de passividade: "Tô falando até de mim mesmo, a gente mesmo, fica parado. Ninguém faz nada pra ajudar, pra essa situação mudar, tendeu? Todo mundo fica parado". Ela, contudo, demonstrou dúvidas de como e o que, exatamente, poderia ser feito ao reivindicar: "Não tenho ideia não . Acho que tinha que juntar o Brasil inteiro e fazer uma passeata pra poder tentar mudar. Tinha que juntar todo mundo e fazer uma passeata, passar até no jornal. A gente devia fazer isso ".

Ainda que os sentimentos de indignação e desejos de mudança tenham vindo à tona, no geral, as(os) entrevistadas(os) mostraram-se distantes dos relevantes e almejados processos de lutas sociais e organizações coletivas. As contradições constituintes dos processos de consciência, como discute Iasi (2011), expressam a complexidade da relação dialética entre a ideologia e o real, entre a subjetividade e a objetividade; assim como entre a resignação e revolta, seguindo a análise de Costa e Mendes (2020). Tomando a realidade social como ponto de partida, alguns apontamentos podem nos auxiliar em nossas reflexões sobre a dinâmica do fatalismo, aqui, evidenciada.

Já destacamos, anteriormente, e voltamos a reafirmar como o contexto de miserabilidade social se faz perpetrado pelas ideologias voltadas aos interesses da classe dominante e suas relações de poder e controle que fatalizam a vida social. Refletir sobre esse cenário de pauperização e fatalismo em nossa realidade exige, ainda, um resgate da conformação histórica do Brasil, do qual cabe considerar as práticas de dominação exercidas desde o processo de colonização até acontecimentos recentes, como a transição complexa do regime ditatorial-militar para a instauração de nossa débil democracia nos moldes como a vivenciamos hoje (Duriguetto & Demier, 2017).

Ancorados nas experiências históricas de regimes políticos e governos favoráveis, em última instância, aos interesses econômicos das classes dominantes, podemos considerar que o fatalismo se expressa, ainda, como forma de desesperança, descrença e desilusão em alternativas reais de poder e sociabilidade pautados nas necessidades da classe trabalhadora. Conforme ressalta Martín-Baró (2017b), tal processo se reafirma por meio de ideologias conservadoras da ordem que visam o apagamento da memória e da condição histórica dos sujeitos como tal. A entrevistada Ângela, nesse sentido, ao refletir sobre a suposta passividade da população brasileira, afirmou: "E essa questão de dizer que não faz muita coisa pra mudar é por quê? Porque tá todo mundo com medo".

Distantes de um passado aniquilado e situados em um presente derrotista, cuja pobreza se instaura como perpetuação do curso natural (e/ou celestial) da história humana, o fatalismo, como resignação, conformismo e submissão, se impõe como estratégia de sobrevivência nas estruturas desumanas, silenciando as vontades, inquietações e desejos de mudança (Blanco & Diaz, 2007; Costa & Mendes, 2020). Nesse sentido, a despeito da dinamicidade dos acontecimentos políticos e sociais recentes, não podemos ignorar, ainda, o contexto em que a pesquisa foi realizada, uma vez que os(as) próprios(as) participantes suscitaram diferentes elementos da conjuntura política brasileira que evidenciaram ainda mais essa problemática.

Ainda que não tenhamos condições de discorrer com detalhes e profundidade sobre todos os aspectos que emergiram, entendemos que a dinâmica do cenário brasileiro expressa a capilaridade de ideários reacionários e conservadores, desfavorecendo, ainda mais, processos de conscientização e organização classista dos setores explorados e pauperizados da sociedade, sendo estes, conforme ressaltou Martín -Baró (2017b), imprescindíveis para a ruptura com o fatalismo dominante. Braz (2017) analisa tal período nos marcos do processo de impeachment de Dilma Roussef (PT) ocorrido em 2016, evidenciando duas principais questões: o caráter antidemocrático e reacionário do golpe parlamentar orquestrado por diferentes forças sociais em ascensão na disputa pelo poder; e a incontestabilidade dos limites e fragilidades da democracia brasileira e do fracasso do projeto de conciliação de classes petista.

Como desdobramento da evidente crise política, social e econômica brasileira (e, em termos gerais, mundial) em curso, acompanhamos, no ano de 2018, a eleição de um presidente caracterizado, sucintamente, por sua agenda econômica ultraneoliberal e seu posicionamento político e ideológico de extrema-direita, autoritarista e conservador, sendo abraçado e alavancado pelo fundamentalismo religioso. Jair Messias Bolsonaro, à época, mantinha uma significativa aprovação popular em distintos setores da sociedade - ainda que sinais de queda já se refletissem nas pesquisas de opinião publicadas. Dessa forma, nas entrevistas que realizamos, os(as) participantes demonstraram não estar alheios(as) a todo esse cenário, sendo que críticas e desconfianças foram direcionadas tanto ao Governo atual quanto aos anteriores, prevalecendo uma forte apatia à tradicional política institucional.

Márcia, por exemplo, ressaltou os impactos do corte de verbas na política de assistência social, os ataques aos direitos trabalhistas, como décimo terceiro e férias, e a Reforma da Previdência (em tramitação naquele momento): "negócio da aposentadoria... Imagina só, você vai trabalhar até quando você tiver na beira da morte?", indagou-se. A participante, por considerar que as medidas anunciadas e aprofundadas pelo Governo Bolsonaro desfavorecem os mais pobres, revelou suas expectativas de futuro com relação à vida pessoal e da população em geral: "só afundar nesse governo (...) expectativa nenhuma", "a minha [vida] eu tô tentando fazer o melhor, eu mesma, porque se depender do governo, dos outros... Eu mesmo tô tentando mudar ela".

Frente ao cenário político brasileiro desenhado, sentimentos de desesperança e desolação apareceram, igual e novamente, nos relatos de Luiz. O participante não só levantou críticas às desigualdades legitimadas pelo atual presidente Bolsonaro, como, também, retomou um pouco de sua trajetória em São Bernardo do Campo (SP) para demonstrar sua desilusão com o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT):

Porque no tempo que eu vendia cafezinho pro Lula, em São Bernardo do Campo, eu também achava que ele ia ser... e me envergonhou. (...) Meu pai tinha uma barraquinha lá, aí ele tava sempre de calça preta, gordo, barrigão, fazia greve na Brastemp (...) E hoje tá aí preso, por causa de quê? Poxa... Um cara que lutou tanto, era até analfabeto, tinha uma postura tão bonita, né, pra chegar lá e ficar roubando.

A participante Ângela, por sua vez, entendendo que a sociedade se constitui pela alta classe e a minoria, afirma:"nesse Governo [Bolsonaro], eu tenho pra mim que a minoria sempre vai continuar embaixo". Ela compreende que cada governo é bom pra uma classe, sendo Bolsonaro o representante do povo fascista e o ex-presidente Lula, do povo da marmitinha e prossegue em sua análise "(...) porque, querendo ou não, ele [Lula] contribuiu bastante com algumas coisas, mas também prejudicou bastante com algumas coisas, entendeu? O [Michel] Temer [MDB] é do bonde do não sei".

Mesmo considerando as experiências de greves e lutas da classe trabalhadora como forma de reivindicar direitos, desiludida das instituições e ferramentas políticas hegemônicas, ela pontuou: "não adianta dez mil manifestação sendo que quem tá ali no poder, quem podia tá fazendo tudo, não quer fazer nada". Nesse sentido, Ângela reafirma como o fatalismo, o conformismo e o presentismo, muitas vezes, se impõem no cotidiano da maioria da população brasileira:

Hoje em dia ninguém quer correr mais atrás, a grande maioria não quer correr mais atrás, porque tem alguém pra vir tomar. Quando não é o governo, é um ladrão. Quando não é ladrão, é uma doença. Quando não é doença, é efeitos naturais. Ontem, depois do negócio que eu vi de enchente, eu literalmente acho que todo mundo já tá desacreditado desse ano (...) porque todo mundo acha que esse ano vai ser a volta por cima, mas é tragédia atrás de tragédia.

Tais relatos, aqui, resgatados nos servem para refletir sobre a tendência da atual situação política brasileira em reforçar a dinâmica fatalista, historicamente, fomentada pelas estruturas desiguais capitalistas e que, nos marcos de sua crise estrutural e etapa neoliberal, configuram-se cada vez mais implacáveis na vida da população pauperizada. Percebemos, ao longo das opiniões e experiências narradas pelas(os) entrevistadas(os), que a indignação, a capacidade de crítica e os sentimentos de revolta não se fazem ausentes, sendo, portanto, constituintes da própria realidade social e do fatalismo dominante que, através de um movimento dialético e não-linear, os provoca e os assola (Iasi, 2011; Costa & Mendes, 2020).

Compreender essa complexa relação posta na historicidade dos acontecimentos nos serve como aporte para que possamos apreender os processos psicossociais vigentes em suas contradições e possibilidades, de modo a contrapor as ideologias investidas ora através da política do medo, descrença e resignação, ora por meio da convergência de discursos meritocráticos, religiosos e individualistas como mecanismo de enfrentamento/resignação da realidade. Trata-se, assim, de um incessante propósito de investigação que, longe de ser esgotado no presente estudo, envolve a construção de uma práxis atenta às contradições do presente, bem como e, sobretudo, às mediações táticas e necessidades estratégicas para a transformação radical e dialética da realidade.

Nessa esteira, consideramos que a atualidade e pertinência das elaborações de Martín-Baró, as quais, inclusive, extrapolam o que fazer da psicologia (ainda que sejam primordiais para o campo), permeiam não apenas seu necessário diagnóstico sobre o fatalismo latino-americano, mas, também, os caminhos certeiros traçados para a sua ruptura e superação. Nas palavras do psicólogo, em última instância, a superação do fatalismo das maiorias populares latino-americanas requer uma mudança revolucionária, isto é, uma mudança nas estruturas políticas e econômicas e, também, psicossociais sobre as quais está assentada um ordenamento que margiliza e dociliza, que fundamenta o bem-estar de alguns poucos na exploração opressiva de muitos (Martín-Baró, 2017b, p. 199).

Abraçar e efetivar esta gigante tarefa histórica, portanto, é tão imprescindível quanto desafiador, não cabendo direcionamentos fáceis e simplistas. Conforme corroboram as reflexões do presente estudo, esse complexo processo implica em compreender as contradições constituintes do próprio fatalismo dominante, de modo a canalizar as revoltas silenciosas/silenciadas e até mesmo a descrença no atual estado de coisas para a luta concreta por direitos efetivos e novas formas de sociabilidade; em que o inconformismo provocado possa emergir e deslocar-se de sua posição passiva e presentista em direção a uma consciência ativa e transformadora (Iasi, 2011; Martín-Baró, 2017b).

Consideramos, ainda nessa perspectiva, que as experiências históricas e particulares da realidade brasileira nos ensinam que a prática e organização dos setores explorados e oprimidos, quando estagnadas e contempladas às fissuras possibilitadas (mesmo que não efetivadas) ainda no interior da ordem social, limitam o avanço da consciência de classe, podendo fazê-la refluir e buscar, inclusive, saídas em projetos políticos reacionários que se apresentam como falsa alternativa antissistêmica, de modo a corroborar com a engrenagem da "normalidade fatal" (Braz, 2017; Iasi, 2011; Martín-Baró, 2017b). Essa discussão torna-se ainda mais cara e urgente quando nos voltamos para a realidade massacrante vivenciada por uma grande massa de brasileiros e brasileiras e falamos em diálogo e conscientização com os setores populares cada vez mais expressivos e pauperizados.

Nesse sentido, implicados nesse constante desafio de compreender nossa realidade em sua concretude para transformá-la (e entendendo, ainda, que tal processo cabe, com suas especificidades e mediações, a diferentes sujeitos sociais), revela-se que as "possibilidades interessantes de resistência aos processos da ideologia" (Konder, 2002, p. 241) presentes na vivência e nas ações cotidianas contra a pobreza e a desigualdade social necessitam ser fomentadas numa perspectiva histórica, classista e revolucionária. Somente com a superação do modo de produção e sociabilidade capitalista, em seu movimento dialético, poderemos caminhar rumo à construção de uma sociedade pautada na real "universalização" dos direitos sociais e, eminentemente, humanos (nos referimos, aqui, à socialização dos meios de produção e subsistência), possibilitando, desse modo, o alcance pleno de um horizonte em que o "essencial", por muitos ainda idealizado, possa se tornar rotineiro. Conforme nos revela o participante Rodrigo:

Eu tenho um sonho. Tenho um sonho de ter o meu sítio. Meus filhos não... Talvez o de três anos ainda consegue fazer isso, meu sonho. Eles mesmo pegar fruta no pé. Igual eu, na minha criação... Tendeu? Na minha criação, eu fiz isso muito. Pegava manga, cana, laranja, goiaba, pescava, via o peixe e puxava o peixe (...) É essa que eu falei, ver meus filhos pegando as coisas com a própria mão deles, ver eles pisando no barro, tomando banho de chuva, pulando uma poça d'água... É isso, pô, é isso.

 

Considerações finais

Observamos em nosso estudo, a partir das entrevistas realizadas, que a perspectiva fatalista predomina no modo de ser e agir dos sujeitos entrevistados diante de um cotidiano massacrado pela pobreza, cuja batalha pelas condições mais basilares de sobrevivência compele-se como objetivo último de suas vidas. A resignação fatalista imposta deve ser, assim, compreendida em relação às circunstâncias concretas estabelecidas, o que implica considerar as contradições e dialeticidade próprias da realidade e dos processos psicossociais, objetivando superar o atual ordenamento social que nos assujeita e nos assola.

Nessa direção, consideramos indispensável para a psicologia brasileira que se pretenda crítica e engajada na transformação da realidade a adesão a um projeto ético-político que se atenha a historicidade dos fenômenos existentes e(m) sua relação com a dinâmica dos acontecimentos políticos e sociais recentes, compreendendo, ainda, as particularidades de nossa realidade brasileira. Colocar a psicologia em prol da ruptura com o fatalismo e as estruturas desiguais dominantes implica em uma atuação - seja frente aos limites das políticas públicas, seja em outros lócus de intervenção e produção de conhecimento - apoiada nas necessidades e vivências das classes exploradas e oprimidas, de modo a privilegiar a contribuição em processos de conscientização e organização popular que visem superar o imediatismo e a individualização fomentados, cada vez mais, pelas relações sociais capitalistas.

 

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Endereço para correspondência:
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Recebido em 25.jul.20
Revisado em 29.out.20
Aceito em 19.jun.21

 

 

Mariana de Almeida Pinto, Mestre em Psicologia pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), Doutoranda em Psicologia pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF).
Fernando Santana de Paiva, Doutor em Psicologia pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), é Professor de graduação e pós-graduação do Departamento de Psicologia da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Email: fernandosantana.paiva@yahoo.com.br

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