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Estudos de Psicologia (Natal)

versión impresa ISSN 1413-294Xversión On-line ISSN 1678-4669

Estud. psicol. (Natal) vol.26 no.3 Natal jul./set. 2021

http://dx.doi.org/10.22491/1678-4669.20210031 

10.22491/1678-4669.20210031

ASPECTOS PSICOSSOCIAIS DAS INTERAÇÕES ENTRE PESSOAS E DIVERSOS CONTEXTOS SOCIOAMBIENTAIS

 

Sentimento de Pertença de moradores Indígenas e não Indígenas em Comunidade Pluriétnica de Manaus/AM

 

The Sense of Belonging of indigenous and non-indigenous dwellers in a Multiethnic Community of Manaus-AM

 

Sentido de Pertenencia de residentes indígenas y no indígenas en la Comunidad Pluriétnica de Manaos-AM

 

 

Marcelo CalegareI; Kássia Pereira LopesII; Elisa Ferrari Justulin ZacariasIII

IUniversidade Federal do Amazonas
IIAlinhar BKMR Atividades de Psicologia e Consultoria Ltda
IIIInstituto Nacional de Pesquisas da Amazônia

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Temos por objetivo apresentar e discutir como os moradores de uma comunidade pluriétnica de Manaus/AM, resultante de ocupação de Área de Preservação Permanente desde 2013, reconhecem e se sentem pertencentes ou não à comunidade. Por pesquisa qualitativa, realizamos visitas à comunidade ao longo de um ano e fizemos 13 entrevistas semiestruturadas com participantes-chave, submetidas à análise de conteúdo. Apesar do fator étnico e do preconceito e discriminação contra indígenas e moradores de ocupação, verificamos que há sentimento de pertença entre todos, relacionados por um lado à apropriação, apego e identificação com o lugar. Por outro, à memória coletiva, participação e organização sociopolítica em prol das lutas comunitárias. Sentir-se pertencente gera vínculos afetivos, identificação, valorização e preservação do ambiente comunitário, proporcionando coesão grupal e fortalecimento comunitário.

Palavras-chave: psicologia ambiental; psicologia comunitária; indígenas; sentimento de pertença; comunidade.


ABSTRACT

We aim to present and discuss how the residents of a multiethnic community in Manaus-AM, resulting from the occupation of a Permanent Preservation Area since 2013, recognize and feel belonging to the community or not. Through qualitative research, we conducted community visits over one year and performed thirteen semi-structured interviews with key participants, analyzed by content analysis. Despite the ethnic factor, prejudice, and discrimination against indigenous people and residents of the occupied neighborhood, we have verified that there is a sense of belonging among all, related on the one hand to the appropriation, attachment, and identification with the place. On the other, to collective memory, participation, and socio-political organization in favor of community struggles. The sense of belonging generates affective bonds, identification, appreciation, and preservation of the community environment, providing group cohesion and community empowerment.

Keywords: environmental psychology; community psychology; indigenous; sense of belonging; community.


RESUMEN

Tenemos por objetivo presentar y discutir cómo los residentes de una comunidad pluriétnica de Manaos-AM, resultante de ocupación de un Área de Preservación Permanente desde 2013, reconocen y sienten o no pertenencia a la comunidad. A través de la investigación cualitativa, realizamos visitas a la comunidad en el transcurso de un año y realizamos trece entrevistas semiestructuradas con participantes clave, analizadas con un análisis de contenido. A pesar del factor étnico, los prejuicios y la discriminación contra los pueblos indígenas y los residentes de barrios ocupados, encontramos que existe un sentido de pertenencia entre todos, relacionado por un lado con la apropiación, el apego y la identificación con el lugar. Por el otro, con la memoria colectiva, la participación y organización sociopolítica a favor de luchas comunitarias. El sentido de pertenencia genera vínculos afectivos, identificación, apreciación y preservación del entorno comunitario, proporcionando cohesión grupal y empoderamiento comunitario.

Palabras clave: psicología ambiental; psicología comunitaria; indígenas; sentido de pertenencia; comunidad.


 

 

A partir dos anos 1980, mas com maior ênfase a partir dos anos 2000 em diante, a Psicologia brasileira tem gradativamente se aproximado e produzido conhecimentos e práticas juntos aos povos indígenas (Guimarães, 2016). Em revisão sobre essa temática no Brasil, Fernandes e Calegare (2020) apontaram que as principais tendências de trabalhos publicados nos últimos anos articulando Psicologia e povos indígenas foram relativas às questões da saúde (mental) indígena, educação para os povos indígenas, inserção dos indígenas no meio urbano e algumas análises da cultura indígena segundo referenciais psicológicos europeus e/ou norte-americanos. Os autores ressaltaram também que ainda há pouca produção nacional da Psicologia Indígena – apesar de sua qualidade – ao contrário do que acontece em alguns outros países. Buscando contribuir com a aproximação da Psicologia junto aos povos indígenas, neste artigo abordaremos aspectos psicossociais vivenciados por indígenas de 12 etnias e por não indígenas de uma comunidade de Manaus/AM.

No Censo de 2010, dentre as pessoas autodeclaradas indígenas no Brasil, cerca de 52% delas viviam em cidades (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística [IBGE], 2012). No estado do Amazonas, pouco mais da metade de toda a população reside em Manaus e, compondo este cenário urbano, havia a presença de 3837 indígenas pelo Censo 2010, mas mais de 30 mil indígenas de 34 etnias pelo levantamento da Coordenação dos Povos Indígenas de Manaus e Entorno (COPIME) de 2015 (Ferreira, Calegare, Sampaio, & Clennon, 2019). Eles são oriundos do interior do Amazonas, de outros estados e nascidos nessa capital.

Sempre houve presença indígena em Manaus e não podemos considerá-la como fenômeno recente. Freire (1987) lembrou que os viajantes do séc. XVI relataram que toda a região dos rios Solimões, Negro e Amazonas era densamente povoada por indígenas. Onde atualmente está a capital amazonense habitavam os Manáo, Tarumã e Baré. Em 1669, os jesuítas e portugueses construíram nessa localidade estratégica o forte São José do Rio Negro e o aldeamento Lugar da Barra, que daria origem à atual cidade, com mão de obra de indígenas escravizados e trazidos de outras localidades. Figueiredo (2020) contou que os Manáo resistiam aos colonizadores e, liderados pelo cacique Ajuricaba, se rebelaram entre 1723-1727 – posteriormente em 1757 – sendo enfim completamente dizimados. Esse aldeamento permaneceu pequeno e sempre com maioria indígena, até ser promovido à categoria de vila e receber a denominação Manaus em 1832, com confirmação definitiva em 1856, "onde quase 80% da população era composta de índios destribalizados e mestiços que não falavam a língua portuguesa como língua materna" (Freire, 1987, p. 13). Os padrões de ocupação, povoamento e urbanização de Manaus se intensificaram do período da borracha (metade do séc. XIX) em diante, quando a cidade passou a crescer e ser destaque, sempre havendo presença dos indígenas (Magnani & Andrade, 2013). Com a criação da Zona Franca de Manaus, nos anos 1960, a cidade veio se expandindo exponencialmente e a circulação de indígenas do interior aumentou.

Atualmente, vir morar na cidade tem se tornado uma alternativa para muitos indígenas das Terras Indígenas (TIs). Às vezes, são motivados pela busca das melhores oportunidades socioeconômicas, qualidade de vida e de acesso à saúde, educação e lazer, supostamente oferecidas pelo ambiente urbanizado (Bernal, 2009). Rangel, Galante, e Cardoso (2013) apontaram também outros fatores: expansão da malha urbana encostando nas TIs e que os coloca em condições vulneráveis naqueles espaços; conflitos internos ou por terras; falta de um território para sua reprodução sociocultural; estar próximo dos parentes vivendo na cidade. Ferreira e Calegare (2019) apontaram que estar na cidade também lhes garante melhor acesso e exercício a direitos, reivindicações e visibilização de suas lutas e afirmação identitária. Por outro lado, Magnani e Andrade (2013) defenderam que há uma circulação dos indígenas em circuitos que envolvem as aldeias nas TIs e os assentamentos urbanos (arredores ou bairros na cidade), caracterizando um estilo de habitação que compreende a soma desses espaços de circulação, e não apenas estar na cidade.

Desde a colonização a presença dos indígenas em Manaus tem sido repetidamente de subalterização, apagamento de sua condição cultural e invisibilização (Freire, 1987). Esse padrão continua se prolongando e suas condições nas cidades se igualam às dificuldades existentes nas periferias ou bairros mais afastados, já que é nesses lugares, de forma geral, que eles residem: há falta de estrutura das moradias, ausência de serviços básicos e dificuldade de acesso a bens e serviços sociais (Bernal, 2009). O contexto da adaptação dos povos indígenas à cidade exige-lhes aprendizado de costumes, línguas, práticas culturais diferentes das suas (Ferreira & Calegare, 2019).

Além disso, Rosa (2018) ressaltou que eles têm sofrido preconceito e discriminação advindos dos não indígenas, inspirados por uma visão reducionista de que o índio deve morar nas aldeias. Nesse sentido, a autora problematizou que há um estereótipo dominante em nossa sociedade de que o indígena está associado ao binômio índio-comunidade em oposição ao branco-cidade e, nesse sentido, o "mundo dos índios" seria aquele na floresta e ligado a características pejorativas: "sujeira, falta de banho, incapacidade, alcoolismo, selvageria e canibalismo" (p. 146). Isso também é reforçado por Rangel et al. (2013), que afirmam: "a cidade é o ambiente que revela, de forma mais explícita, o racismo contra o índio, figura atrasada, inconfiável, de hábitos estranhos, feios e desagradáveis" (p. 114).

Cabe, ainda, outra problematização: entendemos a cidade como um espaço observável, um ambiente, um local o qual se vê e se ocupa; enquanto o urbano diz respeito às dinâmicas subjetivas, representações e práticas que orientam modos de vida e ações que acontecem em um espaço (real ou imaginado), podendo, portanto, ocorrer no ambiente de cidade ou florestal/ campestre (Calegare, 2017). Assim, compreendemos que a urbanidade não se limita aos espaços da cidade, apesar de estar estreitamente ligada a estes. A esse respeito, Rosa (2018) argumentou que a urbanidade pode ser entendida como um modo de vida e esta, em contrapartida, não é característica aos indígenas e à sua cultura originária. Apesar disso, a cidade não é vista como lugar de branco e a inserção dos indígenas no mundo urbano impõe-lhes desafios, dificuldades e adaptação para a constituição de um novo modo de vida, que não os torna menos índios, apesar de distingui-los daqueles indígenas que permanecem aldeados ou em cidades menores. Em suma, compartilhamos do ponto de vista de que o indígena não é descaracterizado por morar na cidade ou, ao permanecer nas aldeias, utilizar tecnologias modernas oriundas do mundo urbano. Discordamos – alinhados com indígenas de nosso convívio pessoal – em haver uma adjetivação classificatória entre um indígena aldeado e um indígena urbano. Preferimos adotar, nesse sentido, a nomenclatura indígena citadino ou na cidade para se referir ao indígena vivendo nesses lugares.

Dessa feita, estudos sobre povos indígenas na cidade, a partir do processo de migração e urbanização, contribuem para a compreensão, reflexão e desmistificação quanto ao processo dinâmico e cultural de manutenção de características étnicas, além de possibilitar uma maior visibilidade de tal tema perante a sociedade. Contudo, é necessário ampliar a visão e as discussões também para os modos de vida, contexto socioeconômico e as relações em contraponto às tradições dessa população. Como lembra Bernal (2009), a reconformação da identidade indígena está sempre sendo autorrefletida para que não se perca sua singularidade em meio aos demais grupos da sociedade. Considerando principalmente as migrações indígenas para as cidades e seus contextos de organização, é importante refletirmos sobre o sentimento de pertença que eles estabelecem com os locais, comunidades ou bairros onde habitam nessa realidade citadina.

Na região amazônica, é comum utilizar o termo comunidade no senso comum para designar povoados ribeirinhos, aldeias ou agrupamentos urbanos. Pensada pela Psicologia Social Comunitária (PSC), comunidade pode ser tanto uma categoria científico-analítica quanto de orientação da ação e reflexão, que se refere não apenas às relações face a face num determinado espaço geográfico, mas a todas as formas de relacionamento continuadas no tempo envolvendo engajamento moral, profundidade emocional e intimidade pessoal (Sawaia, 1996, citado por Araújo & Calegare, 2018). Assim, a comunidade é um espaço de mediação entre indivíduo e sociedade, que envolve uma dimensão psicossocial que abarca: lugar de moradia, de crescimento e de proteção da individualidade; convivência direta e duradoura; vinculação a um território comum; sentimento de pertença; compartilhamento de identidade social; participação na mesma cultura; sistema próprio de representações sociais; mesmas necessidades e problemas sociais (Góis, 2005).

Dentre esses aspectos, destacamos o sentimento de pertença, que à luz da PSC e da Psicologia Ambiental (PA) relaciona-se com a convivência dos moradores na comunidade, já que a vida no âmbito comunitário compreende reciprocidade, laços e coletividade que fazem como as pessoas se sintam pertencentes a um mesmo grupo social (Alcântara, Abreu, & Farias, 2015; Góis, 1994). Assim, o sentimento de pertença é um vínculo criado a partir das relações, contemplando a construção de uma história, tendo como base a convivência entre parentes e/ou vizinhos numa determinada comunidade (Araújo & Calegare, 2018).

Contudo, o sentimento de pertença só é possível a partir do processo de apropriação, que deve ser compreendida como a ação sobre o espaço, a fim de personalizá-lo e transformá-lo em lugar, o que propicia a sensação de segurança (Cavalcante & Elias, 2011). A apropriação do espaço possibilita a aquisição de referentes estáveis, que servem para nortear as pessoas e auxiliam a preservar suas identidades. Trata-se de uma necessidade – tanto individual, como coletiva – das pessoas identificarem territórios próprios e, assim, constituírem a personalidade, cognições e relações sociais, suprindo suas necessidades de pertença e identificação (Fischer, s/d).

A intensidade com que as pessoas se identificam com os distintos espaços nos quais vivenciam (residência, bairro, cidade) é produto das interpretações do lugar, bem como das experiências ali vividas, conferindo ao ambiente um papel de extrema relevância para a construção e manutenção da nossa identidade (Wester-Herber, 2004). Contudo, apesar de existir ampla produção teórica acerca da identidade social, raramente os estudiosos levaram em consideração o ambiente físico como um componente na elaboração da identidade pessoal e social (Bernardo & Palma-Oliveira, 2016). Assim, a PA contribui sobremaneira ao partir do pressuposto de que todos os aspectos da identidade têm implicações, em maior ou menor extensão, relacionadas ao lugar (Hernández, Hidalgo, Salazar-Laplace, & Hess, 2007).

Por essa razão, entendemos que nos processos comunitários a existência de reciprocidade entre comportamentos e o ambiente contemplam significados que perpassam o meio físico, envolvendo de forma afetiva, cognitiva e social a pertença ao lugar e, consequentemente, a identidade de lugar entre os moradores. Como indicam Câmara (2008) e Góis (1994), quando os membros de uma comunidade revelam um forte sentimento de pertença, isso se manifesta em maior envolvimento e participação em prol do coletivo. Assim, apreender o sentimento de pertença entre os moradores de certa comunidade pode revelar aspectos importantes para resguardar valores sociais e atribuídos ao lugar ou favorecer processos de fortalecimento comunitário, ativismo e emancipação.

O sentimento de pertencimento se constitui como base para a construção da identidade social e ambiental (Hernández et al., 2007; Lewicka, 2008). A identidade configurada a partir desse pertencimento possui como pressuposto básico de sua construção a memória das experiências e compartilhamento entre os comunitários; assim, a memória coletiva, a partir da transmissão de conhecimento, permite que haja a identificação das pessoas como pertencentes a uma comunidade (Santana & Simões, 2015). Schmidt e Mahfoud (1993), a partir das concepções de Halbwachs (do texto "A Memória coletiva"), apresentam a noção de memória coletiva como uma atividade realizada por determinado grupo social, que articula e localiza quadros sociais comuns, que formam um acervo de compartilhamento de lembranças.

Feitas essas considerações, neste artigo temos por objetivo apresentar e discutir a respeito do sentimento de pertença de moradores de uma comunidade pluriétnica de Manaus/AM, chamada Assentamento Indígena Comunidade Sol Nascente (CSN). Esta existe desde 2013, resultante de ocupação de uma Área de Proteção Permanente (APP) na zona norte da cidade. Buscamos elucidar e refletir se os moradores indígenas das 12 etnias e os moradores não indígenas se sentem ou não pertencentes à comunidade, e de que modo eles reconhecem tal pertencimento. Trata-se de uma comunidade que possui aproximadamente 650 moradores, 190 famílias, sediada num espaço com características rurais, por estar num fragmento de floresta e por ter ruas de terra. Entretanto, enfrenta sérios problemas urbanos: infraestrutura precária, falta de segurança pública e de acesso aos serviços básicos. E, ainda, a presença de preconceito e discriminação dos moradores dos bairros vizinhos.

 

Metodologia

Nesta pesquisa utilizamos a abordagem qualitativa de caráter descritivo, pela qual buscamos estudar um fenômeno de uma determinada amostra da população, para compreendê-lo e interpretá-lo (Gerhardt & Silveira, 2009). O instrumento utilizado foi a entrevista semiestruturada, contendo dados sociodemográficos (nome, idade, gênero, etnia, naturalidade, nacionalidade, estado civil, família e filhos, língua que entende e que fala, tempo de moradia, profissão, escolaridade e fonte de renda) e perguntas a respeito de: viver na comunidade, convivência comunitária, sentimento de morar na comunidade, sentimento de pertença, sofrer preconceito ou discriminação. Utilizamos também diário de campo para registro de nossas impressões.

Nossa inserção na comunidade ocorreu durante atividades integrando ensino (disciplina de PSC), pesquisa e extensão ocorridas entre 2016 e 2018, com visitas semanais aos sábados e durante alguns dias da semana, quando combinado com os moradores. Surgiu, assim, o interesse em investigar o sentimento de pertença e desenvolvemos a proposta de projeto de pesquisa com a devida autorização do comitê de ética.

O critério de inclusão adotado foi o de residir, no mínimo, há dois anos na comunidade. Deste modo participaram 13 moradores, sendo sete indígenas de cinco etnias diferentes (quatro mulheres e três homens): Apurinã, Baré, Kaixana, Kokama, Sateré-Mawe e seis moradores não indígenas (três mulheres e três homens). Todos tinham entre 19 e 80 anos (média = 37,6; DP = 16,1). Três dos indígenas falavam outra língua além do português. Da procedência, apenas um morador era da capital amazonense, enquanto 10 eram do interior do Amazonas e dois do Pará. O nível de escolaridade era baixo: dois participantes não estudaram, um tinha ensino fundamental completo e apenas dois participantes tinham ensino médio completo, enquanto os demais possuíam ensino fundamental incompleto. Das profissões, todas podiam ser consideradas como de baixa exigência de qualificação, o que se refletia na fonte de renda: quatro participantes eram assalariados (cozinheira, torneiro mecânico, mecânico, repositor), dois eram autônomos (dona de casa, pescador/comerciante), quatro recebiam bolsa família (donas de casa), uma recebia ajuda financeira da família (dona de casa), um era aposentado e um estava desempregado (eletricista/porteiro). Em suma, esse perfil revela que os moradores da comunidade são de classes mais baixas e desprivilegiadas.

Indígenas de outras etnias não quiseram participar ou não estavam na comunidade em nossas visitas. Todas as entrevistas da pesquisa foram realizadas nas residências dos participantes, sendo audiogravadas, em seguida transcritas e analisadas. Nem todos entrevistados responderam a todas as perguntas. Os participantes foram identificados com nomes fictícios e serão utilizados alguns trechos para exemplificação das categorias de análise dos resultados.

Os dados foram submetidos à análise de conteúdo temática (Bardin, 2011), enriquecidas com anotações do diário de campo. Essa técnica consiste em um conjunto de procedimentos para desvelar o conteúdo latente na fala dos participantes. Inicialmente, foi feita uma "leitura flutuante" para apropriação do texto. Em seguida, foram elaboradas categorias temáticas, a partir da codificação do material em unidades de significação. Da análise das respostas dos participantes emergiram as seguintes categorias e subcategorias temáticas que serão exploradas em detalhes na seção subsequente: a) viver na comunidade (aspectos favoráveis; aspectos desfavoráveis); b) convivência na comunidade (harmoniosa, brigas familiares); c) sentimentos sobre morar na comunidade (sentimentos positivos; sentimentos negativos); d) sentir-se pertencente ou não à comunidade (pertencente à comunidade, não pertencente à comunidade); e) preconceito e discriminação (não percebia, percebia).

 

Resultados e discussão

Viver na Comunidade

Vivência deve ser compreendida como a experiência de viver, que permite aquisição de conhecimento da vida na inter-relação da pessoa consigo mesma, com os demais e com o ambiente. A vivência, dentro da comunidade, permite a observação da interação do coletivo, em que a pessoa vivencia a realidade comunitária, transformando sua consciência sobre si e sobre o mundo (Góis, 1994). A análise dos dados a respeito da compreensão dos moradores sobre viver na Comunidade Sol Nascente, possibilitou a criação de duas categorias: aspectos favoráveis; aspectos desfavoráveis.

Os aspectos favoráveis foram subcategorizados segundo respostas que se referiam a: sentir-se bem (sete respostas), sentir-se tranquilo (1), viver bem com respeito (1). Por meio destas, os moradores apontaram a possibilidade de lazer para as crianças, sentimentos de tranquilidade e bem-estar, conforme alguns exemplos: "Eu acho um lugar muito bom de viver, meus filhos podem brincar aqui, diferente de outros bairros, eu acho" (Débora indígena, comunicação pessoal, setembro 2018). "Aqui eu me sinto como lá no interior. Por mim se não pudesse urbanizar aqui, tava bom demais. No início era tão legal, a gente tinha as rodas, fazia os rituais (...) todo mundo se pintava" (Felipe indígena, comunicação pessoal, setembro 2018).

Os nove entrevistados que responderam aspectos favoráveis revelam possuir sentimentos positivos de viver na CSN, o que nos remete ao apego ao lugar, isto é, ao vínculo emocional com o lugar que sustenta o sentimento de pertença e a identidade de lugar (Hernández et al., 2007; Lewicka, 2008). A criação do lugar se efetiva a partir da relação entre pessoa-ambiente, o que supõe vivência, significação e estabelecimento de laços afetivos que se materializam no apego ao lugar (Cavalcante & Nóbrega, 2011).

Já os aspectos desfavoráveis foram subcategorizados segundo respostas (2) que se referiam à dificuldade imposta pela falta de serviços de infraestrutura, como exemplificado no trecho a seguir: "É um pouco difícil, sem asfalto, sem água, muito complicado (...) quando chove alaga (...) as coisas que a gente tem que ir atrás é longe (...) aqui dentro da comunidade não tem" (Helena indígena, comunicação pessoal, setembro 2018).

Todos os moradores, indígenas e não indígenas, vivenciam esses aspectos desfavoráveis relacionados à falta de infraestrutura de uma área urbana periférica (Ferreira & Calegare, 2019). Paradoxalmente, esse mesmo cenário é o que traz sentimento de tranquilidade por lembrar um ambiente rural. Portanto, a partir dessas falas podemos considerar que viver na CSN está ligado a um imaginário que projeta o rural como lugar de calmaria e segurança, com relações interpessoais mais próximas, mas que de certa maneira deve progredir pelos bens e serviços urbanos (Calegare, 2017).

Em um estudo realizado por Hinojosa, Mzoughi, Napoléone, e Villegas (2019), os pesquisadores consideraram que as condições desfavoráveis do lugar, seja um ambiente natural ou construído, favorecem o desenvolvimento do apego ao lugar. Isso ocorre porque o apego ao lugar é mediado pela identificação com a comunidade. Assim, para os moradores da CSN o sentimento de pertença tem ligações simbólicas e afetivas com esse lugar (Pinheiro, 2019), cujas características remetem a um ambiente florestal de interior (Calegare, 2017).

Convivência na Comunidade

A convivência consiste nas experiências que o sujeito adquire durante o processo de interação com seu meio social, caracterizando-se por uma relação simétrica que possibilita a vivência harmoniosa em grupo (Sanchez-Villafãne & Quiceno-Pérez, 2016). Pela convivência se constroem processos que tornam possível o estabelecimento de acordos que garantem a consolidação de boas relações na comunidade, evitando conflitos. Isso pode servir para ancorar o sentimento de pertencimento. Dessa feita, ao investigarmos a percepção sobre a convivência entre os moradores do assentamento, obtivemos 10 respostas quanto ao caráter da convivência comunitária ser harmoniosa, conforme alguns exemplos a seguir:

"É tranquilo, todo mundo aqui se conhece, conversa, não tem briga até agora, graças a Deus" (Cristian não indígena, comunicação pessoal, setembro 2018). "Pra mim é boa, as vezes a vizinha vem, tem o cajueiro ai, ai nos fica conversando, tipo dia de domingo, nós compra alguma coisa e assa, a gente chama eles e fica aqui" (Débora indígena, comunicação pessoal, setembro 2018). "Tudo na paz. Não tem briga com ninguém" (Luiza não indígena, comunicação pessoal, setembro 2018).

Apenas uma das respostas revelou haver um contraponto, referindo-se às brigas familiares: "É bom. Já teve alguma discussão assim, mais entre os parentes mesmo, mais é coisa de bebida" (Ismael não indígena, comunicação pessoal, setembro 2018).

Para os comunitários, a convivência na comunidade é harmoniosa devido à tranquilidade e às boas relações entre os vizinhos, com a ressalva de que a interpretação de convivência não contempla as relações intrafamiliares. Isto se reafirmou durante a pesquisa de campo, através de conversas informais, identificando-se presença de diversos conflitos de cunho intrafamiliar, com relatos de violência doméstica. Ao investigarmos como é a resolução de conflitos, os moradores enfatizaram que isso competia ao próprio núcleo familiar, o que não interferia na convivência comunitária.

Quanto mais significativa as relações sociais que a pessoa estabelece, maior o apego ao lugar (Moser, 2018). Deste modo, a existência de uma rede social amigável, além de fortalecer o apego ao lugar, reverbera no sentimento de pertença entre os moradores (Sanchez-Villafãne & Quiceno-Pérez, 2016). Isso indica que apesar da CSN ser pluriétnica e haver os não indígenas, há uma percepção compartilhada de que há certa harmonia entre eles. Novamente, em nossa pesquisa de campo constatamos que havia alguns conflitos interétnicos entre alguns grupos indígenas por razões históricas. E também entre os indígenas com os não indígenas. Contudo, o que se sobressaía era a convivência amistosa da vizinhança, criando assim uma pertença compartilhada.

Sentimentos sobre Morar na Comunidade

Na fala dos entrevistados ficou evidente a existência de sentimentos positivos em relação a morar na CSN, remetendo-se a: sentimentos agradáveis (seis respostas), sentimentos de tranquilidade (3), sentimento de normalidade (1). E os sentimentos negativos: expectativas de melhorias (2). Os trechos abaixo ilustram experiências positivas de viver na CSN: "Ótimo mesmo, tá tranquilo, ainda não tem negócio de ladrão. Você vê como tá a casa ainda (...) tá tudo ok" (Simone indígena, comunicação pessoal, setembro 2018). "Eu me sinto bem assim com as pessoas, eles dialogam com todo mundo aqui, todo mundo é um vizinho do outro, um é bom com o outro assim, não tem nada de briga e essas coisas" (Débora indígena, comunicação pessoal, setembro 2018).

Os sentimentos negativos relatados pelos depoentes estão atrelados a problemáticas socioeconômicas e de infraestrutura: "Eu sei que eu tenho um lugar pra mim morar sem pagar aluguel (...) morei alugado, meus filhos são cinco crianças, que não pode trabalhar, somente o pai, aí fica difícil também morar alugado" (Helena indígena, comunicação pessoal, setembro 2018). "Aqui ainda é ruim por causa das ruas que ainda falta dar uma ajeitada, a água também que nós não têm, a luz também que falta aqui, isso que eu achei um pouco, assim, difícil" (Regina não indígena, comunicação pessoal, setembro 2018).

Para 10 entrevistados há sentimentos positivos sobre a experiência de morar no assentamento, ancorados em representações positivas para eles. Apesar da presença de sentimentos negativos, a representação sobre o lugar é positiva para estes entrevistados, por possibilitar-lhes sair do aluguel e ter uma moradia. Tais sentimentos positivos geram apego ao lugar e podem sedimentar o sentimento de pertença (Lewicka, 2008; Pinheiro, 2019).

Podemos, então, interligar tais relatos ao processo de apropriação e à relação pessoa-ambiente, pelos quais a pessoa introjeta em si e projeta no ambiente, realizando transformações e desencadeando na criação do seu próprio lugar (Cavalcante & Elias, 2011). A moradia proporciona a criação de vínculos emocionais entre a pessoa e o ambiente. Nesse sentido, a moradia deve ser apreendida enquanto território primário, capaz de garantir a seus ocupantes intimidade e refúgio pessoal, por se constituir em um espaço privado (Fischer, s/d; Moser, 2018). Por essa razão, não é somente a casa na CSN, mas o que ela representa para cada um desses moradores que foram entrevistados que descreve significados voltados para as vivências e sentimentos do sujeito (Cavalcante & Nóbrega, 2011).

Sentir-se Pertencente ou não à Comunidade

Durante a vivência da pessoa, alguns lugares simbolizam e proporcionam a sensação de pertencimento (Wester-Herber, 2004). Os espaços podem contribuir ou não para que isso aconteça. Nesta seção, buscamos compreender se o sentimento de pertença estava presente ou não entre os moradores, visto que a comunidade é composta por indígenas de distintas etnias e por não indígenas. Entre os entrevistados, apenas um afirmou não se sentir pertencente: "não (...) quando eu cheguei aqui já tinha a comunidade" (Regina não indígena, comunicação pessoal, setembro 2018). Outros 10 afirmaram se sentirem pertencentes à comunidade: "Sim, porque eu sou morador aqui, né" (Cristian não indígena, comunicação pessoal, setembro 2018). "Eu achava ruim, achava ruim quando pagava aluguel. É um dinheiro que não volta, é pesado. Ai que eu me tremia todinho. Aqui, todo tempo eu fiz, todo tempo eu fiz parte de tudo aqui" (Ismael não indígena, comunicação pessoal, setembro 2018). "É aqui eu me sinto parte dos irmãos da comunidade aqui (...) uma vez chegou lá em casa pra almoçar, poxa o senhor é um índio bacana mesmo. Sou, graças a Deus sou índio, a senhora não é não?" (André indígena, comunicação pessoal, setembro 2018). "Me sinto porque eu faço parte, porque eu moro aqui e qualquer coisa nós somos unidos, quando tem reunião (...) na tenda do cacique (...) eles querem algo para cooperar (...) eu faço parte" (Helena indígena, comunicação pessoal, setembro 2018).

Por esses depoimentos, percebemos que um primeiro fator para se sentir pertencente ou não à comunidade remete à memória coletiva (Santana & Simões, 2015) de fundação da CSN, com podemos inferir pela fala da participante que não se sente pertencente. Quando não há apropriação da pessoa com o ambiente sociofísico, a comunidade e sua trajetória passada ao presente, surge então sentimento de não integração, estranhamento e falta de familiaridade com o lugar (Fischer, s/d), como para a entrevistada. É a apropriação contínua do lugar garante à pessoa a estabilidade de sua própria identidade (Moser, 2018).

Um segundo elemento está ligado à apropriação pela participação coletiva em prol da vida comunitária, que gera pertencimentos àqueles que se engajam e participam da busca de melhorias para a comunidade (Câmara, 2008; Góis, 1994, 2005). Os moradores fazem isso por reuniões e por uma organização sociopolítica liderada por um cacique, o que inclui, portanto, o fator étnico ao pertencimento à comunidade e que a caracteriza enquanto um assentamento indígena (Ferreira & Calegare, 2019).

Outro elemento se relaciona ao fato de morar naquele local geográfico. Tuan (2013) defendeu que o sentimento de pertença é evidenciado quando relacionado ao espaço que se habita, ao contemplar aspectos afetivos, cognitivos e sociais que o transformam num lugar. Argumentou ainda que o lugar é o centro de significado para as pessoas, pois é nesse que elas realizam ações, desde atividades corriqueiras até atividades significativas capazes de impactar na vida de outras pessoas. Nesse sentido, o cotidiano e o tempo de moradia se inter-relacionam, permitindo a construção de vínculos comunitários, compreendidos segundo o sentimento de pertença à comunidade (Alcântara et al., 2015). Assim, os entrevistados revelaram possuir apego ao lugar e o sentimento de pertença.

Em suma, apesar de haver diferenças intra e interétnicas entre os moradores, observamos que entre os participantes há sentimentos de pertencimento comuns e compartilhados de fazer parte da CSN. Isso se relaciona a aspectos da memória coletiva de criação da comunidade, de participação em ações comunitárias e de moradia nesse lugar. Quando ainda não havia apropriação disso, o morador não se sentia pertencente à comunidade, o que também pudemos verificar através de nossas atividades em campo. Não houve, portanto, diferenciação do pertencimento relacionado ao fator étnico.

Preconceito e Discriminação

Preconceito é uma ideia pré-concebida sendo caracterizado como um atributo atitudinal – atitude entendida como uma predisposição para responder a um determinado objeto (coisa, pessoa, instituição, acontecimento, lugares, ideias, comportamentos, etc.) de forma favorável ou desfavorável (Michener, Delamater, & Myers, 2005). Quando relacionado às pessoas, Melo (2019) argumentou que este é entendido como um conceito formado antecipadamente, uma opinião ou julgamento sem levar em conta fatos que os contestem, ou intolerância, ódio irracional e aversão a pessoas, credos, religiões, etc. Ao se referir aos efeitos psicossociais do racismo, o autor salientou que o preconceito é uma resposta emocional negativa baseada em julgamento infundado e dificilmente modificável, sendo sentido e expresso a uma pessoa ou grupo tido como inferior em função de sua raça-etnia. E a discriminação, derivada do preconceito, se refere a criar, manter ou reforçar vantagens e privilégios para pessoas/grupos à custa de desvantagens para outras pessoas/grupos, resultando em diferenciação na forma de tratamento e acesso a bens públicos e privados.

Investigamos se a percepção do preconceito e discriminação, como verificado em nosso diário de campo, era percebido pelos moradores indígenas e não indígenas de maneira semelhante. Mais além, se isso favorecia ou não o sentimento de pertença, uma vez que ao se sentir discriminado um morador poderia não se reconhecer pertencente à comunidade.

  • Não percebia: Dois indígenas e três não indígenas declararam não perceber preconceito ou discriminação, conforme alguns exemplos: "Até agora não" (Débora indígena, comunicação pessoal, setembro 2018). "Até agora ainda não, porque eu participo da comunidade, agora eu não sei com os outros. O cacique sempre tem uma reunião que os indígenas e os não indígenas eles têm os mesmos direitos" (Henrique indígena, comunicação pessoal, setembro 2018). "Eu nunca percebi não (...) converso muito com eles, eu acordo cedo e eles, nunca vi essas. Tudo tranquilo, não tem. Às vezes, eles mesmos brigam quando tão bebendo, eles parentes, família" (Ismael não indígena, comunicação pessoal, setembro 2018).

Nota-se que para os indígenas a pertença comunitária parece suplantar preconceitos e discriminação. Entretanto, pelo exemplo do não indígena é perceptível o distanciamento que o depoente faz entre ele como morador não indígena com os demais.

  • Percebia: Houve percepção do preconceito e discriminação, todos por indígenas: relacionado à etnia (cinco respostas), ser morador da comunidade (1). Vejamos alguns exemplos: "Porque no meu caso, eu tenho uma etnia, e muitos assim fala as coisas, que baixisse falar de índio não sei o quê, mais sempre acontece mesmo" (Helena indígena, comunicação pessoal, setembro 2018). "Eu sou ali do outro lado. O senhor é índio é? A mulher: tá aqui o pão. Não, não, índio é pra lá, pra essa beira lá, esse igarapé que passa lá, e índio é pra lá" (André indígena, comunicação pessoal, setembro 2018).

É os de cima (...) que sempre tem uma vizinha que quando vai limpar ouve cada palavrão, diz seus índios fedorentos, vão se embora daqui seus índios fedorentos (...) porque tu não diz pra ela (...) olha que o índio dá flecha. (Simone indígena, comunicação pessoal, setembro 2018)

O pessoal do conjunto no começo implicavam muito, até a senhora daqui de trás implica bastante com esse pessoal aí, chama eles de índio fedorento (...) quando isso daqui era uma área de APP, o pessoal da última rua tudinho eles consideravam o terreno deles até aqui atrás, entendeu? Aí quando aconteceu a ocupação, teve essa rixa toda deles. (Felipe indígena, comunicação pessoal, setembro 2018)

Esses depoimentos nos revelam que existem estereótipos negativos atribuídos aos indígenas. Como vimos previamente, a falta de conhecimento e informações sobre o modo de vida, costumes e a cultura indígena leva ao preconceito e discriminação contra eles (Ferreira & Calegare, 2019; Rangel et al., 2013; Rosa, 2018). Chama-nos atenção o fato de referirem-se aos indígenas como fedorentos, o que nos lembram as ideias de higienização social. Borges (2011) descreveu que estas ideias apregoavam o bem-estar coletivo e desenvolvimento moral por uma educação e hábitos de higienização dos ambientes, hábitos e costumes, tendo como alvo principal os miscigenados e raças das classes populares brasileiras. Passou-se a considerar que higienizar era sinônimo de resolver questões sociais e por meio desta se chegaria à elevação moral, conquista da formação e aperfeiçoamento do caráter, desenvolvimento do país – o que parece faltar aos indígenas pela lente dos não indígenas. Isso dá base para que os povos indígenas sejam motivos de preconceito e discriminação praticados pelos moradores dos bairros ao redor.

Além disso, identificamos que o preconceito e discriminação se concretizam por conflitos intergrupais (Michener et al., 2005) que caracterizam as divergências entre indígenas e não indígenas, mas também entre moradores de localidades geográficas diferentes: os de cima, os do terreno ao lado, os do igarapé para cá. Nesse sentido, dois não indígenas afirmam perceber preconceito e discriminação relacionados ao fato de ser morador da comunidade:

Porque aqui eles se consideram indígena, né? E lá, eles não, se chamam branco, né? Eu achava até que eles lá, já vieram muitas vezes pra tirar essa área aqui, né? Que as vezes os indígenas e os não indígenas não pode tá assim no meio, né?. (Regina não indígena, comunicação pessoal, setembro 2018)

"O pessoal joga lixo, porque sabe que a gente não tem caminhão pra passar aqui, aí joga lá pra esperar o caminhão passar, e ficam falando besteira" (Cristian não indígena, comunicação pessoal, setembro 2018).

Desses relatos todos, percebemos a existência de conflitos intercomunitários, que podemos entender como conflito intergrupal, que consiste em um processo coletivo em que os pares agem conforme suas crenças, valores e interesses, entrando em desavença com os demais integrantes de grupos que divergem de seu posicionamento, opinião ou categoria social (Michener et al., 2005). Ao falarmos de grupos sociais diferentes, podemos exemplificar fazendo um comparativo entre os moradores do bairro ao redor, que residem em imóveis financiados, em um conjunto planejado pelo governo, com infraestrutura adequada e acesso aos serviços básicos. Do outro lado, os moradores da CSN residem em uma ocupação de uma APP, sem planejamento e infraestrutura, com acesso ruim aos serviços básicos em outras localidades – e, além disso, indígenas.

Em suma, vimos que apesar de haver, ou não, percepção do preconceito e discriminação com os indígenas ou moradores de uma ocupação, isso parece não refletir no sentimento de pertença à comunidade. Os fatores ligados à apropriação, apego e identidade de lugar se sobrepõem a esses aspectos negativos das relações intra e intercomunitárias.

 

Conclusão

Buscando reforçar a aproximação da PSC e PA junto aos povos indígenas, neste artigo apresentamos e discutimos se os moradores indígenas e não indígenas de ocupação de uma APP em Manaus/AM compartilhavam de um mesmo sentimento de pertença a essa comunidade. Pudemos verificar que apesar de haver o fator intra e interétnico que configurou a formação da CSN, que determina no presente sua organização sociopolítica, e de haver preconceito e discriminação contra indígenas e contra moradores de uma ocupação, há sentimento de pertença compartilhado entre todos. Não houve, portanto, diferença no pertencimento relacionado ao fator étnico.

Tal pertencimento está relacionado a três elementos centrais: a) à memória coletiva de criação da CSN, que foi fruto da ocupação de uma A.P.P. e que configura a organização comunitária até o presente; b) à maneira como os moradores estabelecem a apropriação, apego e identificação com o lugar, que remetem às imagens de um ambiente rural como um lugar tranquilo e das boas relações de convivência entre vizinhos, apesar das dificuldades de infraestrutura e de brigas intrafamiliares; c) às lutas comunitárias, que geram laços entre os moradores, unindo-os por meio da participação nas atividades comunitárias. Por outro lado, quando não houve apropriação desses elementos por algum morador, manifestou-se sentimento de não pertencer à comunidade. Houve, portanto, diferença no pertencimento relacionado à apropriação do ambiente comunitário enquanto lugar para se morar e viver, com toda sua história e configurações ambientais e sociopolíticas.

Reforçando as teorias psicológicas expostas, verificamos que o sentimento de pertença, originado nas relações cotidianas de convivência entre pessoas e lugares, é moldado pelos vínculos e afetos que permeiam as relações comunitárias. A partir das práticas sociais localizadas nesse ambiente houve a construção dos elos afetivos, apropriação, apego e identificação com o lugar que formulam a sensação de pertencimento. Além disso, ponderamos aspectos importantes no modo de vida e funcionamento da organização comunitária da CSN, com sua particularidade étnica de relação entre indígenas e não indígenas. Vimos que o sentir-se pertencente está também ligado aos processos comunitários de organizações e mobilizações políticas reivindicatórias de comunidades indígenas na cidade, que acontece por reuniões, participação coletiva e organização sociopolítica tendo a figura do cacique como liderança. E, principalmente, sobre como isso tem colaborado para o fortalecimento da identidade comunitária que é prioritariamente étnica, havendo coesão grupal com aspectos positivos ou negativos resultados da relação interétnica entre os moradores.

Concluímos, em suma, que há pertencimento entre os moradores dessa comunidade fruto de uma ocupação recente de uma A.P.P. com pessoas indígenas e não indígenas. E que esse sentimento de pertença é importante por desenvolver vínculos afetivos, identificação, valorização e preservação do ambiente comunitário, o que proporciona coesão grupal e fortalecimento comunitário.

 

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Endereço para correspondência:
Marcelo Calegare
Universidade Federal do Amazonas
Faculdade de Psicologia
Av. Gen. Rodrigo Octávio 6200, Setor Sul, Coroado I
Manaus, AM
CEP 69.080-900
Telefone: (92) 33051181 Ramal: 2580
Email: mcalegare@ufam.edu.br

Recebido em 26.jun.20
Revisado em 25.fev.21
Aceito em 07.dez.21

 

 

Marcelo Calegare, Doutor em Psicologia Social pela Universidade de São Paulo (USP), é Docente Permanente do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Amazonas (UFAM).
Kássia Pereira Lopes, Psicóloga pela Universidade Federal do Amazonas (UFAM), Pós-Graduada pela Faculdade Futura Instituto de Ciência Educação e Tecnologia de Votuporanga, é Psicóloga clínica na Alinhar Bkmr Atividades de Psicologia e Consultoria Ltda. Email: kassiapsy@gmail.com
Elisa Ferrari Justulin Zacarias, Doutora em Ciências do Ambiente e Sustentabilidade pela Universidade Federal da Amazônia (UFAM), é Pesquisadora do Laboratório de Psicologia e Educação Ambiental do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (LAPSEA/ INPA). Email: elisa.justulin@gmail.com

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