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Temas em Psicologia

versão impressa ISSN 1413-389X

Temas psicol. v.1 n.1 Ribeirão Preto abr. 1993

 

Os modos de participação do outro nos processos de significação do sujeito

 

 

Maria Cecília Rafael de Góes

Universidade Estadual de Campinas

 

 

A investigação dos processos de construção de signsificados na criança abrange necessariamente um exame do funcionamento intersubjetivo, já que o espaço interativo é o contexto de constituição do sujeito, de seus conhecimentos e formas de ação. Assim, no esforço para compreendermos essa constituição, temos que abordar o papel do outro no espaço de ação do sujeito.

A contribuição do outro tem sido referida, na literatura da corrente histórico-cultural, como ação partilhada, ajuda, estabelecimento de ponte (bridging), criação de estrutura de suporte (scaffolding), transferência de responsabilidade ou controle etc. (em análises de autores como Bruner, 1985; Cole, 1985; Wertsch, 1985; Roggoff, 1991; Valsiner e van der Veer, 1991). Estas são referências úteis para análise mas um passo produtivo adicional pode estar na investigação de como tais configurações gerais da ação do outro são realizadas enquanto modos específicos de participação no funcionamento do sujeito.

O projeto de pesquisa que é tomado como fonte para os temas deste simpósio inclui um estudo em que estamos buscando categorizar os modos de participação do outro - pares e professora - no espaço de ação da criança, no contexto pré-escolar. Até o momento, realizamos análises preliminares em relação apenas à participação da professora. Examinamos situações envolvendo atividades diversas e composições variadas (criança em atividade de classe, em atividade de pequeno grupo ou em atendimento individual com a professora).

A categorização tem envolvido dois níveis de análise: o primeiro diz respeito às ações do outro em relação à criança, que denominamos movimentos^ no segundo nível, tentamos considerar a articulação desses movimentos do outro, num segmento interativo, enquanto modos de participação.

As categorias de movimentos da professora em relação à criança, que identificamos até o momento, incluem: circunscrição da solução, inserção de objetivos novos, direcionamento da ação, confirmação, incorporação de conhecimentos, reversão de responsabilidade e simulação de autonomia. Para ilustrar o que denominamos movimentos, podemos considerar como uma ação da professora pode se inserir de formas diversas no fluxo de interação, como é o caso, por exemplo, da apresentação de perguntas. A pergunta pode ser um movimento de incorporação de conhecimento - quando a criança demonstra não ter elementos suficientes para solucionar um problema e a professora apresenta uma pergunta relativa a alguma experiência anterior que contém pistas para a solução; pode ser de reversão de responsabilidade - quando a criança espera ou solicita a solução de um problema pela professora e esta formula uma pergunta que desloca o esforço de elaboração para a iniciativa da criança; pode ser de inserção de objetivo novo - quando a criança mostra dominar parte de um problema e a professora pergunta algo para induzi-la a se envolver numa operação mais sofisticada. Nessas situações, o que a professora faz é perguntar; mas essa ação, considerada na sua orientação semiótica para a criança, pode corresponder a diferentes movimentos.

Quanto aos modos de participação da professora, que são configurados pela composição de movimentos num segmento interativo, identificamos, até o momento, os seguintes: condução estrita (em que a maioria dos passos de realização de uma tarefa é direcionada ou dada pela professora); indução de interpretação (em que a professora dá pistas e informações para a criança formular os passos para realizar uma tarefa); criação da ilusão de domínio (em que a professora oferece os elementos necessários para a realização da tarefa de modo que a criança atue como se fosse autônoma); e proposição de desafio (em que a professora orienta a criança para se envolver em formas de ação mais complexas que as mostradas até então, na tarefa).

Devemos ressaltar que, na identificação de modos de participação do outro, é imprescindível considerar a ação da criança, pois também dela depende necessariamente a forma como a interação transcorre. Os movimentos da professora, ao longo de um segmento interativo, vão se regulando, e se configurando em modos de participação, na dependência das formas de funcionar da criança.

Essas são algumas indicações iniciais dos dados. Porém, nosso propósito é mais levantar questões que as análises têm gerado, do que efetuar um relato das mesmas. Por essa razão, passamos a comentar pontos de discussão que têm emergido no estudo em andamento, especificamente aqueles que se referem à esfera das implicações educacionais do conhecimento psicológico e que, por sua vez, envolvem problemas de caráter conceituai e metodológico.

Questões dessa natureza podem ser levantadas em relação a inúmeras situações mas adquirem ênfase frente a ocorrências 'desconsertantes'. Por isso, elas têm emergido sobretudo quando consideramos episódios triviais em sala de aula, em que a professora prepara o caminho, por assim dizer, para certas ações da criança e esta age numa direção divergente. Isso aparece, por exemplo, em situações de grupo, em que as crianças apresentam respostas concomitantes muito diversas para uma pergunta da professora, após todo um trabalho pára a construção de determinado conhecimento; ou em situações em que uma criança, num atendimento individual da professora, responde de modo inadequado e/ou inesperado, tendo em vista um esforço conjunto de elaboração imediatamente anterior.

Tentamos examinar, nesses casos, que significados foram construídos pelas crianças na interação; também nos perguntamos o que houve 'de inadequado* ou o que 'poderia ter sido feito'. Nesse esforço analítico, vários problemas passam a ocupar e preocupar o pesquisador. Tais preocupações se referem à tentativa de caracterizar a mediação pedagógica presente no funcionamento das crianças. Assumimos que a relação entre a ação do outro e ação do sujeito é de caráter constitutivo. Daí emergem duas tarefas difíceis.

A primeira tarefa consiste na busca para evidenciar o caráter constitutivo. Uma dificuldade de ordem geral que aparece na interpretação refere-se ao fato, nada novo, de que o que o outro faz não determina, plenamente ou unidirecionalmente, o funcionamento do sujeito. Temos de lidar, então, com a articulação das noções de constitutividade e determinância limitada. Um elemento adicional de complexidade está no fato de presumirmos que nem tudo que o outro faz na presença do sujeito constitui seu funcionamento. Ademais, quando as ações do outro parecem afetar o sujeito, nem sempre é fácil dizer o que elas propiciaram construir e como isso se deu.

Na segunda tarefa está implicado o esforço analítico de qualificar a mediação semiótica criada pelo outro, um problema por vezes difícil porque a qualificação, ou avaliação, só pode ser feita a partir da referência a objetivos e metas (no caso, educacionais), o que nos leva a tentar coordenar critérios relativos aos conhecimentos científicos e aos valores sociais. E como elemento complicador, nem sempre temos recursos conceituais e analíticos para dizer se os modos de participação do outro são ou não adequados.

Essas tarefas de evidenciar o caráter constitutivo e qualificar a mediação do outro, embora exigentes, são realizáveis enquanto esforço de análise e interpretação do já ocorrido, enquanto olhar retrospectivo. Todavia, a produção do conhecimento psicológico está vinculada, ao mesmo tempo, a um esforço prospectivo. No contexto pedagógico, como em outros contextos institucionais, é preciso levantar sugestões de linhas de ação, a partir das análises e tendo como referencial um desejado estado de coisas. Retornando à situação de sala de aula, vamos imaginar que a professora espere indicações sobre o que ela deveria fazer, em situações futuras, para garantir melhores condições para a construção de significados pelas crianças. Esta solicitação é comum e está circunscrita, neste exemplo, ao contexto pedagógico pré-escolar. Entretanto, ela diz respeito a um problema mais abrangente, qual seja, o do compromisso social da Psicologia com a destinação dos conhecimentos que produz.

Esse esforço prospectivo apresenta mais dificuldades, parece-nos, que o analítico-retrospectivo e implica o que tradicionalmente é assumido como função de predizer e prescrever. Embora a Psicologia, em diferentes teorias, tenha reconhecido limites no estabelecimento de variáveis determinantes e recorrido à noção de que é possível apenas criar condições para aumento da probabilidade de certas ações, uma pretensão preditiva e uma vocação prescritiva se fazem presentes nas esferas de atuação. No entanto, se entendemos que o papel do outro é constitutivo mas limitadamente determinante do funcionamento do sujeito, torna-se impossível ditar previamente - pré-dizer - que, dada uma ação A do outro, o sujeito fará B. O que podemos fazer em relação ao futuro é projetar um cenário, derivando formas potenciais de atuação de outros. Essa derivação pode se basear em: a) interações típica em que o sujeito se envolve e como funciona nelas; b) uma forma especial de interação que não é típicas mas foi efetiva uma ou algumas vezes (como em movimentos não-usuais do outro participante constituindo uma ação surpreendente no funcionamento do sujeito); ou c) uma possibilidade não realizada antes, nas interações observadas (como quando tentamos estabelecer um modo de participação do outro ainda não constatado no funcionamento do sujeito).

Estas não pretendem ser alternativas exaustivas; o que queremos ressaltar é que a Psicologia está, de certo modo, substituindo uma vocação prescritiva por uma disposição explorativa, e que a noção de projeção, e não a de uma predição no sentido estrito, está envolvida na possibilidade de contribuição do conhecimento psicológico a contextos institucionais, como o pedagógico. Trata-se de antecipar cenários, escolher entre possibilidades e nelas investir, em função de objetivos e metas. E, de novo, temos que articular derivações dos conhecimentos científicos com valores sociais.

Finalmente, queremos destacar que, nessas reflexões sobre a possibilidade de avaliar a mediação pedagógica e de derivar diretrizes pedagógicas, se revela a necessidade de uma espécie de 'teoria do outro' para propiciar uma melhor compreensão da constituição do sujeito; em outras palavras, a necessidade de construir recursos conceituais e metodológicos adicionais para as tarefas, antes mencionadas, de analisar, qualificar e projetar modos de participação do outro.

Temos que recordar, porém, que esforços nessa direção criam desafios e controvérsias. Frente a tentativas de analisar processos de funcionamento entre sujeitos, de relação eu-outro, de inter-regulação, emerge o debate sobre a idéia de 'fusão' do sujeito individual na realidade social, com críticas ao risco de 'dissolução' do sujeito e apelos à sua preservação. (Ver, por exemplo, as discussões de Valsiner, 1991 e Wertsch, no prelo). Com a assunção da centralidade da relação eu-outro, aparece uma situação quase irônica: o fortalecimento do outro-sujeito passa a acompanhar uma imagem 'mais frágil' do eu-sujeito. De fato, é complicado compor um quadro teórico em que tenham lugar a intersubjetividade constitutiva e a singularidade do sujeito. As dificuldades advêm da atribuição de um caráter social à gênese e natureza do funcionamento do indivíduo. Entretanto, entendemos que a assunção de um princípio de inter-regulação não precisa se opor à concepção do ser singular.

O objeto da Psicologia tem sido atribuído, de um lado, a padrões de ação universais ou, de outro, a diferenças individuais. Num caso, se considera um indivíduo geral e, noutro, uma multiplicidade de indivíduos. Essas posições são constrastantes, mas ambas acabam configurando um sujeito abstrato. E o caráter abstrato do sujeito, seja na sua composição universal, seja na sua composição diferenciada, se faz compatível com a idéia de um ser homogêneo ou uniforme. No entanto, a tendência crescente para examinar o indivíduo concretamente constituído nos leva a conceber a individualidade como processo, construída socialmente e a singularidade como conjugação de elementos nem sempre convergentes ou harmoniosos.

Parece-nos que as tentativas de um paradigma emergente (tentativas do tipo 'sócio-interacionismo' ou 'co-construtivismo') buscam vislumbrar saídas para as oposições sujeito individual-social, universal-diferenciado e abstratoconcreto. Sugerem que focalizemos, a partir do funcionamento intersubjetivo, a constituição do sujeito na sua singularidade, a qual envolve diferenças e semelhanças frente ao outro, movimentos de aproximação e afastamento do outro, posturas de convergência e divergência em relação ao outro. O sujeito é uma composição, nada uniforme e regular, dessas tensões e sínteses. E, concebido em tais termos, ele é o objeto e, ao mesmo tempo, o desafio da Psicologia neste momento.

 

Referencias Bibliográficas

Bruner, J.S. Vygotsky: A historical and conceptual perspective. Em J.V. Wertsch (Org.) Culture, Communication, and Cognition: Vygotskian Perspectives. Cambridge: Cambridge University Press, 1985.         [ Links ]

Cole, M. The zone of proximal development: where culture and cognition create each other. Em J.V. Wertsch Culture, Communication, and Cognition: Vygotskian Perspectives. Cambridge: Cambridge Univesity Press, 1985.         [ Links ]

Roggoff, B. Apprenticeship in Thinking. New York-Oxford: Oxford University Press, 1990.         [ Links ]

Valsiner, I. Building theoretical bridges over a lagoon of everyday events: A review of Barbara Rogoff * s apprenticeship in thinking*. Human Development, 1991.         [ Links ]

Valsiner, J. e van der Veer, R. The encoding of distance: The concept of the 'zone of proximal development' and its interpretations. Em R. Cocking e K.A. Renninger (Orgs.) The Development and Meaning of Psychological Distance. Hillsdale, NJ: Erlbaum, 1991.         [ Links ]

Wertsch, J.V. Vygotsky and the Social Formation of Mind. Cambridge, Mass: Harvard University Press, 1985.         [ Links ]

Wertsch, J.V. Internalization: Do we really need it? Human Development (no prelo).         [ Links ]

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