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Temas em Psicologia

versão impressa ISSN 1413-389X

Temas psicol. v.1 n.1 Ribeirão Preto abr. 1993

 

O desenvolvimento de critérios de segmentação na escrita

 

 

Maria Bernadete Marques AbaurreI; Ademar da SilvaII

IUniversidade Estadual de Campinas
IIUniversidade Estadual Paulista/Araraquara

 

 

1. Introdução

A indagação sobre os possíveis critérios utilizados pelas crianças em fase inicial de aquisição da escrita, para a colocação de espaços em branco entre seqüências de letras, permite levantar questões teóricas interessantes para uma investigação mais sistemática sobre os aspectos lingüísticos e cognitivos envolvidos no processo de aquisição da representação escrita da linguagem.

Neste trabaho, faremos algumas considerações que nos parecem oportunas sobre a relevância dos dados relativos aos "recortes" feitos pelas crianças em enunciados orais ou escritos para a compreensão do modo como elas percebem, em diferentes momentos de seu desenvolvimento lingüístico, a relação entre a linguagem e a realidade por ela representada. Acreditamos que dados experimentais e naturalísticos fornecem preciosos indícios sobre a natureza cambiante dessa relação. Por outro lado, acreditamos que uma melhor compreensão de tal relação pode nos ajudar a entender os critérios utilizados pela criança para segmentar sua escrita inicial, bem como o papel que passa a desempenhar a própria atividade de leitura/escrita no desenvolvimento da capacidade de reflexão sobre a própria linguagem, ou seja, no desenvolvimento de habilidades metalingüísticas.

O tema geral da aquisição da linguagem tem uma dupla face: as indagações sobre aquisição da linguagem oral antecipam, necessariamente, questões sobre a aquisição de sua representação escrita, ao mesmo tempo que indagações sobre o desenvolvimento da escrita pressupõem questões sobre o desenvolvimento da oralidade. Não seria possível, portanto, sequer uma formulação inicial do problema do desenvolvimento dos critérios de segmentação na escrita, sem uma indagação a respeito de como tem sido conduzida, nas pesquisas em aquisição da linguagem oral, a discussão sobre como as crianças segmentam a própria fala. Faremos, pois, na próxima seção, um breve resumo de alguns trabalhos em que se focaliza a questão da segmentação, na fala e na escrita. Ao selecionar esses trabalhos não nos preocupamos, certamente, com a exaustividade. Nosso critério foi o da identificação, nos trabalhos, de dados experimentais ou naturalísticos que nos permitissem conduzir a discussão por caminhos que, no momento, parecem-nos teoricamente mais produtivos.

 

2. O estado da arte nos estudos sobre segmentação da fala e da escrita

O trabalho de Peters (1983) está entre aqueles que, a partir de indagações voltadas para a aquisição da linguagem oral, tematizam o aspecto desse processo que aqui nos interessa particularmente: os "recortes" ou "extrações" de determinadas porções dos enunciados orais feitos pelas crianças, que podem fornecer indícios dos critérios por elas utilizados para segmentação do material lingüístico. Peters afirma que, no processo de aquisição da linguagem oral, a criança está "imersa" em um constante fluxo de sons da fala que são, na maioria das vezes, blocos maiores do que as palavras como normalmente entendidas pelos adultos. É desse fluxo, desconhecido para a criança tanto em termos estruturais como em termos semânticos, que ela, segundo a autora, "extrai" pedaços, determina contextualmente seu significado e os armazena para usos futuros. Essa, segundo Peters, seria a manifestação de um dos processos centais em toda a fase inicial da aquisição da linguagem oral. Cabe comentar que, embora a noção de extrações contextualizadas de porções dos enunciados orais seja interessante, a proposta de que as porções extraídas pelas crianças possam ser "armazenadas" para futuros usos é problemática e mereceria uma discussão muito mais aprofundada do que a que se poderia conduzir aqui.

Em termos de escrita, a discussão dos critérios de segmentação dos enunciados, por parte da criança, deve necessariamente levar em conta uma outra variável muito significativa: os critérios morfológicos de segmentação que estão na base de muitos sistemas alfabéticos de escrita, segundo os quais deve-se colocar um espaço em branco entre cada unidade lingüística com status de palavra autônoma. Uma vez que, quando começam a elaborar hipóteses sobre o funcionamento desses sistemas de escrita, as crianças já estão contemplando e manipulando material escrito, é mais do que provável que elas, nesse momento, já estejam tomando muitas das suas decisões sobre onde colocar os espaços em branco nas escritas que produzem com base na observação de dados representativos da escrita adulta.

Os trabalhos sobre segmentação na escrita infantil têm como uma de suas preocupações, portanto, saber como as crianças elaboram o conceito de palavra, necessário para que possam utilizar os espaços em branco da escrita segundo a convenção. Nesse sentido, muitos desses trabalhos, sobretudo aqueles de cunho experimental, têm por objetivo verificar quantas palavras as crianças identificam em determinados enunciados. Karpova (1955), por exemplo, estudando crianças russas em idade pré-escolar (entre 3 e 7 anos), em uma situação experimental em que elas eram solicitadas a simplesmente identificar o número de palavras ocorrentes em um conjunto de sentenças, chegou às conclusões seguintes, com relação às crianças com idade inferior a 7 anos:

a) as crianças não foram capazes de dividir sentenças em unidades lexicais;

b) as crianças mais velhas, em sua maioria, foram capazes de distinguir nomes e de dividir as sentenças em sujeito e predicado;

c) preposições e conjunções são, para essas crianças, as unidades mais difíceis de serem identificadas e isoladas.

Alguns exemplos, tirados desse trabalho, ilustram as conclusões:

A child aged 6,10 in response to the sentence "Galya and Vova went walking", replied, "There are two words. Vova is one and Galya is the other"(p. 370).

E: Misha ran quickly. What's the first word ?

S (6,1): Misha.

E: And the second?

S: Ran quickly (p. 370).

Huttenlocher (1964), com o objetivo de mostrar que os pré-escolares têm dificuldades para dividir seqüências de duas palavras em palavras isoladas, realizou um experimento com dois grupos de 33 crianças, de idade entre 4 anos e 6 meses e 5 anos. A tarefa de cada grupo foi diversa: as crianças do primeiro grupo foram solicitadas a inverter os membros de quinze pares de dígitos/letras/palavras, enquanto às crianças do segundo grupo solicitou-se que separassem os elementos de cada um desses quinze pares. Para fins de experimento, os quinze pares foram organizados em cinco categorias:

Categoria Pares
I 5-2; D-S; 3-7
II black-white; child-lady; foot-hand
III man-runs; red-apple; she-went
IV I-do; you-are; it-is
V table-goes; house-did; orange-cow

Os pares de categoria I foram compostos por letras e números; os da categoría II, por palavras antónimas, sem relação gramatical; os da categoria III, por palavras que mantêm entre si uma relação gramatical (os elementos desses pares, se invertidos, tornam-se agramaticais); os da categoria IV, por pares de palavras que mantêm entre si uma relação gramatical, qualquer que seja a ordem dos elementos; os da categoria V, por pares semanticamente anômalos, no sentido de que poderiam ocorrer, mas somente em contextos especiais, do ponto de vista pragmático.

Antes do experimento, pares de dígitos foram lidos para as crianças, que foram treinadas para repeti-los na ordem inversa. Essa habilidade foi por elas adquirida com certa facilidade.

Durante o experimento, realizado individualmente, os 15 pares foram aleatoriamente apresentados a cada criança, ou seja, sem que fosse seguida a ordem das cinco categorias conforme apresentadas acima. Para cada resposta correta, dada a tarefa específica, o experimentador dizia "muito bem" e passava para o par seguinte; nos casos em que havia erro ou ausência de resposta em vinte segundos, ele fornecia a solução correta para a criança.

Embora a tarefa do grupo I fosse um pouco mais difícil do que a do grupo II, já que a criança teria de saber separar, para poder inverter, as crianças de ambos os grupos demonstraram maior facilidade para separar e/ou inverter os itens das categorias I, II e V, e maior dificuldade para operar com os itens das categorias III e IV.

Com relação à categoria III, Huttenlocher afirma que a dificuldade em identificar os elementos do par poderia advir do fato de que a criança está sendo solicitada a transformar seqüências comuns (red apple, man runs) em seqüências absurdas, do ponto de vista da língua inglesa (apple red, runs man). Com relação à categoria IV, sua hipótese de interpretação da maior dificuldade de separação é baseada no pressuposto de que a criança, embora conheça do I, are you, is it, como pares possíveis, desconhece as palavras que os compõem, uma vez que elas raramente são usadas como unidades isoladas. Viria daí a sua dificuldade em inverter I do, you are, it is.

É interessante observar, com relação a essas hipóteses propostas para dar conta da dificuldade de separação de palavras nas categorias III e IV, que elas pressupõem que essas crianças já estejam operando sobre o material lingüístico, ou seja, que elas já estejam conseguindo objetivar os enunciados e destacá-los da realidade à qual fazem referência, pois somente a partir de tal pressuposto faz algum sentido falar em "seqüências comuns ou absurdas", ou em "a criança conhece do I, are you, is it, como pares possíveis". Essas hipóteses parecem pressupor, portanto, por parte dessas crianças, uma habilidade metalingüístiça que elas talvez ainda não possuam. Na verdade, como teremos oportunidade de discutir mais adiante, a habilidade para isolar alguns elementos dos enunciados não implica necessariamente uma objetivação do lingüístico, nem, por conseqüência, uma compreensão do conceito de palavra enquanto unidade lingüística. Esse pressuposto, que nos parece equivocado, parece subjazer a um número considerável de experimentos voltados para a investigação do que venham a ser palavras para as crianças. Voltaremos a esta questão na seção 3 deste texto.

Holden e MacGinitie (1972) também investigaram a concepção que têm as crianças acerca dos limites da palavra oral e escrita, para o que testaram individualmente, em duas situações experimentais, 84 crianças do jardim de infância, de idade entre 5 anos e 4 meses e 6 anos e 8 meses.

No experimento I, cada criança, depois de ter sido treinada para bater com o dedo em uma ficha depoker a cada "palavra" que era capaz de reconhecer enquanto ouvia a gravação de enunciados, era solicitada a proceder da mesma forma enquanto repetia ela mesma um enunciado específico. Segundo os autores, as chamadas palavras funcionais foram mais difíceis de serem percebidas como unidades autônomas do que as palavras com "maior conteúdo lexical" (referencial). Assim, a ocorrência de erros foi maior em The dog wanted to eat bonés do que em The dog wanted bonés, já que no primeiro caso, além de manifestarem a tendência para segmentar como uma unidade a seqüência constituída por the e dog, as crianças manifestaram tendência semelhante com relação a to e eat: Thedog/wanted/toeat/bonés.

Esses autores observaram também que a percepção das chamadas palavras funcionais como unidades isoladas (formas livres) parece estar condicionada pelo contexto onde elas ocorrem. Em You have to go home, houve crianças que interpretaram to e have como uma unidade, enquanto outras tomaram como unidade to e go: 12 crianças produziram You/haveto/'go/home, enquanto 5 preferiram You / have / togo / home. Nenhuma das 33 crianças, no entanto, em The dog wanted to eat, produziu wantedto, embora muitas tenham produzido toeat.

Um comentário se faz oportuno, neste momento. O fato de as crianças (na verdade, crianças diferentes!) vincularem a preposição to ora ao auxiliar wanted, ora ao verbo principal do enunciado, eat, não pode, de forma alguma, ser tomado como indicação de que essa preposição, nesse contexto, é mais facilmente percebida como uma forma livre, ou seja, como uma palavra isolada. Quer-nos parecer que os autores foram levados a essa hipótese pela aparente "mobilidade" da preposição, percebida por algumas crianças como parte constitutiva do auxiliar, e, por outras, como parte constitutiva do verbo principal. Na verdade, o indício importante para a hipótese dos autores seria a ocorrência isolada do to, o que talvez pudesse ser interpretado como a atribuição de um status autônomo a esse elemento, nesse contexto específico, por parte de algumas crianças.

Já com relação ao verbo to be, os autores registraram a identificação da forma is como isolada em contextos específicos. Na função de cópula, por exemplo, no enunciado The snow is cold, 85% das crianças conseguiu isolar a forma is. Mesmo na forma interrogativa, Is the snow cold?, 78% isolou o is. Entretanto, no enunciado Bill is drinking soda, em que o is ocorre como auxiliar na forma progressiva do verbo drink, 45% das crianças percebeu essa forma como parte constitutiva do verbo principal: Bill / isdrinking / soda. Registraram-se também algumas ocorrências de Billis / drinking / soda. No enunciado interrogativo Is Bill drinking soda? 65% das crianças percebeu is e Bill como uma unidade: IsBill/ drinking/soda ?

A consideração desses dados, bem como de outros dados como Thebook /isin/the desk, ou Houses/were/builtby/themen, levou os autores a postularem a hipótese muito plausível de que o contexto rítmico dos enunciados pode fornecer pistas para as segmentações feitas pelas crianças:

The book is in the desk was segmented as The book / isin / the desk, perhaps as a result of spontaneously imposing a rhythmic pattern on the utterances.

(..........)

One may guess from this last example [Bill / isdrinking / soda vs. IsBill / drinking / soda] that the child's sensitivity to the rhythmic aspects of an utterance may indeed influence the way he segments it.

(..........)

Whether some responses are in fact, based on rhythm, and what characteristics of the sentence, the child, and the experimental situation increase the likelihood of such responses are questions that remain to be investigated, (p. 554)

Vale a pena refletir sobre a observação final dos autores, na citação acima. Ao chamarem a atenção para o fato de que determinadas características de enunciados particulares, bem como características da própria criança, ou mesmo da situação experimental, podem aumentar a probabilidade de ocorrência das segmentações influenciadas pela percepção de padrões rítmicos, esses autores deixam implícito que as soluções propostas pelas crianças para problemas de segmentação (tanto na fala como na escrita inicial) podem ser episódicas e singulares. Esse caráter localista de muitas das hipóteses iniciais das crianças sobre segmentação é, na verdade, o que vimos constatando em nossos trabalhos sobre o desenvolvimento de critérios de segmentação na escrita do português, a partir da observação de dados naturalísticos, representativos da escrita infantil espontânea (cf. Abaurre, 1988a, 1988b, 1991a, 1991b, 1991c; da Silva, 1989, 1991).

Voltando ao trabalho de Holden and MacGinitie, o que se pediu a 57 das 84 crianças, no experimento II, foi que cada criança, depois de treinada para assim proceder, identificasse, em fichas onde estavam impressas quatro sentenças com um número variável de palavras, aquela sentença onde ocorria o mesmo número de palavras que ela havia contado ao bater com o dedo nas fichas de pocker. O resultado desse experimento, considerado pelos autores como de natureza meramente exploratória, demonstrou que as crianças, nessa idade, claramente desconhecem as convenções gráficas relativas à segmentação, ou seja: ainda que demonstrem poder compreender a função dos espaços em branco como delimitadores, na escrita, do que aí se consideram as "palavras", elas não são ainda capazes de reconhecer palavras a partir de sua definição convencional, morfologicamente motivada. Os autores chegaram a essa conclusão a partir da constatação de que, embora algumas crianças (as que demonstraram um comportamento congruente) tenham escolhido sentenças escritas onde reconheciam um número de conjuntos de letras, delimitados por espaços em branco, idêntico ao número de batidas de dedo nas fichas de poker, nenhuma das crianças foi capaz de escolher de forma consistente a representação escrita convencional de um enunciado se ela já não o houvesse segmentado corretamente na fala.

Ferreiro e Teberosky (1979), a partir de experimentos de inspiração piagetiana, com base em cujos resultados propõem um modelo de aquisição da escrita, discutem também os critérios de segmentação utilizados pelas crianças em seus recortes dos enunciados orais e escritos. Com o objetivo de identificar quais as hipóteses elaboradas pelas crianças sobre o que se deve ou não escrever, sobre as correspondências existentes entre os recortes que se podem fazer na oralidade e os recortes da escrita e, ainda, sobre a necessidade de se usarem espaços em branco, na escrita, para separar partes dos enunciados, essas autoras conduziram experimentos em que as crianças eram solicitadas a identificar precisamente o lugar de determinadas palavras nas suas propostas de escrita para os enunciados oferecidos pelo experimentador. O desempenho das crianças nesses experimentos confirmou o que Holden e MacGinitie, e.g., já haviam percebido em seu experimento "exploratório": os critérios de segmentação da escrita utilizados por pré-escolares são bem diferentes dos critérios convencionais. Os diálogos abaixo transcritos são representativos da maneira como as 56 crianças submetidas a esses experimentos vêem a questão da segmentação, a partir de enunciados escritos ora pelo adulto, ora por elas mesmas (apresentamos os exemplos traduzidos do espanhol, já que as observações relevantes são válidas tanto para o espanhol como para o português:

1. Pablo (6 anos, classe média)

Enunciado escrito (adulto): A menina comeu um caramelo

Experimentador Pablo:
Onde escrevi menina? (hesita, logo mostra caramelo).
Onde escrevi caramelo? (mostra, A menina).
Aqui, o que diz (comeu)? Comeu um caramelo.
E aqui (caramelo)? A menina.
Aqui (comeu)? Comeu caramelo.
Diz um em algum lugar? Não sei.
Como é tudo junto ?

A menina (mostra caramelo) comeu um caramelo (mostra o resto, da direita para a esquerda), (p. 125)

2. Isabel (6 anos, classe média)

Enunciado escrito em cursiva, pela criança: oursocomemel

Experimentador Isabel:
Mostre-me cada coisa O urso (ourso): urso e mais nada;come mel.
E mel, onde está ? (mostra mel)
Está certo assim tudo junto?
Não têm importância que
esteja escrito assim ? Sim, não importa que esteja escrito tudo junto. (p. 111)

As respostas de Pablo indicam que ele ainda não consegue reconhecer, na escrita segmentada do adulto, as partes que correspondem às palavras que compõem o enunciado. Sua última resposta mostra que ele sequer conhece a direção convencional da escrita. Quanto a Isabel, apesar de ter escrito alfabeticamente o que lhe havia sido solicitado, suas respostas indicam que não é ainda capaz de operar com o critério morfológico de segmentação da escrita, que exige a colocação dos espaços em branco entre as palavras. Na verdade, ela não usou espaços em branco ao escrever o enunciado. Poder-se-ia pensar que Isabel não vê nenhum motivo para separar, na escrita, porções desse enunciado, uma vez que o percebe como um todo semanticamente indivisível. Para isso sem dúvida contribui ainda o seu estatuto de grupo tonal autônomo, na língua, já que é um enunciado afirmativo, caracterizado prosódicamente por um contorno entonacional descendente. O que significa exatamente, no entanto, afirmar que uma criança em idade pré-escolar "percebe um enunciado como um todo semanticamente indivisível"? Poder-se-ia afirmar, com segurança, que as crianças dessa idade já se dão conta de que os enunciados da lingua e os aspectos da realidade aos quais eles fazem referência são, na verdade, entidades diversas? Parece-nos que esta questão merece ainda uma discussão mais aprofundada do que a que até o momento tem sido feita nos trabalhos que se ocupam da segmentação da oralidade e da escrita. Voltaremos a ela na seção 3 deste trabalho.

Das 56 crianças entrevistadas, somente 11 propuseram alguma separação (cf. pág. 138). A maioria delas sugeriu divisões em duas partes (que corresponderiam às funções sintáticas de sujeito e predicado) ou em três partes (que corresponderiam ao sujeito, ao verbo e ao seu complemento).

Observe-se que o fato de algumas crianças mostrarem tendência para recortar os enunciados em partes que correspondem ao que pode ser analisado, em termos sintáticos, como sujeito, predicado ou complemento, não implica necessariamente, é óbvio, que elas estejam já impondo uma segmentação à própria linguagem, e/ou operando sobre o próprio material lingüístico constitutivo dos enunciados com algum grau de "consciência".

Todos os trabalhos aqui mencionados, bem como os dados de segmentação que apresentam e discutem, apontam para uma mesma questão: qual é, afinal, a natureza dos dados manipulados pelas crianças pré-escolares quando fazem suas hipóteses de segmentação da fala ou da escrita inicial? Esses trabalhos partem do pressuposto de que as crianças já estejam tomando a linguagem como um objeto de análise e manipulação. Ora, embora seja óbvio que todas elas estejam evidentemente usando a fala e/ou a escrita como um meio através do qual ficam registradas suas hipóteses de segmentação, desse fato não decorre necessariamente que elas já reconhecem a linguagem como isolada da realidade. Pode ser que, em muitos casos, essas crianças estejam ainda tentando recortar a própria realidade, buscando identificar, no espaço de um mundo factual, aspectos que possam merecer o estatuto de "entidades com existência autônoma". Por outro lado, esse exercício mesmo de segmentação, que toma necessariamente por suporte a linguagem em sua forma oral ou escrita, acaba contribuindo significativamente para o (longo) processo que leva ao reconhecimento da própria linguagem como separada da realidade que simboliza. Na seção seguinte discutiremos mais detalhadamente esta questão.

 

3. Recortar o mundo, segmentar a linguagem: duas faces de um mesmo processo

Voltaremos a considerar, aqui, os dados apresentados acima, referentes ao trabalho de Huttenlocher (1964), uma vez que as categorias aí estabelecidas, agrupadas pelo grau de dificuldade que os diferentes pares de itens ofereceram para os sujeitos do experimento, em termos de segmentação, permitem discutir a hipótese que nos interessa aqui investigar.

Vejamos primeiramente o que há de comum com relação aos exemplos das categorias cujos pares foram considerados mais "difíceis" de segmentar, as categorias III (man-runs; red-apple; she went) e IV (I-do; you-are; it-is). Se é correta a hipótese esboçada no último parágrafo da seção 2 acima, segundo a qual muitas crianças podem, de fato, em situações experimentais ou naturalísticas (como na escrita espontânea), estar usando como critério de "recorte" da realidade a identificação, nesse espaço factual, de alguma entidade específica, fica fácil entender porque elas tendem a não segmentar pares como man-runs ou red-apple: um homem que corre ou uma maçã vermelha são entidades específicas do mundo que conhecem, e não é absurdo supor que o enunciado "homem-corre" traz à mente de uma criança (e à de muitos adultos) a imagem de um homem específico do qual não se pode dissociar a ação de correr, e não necessariamente um conceito de homem ou de uma ação de correr. O mesmo comentário pode ser feito a propósito de maçã-vermelha, caso em que a especificação de cor não se dissocia de uma maçã determinada. Com relação aos exemplos como you-are e I-do, é possível supor que as crianças já consigam lidar com conceitos como you e I, mas não com are e do, se tomados isoladamente. Assim, é natural que tenham dificuldade em segmentar esses

O que dizer, no entanto, das categorias cujos pares elas segmentaram mais facilmente, no experimento? Consideremos, inicialmente, os pares da categoria II: black-white, child-lady, foot-hand. É evidentemente impossível, no mundo do qual aqui se fala, imaginar entidades que sejam simultaneamente brancas e pretas, criança e senhora, pé e mão. Na impossibilidade de representar tais "entidades" como indivisíveis, a hipótese que imediatamente se oferece à criança é a de que sejam duas. O mesmo se pode provavelmente dizer dos pares das categorias I e tb, onde os itens colocados lado a lado não permitem, se tomados como indivisíveis, o reconhecimento de uma entidade no mundo (a não ser se aceitas algumas anomalias, como em house-goes, house-did, ou orange-cow, tomando-se orange como a especificação de uma cor, e não como a fruta). Os resultados desse experimento parecem confirmar a hipótese, portanto, de que as crianças, muitas vezes, vivem situações em que, espontaneamente ou por solicitação dos adultos, são levadas ao exercício de recortar a própria realidade. Como é sem dúvida a língua o meio (ou o contexto, no sentido psicopragmático definido por Dascal, 1987) por intermédio do qual o próprio recorte da realidade adquire expressão, é lícito supor que exercícios do género acabem por determinar a possibilidade mesma de uma dissociação, por parte dos falantes, entre a língua - tomada como contexto linguistico do pensamento - e o mundo por ela representado (e, em um certo sentido, por ela constituído). Residiria aí, talvez, o germe da reflexão dita metalingüística. Pode-se dizer, portanto, que a vivência de certas situações em que a linguagem acaba por ser focalizada, seja em um contexto experimental, ou mesmo em uma situação de leitura/escrita espontânea, em que determinados aspectos materiais das formas lingüísticas adquirem saliência, contribui significativamente para que a criança passe a ver a linguagem como um objeto de reflexão.

Observe-se que as cinco categorias estabelecidas por Huttenlocher foram definidas segundo critérios sintáticos . Isso não nos autoriza a concluir, é claro, que se esteja aí propondo que as crianças do experimento baseiem suas hipóteses de segmentação na percepção de tais relações. Uma interpretação possível (e singela!) dos dados, no entanto, parece ser a que aqui propomos: seriam ainda operações de recorte da realidade, percebida pelas crianças em termos bem específicos e factuais, que poderiam ainda estar por trás de determinadas segmentações que fazem dos enunciados lingüísticos.

Gostaríamos de chamar a atenção para o fato de que os dados naturalísticos das escritas infantis espontâneas parecem confirmar as duas hipóteses aqui sugeridas para a abordagem dos fatos relativos à segmentação da oralidade e da escrita, em fases iniciais da aquisição dessas modalidades: a) as crianças, em vários momentos, parecem operar sobre uma representação da própria realidade, à qual impõem seus recortes; b) o próprio exercício de recortar, necessariamente mediado pela linguagem em sua função psicopragmática de contexto do próprio pensamento, acaba por focalizar a materialidade dos significantes lingüísticos, assim contribuindo para que as crianças aprendam a descolar a linguagem do mundo e a operar sobre ela de modo a segmentá-la, categorizá-la e organizá-la no espaço de sua virtual sistematicidade.

Os chamados textos espontâneos, produzidos pelas crianças em fase inicial de aquisição de escrita, em situações em que é delas a responsabilidade da decisão sobre o que vão escrever (sem determinação prévia do professor, como nas atividades escolares mais controladas), oferecem dados muito interessantes para a análise dos critérios de segmentação com os quais as crianças parecem estar operando, muitas vezes de forma singular, em momentos particulares da elaboração da sua escrita (cf. Abaurre, 1988a, 1988b). Observamos, em um corpus constituído por centenas de textos espontâneos representativos da escrita inicial de crianças brasileiras (de escolas públicas e particulares, da pré-escola e da primeira série, de diversas regiões do país e de diferentes classes sócio-econômicas), dados de hipo-segmentações que parecem ilustrativos dos três casos que integram a categoria III de Huttenlocher. Seguem-se alguns desses exemplos, coletados ao acaso no corpus:

- IIIa. (cf. man-runs): omebateu (homem bateu)

- IIIb. (cf. red-apple): pediarvere (pé de árvore), pedefegão (pé de feijão), amigodoleão (amigo do leão), cachorociente (cachorro quente) probepato (pobre pato)

- IIIc. (cf. she-went): eufui (eu fui), lavois (ela foi), élagosta (ela gosta), iliqueria (ele queria), elecaiu (ele caiu), elemorreu (ele morreu), vosevai (você vai), vosemora (você mora), euvou (eu vou).

 

4. Considerações finais

A observação dos dados das escritas espontâneas permitiria identificar ainda uma série de outros casos de hipo-segmentações que envolvem, por exemplo, elementos clíticos como artigos, pronomes pessoais e preposições, ou mesmo outros elementos lingüísticos como advérbios, pronomes (possessivos, demonstrativos, indefinidos), conjunções, formas auxiliares de verbos. Esses parecem ser, dentre outros, os elementos que as crianças muitas vezes não dissociam dos itens lexicais nos quais estão semántica e fonológicamente "apoiados" (no sentido de que podem, na fala, vir a constituir grupos de força ou mesmo grupos tonais, quando associados a outros itens lexicais), provavelmente por não conseguirem a eles atribuir qualquer estatuto autônomo com direito a um recorte próprio em termos da realidade. Alguns exemplos: minhatia, deouro, umdia, apata, cesauvar (se salvar), oqueijo, aminhacaza, votelefona (vou telefonar), todumudo (todo mundo), elaficoucotete (ela ficou contente), mutoepéto (muito esperto), jaestacomeno (já está comendo).

A propósito de exemplos como os elencados acima, em que a porção segmentada pelas crianças, na escrita, parece corresponder a grupos de força ou grupos tonais - unidades rítmico-entonacionais (prosódicas) da fala - pode-se talvez concluir que a própria prosódia, cujos "movimentos" e "contornos" são sem dúvida bastante salientes e perceptíveis para os falantes, envolve e delimita, por assim dizer, no âmbito dos enunciados lingüísticos, determinadas porções fónicas que podem também corresponder a recortes possíveis da própria realidade. É nesse sentido, talvez, que se pode afirmar que contornos prosódicos, perceptíveis em sua materialidade fónica, podem contribuir para queas crianças, em fase inicial de aquisição da linguagem oral e/ou escrita, comecem em algum momento a perceber que estão recortando não apenas sua representação da realidade, mas também a linguagem, sistema simbólico através do qual tal representação adquire expressão e materialidade. A propósito, são também inúmeros os exemplos de ocorrências registradas em escritas espontâneas em que as crianças parecem ter segmentado as seqüências de letras a partir de considerações mais de ordem prosódica do que semântica. Não nos ocuparemos aqui desses casos, no entanto.

Tomamos o caso da categoria III do experimento de Huttenlocher como base de nossas considerações sobre esses dados de hipo-segmentação observados nas escritas espontâneas porque os exemplos dessa categoria são os que melhor ilustram o que aqui consideramos como um possível critério "primordial" daqueles recortes que, embora aos nossos olhos e ouvidos de adultos letrados possam parecer segmentações já efetuadas sobre enunciados lingüísticos, podem, na verdade, ser fragmentos de enunciados que indiciam uma maneira singular de interpretação e recorte de entidades e eventos do mundo.

Também não nos ocuparemos, aqui, dos exemplos das demais categorias do experimento de Huttenlocher, embora saibamos que os demais pares de dados colocam problemas particulares de segmentação, que podem encontrar correlatos nos contextos típicos das escritas espontâneas. Seria muito interessante, por exemplo, verificar como as crianças lidam com a escrita de elementos como preto e branco, pé e mão etc, em termos de colocação de espaços em branco, no caso que o uso de tais pares for significativo para os textos que elaboram, ocorrendo próximos um do outro em algum enunciado. Deixamos a busca de respostas para esta e para outras muitas perguntas relativas ao desenvolvimento dos critérios de segmentação na escrita para estudos posteriores.

 

5. Referências Bibliográficas

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