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Temas em Psicologia

Print version ISSN 1413-389X

Temas psicol. vol.1 no.1 Ribeirão Preto Apr. 1993

 

Raciocínio lógico-matemático: aprendizagem e desenvolvimento

 

 

Luciano de Lemos Meira; Maria da Graça Dias; Alina Galvão Spinillo

Universidade Federal de Pernambuco

 

 

O estudo do raciocínio lógico-matemático tem uma longa tradição em Psicologia. Mais que revisar a extensa literatura nesta área, entretanto, a coletânea de estudos apresentados a seguir tem por objetivo estabelecer os parâmetros de uma perspectiva "situada" na investigação do raciocínio. Embora provenientes de diferentes escolas da pesquisa em psicologia cognitiva, os artigos compilados a seguir compreendem o raciocínio lógico-matemático como um processo que depende intrinsecamente da organização social e material das situações onde ele ocorre. Com base nestes estudos, discutiremos três aspectos gerais da natureza do raciocínio enquanto processo situado: (a) sua complexidade; (2) sua gênese; e (3) seu caráter circunstancial.

No primeiro estudo apresentado a seguir, Dias discute o raciocínio silogístico e, em particular, os tipos de tarefas e situações que facilitam o desempenho de pré-escolares em silogismos complexos. A seguir, Spinillo investiga o raciocínio sobre proporções em crianças muito jovens, e as representações materiais de tarefas que podem auxiliá-las neste processo. Por fim, Meira discute a necessidade da análise de contextos, atividades e situações para uma melhor compreensão dos processos psicológicos subjacentes ao raciocínio matemático.

 

Raciocínio dedutivo e a compreensão da linguagem

Para Copi (1982) "o estudo da lógica é o estudo dos métodos e princípios usados para distinguir o raciocínio correto do incorreto". Anderson (1980), por sua vez argumenta que "o raciocínio lógico-dedutivo não deve estar preocupado com o exame da verdade das premissas em um argumento. Ao invés, deve investigar se as premissas implicam logicamente a conclusão." (p. 298).

Silogismo é um tipo de argumento dedutivo que consiste de duas premissas e uma conclusão. Por exemplo:

Todo homem é mortal.

Sócrates é homem

Portanto, Sócrates é mortal

A primeira premissa (Premissa Maior) é uma afirmativa universal, enquanto a segunda (Premissa Menor) e a conclusão são afirmativas particulares. Assim, o sujeito necessita julgar se a conclusão pode ser inferida validamente das duas premissas, sem considerar a veracidade do conteúdo das mesmas.

Existem quatro formas básicas de silogismos ou regras de inferências: dois desses argumentos (Modus Ponens e Modus Tollens) possuem conclusões que são corretas e logicamente necessárias. Eles são chamados de silogismos válidos. Um silogismo é chamado de Modus Ponens quando possui a premissa menor e a conclusão na forma afirmativa: p implica q\ p; portanto q. Por exemplo:

Se a água está fervendo, então está quente;

A água está fervendo;

A água está quente.

Quando o silogismo tem a premissa menor e a conclusão na forma negativa, ele é chamado Modus Tollens: p implica q; não q portanto não p. Por exemplo:

Se a água está fervendo, então está quente;

A água não está quente;

Ela não está fervendo.

Os outros dois tipos de agumentos (Afirmação do Consequente e Negação do Antecedente) têm conclusões indeterminadas, e são chamados de silogismos inválidos. O silogismo da falácia da Afirmação do Consequente tem a forma: p implica q; q, "?" . Por exemplo:

Se os pais tem olhos azuis, seus filhos terão olhos azuis;

Maria tem olhos azuis;

Seus pais podem ou não ter olhos azuis.

O silogismo da falácia de Negação do Antecedente surge na forma p implica q; não p, "?". Por exemplo:

Se os pais têm olhos azuis, seus filhos terão olhos azuis; Os pais de João não têm olhos azuis; João pode ou não ter olhos azuis.

Pesquisas em psicologia cognitiva têm examinado as respostas dadas às diferentes formas de silogismos por diferentes tipos de sujeitos com o objetivo de melhor compreender os processos do racicínio. Esses estudos têm demonstrado que existem variáveis que interferem no raciocínio lógico, e que fazem com que até adultos com alto grau de escolarização falhem em demonstrar tal raciocínio. Essas variáveis são: (1) diferentes formas de silogismos; (2) tipo de conteúdo envolvido nas premissas; e (3) nível de escolarização. Por outro lado, a situação da tarefa ou modo de apresentação dos problemas silogísticos ajudam o desempenho dos sujeitos.

Estudos com diferentes formas de silogismos

A maioria dos estudos sugere que adultos dificilmente erram na forma Modus Ponens. Os resultados sobre o desempenho na forma Modus Tollens é menos consistente entre os estudos. Dias (1987) encontrou entre adultos analfabetos e universitários, que o desempenho em problemas envolvendo Modus Tollens não difere daquele encontrado na forma Modus Ponens. Entretanto, Rips e Marcus (1977) encontraram performance inferior em Modus Tollens quando comparado ao desempenho em silogismos na forma Modus Ponens. No entanto, os dois estudos encontraram que as duas formas de inferências válidas são muito mais fáceis do que as inferências inválidas. Nestas, os sujeitos tendem a produzir falácias, transformando "Se A é verdadeiro então B é verdadeiro" em "Se B é verdadeiro então A é verdadeiro". Este tipo de erro também foi encontrado nos estudos de Taplin (1971), Taplin e Standenmayer (1973), Standenmayer (1975) eCarraher(1984).

A resolução de diferentes formas de silogismos também tem sido estudada entre crianças e os resultados são semelhantes ao dos adultos (Ver Shapiro e O'Brien, 1970; Dias, 1988).

A influência do conteúdo dos problemas no raciocínio lógico

Wilkins (1928) mostrou que o desempenho de adultos em problemas com conteúdos familiares do cotidiano era geralmente melhor e apresentava menos erros falaciosos que em problemas cujos conteúdos eram desconhecidos ou simbólicos. Para Johnson-Laird, Legrenzi e Legrenzi (1972), estes são surpreendentes do ponto de vista formal porque ao se fazer uma dedução "presume-se que operações mentais são realizadas sem levar-se em consideração o conteúdo." (p. 395).

Vários outros estudos examinaram se adultos consideram mais fácil raciocinar com materiais concretos do que abstratos ou simbólicos (Wason e Evans, 1974; Wason e Shapiro, 1971; e Lunzer, Harrison e Devey, 1972). Wason e Johnson-Laird (1972) argumentam que o contexto concreto do problema fornece "uma estrutura na qual os sujeitos podem se projetar através de um ato de imaginação." (p. 191).

Outro problema envolvendo conteúdo que adultos apresentam no seu raciocínio lógico é chamado "viés da crença". Janis e Frinch (1943) e Lefford (1946) observaram que a maioria dos sujeitos julgavam uma conclusão como válida quando eles concordavam com seu conteúdo, e julgavam que era inválida quando não concordavam com seu conteúdo. Resultados similares foram encontrados por Henle (1962).

Todos estes resultados sugerem que, comparativamente, os baixos níveis de desempenho observados entre adultos são atribuíveis não a uma falta de competência em raciocinar, mas ao conteúdo de variáveis tais como familiaridade, ou à natureza concreta das premissas (viés empírico), ou ao fato dos sujeitos acreditarem ou não nas conclusões advindas das mesmas.

Se o raciocínio lógico de adultos é fortemente influenciado pelo tipo de conteúdo, pode-se esperar que o das crianças o seja ainda mais. Em um estudo com crianças da 4a, 6a, 8a séries e da escola secundária, Roberge e Paulus (1971) apresentaram silogismos com conteúdos familiar-concreto, abstrato ou contrários à experiência diária. Os resultados mostram que os conteúdos familiares concretos foram os mais fáceis, enquanto que os abstratos e sugestivos foram igualmente difíceis.

Para Roberge e Paulus (1971), estes resultados sugerem que é "psicológica e pedagogicamente possível introduzir breves unidades de raciocínio de classes e condicionais já na quarta série. Os resultados também indicam possíveis fontes de dificuldade (por exemplo, conteúdo) para as quais estatégias de ensino poderiam ser direcionadas." (p. 199).

Hawkins, Pea, Glick e Scribner (1984) verificaram que crianças de 4 e 5 anos conseguiam raciocinar com precisão quando as premissas dos problemas descreviam criaturas míticas, e quando o conteúdo era coerente com suas experiências. O mesmo não era observado com conteúdos envolvendo informações incoerentes com a experiência do sujeito. Semelhantemente, Dias e Harris (1988) encontraram que crianças entre 4 e 6 anos têm maior facilidade com conteúdos conhecidos e desconhecidos, do que com conteúdos incoerentes. No entanto, esta diferença desaparece quando os problemas eram apresentados em uma situação de brincadeira de faz-de-conta, onde as crianças raciocinam tão bem com fatos incoerentes quanto com fatos coerentes e desconhecidos.

Em resumo, os resultados dos estudos discutidos acima indicam que quando crianças resolvem problemas silogísticos, o conteúdo das premissas tem um impacto considerável na determinação da validade do argumento. Sujeitos mais novos acham mais fácil tirar conclusões de premissas familiares ou conhecidas, e de contextos de fantasia, do que a partir de premissas que não correspondem à suas experiências. O desempenho dos adultos também está associado às suas crenças, à familiaridade e concretude do conteúdo, mas independe do uso de premissas envolvendo fantasia.

Modo de apresentação: superação das dificuldades

Quanto às formas de silogismos, a dificuldade maior encontra-se naquelas inválidas. Dias e Ruiz (1990) demonstraram que a expansão da premissa maior, adicionando-se uma frase que exemplifique outro fato pertencente a uma mesma categoria (por exemplo: se são cachorros, então são animais; mas gatos também são animais), melhora significativamente o desempenho de crianças de 5 a 8 anos nas formas inválidas.

Rumain, Connell e Braine (1983) também apresentaram inferências válidas e inválidas com a premissa maior simples ou expandida a crianças de 7 a 10 anos e a estudantes universitários. Os resultados mostram que as premissas maiores, quando expandidas, melhoram o desempenho nas falácias em todos os grupos de idade.

Quanto ao tipo de conteúdo, a dificuldade maior é quando o silogismo envolve fatos incoerentes com a experiência diária, ou contrários às crenças dos sujeitos. No entanto, Dias e Harris (1988, 1990) demonstraram que as crianças devem também ser capazes de extender suas habilidades dedutivas a premissas incongruentes, desde que estas premissas sejam oferecidas às crianças de forma que possam ser tratadas como parte de um mundo de faz-de-conta, separado da realidade.

Assim, o argumento de que a baixa performance de crianças em silogismos é resultado de "habilidades cognitivas ainda não adquiridas" pode não ser o mais plausível. O que parece ocorrer é um fenômeno semelhante ao discutido por Bryant (1973), com relação à inferência transitiva e à capacidade de utilizar esse tipo de raciocínio lógico para realizar tarefas de medidas: a criança é capaz de fazer inferências quando as medidas são apresentadas, mas só bem mais tarde consegue realizar tarefas de medição espontânea onde o termo médio é utilizado para comparar o comprimento de dois outros objetos. Bryant argumenta que a criança já dispõe da lógica, embora precise aprender como e quando deve utilizá-la, i.e., a criança possui a habilidade, embora precisemos oferecer as condições e situações adequadas para que ela a demonstre.

 

Lógica infantil e o aprendizado de proporções

Além de problemas silogísticos, a lógica do pensamento infantil pode ainda ser compreendida através de noções diversas, como conceitos matemáticos. O conceito de proporção surge como de particular importância por ser ao mesmo tempo relevante para a educação matemática, e por estar relacionado ao desenvolvimento cognitivo, sendo considerada um dos conceitos que marca a passagem das operações concretas para as formais.

Dada a influência da teoria Piagetiana, onde o conceito de proporção é uma aquisição tardia, a grande maioria das pesquisas na área concentram-se na investigação de sujeitos adultos e adolescentes, pouco se sabendo acerca da compreensão inicial que a criança tem sobre proporções. Alguns autores, questionando posições pessimistas acerca das possibilidades cognitivas de crianças, procuram compreender o raciocínio proporcional de uma forma diferente. Ao invés de tratar este conceito como um fenômeno tudo-ou-nada (que se possui ou não) levantaram a possibilidade de que nem todas as tarefas de proporção são inacessíveis à compreensão da criança e que, considerados certos aspectos (por exemplo: estrutura da tarefa, dimensões e quantidades envolvidas), algumas tarefas podem ser satisfatoriamente resolvidas desde muito cedo.

O que torna uma tarefa de proporção difícil?

Segundo Piaget (Piaget e Inhelder, 1975), a compreensão do conceito de proporção requer o estabelecimento de relações entre relações (ou relações de segunda-ordem), habilidade esta inacessível à lógica da criança no estágio operacional concreto. No entanto, é preciso considerar sobre que relações estas relações de sgunda ordem se estruturam. Estas relações iniciais, que são o ponto de partida do raciocínio proporcional, são as relações de primeira-ordem cuja importância tem sido frequentemente negligenciada.

Através da análise de protocolos de diversos estudos documentados na literatura, Spinillo (1990; 1992; submetido) verificou que a causa das dificuldades residia muitas vezes nas relações de primeira-ordem. Estas relações apresentam níveis diferentes de dificuldade: algumas são facilmente estabelecidas pelas crianças, permitindo-lhes o estabelecimento de relações de segunda-ordem; outras são complexas e impedem que a relação de segunda-ordem seja estruturada.

Tomemos como exemplo as tarefas de proporção do tipo comparação, em que as dimensões podem ser complementares e não-complementares (Spinillo, 1990; 1992 e submetido). Dimensões complementares envolvem partes de um mesmo todo que são diretamente comparáveis (por exemplo: cartas com e sem cruzes na tarefa piagetiana de quantificação de probabilidades; copos com água ou suco de laranja no estudo de Noelting, 1980; espaço com água ou vazio na tarefa de Bruner e Kenney, 1966). Dimensões não-complementares referem-se a unidades independentes que não constituem parte de um mesmo todo (por exemplo: tempo e distância em problemas de velocidade; peso e distância na tarefa piagetiana do equilíbrio da balança). A coordenação de dimensões não-complementares é mais complexa para crianças do que as dimensões complementares, e é sobre estas últimas que conduziremos nossa análise acerca do pensamento proporcional.

A natureza das relações de primeira-ordem nas tarefas com dimensões complementares

Quando as dimensões são complementares, uma proporção pode ser representada como uma fração ou como razão. Como fração, as relações de primeira-ordem são definidas em termos parte-todo (3/8 das bolinhas são azuis); enquanto que como razão, esas relações são definidas em termos parte-parte (3 bolinhas azuis para 5 bolinhas amarelas). Em termos de desenvolvimento, relações parte-parte são compreendidas mais cedo que as relações parte-todo, como o afirma o próprio Piaget em seus estudos sobre inclusão de classes. Nas relações parte-parte, as partes podem ser comparadas diretamente por estarem simultaneamente presentes; enquanto que nas relações parte-todo, a parte e o todo não são diretamente comparáveis. Apesar disto, a maioria dos estudos sobre proporção com sujeitos infantis envolve as difíceis relações de primeira-ordem do tipo parte-todo.

Poderiam as crianças raciocinar proporcionalmente caso as relações de primeira-ordem fossem parte-parte? Spinillo (1990) realizou uma extensa análise do desempenho de crianças em tarefas de proporção documentadas na literatura, verificando que desde os 6-7 anos as crianças faziam julgamentos proporcionais quando as relações de primeira-ordem eram tratadas não numericamente, e em termos de comparações parte-parte. As conclusões desta análise encontra suporte empírico em diversos estudos, como veremos a seguir.

Evidências

As noções iniciais que a criança tem sobre proporção. Spinillo (1987; 1990; Spinillo e Bryant, 1988; 1989; 1990; 1991) conduziu uma série de investigações com crianças de 4 a 8 anos de idade, utilizando tarefas de comparação com quantidades não-numéricas em que as relações de primeira-ordem eram parte-parte (razão). A criança tinha que determinar qual dentre duas alternativas era aquela que mantinha uma relação de equivalência com um modelo. Aspectos perceptuais e o tamanho absoluto dos objetos apresentados foram controlados. A performance foi analisada em função do número de acertos e das justificativas fornecidas, sendo estas classificadas em uma escala ordinal que refletia diferentes níveis de compreensão sobre proporção.

Os resultados dessas investigações consistentemente demonstravam que já aos 6 anos as crianças respondiam corretamente, usando em suas justificativas julgamentos proporcionais. De modo geral, foi possível verificar a seguinte progressão quanto ao desenvolvimento do conceito de proporção:

(1) 4-5 anos de idade: dificuldades com as relações de segunda-ordem mesmo quando as relações de primeira-ordem são fáceis. Em outras palavras, elas compreendem relações de primeira-ordem mas são incapazes de aplicar estas relações a julgamentos proporcionais.

(2) 6 anos de idade: estabelecem relações entre relações, mas esta habilidade emerge de maneira global, gerando um único tipo de justificativa proporcional para diferentes tipos de comparações entre razões.

(3) 7-8 anos de idade: julgamentos proporcionais mais específicos que variam em função dos diferentes tipos de comparações entre razões, refletindo uma performance mais elaborada que com as crianças de 6 anos.

Observou-se ainda o uso sistemático de uma estratégia de resolução que tinha o conceito de "metade" como referente.

Estudos de treinamento. Além de possuirem noções iniciais, crianças de 6-7 anos são capazes de aprender sobre proporção quando ensinadas a estabelecer relações de primeira-ordem em termos parte-parte.

Muller (1979) examinou o efeito de treinamento na habilidade de crianças (7-10 anos) em fazer julgamentos proporcionais, utilizando relações parte-parte nas relações de primeira-ordem. Após um pré-teste, os sujeitos foram divididos em três grupos: grupo controle (sem feedback ou explicação); grupo de feedback (informações sobre o acerto e erro); e grupo de explicação (feedback e explicação sobre os princípios conceituais de suas escolhas). Um pós-teste foi então aplicado, mostrando que após o treinamento, o grupo de explicação forneceu mais respostas proporcionais que os outros dois grupos. O grupo de feedback deu mais respostas proporcionais que o controle. Concluiu-se que a partir dos 7 anos as crianças podem ser ensinadas a fazer julgamentos proporcionais quando feedback e explicações são fornecidas. Além disso, explicações baseadas no princípio conceituai são mais efetivas do que a simples informação sobre acerto e erro (feedback).

Resultado semelhante foi encontrado por Siegler e Vago (1978), onde, após treinamento, crianças de 7 anos eram bem sucedidas no uso de regras de proporcionalidade tanto quanto as de 10 anos, treinamento este onde as relações de primeira-ordem foram explicitadas em termos de relações parte-parte.

Esses resultados confirmam a idéia de que julgamentos proporcionais podem desde cedo ser estabelecidos através de relações parte-parte e que explicações acerca de como as relações de primeira-ordem podem ser estabelecidas são efetivas para o aparecimento de respostas proporcionais.

Observações no contexto de sala de aula. Além de estudos de treinamento, observações no contexto de sala de aula mostram que crianças de 6-8 anos compreendem noções de equivalência, perspectiva, escalas e outros de dependerem de recursos materiais (re)criados circunstancialmente em cada situação (Schoenfeld, 1989; Lampert, 1990; Resnick, 1989; Greeno, 1989). Esta abordagem "situada" do raciocínio matemático será exemplificada a seguir com os resultados de dois estudos amplamente discutidos em Meira (1991).

Raciocínio matemático e participação cultural

O objetivo deste estudo foi inicialmente investigar e promover o aprendizado de funções lineares em crianças do primeiro grau, através do uso de artefatos instrucionais mecânicos ou computacionais. O uso de materiais concretos como um meio de promover o raciocínio em matemática tem uma longa e atropelada história pedagógica. Argumenta-se, por exemplo, que objetos físicos podem imbuir conceitos e símbolos "abstratos" com experiências e significados "concretos". Com base neste argumento, três instrumentos foram criados a fim de promover a compreensão de funções lineares em crianças de oitava série:

(1) Roldanas. Uma manivela faz girar uma roldana de circunferência A, que por sua vez suspende um pequeno objeto ao longo de uma escala numerada. O mecanismo funciona de tal forma que, se o objeto está inicialmente em um ponto B da escala, cada vez que um giro é imprimido na roldana, o objeto desloca-se A unidades para cima. Então, se a roldana girar X vezes, o objeto desloca-se uma distância igual a A vezes X, e pára na posição Y = AX +B.

(2) Molas. Uma mola é suspensa no topo de urna escala numerada. De acordo com a lei de Hook, molas são esperadas comportar-se linearmente de tal forma que se o tamanho inicial da mola é B e seu coeficiente de elasticidade A, cada vez que uma unidade de peso é colocada na mola, esta alonga-se A unidades. Então, se X unidades de peso são colocadas, a mola alongar-se-ia A vezes X unidades e teria um comprimento final Y = AX + B.

(3) Máquina de Junções. Software programado para receber inputs numéricos e retornar um output, impresso na tela de um computador e calculado de acordo com uma equação linear da forma Output + A. (Input) + B, inacessível aos

Observações em uma sala de oitava série indicaram que os estudantes eram frequentemente solicitados a resolver problemas envolvendo seqüências numéricas e relações funcionais. Sobretudo, observou-se a familiaridade dos estudantes com representações de tabelas e com estratégias para inspecionar seqüências numéricas e elaborar regras matemáticas. Em suma, estes estudantes aprenderam a esperar que seqüências numéricas fossem representadas na forma de tabelas x--y, e exemplificassem regularidades descritas matematicamente.

Após as observações, foram realizadas entrevistas com nove pares de alunos da mesma sala-de-aula. O objetivo destas entrevistas foi investigar a eficácia de cada instrumento como ferramenta no aprendizado de funções. A idéia original, parte de um pensamento clássico dentro das ciencias cognitivas, era de que estes instrumentos concretizam funções lineares de tal forma que seus usuários podem "ver" através deles mais ou menos dos conceitos matemáticos subjacentes. De acordo com esta análise, nos pareceu razoável esperar que o mecanismo de roldanas seria o melhor instrumento para ajudar os estudantes a compreender funções lineares (uma vez que todos os seus componentes estão à mostra), a máquina com molas seria menos eficiente (pois a constante de elasticidade não é perceptualmente saliente no mecanismo), e a máquina de funções seria não apenas confusa mas também abstrata, "descontextualizada" e desmotivadora.

A noção básica por trás do argumento acima é uma visão clássica de transparência, a idéia que instrumentos possuem ou não características instrínsecas que revelam para usuários idéias matemáticas subjacentes. Desta forma, poderíamos atribuir a estes instrumentos graus de transparência que estariam relacionados, por sua vez, à capacidade de cada instrumento em promover a eficiência cognitiva de seus usuários. Em outras palavras, estes instrumentos teriam diferentes graus de fidelidade epistêmica com o domínio de conhecimentos que lhe imaginamos subjacente.

A análise da atividade dos estudantes com estes instrumentos, entretanto, revelou que aqueles que trabalharam com a máquina de roldanas estavam frequentemente muito confusos a respeito do que fazer (contradizendo assim a hipótese inicial), ao mesmo tempo que as crianças que trabalharam com a máquina de funções tiveram uma surpreendente facilidade de lidar com este instrumento. Em geral, observou-se que as crianças entrevistadas foram fortemente influenciadas por experiências em sala-de-aula com seqüências numéricas e representações na forma de tabelas, do tipo que elas perceberam como relevantes na máquina de funções.

A transparência de um instrumento pedagógico é, portanto, uma função da perspectiva de seus usuários, e daquilo que eles aprenderam a reconhecer e compreender através de sua participação em práticas culturais específicas, por exemplo, na sala-de-aula. Transparência não é inerente a objetos, mas emerge em um processo de uso onde artefatos são continuadamente transformados em sua função. Ou seja, artefatos (materiais e intelectuais) tornam-se transparentes na medida em que indivíduos os usam em atividades cujos significados são criados coletivamente em práticas culturais específicas. Assim, o próprio raciocínio matemático é não apenas influenciado, mas de certa forma constituído pela natureza do engajamento dos indivíduos na atividade de grupos sócio-culturais. Do ponto de vista educacional, deveríamos enfatizar não o instrumento pedagógico em si, mas as formas pelas quais estudantes efetivamente os usam e os transformam. Por exemplo, a educação matemática deveria incentivar atividades de discussão em sala-de-aula, no contexto das quais certos materiais pedagógicos poderiam tornar-se objetos de argumentação matemática.

Raciocínio matemático e representações materiais

Este segundo estudo investigou a natureza e a gênese das representações construídas pelos sujeitos durante a resolução de problemas envolvendo os mesmos mecanismos físicos descritos acima. Devido a extensão da micro-análise das representações materiais produzidas pelos estudantes, apresento a seguir apenas as conclusões deste estudo, e que se relacionam diretamente com o tema deste artigo.

De acordo com a análise realizada, observou-se que as representações elaboradas pelos sujeitos no papel apresentam as seguintes características:

(1) Representações matemática impressas no papel podem ser usadas para resumir, abstrair e transportar informações contidas em outras representações.

(2) A mesma representação pode possuir múltiplos significados, que evoluem durante a resolução de problemas.

(3) Embora as vezes aparentemente compactas, representações no papel podem ser compostas de "aglomerados" distintos, cada um dos quais permitindo inferências quantitativas distintas.

(4) Mesmo em uma representação estritamente não-algébrica, uma representação matemática pode conter "variáveis", cujo conteúdo e significado são manipulados, recombinados, ou mesmo abandonados, dependendo de circunstâncias emergentes na atividade do resolvedor de problemas.

(5) Representações podem apresentar um caráter minimalista, na medida em que informações "secundárias" (por exemplo, rótulos em tabelas de valores) surgem apenas no discurso do sujeito.

(6) Representações são de certa forma "contínuas" com possíveis referentes físicos, mas também podem adquirir vida própria e organizar a própria atividade da qual emergem.

(7) Atividades de resolução de problemas não são simplesmente aplicadas sobre ou em conjunto com representações, mas sua própria emergência pode depender da existência de representações específicas em uma dada situação.

Este estudo sugere, então, que a produção de representações "externas" ou materiais na atividade matemática é essencial para a organização e desenvolvimento do próprio raciocínio matemático. Esta conclusão, entretanto, deve ser cuidadosamente qualificada pois representações não possuem, por si sós, qualquer poder especial para determinar o raciocínio. Ao invés disto, sugiro que representações materiais e atividade matemática se constituem mutuamente. Na sala-de-aula, então, dever-se-ia incentivar a produção abundante de representações materiais como forma de fazer a matemática mais "concreta" e perceptualmente significativa para os alunos.

 

Considerações finais

Tomamos em conjunto, os estudos discutidos acima apontam para novas perspectivas na investigação do raciocínio lógico-matemático. As pesquisas de Dias (1988), Spinillo (1990), e Meira (1991) ilustram a complexidade do raciocínio e, em particular, seus aspectos circunstanciais. Ou seja, emergentes formas de raciocínio lógico-matemático dependem direta e intrinsecamente da organização das situações imediatas de resolução de problemas silogísticos e matemáticos. Esta organização pode estar relacionada, por exemplo, à forma de apresentação de tarefas, ou à qualidade das interações sociais existentes na situação, ou ao próprio aprendizado anterior do indivíduo em práticas culturais específicas.

Tanto a Psicologia (a nível teórico e metodológico) quanto a Educação (especialmente a nível de práticas pedagógicas) precisam considerar as perspectivas aqui apresentadas, no sentido de melhor compreender as possibilidades cognitivas individuais e as situações em que tais habilidades emergem.

 

Referências Bibliográficas

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