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Temas em Psicologia

Print version ISSN 1413-389X

Temas psicol. vol.1 no.2 Ribeirão Preto Aug. 1993

 

Uma sociedade voltada para o futuro

 

 

Maria Amalia Andery1

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

 

 

Em 1976, ao escrever o prefácio para uma nova edição de Walden II, Skinner discute as possíveis razões do crescente interesse pelo livro a partir dos anos 60 e afirma:

"Mas havia, eu penso, uma razão melhor para mais e mais pessoas começarem a ler o livro. O mundo estava começando a enfrentar problemas de uma ordem de magnitude completamente nova - a exaustão de recursos, a poluição do ambiente, a super-população e a possibilidade de um holocausto nuclear, para mencionar apenas estes. "(Skinner, 1976/1972, p. 58).(2)

Desde então não se pode dizer que esta constatação tenha se tornado superada. A esta lista inicial só poderíamos acrescentar uma infinidade de outros problemas: o empobrecimento das nações ricas, os problemas sociais, raciais, de desemprego e estaginflação, os nacionalismos emergentes, a miséria crescente do terceiro mundo com suas terríveis conseqüências sociais, a aparente falta de alternativa política e econômica tanto para os países ricos como os pobres, tanto para os países capitalistas como os socialistas.

A partir de 1948, com a publicação de Walden II, logo seguida da publicação de Science and Human Behavior, o compromisso de Skinner com a cultura e a sociedade se tornam marcas constantes de seu trabalho (talvez sua importância possa ser avaliada inclusive pela constante crítica externa à análise experimental que sofreu). A proposta de organização da cultura de Walden litem como um dos traços essenciais o que se pode chamar um impulso para o futuro. O que significa dizer, uma cultura caracterizada por uma maleabilidade que permita a uma sociedade identificar e solucionar seus problemas, ser criativa e produtiva nesta busca de soluções e mesmo ser capaz de antever seu futuro planejando-o com vistas a sua sobrevivência, de acordo com padrões dados.

A importância deste traço cultural - se é que se pode chamá-lo assim no esquema conceituai skinneriano possivelmente deriva de várias fontes. Em primeiro lugar, do determinismo ambiental. Se o comportamento dos indivíduos constrói a cultura e a mantém, e se este é determinado pelas suas conseqüências imediatas, torna-se fundamental que as práticas culturais e que os padrões comportamentais possam se adaptar a um ambiente constantemente em mudança, inclusive e principalmente, através da própria ação humana.

Em segundo lugar, e fortemente associado ao determinismo, está a noção, cada vez mais relevante na obra de Skinner, de que o modelo selecionista, a seleção pelas conseqüências, é fundamental para a explicação não apenas da evolução filogenética, mas também das mudanças individuais e culturais. Se são as conseqüências das práticas culturais que determinam, se não o seu aparecimento que pode ser aleatório, mas a sua manutenção num primeiro momento (aqui é importante ressaltar uma certa tendência a uma esclerose de práticas sociais, que foram algum dia importantes), é fundamental que este valor de sobrevivência para o grupo seja garantido pelo menos para aquelas práticas mais relevantes ao grupo. Isto significa que apenas aquelas culturas que puderem manter ou alterar suas práticas de acordo com seu valor de sobrevivência a longo prazo serão capazes de sobreviver. E terão mais possibilidade de fazê-lo aquelas que tiverem a maleabilidade necessária para efetuar estas avaliações e estas mudanças.

Toma-se assim de grande importância, para a análise experimental, de um lado, ocupar-se com a cultura, sua manutenção e as mudanças necessárias à sua sobrevivência, de outro, perguntar-se como garantir esta sobrevivência. Parafraseando Skinner: "Somos livres para ter um futuro?" ou melhor, "Nós, que nos chamamos de livres, teremos um futuro?", ou ainda, "Somos suficientemente livres do presente para ter um futuro?" (Skinner, 1973/1978, pp. 30-32).

A resposta de Skinner a esta questão aparentemente se mantém essencialmente a mesma desde a década de 40. A possibilidade de se garantir a sobrevivência da espécie está intrinsecamente relacionada à possibilidade de desenvolver uma cultura plena de contingências de reforçamento que possam colocar o comportamento não apenas sob controle das suas conseqüências imediatas, mas também de conseqüências de longo prazo. São necessárias práticas sociais que levem em consideração o controle do ambiente - físico e social - sobre o comportamento e que necessariamente precisam considerar as suas próprias conseqüências, para os indivíduos, o grupo e o ambiente.

Com isto, Skinner afirma não apenas um modelo selecionista que aleatoriamente leva à sobrevivência de alguns, mas afirma a possibilidade e a necessidade de se prever esta evolução e nela interferir. É a isto que se resume, em certa medida, o que aqui se convencionou chamar de um impulso para o futuro. Não se trata de enfatizar o futuro segundo um modelo teleológico que prevê uma determinação inexorável e que busca encontrar nesta determinação as razões e as alternativas de intervenção. Não se trata também de reviver modelos não deterministas que apoiam no acaso e na chamada livre escolha as possibilidades de intervenção, enfatizando razões idealistas como alternativas de solução para os problemas humanos.

Trata-se, pelo contrário, da tentativa de resgatar um sujeito determinado - pelo ambiente - capaz de conhecer os determinantes de sua ação e de assim manipulá-los. Skinner afirma:

"O fato é que evoluíram práticas culturais nas quais as contingências de reforçamento imediato geram comportamentos que têm conseqüências remotas e presumivelmente isto aconteceu em parte porque as conseqüências fortaleceram a cultura, permitindo-lhe resolver seus problemas e assim sobreviver. Que as conseqüências remotas, não importa quão importantes para a cultura, não estão, entretanto, tendo qualquer efeito presente épor demais evidente quando são feitos esforços para levar em consideração um futuro que não é efeito de comportamento presentemente reforçado. (...) Não podemos continuar a deixar o futuro para os efeitos colaterais ocasionalmente benéficos de uma forte preocupação com o presente. " (Skinner, 1973/1978, p. 224 e 228).

Este suposto - da necessidade de uma cultura caracterizar-se pelo impulso para o futuro - e a constatação, entrevista na citação acima, de sua inexistência em nossa cultura, levaram Skinner seguidas vezes a recorrer ao tema e a propor alternativas de ação ou, pelo menos, de análise (1948, 1952, 1969, 1971, 1974 etc...).

Na sua análise, tanto em 1948, como mais tarde, destacam-se alguns temas: o uso de controle aversivo, a não equanimidade de reforçamento positivo, as noções de liberdade e livre arbítrio, o controle exercido por regras, a delegação de poder e a perda de relações interpessoais, o reforçamento não contingente a certos comportamentos. É a mistura destes elementos que colocaria em risco a cultura hoje (e aqui se incluem, obviamente com pesos diferentes, países ricos e pobres, socialistas e capitalistas, democráticos e autoritários). São mudanças nestes parâmetros que criariam, para Skinner, uma nova cultura capaz de sobreviver e de garantir padrões mínimos de vida e de felicidade para seus membros. Referindo-se a Walden II, em 1973, Skinner escreveu:

"As especificações do futuro foram listadas em Walden II. Frazier tentou construir um mundo no qual Áas pessoas convivem sem brigas, se mantêm produzindo o alimento, abrigo, e vestimenta de que precisam, divertem-se e contribuem para a diversão dos outros na arte, música, literatura e jogos, consomem apenas uma parte razoável dos recursos do mundo e adicionam tão pouco quanto possível à sua poluição, não têm mais filhos do que aqueles que podem criar decentemente, continuam a explorar o mundo ao seu redor e a descobrir modos melhores de lidar com ele e vem a se conhecer com precisão, e, portanto, controlam-se efetivamente*. Ele fez isto construindo um ambiente social rico em reforçadores imediatos selecionados de modo tal a fortalecer os tipos de comportamento que tomam um futuro possível" (Skinner, 1973/1978, pp. 29-30).

Para Skinner, a chave da questão, como colocada em Walden 11, está na formação de uma cultura em que seus membros mantêm fortes relações interpessoais garantindo assim um controle maior por contingências de reforçamento do que por regras mediadas por instituições sociais. São todos envolvidos na produção efetiva dos bens que necessitam, com acesso contínuo, imediato e equitativo a estes bens e reforçamento contingente a seu comportamento produtivo; impedindo assim não apenas a exploração de uns pelos outros, mas também dificultando a passividade típica dos indivíduos que obtêm muitos reforçadores independentes de seu comportamento. Não estão sujeitos a praticamente nenhuma forma de controle aversivo, impedindo a distribuição não igualitária de bens ou de poder entre membros do grupo e diminuindo enormemente a chance de contra-controle, comportamento agressivo, ansiedade e medo. Como conseqüência, os indivíduos sentem-se livres e não desenvolvem ideologias e mitos que impeçam o auto-conhecimento e o auto-controle o que, em contra-partida, dificulta o conhecimento (e consequente possibilidade de previsão e controle) das relações entre sua ação e o ambiente. Uma cultura desenvolvida sobre estas bases geraria tecnologia que tende a libertar os indivíduos de trabalhos desagradáveis e repetitivos, tende a garantir tempo que pode ser produtivamente utilizado em outras atividades e gera um repertório de exploração do mundo e das capacidades humanas que torna o grupo maleável a mudanças, suscetível a transformações e capaz de enfrentar dificuldades.

Isto pode ser interpretado numa certa medida como um programa de ação, passível de ser executado. Em um artigo intitulado Human Behavior and Democracy, de 1977, Skinner afirma que:

"Alguns dos princípios comiimente observados na aplicação de uma análise experimental à vida cotidiana são importantes de ressaltar porque estão particularmente envolvidos no governo das pessoas pelas pessoas. De uma forma ou outra eles têm uma longa história. A própria substituição do controle aversivo pelo reforçamento positivo é, naturalmente, o cerne da luta pela liberdade. (...)

Reforçamento positivo tem um efeito fortalecedor não apenas sobre o comportamento do indivíduo, mas também sobre a cultura, criando um mundo que as pessoas não tendem a abandonar e que provavelmente defenderão, promoverão e aprimorarão. (...)

Um segundo princípio para melhorar o controle das pessoas pelas pessoas é o de evitar os reforçadores arbitrários. (...) Todos vivemos numa economia de fichas. O dinheiro foi inventado como reforçador condicionado porque tem muitas vantagens: é facilmente dado e recebido; o consumo dos reforçadores primários pelos quais é trocado pode ser convenientemente posposto; os valores reforçadores podem ser facilmente comparados etc... Mas o comportamento é mais rapidamente modelado e mantido por suas conseqüências naturais. O comportamento do trabalhador na linha de montagem que não tem outra conseqüência importante além do seu salário semanal sofre em relação ao do artesão que é reforçado pelas coisas produzidas. A separação de trabalhadores dos produtos naturais de seu trabalho era naturalmente o que Marx chamou de 'alienação Há um efeito semelhante quando sanções punitivas são delegadas a autoridades, porque reforçadores negativos, como multas ou prisão, alienam os cidadãos da censura direta de seus companheiros. (...)

Um terceiro princípio é bastante semelhante. Comportamento que consiste de seguir regras é inferior a comportamento modelado pelas contingências descritas na regra. (...)

Similarmente, aprendendo as regras da cultura somos capazes de lidar com pessoas efetivamente, mas nosso comportamento será mais sensível às contingências 'mantidas pelo povo quando somos diretamente censurados e elogiados, e as regras da cultura, como as instruções de operação de um equipamento, são esquecidas. (...)

Um quarto princípio não é tão amplamente reconhecido. Controle de pessoas por pessoas é provável de ser perturbado por reformadores 'não~contingentes\ Muitas coisas boas chegam a nós grátis. (...) Reformadores não contingentes são característicos de ambos - riqueza e bem-estar - e têm os mesmos efeitos problemáticos em ambos. Por reduzir o nível de privação eles se apropriam de muitas possibilidades de reforçamento e reforqadores de significancia biológica menor ganham espaço. Os resultados são algumas vezes produtivos. (...) Mais frequentemente, entretanto, eles são estupefacientes e danosos (...) Uma política de 'trabalho e bem-estar'pode resolver o problema do reforçador não contingente para o desempregado, mas não para o afluente. Reforçadores não contingentes impedem o grupo de desenvolver mais completamente as capacidades de seus membros e ameaçam a força da cultura e presumivelmente suas chances de sobrevivência.

Ainda um outro princípio diz respeito à extensão na qual uma cultura prepara seus membros para responder às suas contingências. Um ambiente social é extraordinariamente complexo e novos membros de um grupo não vêm preparados com comportamento apropriado. (...) um controle mais explícito é necessário agora. "(...) (Skinner, 1977/1978, pp. 11, 12, 13).

Se estes pontos revelam, numa certa medida, um programa para a transformação da cultura, revelam também ao menos a possibilidade de uma análise de aspectos cruciais de alguns dos grandes problemas atuais, que poderia nos auxiliar a compreender e a intervir na realidade.

Assim, com relação à discussão de modelos econômicos, por exemplo, um tema certamente central na proposta de mudanças urgentemente necessárias na nossa e aparentemente em todas as sociedades hoje, é possível uma tentativa inicial de análise:

1. A defesa liberal e mais modernamente neo-liberal do livre mercado, como modelo econômico, fica evidentemente abolida pela necessidade que emerge deste modelo de se construir toda uma série de instituições que têm o papel de mediar certas contingências, no mais das vezes aversivas, para garantir o aparente livre funcionamento do mercado, com suas aparentes liberdades de escolha do consumidor, do trabalhador, de preços. Também se revela o real papel destas instituições na manutenção de privilégios, para alguns ou muitos. Como conseqüência, se impede qualquer possibilidade de se reforçar contingentemente comportamento produtivo em larga escala, de se abrir mão de controle aversivo, subsidiário ou não a controle positivo do comportamento, também em larga escala, seja nas relações econômicas, políticas ou sociais.

2. Do mesmo modo se abre um enorme flanco de discussão para um possível estado de bem estar, uma vez que o controle aversivo do comportamento acaba por permanecer em tal estrutura do mesmo modo, ainda que em escala diferente. Os problemas relativos à não contingência de reforçamento sobre o comportamento produtivo, e a impossibilidade de se tornar realmente equitativo o acesso a reforçadores naturais e condicionados também emergem neste modelo como problemas que são, do ponto de vista skinneriano, insolúveis.

3. Também o modelo socialista tradicional, dependente de enormes burocracias que têm o objetivo de determinar comportamentos, produção etc, como tarefa do planejamento central, torna quase impossível a emergência de uma cultura que não seja fortemente controlada por condições aversivas, fortemente dependente de regras, e bastante insensível à emergência de certas contingências criadas nas relações interpessoais.

Por seu turno a análise revelaria com clareza e precisão alguns "dados" que a muitos parecem obscuros. Por exemplo, esclarece-se como a apropriação de riqueza no mundo capitalista, gerando riqueza de um lado e miséria de outro, é, sim, um determinante importante de alguns dos graves problemas atuais em países como o Brasil, só solucionáveis através de mudanças que deverão acontecer desde a base da sociedade. Mudanças que não poderão ser apenas mudanças na distribuição desta riqueza, entretanto, mas que necessariamente deverão envolver a construção de uma nova concepção de mundo materialista em que os indivíduos desempenhem um papel ativo e responsável - no sentido de que suas ações produzem as conseqüências que garantem a sua sobrevivência e a de seu grupo. Deverão envolver a garantia de que a todos será dado o acesso aos bens materiais socialmente produzidos, contingentemente a seu comportamento. Deverão envolver, ainda, a superação de um modelo de controle do comportamento baseado na punição e na ameaça de punição - institucional e pessoal - trazendo não apenas um novo modelo de relações sociais, mas um novo modelo de relações políticas e econômicas e até mesmo uma nova ética.

Isto se pretendermos ter um futuro, se não quisermos submergir à violência gerada pelo contra-controle daqueles que nada têm, ou à violência daqueles que puderam acumular o poder para controlar aversivamente.

Se é necessário construir (ou reconstruir) uma cultura, como parece indiscutível, capaz não apenas de resolver seus problemas presentes, mas também de ter "um impulso para o futuro", qual o papel que nos cabe aqui? Por onde começar? Para Skinner, de todos e de um só lugar: da transformação do ambiente social, este complexo conjunto de contingências mantidas pelos indivíduos e instituições. Diz Skinner:

"Frequentemente se diz que a questão final é, quem controlará os controladores. Mas a questão não é quem, mas o que. As pessoas agem para melhorar suas práticas culturais quando seus ambientes sociais induzem-nas a fazê-lo. Culturas que têm este efeito e que sustentam as ciências relevantes tem mais probabilidade de resolver seus problemas e de sobreviver. É uma cultura em evolução, então, que é mais provável de controlar o controlador." (Skinner, 1977/1978, p. 14).

 

Referencias Bibliográficas

Skinner, B.P. (1977). Walden II. São Paulo: EPU. Publicação original em 1948.         [ Links ]

Skinner, B.F. (1953). Science and Human Behavior. New York: MacMillan.         [ Links ]

Skinner, B.F. (1978). Are We Free to Have a Future? Em B.F. Skinner. Reflections on Behaviorism and Society. Englewood Cliffs: Prentice Hall. Publicação original em 1973.         [ Links ]

Skinner, B.F. (1978). Human Behavior and Democracy. Em B.F. Skinner. Reflections on Behaviorism and Society. Englewood Cliffs: Prentice Hall. Publicação original em 1977.         [ Links ]

Skinner, B.F. (1978). Walden II Revisited. Em B.F. Skiimer. Reflections on Behaviorism and Society. Englewood Cliffs: Prentice Hall. Publicação original em 1976.         [ Links ]

 

 

(1) Faculdade de Psicologia, Departamento de Métodos e Técnicas, Laboratório de Psicologia Experimental. Rua Cardoso de Almeida, 986. São Paulo, SP, CEP 05013.
(2) As referências dos textos de Skinner indicam, nesta ordem, a data original de publicação e a data de publicação consultada não for original.

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