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Temas em Psicologia

versão impressa ISSN 1413-389X

Temas psicol. v.1 n.2 Ribeirão Preto ago. 1993

 

O sentimento na psicoterapia comportamental infantil: envolvimento dos pais e da criança

 

 

Vera Regina Lignelli Otero

ORTEC - Clínica de Psicologia e Psicopedagogia - Ribeirão Preto

 

 

O objetivo desta apresentação é relatar a maneira como trabalho em psicoterapia infantil, enfatizando dois aspectos que considero fundamentais no atendimento de crianças: 1) o envolvimento dos pais no processo psicoterapêutico; 2) o trabalho com os sentimentos experimentados pelos pais e pela criança na rotina da interação familiar e durante o processo de atendimento.

Desejo salientar que o presente trabalho refere-se ao relato de uma forma de intervenção clínica, esperando que possa contribuir para a discussão sobre a prática da psicoterapia comportamental infantil.

Retomando aspectos já salientados em trabalho anterior (Otero, 1988), queremos enfatizar que toda intervenção psicoterapêutica tem embutida em sua prática uma série de pressupostos teóricos, advindos ou não do laboratório e que fundamentam sua ação. As pessoas influenciam e recebem influências do ambiente, desde o momento de sua concepção. Esta relação de mão dupla contém variáveis de ordem biológica, social, emocional e interacional, dentre outras, que interferem em cada indivíduo e na sua relação com as pessoas. A psicoterapia comportamental infantil, fundamentada em princípios teóricos advindos de dados de pesquisas experimentais e/ou observacionais, intervém não apenas na criança em si, mas na sua inter-relação com o seu meio. Tais princípios englobam processos de aprendizagem social, cognitiva e comportamental, dados de ordem biológica, perceptual, motivacional e de desenvolvimento (Oliveira Lima, 1981).

Estas afirmações nos permitem concluir que na psicoterapia comportamental infantil, a criança e seus pais constituem um conjunto denominado cliente. Entretanto, na grande maioria das vezes, a família procura uma ajuda direcionada apenas para o filho, acreditando que sua criança seja a detentora exclusiva das dificuldades relatadas. Considerar a família como parte integrante das queixas sobre a criança, amplia a visão e a possibilidade de intervenção. Ademais esta compreensão identifica o processo de "mão dupla" que ocorre quer na emissão de comportamentos explícitos inadequados - dos pais e/ou da criança - quer na identificação e/ou expressão de seus respectivos sentimentos. Skinner (1991) já afirmava que levar as pessoas a perceberem o que sentem é freqüentemente tão importante quanto o que fazem.

Apresentarei agora alguns momentos do atendimento de um caso clínico, destacando os sentimentos da criança e de seus pais, que foram se revelando para a terapeuta (T) e para eles próprios, através da criação de situações facilitadoras. Relatarei as sessões dos pais intercaladas com as da criança, com o propósito de facilitar uma melhor compreensão do desenvolvimento da psicoterapia, urna vez que o atendimento se dá concomitantemente, isto é, os pais e a criança são vistos uma vez por semana, em sessões independentes.

Fui procurada por uma família de nível sócio-econômico alto, com queixas relativas ao terceiro filho, com seis anos e oito meses (demais filhos: um menino de dez anos e duas meninas de nove e três anos).

As principais queixas e descrições apresentadas pelos pais na primeira entrevista foram: "é agressivo; sempre é do contra; não aceita, nem faz carinho; é muito tímido; é muito teimoso; é muito fechado, como o pai; é muito caprichoso; é muito responsável; é muito respeitador; ocorrem muitas brigas entre ele e os irmãos; faz xixi na cama; é muito problemático para comer e tem sono agitado".

Sua história de vida mostra que ele nasceu aos nove meses de gestação, de parto normal e sem nenhum problema. Sempre teve uma babá (enfermeira) a qual exercia o papel de mãe com todos os filhos, especialmente com C.

Antes de C começar a freqüentar a clínica, foram feitas mais seis sessões com os pais que tiveram por objetivo: continuar a coleta de dados; ensiná-los a observar e relatar comportamentos; ensiná-los a fazer a análise funcional dos mesmos; ajudá-los a reorganizar as percepções que tinham de si e de C; ajudá-los a identificar os próprios sentimentos em relação a si e a C e os possíveis sentimentos dela; ajudá-los a reformular a compreensão dos problemas de C, levando-os a perceber que extrapolavam a criança em si; discutir práticas educativas e suas possíveis conseqüências. Evidentemente, esses objetivos estiveram presentes durante todo o atendimento do caso.

Nas seis sessões acima referidas, os pais acrescentaram informações que foram fundamentais para a compreensão das dificuldades de C. Até a idade de seis anos, C já tinha vivido dez episódios de separação dos pais, por motivo de viagem, sendo que seis deles tinham tido mais de um mês de duração. Alguns exemplos de situações de separação vividas pela dupla C-pais se seguem: aos quatro meses e meio de idade C foi desmamado e seus pais tiveram que viajar por um mês; quando C tinha um ano e dois meses ocorreu nova viagem dos pais por um mês; aos dois anos idem. Desta feita, quando do reencontro de C com seus pais, demorou muito para que ele aceitasse ir para o colo da mãe e, ao fazê-lo, ficou com o corpo rígido, parecendo evitar a situação de aconchego. Permaneceu apático por muitos dias, não se tendo notícia de nenhum sorriso dele neste período.

As sessões com C foram semi-estruturadas, de tal forma que se mesclavam atividades de desenho, montagem, jogos dramáticos com família de boneco na casinha etc. Selecionei para apresentar, aqui, o relato de um desenho-história feito por C em uma das sessões iniciais, em que os sentimentos vividos se revelaram de forma clara e inequívoca.

Logo no início da sessão, C disse que queria desenhar. Foi solicitado que escolhesse um animal para fazer uma historinha. C escolheu um peixe. Então dei-lhe uma folha branca de papel sulfite dividida em oito quadros. Depois de terminado o desenho, T pediu que contasse a história que desenhara e que foi a seguinte:

Quadro 1 - "É um peixinho que o pai e a mãe dele vão embora e ele fica de noite com medo e assustado. Ele corre prá toca dele. Tem trovão."

Quadro 2 - "Aparece uma nave e fica chovendo."

Quadro 3 - "Depois o jacaré come a mãe dele."

Quadro 4 - "A baleia come o pai dele,"

Quadro 5 - "Depois deu uma chuva e a cobra elétrica tava correndo atrás dele e ele correu prá toquinha."

Quadro 6 - "Aqui ele já tinha crescido um pouco,"

Quadro 7 - "Aqui já cresceu."

Quadro 8 - "Depois aparece um tubarão e come ele."

Ao ser solicitado para escolher qualquer elemento do desenho com o qual ele se identificasse, deu-se o seguinte diálogo inicialmente:

T-"Quem é você?"

C - "A água."

T- "Por que?"

C - "Porque água não dá prá morrer. Água não morre."

T - "Água não tem pai e nem mãe que vão embora."

C olhou-me fixamente sem dizer nada, e, em seguida fomos para outra atividade.

Conversas sobre o significado desse desenho foram retomadas durante muitas sessões com C, nas situações pertinentes. Era apontado para C, que embora ele tivesse escolhido a água como elemento de identificação naquele desenho, eu percebia outras associações tais como: em sua vida, ele havia se sentido por muitas vezes abandonado pelos próprios pais (p. ex. quando viajavam e/ou saiam de casa à noite) e que nessas situações, ele (como o peixinho), experimentou sentimentos ameaçadores de medo, pavor, susto etc...

Paralelamente, nas sessões com os pais, eram relatados e analisados com eles os diálogos ocorridos com C, em suas sessões. Estabeleciam-se também as correlações entre as situações reais vividas por C e seus pais e os sentimentos identificados nas sessões da criança. Nessas entrevistas, onde os comportamentos de C eram descritos, os sentimentos dos pais iam se revelando.

Solicitava-se aos pais que identificassem seus próprios sentimentos, relacionados às suas interações com C. Fazia-se uma análise funcional de seus próprios relatos, a qual, gradativamente, possibilitava a elucidação do fato de que os pais, da mesma forma que a criança, sentiam-se abandonados e rejeitados por C. Quando relatavam, por exemplo, suas tentativas de aproximarem-se de C para fazer carinho, beijá-lo, abraçá-lo ou pegá-lo no colo e eram agredidos e rejeitados, T os fazia perceber quais sentimentos experimentavam e quais comportamentos esses sentimentos geravam. Era evidente que, ao se sentirem rejeitados pela criança, eles a ignoravam, agrediam-na e de novo a abandonavam.

Os pais, a exemplo da criança, também experimentavam uma forte insegurança na interação com C. Sempre que lhe davam uma ordem ou mesmo uma sugestão, perdiam a naturalidade e/ou a espontaneidade, dado que ficavam esperando qual seria a reação do garoto. Este, em geral, controlava o comportamento dos pais, tornando-os ríspicos com ele na maioria das vezes, o que o levava invariavelmente a se isolar.

Na medida em que prosseguiam as entrevistas, os pais conseguiam colocar-se cada vez mais no lugar da criança. Identificavam que suas próprias atitudes e rotina de vida geravam sentimentos de medo e/ou abandono e/ou desamparo em C, dentre outros. Sua capacidade de fazer análises funcionais ia se ampliando e com isto reformulavam a compreensão que tinham do filho, percebendo que ele era sim o portador de um distúrbio emocional, mas que, em grande parte, era desencadeado pelas interações que ocorriam entre eles. Foram percebendo que tinham um modelo idealizado de família que pressupunha que os filhos, providos materialmente, e amados pelos pais, poderiam ser cuidados por outras pessoas e se desenvolverem normalmente sem acidentes de percurso. Estas crenças fantasiosas foram sendo substituídas por modelos concretos e reais de interação, tais como assistir conjuntamente um programa de TV de interesse da criança, tomar refeições juntos, rever tarefas escolares etc.

À medida em que os pais foram mudando a maneira de se relacionar com os filhos, C começou a exibir comportamentos de aproximação, de aceitação e carinho, de aceitação de ordens, de sugestões e, concomitantemente, uma grande diminuição do "ser do contra", uma vez que melhorou muito a qualidade das situações de interação da família.

Entretanto, ainda ocorriam episódios marcantes que desencadeavam fortes reações emocionais em C, tal como uma viagem dos pais por uma semana durante o quarto mês do atendimento. Esta foi uma oportunidade muito rica para a evolução do caso como um todo. Os pais verbalizaram muitas vezes para C a importância desta viagem para o trabalho do pai, e justificaram porque o filho não poderia acompanhá-los. Apesar da reação da criança ao saber da viagem agredindo-os verbal e fisicamente, negando a possibilidade de ocorrência da mesma, parando de comer, tendo febre, os pais conseguiram perceber e compreender seus sentimentos.

Nas sessões com C, neste período, foram trabalhados seus sentimentos e comportamentos explícitos, através de desenho-história e/ou conversa sobre a viagem.

A seguir alguns trechos ocorridos em uma das sessões, antes desta viagem dos pais:

T - "O papai e a mamãe vão viajar, né?"

C - "Não, eles não vão!"

T - "Vão sim, você sabe que eles precisam..."

C - "Não vão, eu não deixo. Eles são burros. Eu vou também."

T - "Você sabe que não pode ir. Você sabe que eles gostariam de te levar mas você tem que ir à escola. Você sempre fica, né?"

C = "É."

T - "O que você fica pensando?"

C - "Eles não gostam de mim."

Essas conversas prosseguiam no sentido de ajudar C a discriminar entre os dados da vida real (necessidade da viagem dos pais) e a interpretação que ele atribuía ao mesmo fato ("eles viajam porque não gostam de mim"). Ao mesmo tempo, eram apontados todos os cuidados e providências que os pais haviam tomado para que ele e os irmãos ficassem protegidos e seguros. T também verbalizava sua compreensão do fato de que C se sentia muito triste quando os pais não estavam perto dele.

Em outra sessão, já durante a viagem ,C fez uma história que ele chamou de "Passarinho muito feliz". Ocorreu o seguinte diálogo:

C - "Uma águia. Ela tá voando com passarinhos, ia chover; ela foi pro ninho, pôs dois ovos, eles nasceu: ela jogou minhoquinha. Eles cresceu; já podiam voar; já tacaram outras minhocas."

T - "O que a deixava feliz?"

C-"Voá. Vê a natureza."

T- "O que mais?"

C - "Porque nasceu filhote."

T - "Quem é que pode ser você nesse desenho?"

C- "Aterra sou eu."

T- "Porque?"

C - "Porque não morre. A terra não sente nada, por exemplo a formiga

T - "A terra não fica triste, mas você fica, não é?"

C - "Eu fico sim, vamos jogar?"

Em outras oportunidades, elementos dessas histórias eram trazidos para a conversa seja pela própria C ou por T. A história da água foi muito rica para que C percebesse seus próprios sentimentos, como eles se alternavam (p. ex. felicidade e tristeza); perceber-se crescendo e podendo ser independente, bem como perceber sua vontade de ser insensível como a terra de seu desenho.

Em suma, com o decorrer do trabalho (cerca de três anos) melhorou claramente a qualidade de vida da família como um todo. Na medida em que pais e criança percebiam seus próprios sentimentos e comportamentos e o que estes geravam no outro, quais eram as conseqüências para si e para o outro, ia aumentando o grau de sintonia entre eles, verificando-se mudanças na forma de comunicação, nos comportamentos explícitos e nos encobertos.

Em relação às queixas iniciais apresentadas pelos pais, as seguintes modificações foram relatadas: C tornou-se muito menos agressivo, não era mais do contra "por princípio"; pelo contrário, entabulava conversa com os pais para expor suas opiniões, vontades, necessidades, acatando as ponderações feitas por eles ou mesmo discordando. Tornou-se uma criança mais extrovertida, mais carinhosa e mais receptiva a manifestações de afeto. Entretanto, continuaram freqüentes as brigas entre ele e os irmãos e C continuou enurético, embora com uma menor frequencia.

Os pais, na medida em que reformularam sua compreensão sobre família, sobre o papel relativo do provimento material e a importância dos cuidados pessoais deles para com os filhos, aproximaram-se cada vez mais destes, participando de atividades de cada filho (algumas das quais anteriormente eram desenvolvidas pela babá e/ou motorista) e promovendo situações agradáveis de convivio familiar.

Com a apresentação de alguns momentos do atendimento desse caso clínico, espero ter enfatizado a importância que atribuo aos sentimentos no processo psicoterapêutico infantil. A utilização de procedimentos de intervenção como o "desenho-história" permite-nos ter acesso ao que ficou registrado dentro da criança, até aquele instante de sua vida, e que se manifesta através de vivências e sentimentos, atribuídos pela criança aos elementos de seus próprios desenhos. Ajudando-a a perceber a associação entre os personagens criados e os fatos de sua própria história de vida, facilitamos o processo de reformulação de sua compreensão sobre o significado das contingências percebidas e atribuídas. Envolver os pais neste processo de compreensão de significados, ajudando-os a fazer análises funcionais das situações por eles descritas, leva-os a reorganizar suas crenças e percepções e a rearranjar contingências. Tal processo permite uma intervenção direta na forma de relacionamento familiar, facilitando mudanças de comportamentos observáveis e encobertos.

Espero ter evidenciado que a compreensão do que ocorre consigo e com o outro quando numa relação, facilita o processo psicoterapêutico, levando à ocorrência de mudanças de comportamentos, sentimentos, emoções com evidentes alterações na interação familiar.

Finalmente, como afirma Viscott (1982), "Nossos sentimentos são nosso sexto sentido, o sentido que interpreta, organiza, dirige e resume os outro cinco. Os sentimentos nos dizem se o que estamos experimentando é ameaçador, doloroso, lamentável, triste ou alegre. Os sentimentos podem ser descritos e explicados de maneiras simples e diretas... Não estar cônscio dos sentimentos de alguém, não compreendê-los ou não saber como usá4os ou expressá-los épior do que ser cego, surdo ou paralítico. Não sentir é não viver " (p. 11).

 

Referências Bibliográficas

Oliveira Lima, M.V. de (1981). Uma alternativa para a Terapia Comportamental Infantil. Ciência e Cultura, 33(8), 1085-1088.         [ Links ]

Otero, V.R.L. (1988). Terapia Comportamental: a prática clínica no atendimento de crianças. Anais da XVW Reunião de Psicologia, 577-580.         [ Links ]

Skinner, B.F. (1991). Questões Recentes na Análise Comportamental. Campinas: Papirus Editora.         [ Links ]

Viscott, D. (1982). A Linguagem dos Sentimentos. SP: Summus Editorial.         [ Links ]

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