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Temas em Psicologia

versão impressa ISSN 1413-389X

Temas psicol. v.1 n.2 Ribeirão Preto ago. 1993

 

Considerações sobre a psicoterapia comportamental de crianças com distúrbios de ansiedade

 

 

Regina Christina Wielenska1

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

 

 

Os distúrbios de ansiedade na infância e adolescência são fenômenos que preocupam clínicos e pesquisadores, tanto pela sua prevalência, como pelo sofrimento que acarretam às crianças, seus pais e educadores.

Segundo o DSM-III-R (A.RA., 1987), três distúrbios psiquiátricos cuja principal característica é a ocorrência de sintomas de ansiedade são identificados em crianças e adolescentes:

a) distúrbio de excesso de ansiedade;

b) distúrbio de evitamento;

c) distúrbio de ansiedade e separação.

O presente trabalho esboçará, a título de ilustração, uma forma de interpretar e manejar terapéuticamente os eventos privados na terapia comportamental de crianças com transtorno de ansiedade (adotando-se aqui uma terminologia mais recente).

A classificação de fenômenos psiquiátricos é questão bastante controversa, existindo correntemente alguns sistemas que buscam descrever e distinguir os diferentes transtornos sem recorrer a pressupostos teóricos e quaisquer abordagens em Psicologia ou Psiquiatria. O DSM-III-R (A.P.A., 1987) e o CID-10 (W.H.O., 1992) são classificações deste tipo, com critérios operacionais norteadores do diagnóstico. Críticas e revisões são regularmente desenvolvidas, com base nos problemas que cada classificação traz em seu bojo. Deste modo, é imperativo sugerir ao leitor do presente texto que não se esqueça que termos claramente mentalistas ainda permeiam o DSM-III-R e o CID-10. Com isto, surgem limites para a compreensão plena e inequívoca das dimensões públicas e privadas relevantes para o estudo e tratamento da ansiedade de separação.

A despeito das considerações acima, os critérios a se considerar no presente artigo são os elaborados pela A.P.A. e que constam no DSM-III-R (1987), listados abaixo:

A) Ansiedade excessiva em relação à separação daqueles a quem a criança está vinculada, evidenciada por pelo menos três dos seguintes critérios:

1. preocupação irreal persistente sobre possível mau acontecimento com as principais figuras de vinculação ou medo de que elas a deixem e não voltem mais.

2. preocupação irreal e persistente de que um acontecimento calamitoso desfavorável separará a criança de uma figura principal de vinculação; por exemplo, a criança estará perdida, será sequestrada, assassinada ou vítima de um acidente;

3. recusa relativa ou absoluta em ir para a escola, de forma que possa ficar com as figuras principais de vinculação ou, ao menos, em casa;

4. relutância persistente ou recusa em ir dormir sem estar perto de uma figura importante de vinculação ou ir dormir fora de casa;

5. evitamento persistente de estar sozinha, incluindo comportamento "adesivo" e andar como "uma sombra" atrás das principais figuras de vinculação;

6. pesadelos repetidos envolvendo o tema da separação;

7. queixas de sintomas físicos; por exemplo, dores de cabeça, dores de estômago, náusea, ou vômito, em muitos dias de escola ou em outras ocasiões, quando a separação das principais figuras de sua vinculação é prevista;

8. sinais recorrentes ou queixas de sofrimento excessivo na previsão da separação de casa ou de principais figuras de vinculação; por exemplo, temperamento enfurecido ou choro, súplica aos pais para que não a deixem;

9. sinais recorrentes de queixas de sofrimento excessivo quando separada da casa ou de figuras principais de vinculação; por exemplo, quer voltar para casa, necessita chamar os pais quando eles estão ausentes ou quando a criança está fora de casa.

B) A duração da perturbação é de ao menos duas semanas.

C) Início antes dos dezoito anos.

D) Ocorrência não exclusivamente durante o curso de um distúrbio global de desenvolvimento, esquizofrenia ou qualquer outro distúrbio psicótico.

Os sintomas acima incluem tanto relações entre estímulos externos e ações públicas (chorar frente a separação dos pais) como eventos privados (pesadelos), cujo acesso ao observador externo está limitado ao registro de correlatos fisiológicos (taquicardia) ou a relatos verbais da criança sobre, como diria Skinner (1953), o "mundo sob a pele". Evidencia-se um conjunto de imprecisões na classificação aqui apresentada. Mesmo assim, é possível dar início a uma leitura comportamental da ansiedade de separação, o que será feito a seguir.

Resumidamente, o transtorno pode ser entendido como um conjunto de fenômenos públicos e privados decorrentes de uma separação (real ou hipotética) dos pais em relação à criança. Esta expressa um intenso desconforto, inferido a partir de alterações observadas em seu comportamento verbal e não verbal. Em outros termos: ocorreriam mudanças no desempenho corrente da criança, ao deparar-se com estímulos discriminativos sinalizadores de uma possível perda de contato com as figuras de apego (adultos podem ser reforçadores generalizados do comportamento infantil). Entre as várias mudanças comportamentais, vale destacar ações como "seguir os adultos como uma sombra" e "protestar ou chorar em caso de separação". Pelo fato de eliminarem, atenuarem ou adiarem a separação, tais comportamentos de fuga ou esquiva continuam a ocorrer (configura-se uma contingência de reforçamento negativo de "comportamentos de apego") (Sue, Sue e Sue, 1990).

Uma ativação autonômica incondicionada deve ter sido provavelmente funcional em termos de evolução filogenética (Marks, 1987), evitando riscos ao indivíduo, caso se afastasse de seus pais num meio ambiente pleno de ameaças (predadores, por exemplo). Este processo pode ter gerado um pareamento entre situações não-perigosas e o mesmo estado de ativação autonômica, levando ao desenvolvimento de comportamentos disfuncionais.

Os sintomas listados no DSM-III-R poderiam, neste trabalho, ser distribuídos em três subconjuntos, parcialmente sobreponíveis:

a) sintomas não proeminentes a nível público (pesadelos, por exemplo);

b) sintomas públicos, observáveis externamente (os "excessos e supressões comportamentais"). Este grupo de sintomas é o que geralmente chama a atenção de pais e professores para o fato de que "algo não vai bem". Pela gravidade e proeminência destes sintomas, não costumam funcionar as estratégias de ação habituais (dos adultos). É quando surge o risco destes recorrerem a procedimentos de controle aversivo sobre a criança (fazer-lhe ameaças, ridicularizá-la). É desnecessário salientar que deste modo somente obter-se-ão esquivas mais potentes no repertório infantil, agravando a sintomatologia;

c) inferências acerca da aversividade vivida pela criança, com base em evidências que mantêm, no mundo adulto, alguma correlação com estar sujeito à estimulação aversiva (verbalizações sobre estados privados como "tenho medo de que você não volte", "estou com dor de barriga"; medidas de ativação fisiológica como tremor, palidez, etc).

Este modo de agrupar os sintomas pode facilitar uma análise das variáveis das quais o comportamento é função. No entanto, precisa ser revista futuramente por apresentar alguns problemas. Um exemplo é o caso de crianças menores que podem até verbalizar "estarem com medo", mas que não conseguem elaborar sobre possíveis razões para o que supomos estarem experenciando. Tal fato pode sugerir que explicações acerca do estado privado seriam, em alguns casos, comportamentos verbais modelados a posteriori e nem sempre correlacionados com os processos que efetivamente eliciaram o estado corporal denominado medo. Uma análise refinada sobre ansiedade, medo e aprendizagem pode ser encontrada em trabalhos de Skinner (1953, 1989), por esta razão decidiu-se não detalhar aqui o tema.

O ponto a se destacar aqui é o contraste entre a saliência dos sintomas públicos e a relativa inacessibilidade aos sintomas privados (entre outros motivos, pela precariedade do repertório verbal discriminativo sobre estados internos). O terapeuta inexperiente pode, então, desconsiderar aspectos relevantes da ansiedade de separação, comprometendo seu trabalho. A acessibilidade maior a eventos públicos e as dificuldades de se reconhecer eventos privados poderia, lamentavelmente, resultar em problemas como:

a) uma análise funcional incorreta (por distorções ou lacunas), favorecendo a escolha inadequada de procedimentos terapêuticos;

b) dificuldades na construção da relação terapêutica com a criança, que não se sente compreendida e respeitada sequer pelo terapeuta. A adesão ao tratamento dependeria, entre outros fatores, da função reforçadora do terapeuta sobre comportamentos novos caso o profissional tivesse uma visão mais completa do caso sob seus cuidados.

Fica patente ao leitor quão difícil se torna, aos pais, educadores (e à própria criança) lidar com a diversidade dos sintomas. Uma questão adicional é que os modelos mentalistas e monodeterministas para "explicação" do comportamento humano dificultam ainda mais entender o que, de fato, ocorre com a criança. Variáveis como a história de evolução filogenética do comportamento de apego são pouco proeminentes aos olhos da maioria dos indivíduos. Uma responsividade autonômica incondicionada pode ser falsamente explicada por meio de frases como "tenho medo do sequestro". Para complicar ainda mais, há uma gama razoável de elementos ambientais a se considerar.

Experiências de condicionamento aversivo, de base direta ou vicariante, poderiam afetar o comportamento público e privado da criança com ansiedade de separação. Informações precisas acerca de eventos perdidos no tempo e espaço raramente são resgatadas com facilidade e, novamente, o leigo fica em apuros ao buscar explicações sobre o que se passa com a criança.

O que diferenciaria o terapeuta dos pais é exatamente o fato de já conhecer o transtorno (não necessariamente aquele caso específico) e ter ferramentas conceituais (a análise de contingências) e distintas técnicas de coleta de dados. Conhecer sobre a epidemiologia, etiologia, características associadas e outros aspectos aumenta o controle discriminativo sobre ações terapêuticas corretas. Na coleta de dados recomenda-se atuar com a criança e outros adultos significativos. Desta etapa poderão constar entrevistas semi-estruturadas, observações em situação natural dentro e fora do consultório (por exemplo, a criança concordou em deixar a mãe na recepção e ir com o terapeuta para uma consulta? Como foi sua reação? E a mãe, como agiu?). Atividades menos estruturadas frequentemente produzem informações importantes (dramatizações, bate-papos e jogos são exemplos úteis). A análise funcional torna-se uma espécie de organizadora das relações entre eventos comportamentais públicos e privados e dimensões passadas e presentes do ambiente.

Relações funcionais corretas ensinarão aos pais que não é uma suposta "falta de coragem" que leva a comportamentos de agarrar-se aos adultos e que tampouco basta forçar uma separação por meios aversivos para que se produza a habituação a estímulos eliciadores de atividade autonômica.

Uma visão não comportamental interessante sobre a relaçào chamada de apego mãe-criança foi desenvolvida por Badinter (1985). Neste estudo há o levantamento de indícios históricos de que o "apego" depende necessariamente da convivência estreita mãe-criança desde o nascimento. Bowlby (1984) ressalta, por sua vez, as implicações para o desenvolvimento futuro de relações apropriadas de maternagem entre a criança e um (ou mais) adulto estável.

Configurar com exatidão o transtomo de ansiedade de separação permite, portanto, benefícios à criança e aos seus pais. É importante que o terapeuta expresse compreensão e solidariedade pela experiência global dos clientes. Ao demonstrar que domina, ao menos em parte, as variáveis das quais o comportamento é função, retira a familia-cliente do desamparo e predispõe seus membros a aderirem aos procedimentos sugeridos.

A própria adesão torna mais provável que eventos de pequena saliência e de grande relevância possam ser resgatados ao longo do tratamento (haveria, então, um reforçamento positivo do comportamento de identificar processos corporais, eventos ambientais discretos etc.), que adquiririam importante função discrminativa a partir da leitura que o terapeuta faz desde o início do caso.

É evidente a impossibilidade de abordar de uma única vez a questão dos eventos encobertos na terapia comportamental de crianças com transtornos de ansiedade. O presente texto, como foi afirmado logo ao seu início, visa, particularmente, levantar temas para análise e investigação futuras.

 

Referências Bibliográficas

Associação Americana (1988). Manual de Diagnósticos e estátiscas de disturbios mentais DSM-III-R. Trad. da 3a. ed. revista do or Paulo: Manóle.         [ Links ]

Badinter, E. (1985). Um Amor conquistado: o mito do amor materno. Rio de Janeiro: Nova Fronteira.         [ Links ]

Bowlby, J. (1984). Apego. São Paulo: Martins Fontes.         [ Links ]

Código Internacional de Doenças CID-10 da World Health Organization, (1992).         [ Links ]

Marks, I.M. (1987). Fears, Phobias and Rituals. New York: Oxford.         [ Links ]

Skinner, B.F. (1953). Science and Human Behavior. New York: MacMillan.         [ Links ]

Skinner, B.F. (1989). Recent Issues in the Analysis of Behavior. Columbus: Merrill.         [ Links ]

Sue, D., Sue, D., Sue, S. (1990). Understanding Abnormal Behavior. Boston: Houghton Mifiliin:         [ Links ]

 

 

(1) Departamento de Métodos e Técnicas, Faculdade de Psicologia, Grupo de Estudos de Doenças Afetivas do Instituto de Psiquiatria do IIC-FMUSP. Rua Cardoso de Almeida, 986 - Perdizes - São Paulo - CEP 05013-001.

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