SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.1 número3Emoção e ação pedagógica na infância: contribuição de WallonAlfabetização escolar: repensando uma prática índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Temas em Psicologia

versão impressa ISSN 1413-389X

Temas psicol. v.1 n.3 Ribeirão Preto dez. 1993

 

Emoção e ação pedagógica na infância: contribuições da psicanálise

 

 

Maria Aparecida Morgado*

Universidade Federal de Mato Grosso

 

 

NOTA PRELIMINAR

Este estudo baseia-se em minha Dissertação de Mestrado, Ensaio Sobre a Sedução na Relação Pedagógica (Morgado, 1989), onde aponto as determinações de ordem psicológico-inconsciente do abuso de autoridade do professor na relação com seus alunos. Sintetizo aqui o percurso em que construí a resposta para a seguinte questão: em que se constitui o abuso de autoridade pedagógica e através de quais meios esse abuso pode ser evitado?

O percurso foi longo e ao mesmo tempo complexo porque inicialmente formulei minha pergunta no interior do campo pedagógico. Selecionando quatro das principais tendências educacionais que inspiram as práticas dos professores da escola brasileira - Pedagogia Tradicional, Pedagogia Nova, Pedagogia Tecnicista e Pedagogia Crítico-Social dos Conteúdos, assinalei suas principais características e, sem seguida, analisei como a autoridade pedagógica se expressa em cada uma delas.

Concluí pelo autoritarismo declarado das práticas inspiradas na primeira tendência, para a qual o conhecimento é propriedade individual do professor; pelo embrião de autoritarismo das práticas inspiradas na segunda, onde o escamoteamento da assimetria existente entre professor e alunos impede a socialização do conhecimento; pelo autoritarismo das práticas inspiradas na terceira, onde o conhecimento é transmitido de forma estereotipada, portanto dogmática; e, finalmente, pelo não abuso e recuperação da autoridade pedagógica das práticas inspiradas na quarta tendência, onde a autoridade se consubstancia na competência técnica do professor e no seu compromisso político em socializar o conhecimento.

Minha questão inicial parecia estar resolvida: bastava que o professor fizesse sua escolha pela última tendência, que automaticamente estaria livre de enveredar pelo abuso de sua autoridade. Contudo, intrigava-me a forma velada pela qual o autoritarismo se manifesta nas práticas pedagógicas inspiradas na Pedagogia Nova. Como a assimetria existente entre os níveis de elaboração do conhecimento do professor e do aluno não é reconhecida, a relação perde sua razão de ser. Em decorrência disso, passei a me concentrar nas formas não diretas, implícitas, através das quais o abuso da autoridade pedagógica pode se manifestar, mesmo quando a opção teórica não dê margem a ele.

A questão fundamental, formulada no interior do campo pedagógico, começava a denunciar a existência de determinações da prática que escapam à escolha teórica consciente. Processos inconscientes através dos quais a sutil recusa em socializar o conhecimento é acobertada pela sedução. Recorri, então, à teoria psicanalítica da sedução, identificando os elementos psicológicos através dos quais, originariamente, a sedução e a autoridade se constituem a um só tempo. Em seguida, apontei os prováveis elos entre as experiências iniciais da criança com seus genitores e a sedução que se configura na relação pedagógica.

Vinculado o problema pedagógico do autoritarismo ao fenômeno psicanalítico da sedução, exporei suscintamente os conceitos fundamentais que possibilitam a intersecção entre esses dois campos do conhecimento, de que decorre a explicitação daquilo que denomino sedução na relação pedagógica.

 

Parte I -IDENTIFICAÇÃO

O processo psicológico de identificação é, segundo a Psicanálise, a mais primitiva forma de laço emocional entre o recém-nascido e seus pais. As experiências iniciais que esse processe implica ficarão inexoravelmente marcadas na configuração da vida mental. É através dessa primeira identificação e daquelas que a sucedem - identificação regressiva e identificação parcial - que a personalidade psíquica da criança irá se constituir.

A identificação primordial, constituída de sentimentos ternos de respeito e afeição, a identificação regressiva que, em função do abandono de catexias objetais edipianas, superintensifica estes sentimentos ternos, e a identificação parcial, baseada na partilha de traços comuns entre egos e na concomitante ressonância de superegos, fazem parte do processo através do qual o ego e o superego se diferenciam do id. Em outras palavras, a diferenciação e a dinâmica do jogo de forças entre o id, o ego e o superego - as três instâncias constitutivas da personalidade - têm atrás de si as identificações.

Tendo na sua origem a identificação com a autoridade dos pais, o processo, calcado nas relações que nele se estabelecem, imprimir-se-á à personalidade através da mescla dos sentimentos que são a expressão psíquica do intercâmbio entre as pulsões corporais desinibidas em seus objetivos sexuais, as pulsões corporais inibidas e as pulsões destrutivas.

Protótipo de todas as demais relações humanas, tais relações originais poderão reeditar-se inconscientemente nas relações atuais, trazendo consigo os sentimentos ambivalentes que as alimentam.

É através desta dinâmica que as relações subseqüentes de autoridade das quais a relação pedagógica emerge como tema - atualizam as relações originais. Quando a elas se fundem, quando a elas se somam ou quando as substituem, as novas relações têm como herança a heterogeneidade dos sentimentos das primeiras e os intensos conflitos por eles provocados. Têm, portanto, como herança, a coexistência da ternura, da afeição, do respeito, da sensualidade e da agressividade.

 

Parte II-TRANSFERÊNCIA

Em função das demandas pulsionaís não efetivadas, inibidas, todo o ser humano possui, em maior ou menor grau, as suas carências afetivas. Por essa razão, a tentativa de resgatar a satisfação adiada, através da reimpressão do protótipo original na relação presente, é um fenômeno que pode ocorrer em qualquer tipo de relação humana. Necessariamente vinculado à configuração da estrutura libidinal, o fenômeno é, assim, responsável pela maneira particular segundo a qual cada um se coloca diante das novas relações, enfim, pela maneira segundo a qual cada um se coloca diante da realidade.

A este processo psicológico, através do qual o sujeito atualiza o protótipo da relação original na relação presente, Freud deu o nome de transferência, pois trata-se, efetivamente, de transferir para a nova relação os sentimentos e as expectativas depositados numa relação passada.

A decorrência do processo na relação analítica - onde foi inicialmente detectado - é que o paciente transfere inconscientemente para o analista os sentimentos provenientes de sua relação original. Ou seja, ao mesmo tempo em que o paciente atualiza catexias libidinais positivas, também atualiza catexias destrutivas, originariamente impedidas de se manifestarem à consciência.

A relação pedagógica - interesse deste estudo - também se desenrola num contexto bastante similar ao da relação original. A sociedade e a instituição educacional conferem ao professor uma posição hierárquico-profissional superior, outorgando-lhe autoridade formal para ensinar, independentemente de sua competência real, assim como confere previamente aos pais autoridade para educar seus filhos. Considera-se, portanto, que existe uma grande distância observe-se, suposta - entre o nível de conhecimento do professor e o nível de conhecimento do aluno que, constituído psicologicamente em meio a tais representações sociais, deposita no docente a esperança de encurtar tal distância. Ao vislumbrar nele aquele que poderá provê-lo de conhecimento, o aluno instaura-o como figura de autoridade; ao ensinar, o professor exerce a autoridade que lhe é atribuída. Estabelecem-se, assim, as condições para que a relação pedagógica remeta à relação original, através da reedição transferenciai dos diversos sentimentos que a acompanham.

A curiosidade intelectual - fruto da sublimação de intensas demandas pulsionais eróticas e destrutivas - é mais um dos elementos constitutivos da personalidade psíquica do sujeito, aqui aluno. Em outras palavras, a curiosidade também é fruto de um percurso similar ao das demandas pulsionais que, sob o peso do conflito edipiano, precisaram ser conciliadas para poder atravessá-lo.

Assim, quando tranfere para sua relação com o professor sentimentos pertencentes à relação original, o aluno atualiza, ao mesmo tempo, um modo específico de se relacionar com o conhecimento. É da qualidade desse modo de relação que a transferência dependerá para favorecer ou dificultar a consecução dos objetivos e tarefas da relação pedagógica.

 

Parte III -CONTRATRANSFERÊNCIA

A reedição prototípica dos sentimentos pertencentes à relação original não é um processo unilateral nas relações de autoridade. Isso porque a psique daquele que ocupa o pólo superior da relação também passou por um processo de constituição similar ao daquele que ocupa o pólo inferior. Da mesma forma, indentificou-se primitivamente com seus genitores através de sentimentos ternos de respeito e afeição; em seguida, também os tomou por objetos de sensualidade e/ou destruição, para, durante o apogeu do conflito edipiano, compensar-se da impossibilidade de ter o objeto superintensificando regressivamente a identificação primordial com ele.

Nesse processo - no qual uma parte das pulsões sofreu a ação do recalcamento, outra parte manteve-se ligada aos objetivos sexuais e outra parte sublimou-se às atividades não diretamente sexuais, como, por exemplo, a atividade de investigação - houve uma conciliação entre as demandas do id, as demandas da realidade sobre o ego e as demandas do superego, o que serviu para obstar a expressão dessas paixões edipianas à consciência sem, contudo, superá-las. No nível do inconsciente, para onde convergiram, não deixaram de fazer pressão forçando sua passagem à consciência.

Em decorrência dessa estrutura libidinal ambivalente, sujeita a fixações em etapas psicossexuais infantis, aquele que encarna a autoridade pode reviver os mesmos processos psicológicos daquele que a ela se submete. Não está imune de ser influenciado pela transferência: esta vem ao encontro de sua psique, desenterrando protótipos, revolvendo conflitos; enfim, ecoa sobre seu inconsciente provocando-lhe verdadeiras reviravoltas internas. Essas reações inconscientes recebem, em Psicanálise, o nome de contratransferência.

No que concerne à relação pedagógica, assim como seu aluno, o professor também foi seduzido a formar seu superego à imagem do superego de seus genitores, bem como os seduziu ou demonstrar-lhes o quanto se tornara parecido com eles. São justamente essas condições psicológicas que fazem com que ele reaja inconscientemente à transferência do aluno: esta contratransferência completa o campo através do que a relação se viabiliza.

 

Parte IV- A SEDUÇÃO NA RELAÇÃO PEDAGÓGICA

A transferência do aluno acarreta duas importantes conseqüências para a relação. Por um lado, a revivescência do passado é o primeiro elo através do qual ela pode se estabelecer. Assim como as demais relações sociais, a pedagógica se instaura, conforme observei anteriormente, a partir da herança emocional de uma antiga relação. Não fosse esse modelo, essa base emocional, o aluno sequer teria elementos psicológicos para se identificar com o professor. Por outro lado, essa mesma base pode dificultar a consecução dos objetivos e tarefas propostos: ao reviver sentimentos infantis, o aluno não vê o professor real que está à sua frente. Relaciona-se com imagos, com fantasmas e, por isso mesmo, pode não perceber a mediação que o docente opera entre ele e o conhecimento.

Como o professor não é imune à transferência, sua reação instaura o campo de comunicação entre os respectivos inconscientes. Desse modo, ele pode reciprocar ou não os afetos implicados, pode fingir não percebê-los, pode, enfim, apresentar variadas atitudes, das mais adequadas às menos adequadas. Entretanto, seja qual for o seu comportamento, terá necessariamente como ponto de partida aquilo que ele evoca no aluno.

Por todas essas razões, a sedução decorrente também é recíproca e, paradoxalmente, também é necessária. Contudo, existe um limite a partir do qual ela se transforma num empecilho: quando se presta à exclusiva revivescência dos protótipos originais, obstaculiza a socialização do conhecimento negando o fundamento da relação. Precisamente neste ponto, retorno ao campo pedagógico, em que minha pergunta havia sido inicialmente formulada: além da responsabilidade de socializar o conhecimento, o professor também precisa ter habilidade suficiente para romper a dominação da autoridade original, de modo que a relação pedagógica possa efetivamente se instaurar.

Essa habilidade remete a um ponto ideal, onde o campo transferenciai e a sedução que o acompanha favorecem a realização das metas educacionais: trata-se do limite em que o professor aceita a transferência do aluno, mas não reage a ela da maneira como este desejaria. Aceita sua ternura respeitosa e afetuosa para induzi-lo a trabalhar e, no lugar da sedução contratransferencial ao amor exacerbado e ao ódio, coloca o conhecimento que legitima a sua autoridade pedagógica. Negada dialeticamente, a relação se desfaz no exato momento em que se torna desnecessária.

 

Parte V- QUALQUER SEMELHANÇA NÃO É MERA COINCIDÊNCIA

Não cabe aqui descrever detalhadamente as situações que selecionei para interpretar à luz do referencial conceituai definido. Na Dissertação (Morgado, 1989) em que desenvolvo essa reflexão, analisei exemplos de relação pedagógica no 32 grau. Para a finalidade presente, analiso situações referentes à 4ª série do 1º grau, que reconstruí baseada em relatos de professores, alguns deles meus alunos nos cursos de licenciatura, outros, colegas que já atuaram nesta série.

A professora Betagama tem 40 anos e atua nas séries iniciais do 1º grau da rede pública estadual desde os 19, quando concluiu o Curso Normal. Nesses seus vinte e um anos de docência, freqüentou todos os cursos de reciclagem promovidos pela Secretaria de Educação, graduou-se em Pedagogia, com habilitação para o Magistério, sempre buscando aprimorar a qualidade de seu trabalho. É extremamente comprometida com as grandes questões sociais e políticas, tem uma crença inabalável na eficácia da educação formal como instrumento de emancipação das classes populares, lê quase todas as revistas e periódicos específicos, está inteirada das importantes discussões e propostas referentes ao 1º grau. Considera que o papel da escola é, em última instância, a construção da cidadania e, por isso, coloca todo o seu rigor a serviço dos alunos. É muito querida e respeitada pela maioria dos colegas, assim como pela maioria dos alunos e pais. Sintetiza o perfil da profissional séria e competente. Nos últimos anos, leciona na 4ª série.

Todavia, algumas vezes se depara com situações que escapam ao seu controle. Coloca-a diante de três experiências de sedução que considero bastante típicas. Uma primeira - característica de sua prática pedagógica - onde imperam o amor transferenciai e a submissão exacerbados: ela prepara e ministra suas aulas com afinco, responde da melhor maneira possível às questões dos alunos; no entanto, não consegue auxiliá-los a romper com a submissão à sua autoridade intelectual. Essa situação - que ela não problematiza - é bastante próxima à ideal: bastaria que o respeito afetuoso dos alunos se transformasse em instrumento de conquista de suas respectivas autonomias intelectuais. Uma segunda, onde imperam o ódio e a rebeldia transferenciais exacerbados: ela trabalha com o mesmo afinco da situação anterior, mas, neste caso, a displicência e a hostilidade dos alunos acabam sendo reciprocadas por sentimentos de vingança. E uma terceira, onde impera a paixão intensa: um aluno busca conquistar o amor dela através de seus dotes intelectuais; mesmo tentando não demonstrar, ela sente-se imensamente lisonjeada por ter cativado um menino tão encantador que, afinal, poderia ser seu filho. A confusão entre o pedagógico e o maternal é óbvia.

Em nenhuma das experiências acima descritas a professora consegue colocar sua autoridade pedagógica no devido lugar. Ao reagir constratransferencialmente à demanda transferenciai dos alunos - seja pela onipotência, seja pela hostilidade, seja pela paixão - pactua com o jogo de sedução através do qual o plano central é ocupado pela revivescência recíproca dos protótipos infantis: a relação original toma o lugar da relação pedagógica.

As três situações que apresentei não abarcam todas aquelas com que se deparam professores e alunos no cotidiano escolar. Existem muitas outras não incluídas em decorrência do critério que definiu a seleção: com o objetivo de realçar os sentimentos intensos que as marcam e o despreparo para lidar com elas, foram expostas ocorrências freqüentes e representativas da sedução na relação pedagógica.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Imersos no campo transferencial, dificilmente os professores conseguem estabelecer o ponto ideal que lhes permita operar, sem a interferência de fantasmas, a mediação entre os alunos e o conhecimento. Na maioria das vezes, confundidos pelas intensas demandas afetivas inerentes, descaracterizam sua autoridade pedagógica: oscilam entre o abuso pela sedução da omissão e o abuso pela sedução da presença maternalista-paternalista, que sufocam a capacidade crítica daqueles que deveriam emancipar-se intelectualmente.

A compreensão teórica do fenômeno da sedução é apenas um primeiro passo para a superação do autoritarismo. Caminharemos para soluções de ordem prática, em nível coletivo, na medida em que os educadores sensíveis à questão introduzam o problema no debate educacional. Suponho que a inclusão deste novo ângulo poderá resultar em pesquisas que busquem formas institucionais de instrumentalizar o professor.

Desta maneira, aos requisitos teórico-metodológicos que o docente precisa dominar para construir uma prática pedagógica competente e comprometida, acrescentar-se-á um outro: o preparo emocional necessário para lidar com os afetos que permeiam sua função de mediador entre o aluno e o conhecimento.

Enquanto isso não acontece, fica uma advertência: nem sempre os afetos que professores e alunos reciprocam - sejam eles amorosos, sejam eles odientos - devem-se exclusivamente à relação entre eles; podem ser afetos do campo transferencial.

 

Referência Bibliográfica

Morgado, M.A. (1989) Ensaio Sobre a Sedução na Relação Pedagógica. Dissertação de Mestrado. PUC-SP.         [ Links ]

 

 

(*) Endereço para correspondência: Rua Martim Francisco, 113, apto. 61. Santa Cecília, São Paulo, SP. Cep 01226-001. Tel. (011) 221-6870.

Creative Commons License