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Temas em Psicologia

versão impressa ISSN 1413-389X

Temas psicol. v.1 n.3 Ribeirão Preto dez. 1993

 

Alfabetização escolar: repensando uma prática

 

 

Sérgio Antônio da Silva Leite*

Universidade Estadual de Campinas

 

 

Nosso envolvimento com as questões relacionadas com a alfabetização escolar vem desde 1973, quando nos defrontamos com o problema do fracasso escolar nas 1% séries, na região da Zona Leste da Grande São Paulo: em média, 40% das crianças eram reprovadas. Na época, éramos supervisor de estágio da área de Psicologia Escolar, em uma universidade local.

Esse quadro levou-nos a estudar mais detalhadamente os chamados fatores intra-escolares, responsáveis pelo fracasso escolar. Intrigava-nos o fato de haver alunos, já no mês de maio, considerados reprovados por alguns professores. Juntamente com um grupo de trabalho, começamos a colocar algumas questões iniciais: quem é esse aluno? com que repertório chega à escola? que condições de ensino lhe são oferecidas?

Na mesma época, um levantamento realizado pelo nosso grupo junto aos educadores da rede de ensino público havia demonstrado que a tendência era explicar o fracasso escolar através de fatores intrínsecos ao aluno. As quatro categorias mais citadas pelos educadores da região, como causas do fracasso escolar, foram, em ordem decrescente: QI baixo, subnutrição, imaturidade e problemas emocionais. Raramente fatores intra-escolares eram apontados como possíveis determinantes do processo.

Durante os três anos seguintes, foi realizado um trabalho a partir de contactos individuais com essas crianças e posteriormente em grupos, seguido de uma fase de planejamento e avaliação de novas condições de ensino.

Observamos que essas crianças apresentavam um repertório de entrada e um ritmo inicial de aprendizagem diferentes daqueles esperados pela escola. No entanto, quando se planejavam condições de ensino respeitando tais características, as crianças demonstravam um bom desempenho no domínio da leitura e da escrita.

O êxito dessas primeiras experiências levou o grupo a continuar o trabalho e conduziu-nos, particularmente, a um projeto de alfabetização denominado PROLESTE - Projeto de Alfabetização da Zona Leste, implantado em 1977, na região de Mogi das Cruzes, juntamente com um grupo de educadores da DRE-5-Leste. Tal projeto baseava-se em dois pressupostos: a) a idéia de que o trabalho do corpo docente de uma escola deveria ser planejado e desenvolvido em torno de diretrizes pedagógicas comuns; b) a idéia de que, para tanto, dever-se-ia repensar a organização dos docentes na escola, no sentido de abrir concretamente um espaço de planejamento e contínua reflexão sobre as práticas desenvolvidas, ambas atividades numa perspectiva coletiva (Leite, 1982; 1988).

Para se entenderem as propostas iniciais do PROLESTE, é necessário uma breve restrospectiva histórica, identificando-se as concepções dominantes na época.

Em nosso meio, era grande a influência exercida pelas pesquisas do grupo de Ana Maria Poppovic que, utilizando os conceitos de Função e Sistema Funcional da Linguagem, extraídos de Luria, enfocavam a questão da importância das chamadas habilidades básicas, consideradas pré-requisitos para a alfabetização. A autora defendia a idéia de Prontidão para a Alfabetização, representada pelo momento ótimo no desenvolvimento dessas funções, para o início do processo formal de alfabetização (Poppovic, 1968).

No campo da metodologia, a discussão ocorria entre defensores do método silábico x método global, com ambos os grupos defendendo ardorosamente suas opiniões.

No PROLESTE, a opção inicial pela metodologia silábica deveu-se ao fato de que a grande maioria dos docentes da região já estava trabalhando com a mesma, através das cartilhas tradicionais. Na época, encontramos apenas uma professora na região que usava o método global; por sinal, realizando um excelente trabalho, que muito nos entusiasmou.

De 1978 a 1980, o projeto desenvolveu-se, mantendo razoavelmente suas características básicas, com resultados muito positivos, apesar das grandes dificuldades que a rede apresentava. No entanto, várias mudanças internas foram gradualmente acontecendo, em função do próprio processo de avaliação constante, previsto pelo próprio projeto. Citamos algumas delas: a) logo no segundo ano de implantação, percebemos a necessidade da continuidade do trabalho nas séries seguintes; tal continuidade foi direcionada para o domínio da leitura e composição de textos, o que nos levou a planejar um programa ná área, o qual passou a ser aplicado nas 2ªs e 3ªs séries das escolas envolvidas; assim, o próprio conceito de alfabetização, no projeto, foi adquirindo um caráter mais funcional; b) metodologicamente, caminhamos da sílaba-chave, como unidade-básica, para a palavra-chave, já no segundo ano de implantação, desenvolvendo atividades que exigissem maior elaboração por parte das crianças; isto foi facilitado pelo fato de não serem utilizadas cartilhas no projeto, uma vez que as atividades eram planejadas pelos próprios professores; c) observamos também quão importante era a questão da relação professor-aluno, no sentido de manter a motivação das crianças; da mesma forma, observamos quão desastorsas eram as interferências dos professores que puniam ou ridicularizavam as crianças por terem cometidos "erros". Tudo isto nos levou a dar maior ênfase à questão da relação professor-aluno nos períodos de treinamento do corpo docente.

No ano eleitoral de 1981, por motivos polítivos, fomos afastados do projeto, mas continuamos a trabalhar com alfabetização, acompanhando e assessorando escolas isoladamente, públicas e particulares, que haviam implantado a proposta. Realizamos tal atividade até 1988.

Durante essa época, uma série de alterações também ocorreram na proposta do projeto. As que se seguem, consideramos as mais relevantes:

a) o aprimoramento do conceito de alfabetização, dando-se cada vez mais ênfase às atividades funcionais relacionadas com a leitura e a escrita; nesse período, as atividades de elaboração e interpretação de textos passaram a ser centrais em todo o processo, ocorrendo simultaneamente ao domínio dos conteúdos da língua escrita (dificuldades ortográficas);

b) metodologicamente, abriu-se mão da seqüência de conteúdos pré-estabelecida, em favor de uma seqüência decidida pelo próprio professor, a partir da realidade do seu grupo de alunos; aprofundou-se e ampliou-se o trabalho com palavras-chave escolhidas pelas próprias crianças; aprimorou-se o rol de atividades que exigiam das crianças um trabalho de maior elaboração.

Nessa fase, merece destaque a grande influência que o projeto sofreu a partir das contribuições da teoria construtivista (Ferreiro e Teberosky, 1985) e do trabalho de pesquisa daqueles lingüistas envolvidos com a questão do ensino básico (ex: Cagliari, 1989).

As características do modelo construtivista, conforme apresentado por Carraher (1987), podem ser assim resumidas: a aprendizagem é concebida como um ato intelectual; o aluno é quem constrói seu próprio conhecimento; as estruturas cognitivas do aluno são detrminantes parciais de como a aprendizagem ocorrerá e qual será o produto final; os erros são vistos como reveladores do momento de desenvolvimento em que o sujeito se encontra; o aluno deve ter liberdade suficiente para refletir e construir seus conhecimentos, pois a origem do progresso do aluno está na reflexão e no conflito entre suas idéias presentes sobre o mundo e os novos dados que ele obtém; o professor atua como mediador entre o sujeito que constrói seu conhecimento e o objeto do mesmo.

Neste sentido, as principais influências observadas no projeto envolveram os seguintes aspectos:

a) provocaram grandes alterações nos programas de pré-escola das instituições em que atuávamos, onde gradualmente passou-se a criar o chamado "ambiente alfabetizador", maximizando o contacto das crianças com as situações de leitura e escrita, embora não se tenha esquecido o desenvolvimento simultâneo de algumas habilidades consideradas básicas, porem não mais assumidas como objetivos centrais;

b) propiciaram maior clareza quanto ao papel do "erro" no processo de alfabetização, levando-nos a concordar com os autores construtivistas no sentido de que o "erro" significa uma demonstração, por parte da criança, de como ela está elaborando suas idéias a respeito de um determinado objeto, no caso, a escrita; o "erro" é um rico material para reorganização da própria invenção professor;

c) possibilitaram maior valorização das diversas formas de expressão da criança;

d) levaram a um maior cuidado na introdução da criança na chamada "norma culta", sem menosprezar os seus padrões lingüísticos;

e) contribuíram para que o grupo de trabalho abrisse mão da ênfase no remanejamento, em favor do fortalecimento das chamadas atividades de apoio, para as crianças que exigiam maior atenção por parte dos professores (cerca de 3 a 5% da população atendida).

Por outro lado, é necessário destacar as características básicas do projeto que foram mantidas:

a) não se abriu mão da sistematização dos conteúdos, ou seja, a partir do momento em que a criança demonstrava compreensão da natureza alfabética da escrita, os diversos tipos de dificuldades ortográficas eram trabalhados, em sala de aula, um por etapa, embora numa seqüência não pré-estabelecida, variando-se as atividades de apresentação;

b) manteve-se o processo de avaliação constante, através das próprias atividades de sala de aula, como forma do professor ter um feed-back sobre as condições de ensino que planejou e decidir sobre o ritmo do processo ou sobre a necessidade de outras medidas pedagógicas;

c) a organização docente manteve-se como condição para o trabalho coletivo, através de reuniões quinzenais do grupo, onde ocorriam a revisão e planejamento das práticas pedagógicas, trocas de experiências etc;

d) a preocupação com a continuidade do processo nas séries seguintes, através do contacto entre os diversos grupos de docentes. Ressalte-se que este tem sido um dos maiores problemas observados em todas as escolas em que atuamos.

Nas últimas instituições em que trabalhamos, no período de 1985 a 1988, foram atingidos índices em torno de 95% de aprovação no final das 1ªs séries e Ciclo Básico, com as crianças atingindo as metas relacionadas com a composição e interpretação de textos (Leite, 1988).

A partir de todo esse processo vivenciado ao longo desses 19 anos, cujas mudanças foram em função da própria experiência acumulada e dos avanços teórico-científicos observados na área, identificamos algumas questões-chave que passamos a apresentar, não como verdades absolutas, mas como contribuições para o processo de discussão na área.

1) A importância de se adotar um conceito funcional da alfabetização. Vários autores têm demonstrado que nas últimas três décadas o conceito de alfabetização foi redimensionado (Perròtta, 1985; Silva e Esposito, 1991). A partir de uma visão técnica, centrada na capacidade de ler e escrever textos simples, a alfabetização, nos anos 70, passou a ser vista como um processo permanente, capaz de criar condiçõespara a aquisição de uma consciência crítica, ou seja, saiu de uma concepção individual em direção a uma dimensão social. Nos anos 80, entretanto, a aprendizagem da leitura e da escrita passou a ser entendida como vinculada ao processo de escolarização básica, bem sucedido, com duração mínima de quatro anos; no entanto, manteve-se o avanço conceitual relacionado com o caráter funcional do processo: leitura e escrita passaram a ser vistas como condição de inserção do indivíduo no mundo, ou seja, condição para o exercício pleno da cidadania.

Assim, diante da questão "por que ensinar um indivíduo a ler e a escrever", respondemos: para que ele possa utilizar esse conhecimento de forma funcional em sua vida, como condição necessária, mas não suficiente, para o exercício da cidadania, de forma crítica e consciente.

Nesta perspectiva, o processo de alfabetização escolar deve ser planejado prevendo o período inicial de aquisição da língua escrita, isto é, da aprendizagem das habilidades básicas da leitura e escrita (alfabetização propriamente dita correspondente aos anos iniciais da escolarização, incluindo a pré-escola) e o processo que se segue, de domínio da língua escrita, envolvendo o aperfeiçoamento e ampliação dessas habilidades (este, contínuo, até o final do período de escolaridade). Tal concepção é compartilhada por autores como Soares (1985) e Barbosa (1990).

Assim, todo o processo de alfabetização, desde o início, deve estar caracterizado pela funcionalidade, ou seja, deve estar relacionado e contextualizado a partir das condições concretas de vida do aluno. Já nas primeiras séries, o processo deve propiciar às crianças condições de perceberem as possibilidades da leitura e da escrita nas suas relações com o mundo. Daí a importância dos objetivos, desde o início, enfatizarem a produção e leitura de textos.

Abrão (1990) descreve o trabalho tradicional da alfabetização escolar, com as seguintes características: centrado basicamente na cartilha; conteúdos ordenados de forma rígida, numa seqüência de complexidade crescente, segundo concepções do adulto; ritmo controlado pelo professor; atividades sem sentido, descontextualizadas e artificiais (ex: cópia pela cópia); cerceamento da espontaneidade dos alunos; ênfase no aspecto formal da escrita em detrimento do processo de expressão (ex: a grande preocupação é com os erros ortográficos) etc. Deve-se ressaltar que, subjacente a este modelo, está a idéia de que ler e escrever são atos de decifração, como se a linguagem escrita mantivesse uma relação biunívoca com a linguagem oral, ou seja, como se a escrita fosse um espelho da oralidade, relação hoje amplamente contestada. Como conseqüência, o modelo tradicional tem formado bons decodificadores mas maus leitores e produtores de textos. Como conseqüência, a adoção de um conceito funcional de alfabetização, voltado para a formação da cidadania, exigirá uma prática de sala de aula que supere todos os vícios do modelo tradicional, visando à formação do alfabetizado funcional.

2) A importância de garantir a espontaneidade no desenvolvimento do processo de alfabetização. A escola não pode representar uma quebra no processo espontâneo que desde cedo ocorre na relação entre a criança e a escrita, nem correr o risco de tornar tal processo arbitrário e aversivo para o aluno. Espontaneidade, neste contexto, não se refere a algo mágico ou a um processo intrínseco, sem determinação; é utilizado no sentido de um processo que se desenvolve através das relações concretas indivíduo-mundo, motivado pelo interesse intrínseco pelo objeto que tais relações provocam nos sujeitos. Daí a necessidade de que as atividades pedagógicas desenvolvidas na escola tomem como ponto de partida o nível de motivação das crianças, explorando as suas fontes de interesse.

Ainda segundo Abrão (1990), um processo de alfabetização escolar, respeitando a espontaneidade da criança, deve prever atividades em que o aluno seja, de fato, o centro de interesse, de tal forma que haja uma linha de continuidade entre o aprendizado da linguagem oral e da linguagem escrita, enquanto processo de aquisição, levando a criança a perceber, por exemplo, que há vários tipos de leitura bem como diversas maneiras de utilização da escrita. Além disto, é fundamental que o aluno sinta prazer no que faz, o que implica uma metodologia não rígida, maleável. Desde o início, o processo de alfabetização escolar deve estar orientado para a leitura com compreensão e a construção de textos espontâneos, além do domínio das regras do código escrito, através de atividades que levem o aluno, "naturalmente", a relacionar fala-escrita. A apropriação da norma culta deve ser resultado de um processo de construção conceitual, onde a criança tenha continuamente possibilidade de comparar a sua produção escrita com a dos colegas e a do "livro", sem as tradicionais características punitivas que acabam por inibir o processo de expressão do aluno. O professor é o grande incentivador do processo, propondo atividades adequadas ao estágio da criança, atuando como mediador entre ela e a escrita.

3) A discussão sobre os métodos de alfabetização. Entendemos, hoje, que a discussão sobre métodos não é a questão central do processo de alfabetização escolar; da mesma forma que discordamos de como a questão vem sendo atualmente colocada, em termos da dicotomia entre método moderno x método antigo, do velho x o novo. Sem dúvida, a pesquisa metodológica é importante e deve ser continuada, da mesma forma que o professor precisa ter clareza sobre os pressupostos subjacentes às suas práticas.

Mas o que precisa ser destacada é que o método não tem mudado a escola; mesmo as práticas consideradas modernas, baseadas nas recentes contribuições teóricas construtivistas, não têm alterado a questão do papel da escola, principalmente para as camadas mais humildes. Smolka, em recente trabalho (1988), comenta a "euforia do construtivismo": "as análises epistemológicas de Ferreiro, Teberosky e Palácio não podem dar conta, em termos político-pedagógicos, do fracasso da alfabetização escolar. Porque, se bem que elas apontem para o significado e a importância das alterações, elas investigam e procuram explicar o processo individual do desenvolvimento das noções infantis sobre a escrita, independentemente das relações sociais e das situações de ensino (formais e informais). Elas mostram mais um fato que precisa ser conhecido e observado no processo de alfabetização, mas não resolvem, nem pretendem resolver o problema. No entanto, os estudos de Ferreiro, Teberosky e Palácio, divulgados e incorporados pelas universidades e pelas redes de ensino, têm sido adequados e adaptados à realidade educacional brasileira, sem, necessariamente, transformá-la" (pp. 58-59).

Tal questão deve ser colocada para não se cair na armadilha de se imaginar que os métodos modernos são a salvação da escola. Métodos fazem parte dos meios; não definem objetivos e conteúdos, nem alteram substancialmente as relações intra-escolares. Da mesma forma, a eficiência de um professor não pode ser avaliada pelo fato de usar um método considerado moderno ou antigo. Conhecemos muitos professores, metodologicamente considerados conservadores, que, no entanto, são muito eficientes para a formação de "bons leitores e produtores de textos".

Defendemos, pois, a idéia de que método é um instrumento construído continuamente pela prática docente, a partir de uma concepção de alfabetização (que, espera-se, seja funcional e contextualizada) e à luz das contribuições recentes das principais teorias relacionadas com a área. Tal construção será mais eficiente e eficaz se for realizada pelo conjunto dos professores da escola.

4) Toda experiência docente, seja considerada moderna ou tradicional, éfundamental e deve ser tomada como ponto de partida para o início ou retomada do trabalho grupal na escola. A experiência acumulada pelo docente é o seu mais importante acervo para o planejamento do trabalho futuro. Assim, a tentativa, por parte de alguns setores de cúpula da estrutura educacional, de imposição de uma única forma de trabalho para a rede de ensino, apesar de bem intencionada, tem-se mostrado mais desastrosa do que benéfica, por negar exatamente a pluralidade de concepções e as diferentes experiências docentes. Entretanto, isto não é incompatível com a proposta de tentativa de construção coletiva de formas de trabalho pedagógico; nem prescinde da ação dos órgãos superiores, no sentido de possibilitar aos professores acesso ao conhecimento acumulado na área. Porém, a decisão sobre o que e como trabalhar, deve ser dos docentes que atuam na escola. Esta realidade não se muda por decreto ou por pressão de órgãos superiores.

5) Continuamos a afirmar, baseados em nossa própria experiência, que na alfabetização escolar, semelhante a qualquer outra área de ensino, é importante o trabalho de sistematização, planejado e desenvolvido pelo corpo docente, o que não significa adotar modelos rígidos pré-estabelecidos. Sistematizar significa reconhecer que há conteúdos considerados importantes, os quais devem ser trabalhados de forma planejada, através de atividades adequadas. Por exemplo, é desejável que os alunos dominem bem todas as dificuldades ortográficas do mesmo modo que tenham a possibilidade de experienciar todas as principais possibilidades da escrita enquanto objeto social; a consecução desses objetivos não se dará espontaneamente, mas em função de um planejamento realizado nesta direção.

Neste sentido, sistematização não é incompatível com as características de funcionalidade e espontaneidade que devem estar presentes no processo de alfabetização escolar, conforme assumimos aqui.

6) Reafirmamos ser fundamental que se resgate o caráter coletivo da ação pedagógica na escola. Tal questão se coloca como um verdadeiro desafio para nossa geração. Nenhum projeto ou proposta tem possibilidade de sucesso sem que se resgate tal dimensão. Na prática, significa alterar profundamente as relações intra-escolares, no sentido de maior participação dos docentes no planejamento e desenvolvimento da ação pedagógica, reconhecendo assim que os professores têm o direito e o dever de participar na elaboração das normas e planos que irão desenvolver na escola. Tal diretriz é parte fundamental do processo de democratização interna da escola.

Em nossa experiência, temos observado como é importante a organização grupal dos docentes na escola, planejando coletivamente suas ações, de forma responsável e comprometida, e garantindo espaço para o exercício do contínuo processo dialético que deve existir entre ação e reflexão. Tal proposta, na prática, implica a alteração das relações de poder na escola, no sentido de sua descentralização. Daí o caráter político dessa diretriz.

7) A organização dos educadores na escola não se dá espontaneamente. Temos defendido o trabalho de coordenação pedagógica como condição para o planejamento e desenvolvimento curricular. Assim, o trabalho da coordenação pedagógica seria uma condição para que a organização escolar efetivamente ocorra. Sua principal tarefa é atuar como facilitadora da organização docente e do contínuo processo de discussão sobre os objetivos e práticas desenvolvidos.

Na realidade, a questão extrapola a alfabetização, pois diz respeito a todo o plano e funcionamento escolar, do qual a alfabetização faz parte. Neste sentido, discutir a questão da alfabetização escolar significa discutir também a questão da escola como um todo, pois a continuidade do processo é um dos maiores problemas que a escola atualmente enfrenta.

Temos defendido a idéia de que o trabalho de coordenação pedagógica deve ser realizado pelo diretor da escola; na realidade entendemos que tal trabalho é a sua principal função, para a qual deve estar preparado.

8) Um dos grandes problemas que a escola atualmente enfrenta diz respeito à continuidade do processo ensino-aprendizagem. Tal problema também ocorre com relação à alfabetização. O Ciclo Básico criou, para alguns, a falsa impressão de que a alfabetização necessita e se concentra nos dois primeiros anos de escolaridade. Tal concepção não nos parece correta. O domínio das habilidades de leitura e escrita (este relacionado com o período inicial) e o aprimoramento de tais habilidades, exigem mais tempo e necessitam de um planejamento único e coerente, cobrindo todo o 1º grau, com ênfase nas quatro primeiras séries.

Um trabalho recente por nós desenvolvido em uma Delegacia de Ensino da periferia da região da Grande São Paulo (Leite, no prelo), sobre a repetência nas 5% séries, demonstrou que tal problema é, em parte, determinado pela dificuldade dos alunos, aprovados no final das 4ªs séries, de lerem e comporem textos com compreensão. Tais habilidades são exigidas em praticamente todas as disciplinas da 5ª série. Observamos que o trabalho realizado nas 3ªs e 4ªs séries, não deu continuidade ao do Ciclo Básico. Naquelas escolas não havia alguém que realizasse a coordenação pedagógica, sendo que, nessa situação, cada professor seguiu um plano isolado, dizendo estar cumprindo o programa oficial.

9) Caracterizamos, hoje, a alfabetização escolar, como uma área interdisciplinar, cujas práticas pedagógicas devem ser construídas a partir das contribuições de outras áreas de conhecimento, como a Psicologia, a Sociologia, Lingüística, Sociolingüística etc. Julgamos também que, como nas demais áreas, o conhecimento na alfabetização progride de forma cumulativa.

Na época atual, a teoria que mais tem contribuído e influenciado as práticas da alfabetização é, sem dúvida, o construtivismo, que tem revelado aspectos da representação da escrita pela criança até então desconhecidos. Certamente muitos trabalhos de pesquisa ainda serão desenvolvidos no sentido de identificar as contribuições dessa teoria para as práticas da alfabetização escolar. No entanto, a dificuldade que tem ocorrido relaciona-se com uma parcela dos educadores construtivistas que, ao ocuparem postos de decisão na estrutura educacional, acabam por assumir uma postura hegemônica, negando a pluralidade teórica existente, menosprezando a experiência passada acumulada pelos docentes das redes de ensino e desvalorizando as contribuições daqueles que não falam a "linguagem oficial, atualmente no poder".

Uma das possíveis conseqüências negativas desse quadro pode ser o fato dos educadores das redes de ensino não se beneficiarem, em suas práticas, das efetivas contribuições da própria teoria construtivista, por erro na estratégia de condução do processo de divulgação desse conhecimento, como bem demonstra o recente trabalho de Andrade (1992). Uma coisa é possibilitar o acesso dos professores aos novos conhecimentos; outra coisa é tentar impor, mesmo que sutilmente, uma forma de trabalho como única e verdadeira. Nas últimas duas décadas temos observado pessoalmente que as secretarias de educação têm sido verdadeiros túmulos de boas idéias, por motivos relacionados com disputa de poder entre diferentes grupos, muitos até bem intencionados. Além disto, tem sido comum um determinado grupo, ao assumir um espaço de decisão na estrutura educacional, iniciar o trabalho como se nada até então tivesse sido realizado. Isto tem impedido os órgãos de desenvolverem um trabalho contínuo e coerente, A questão do fracasso escolar certamente não será minimizada apenas por um determinado governo, mas exigirá o esforço de toda a sociedade civil, durante um bom tempo.

10) Neste sentido, entendemos que uma das funções dos especialistas na escola, começando pelo diretor, é propiciar aos professores o acesso ao conhecimento acumulado nas diferentes áreas relacionadas com a alfabetização escolar, como aliás propôs recentemente Kramer (1986) ao discutir os dilemas da prática de alfabetização. Isto porque a ação pedagógica não se deriva diretamente de uma única teoria. Tal ação é construída na prática concreta de sala de aula, à luz do conhecimento relevante acumulado nas diferentes áreas do conhecimento, num processo de contínua relação dialética entre conhecimentos teóricos e a prática, por parte dos educadores. Nossa concepção é que esse processo hoje, devido ao conceito de alfabetização adotado, só poderá ser realizado coletivamente, pelos professores, nas escolas.

11) Finalmente, entendemos que o que deve aproximar os pesquisadores, os teóricos e os educadores de boa vontade, é o compromisso político. Tal compromisso implica o envolvimento visceral com os ideais de efetiva democratização da escola pública, para que esta cumpra o seu papel de possibilitar a todos os cidadãos condições de se apropriarem do conhecimento básico e fundamental, necessário para o exercício da cidadania, de forma crítica, livre e consciente. Para esta perspectiva, a alfabetização funcional coloca-se como uma condição necessária, embora não suficiente.

 

Referências Bibliográficas

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(*) Departamento de Psicologia Educacional da Faculdade de Educação.

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