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Temas em Psicologia

versão impressa ISSN 1413-389X

Temas psicol. vol.2 no.2 Ribeirão Preto ago. 1994

 

DESENVOLVIMENTO

 

Adolescência/deficiência: uma sexualidade adjetivada

 

 

Lígia Assumpção Amaral1

Universidade de São Paulo

 

 

Propõe-se, aqui, pensar a complexa questão da sexualidade em relação à não menos complexa questão da deficiência, a partir de dois grandes focos: a vivência da sexualidade por parte de pessoas com deficiência e a representação dessa sexualidade por parte de outrem: família, profissionais, comunidade.

É importante salientar que se parte do princípio de que a sexualidade não surge na adolescência - o que surge aí é a identidade sexual plena, bem como a escolha de parceria para a aventura da experiência sexual. Os pressupostos teóricos subjacentes apontam para um investimento libidinal progressivamente desinvestido de si mesmo e investido do outro.

Temos, portanto, dois grandes fenômenos-conceitos em jogo: adolescência e identidade sexual - com a consequente busca da alteridade complementar.

Entre outros fatores pode-se - muito sinteticamente - pensar a adolescência como um momento de, simultaneamente, confusão de identidade e estruturação/solidificação de identidade. Neste momento, o jovem está em profunda sintonia com o olhar do outro, especialmente no que se refere à desejada consistência entre o como se sente e o como é percebido. Ou seja, o sentimento de identidade "é a segurança acumulada de que a coerência e a continuidade do próprio significado para os demais..." (Erikson, 1976, p.241). Por outro lado, essa identidade sinaliza algumas definições (muitas vezes precoces) de papéis e opções de caráter profissional, religioso etc.

A construção da identidade sexual - ou do gênero - propriamente dita, está em estreita relação com aspectos biológicos, geneticamente determinados (anatomia e fisiologia dos caracteres e órgãos sexuais), mas em mais estreita relação com aspectos psicológicos. Ou seja, a vivência de "masculinidade" e "feminilidade" é experiência plena de conteúdos afetivos, sociais e culturais - portanto, circustanciais em relação a dada pessoa. Assim, como todos os demais aspectos, a identidade sexual inscreve-se no amplo espectro do desenvolvimento de cada ser humano.

Postula-se, aqui, que um elemento extremamente importante na construção da identidade sexual - e, portanto, na possibilidade, mesmo que virtual, de experienciar a sexualidade - é a imagem corporal.

A noção de imagem corporal está sendo, aqui, intencionalmente utilizada em detrimento da de esquema corporal, em razão de esta última prestar-se muitas vezes (como tão bem assinala Werebe, 1984, em sua breve mas significativa revisão do conceito) a interpretações baseadas em paralelismo físico-psíquico e, portanto, dualistas - o que já não é viável após as contribuições de Ajuriaguerra, Wallon, Piaget, Freud e tantos outros teóricos que possibilitaram uma visão dialética das representações do próprio corpo.

Cabe, portanto, enfatizar que nesta exposição entende-se por imagem corporal a construção dinâmica de representações complexas, na qual convivem fragmentos do real e do imaginário, construção essa sempre em processo de formação e transformação.

Para esta construção confluem conteúdos que emanam da percepção e da fantasia, dialeticamente em movimento. Como diz Werebe (1984), não é possível (exceto para fins didáticos) separar o "corpo percebido" do "corpo vivenciado", pois o próprio conhecimento se "situa justamente na confluência entre o social, o simbólico e o afetivo".

Em suma, acredita-se que a vivência da sexualidade lastreia-se na identidade sexual que, por sua vez, repousa sobre a imagem corporal de cada um.

Ora, partindo-se do pressuposto que a condição "desviante" (Velho, 1989) e/ou "estigmatizante" (Goffman, 1982) - inerente à própria condição de deficiência - afeta (em diferentes graus) a pessoa assim categoriza, temos aí um primeiro e grande entroncamento: o ser aceito como diferente e o aceitar-se como diferente.

Não por acaso o "ser aceito" consta em primeiro plano, pois parte-se do pressuposto da importância do "outro" na construção do eu. Espelho fecundo, o "outro" inaugura os sentimentos mais profundos e permanentes em relação ao si-mesmo.

Sartre (1966), como filósofo, Wallon (1968), como teórico do desenvolvimento humano, e muitos autores, debruçaram-se exaustivamente sobre a importância do "olhar do outro", sobre o seu papel fundamental na constituição psíquica de cada um. Claro está que esse "olhar" não se refere única e exclusivamente ao ato de ver, ele está presente em qualquer vertente do "apego".

Ora, essa aceitação, esse vínculo, esse amor incondicional, passam por vicissitudes muito especiais quando em conexão com o fenômeno da deficiência. É conhecido o sofrimento de pais que, frente ao filho deficiente, precisam abdicar de seus sonhos e fazer o luto do filho idealizado/perfeito, perdido. Os conflitos subjacentes à situação esgueiram-se, muitas vezes, pelos vãos dos reflexos do espelho/olhar dos pais.

A aceitação de si mesmo como diferente e não obstante objeto de amor será, nessa perspectiva, fator imprescindível para uma construção sólida de identidade, inclusive "corporal". Ou seja, o "acolhimento" - como define Vash (1988) - da própria diferença/deficiência, pelo outro e por si mesmo, será determinante da disponibilidade para a parceria, não só no exercício da sexualidade, mas na vida.

Essa disponibilidade propiciará (como para qualquer ser humano) a viwência da díade risco/oportunidade, pois o "estar disponível para" é o exporse - o que pressupõe sempre correr riscos e viver oportunidades. Em nome de um medo superlativo do risco, pode-se não experimentar, não experienciar, não viver.

Supondo-se que essa pessoa com deficiência tenha desenvolvido uma imagem de si que permita o reconhecimento de sua própria sexualidade, que permita a construção de uma imagem corporal virtualmente sedutora, que permita a situação de exposição, e que permita a busca de uma parceria, estaremos chegando ao outro ponto aqui proposto para reflexão: o mundo que a cerca.

Nesse mundo, muitas vezes, alguns intermediários estarão antepondose à virtual parceria: pais e/ou profissionais. Como essas personagens, do "drama" aqui hipotetizado, vêem a sexualidade da pessoa com deficiência?

Alguns estudos debruçaram-se sobre essa questão e identificaram duas grandes possibilidades: uma leitura de a-sexualidade e uma de hiper-sexualidade. A equipe do Dr. Alain Giami, da Universidade Paris VII, por exemplo, divulgou interessante estudo (Giami e DAllones, 1984) sobre as representações da sexualidade de pessoas com deficiência mental, por parte de pais e profissionais. Esses pesquisadores agruparam essas representações sob duas vertentes, que denominaram de "anjo" e "fera", ou "angelical" e "selvagem" - trata-se, portanto, de uma sexualidade adjetivada!

Dentre os muitos aspectos assinalados na pesquisa, cabe, aqui, salientar alguns. O primeiro deles refere-se ao fato de pais e profissionais (educadores), da população estudada, terem diferentes e antagônicas representações da sexualidade dos deficientes. Essa diferença no universo representacional leva a uma necessidade de transação entre os dois grupos, a qual, muitas vezes, é vivenciada de forma conflitiva, pois para a afirmação de um grupo faz-se necessário tornar "negativa" a representação do outro. A culpabilização recíproca acaba por encontrar uma saída conjunta: "conhecer melhor para controlar melhor" - tendo como ponto de encontro o aspecto reprodutivo da sexualidade.

Mas vejamos um pouco melhor o segundo aspecto relevante, ou seja, as duas representações propriamente ditas.

O estudo mostrou que, para os profissionais, a sexualidade dos deficientes é "selvagem"e incompleta em relação ao modelo genital - havendo um movimento de ressaltar a estrutura adolescente mesmo em adultos. Ou seja, a sexualidade é representada como "selvagem" e incompleta na medida em que são assinaladas práticas masturbatorias individuais e coletivas, práticas exibicionistas e voyeuristas, condutas agressivas (sado-masoquistas?) e práticas homossexuais.

Por outro lado, essas práticas são vistas como irreprimíveis (em razão da força do impulso e da impossibilidade de sublimação) e desprovidas de afetividade. Paradoxalmente, os profissionais "cobram" uma relação afetiva para consubstanciar a sexualidade, mas impedem sua ocorrência na prática, impedindo namoros, aproximações etc. A vigilância faz-se necessária e é "legítima".

É interessante notar que esses profissionais vendem de si mesmos a imagem de "tolerantes", de terem uma atitude favorável à vivência da sexualidade, porém, concomitantemente, alegam uma impossibilidade dessa experiência projetando, todavia, essa inviabilidade nas normas institucionais ou familiares.

Os pais, por seu lado, representam a sexualidade como "angelical" e a estrutura infantil aparece como preponderante. Ou seja, os filhos são "anjos", "ingênuos", em si mesmos assexuados mas profundamente afetivos e, portanto, passíveis de serem pervertidos pela "selvageria" dos não deficientes. Esses pais chegam mesmo (na pesquisa aqui relatada) a responsabilizar a instituição pelo "despertar" da sexualidade dos filhos. A vigilância faz-se necessária e é "legítima".

Em relação aos pais pode-se apontar uma outra possível ambivalência: se, por um lado, o filho deficiente não é o filho idealizado, por outro ele pode ser o filho ideal, pois "não crescerá", ficando sempre aos seus cuidados e na dependência deles - o que, em função da dinâmica de cada um dos pais e da família como núcleo relacional, poderá ser extremamente "sedutor".

A pesquisa mostrou, finalmente, que tanto a ilusão do "angelismo"como o mal-estar ligado à "selvageria" podem provocar comportamentos muito semelhantes, na medida em que eliciam um sistema de defesa coletivo para uma sexualidade compreendida como ameaçadora (por sua organização psico-sexual e, portanto, intolerável.

A repressão está justificada e o discurso, finalmente construído em conjunto, alicerça-se na necessidade de evitar a procriação.

Valeria a pena acrescentar que talvez dificuldades desses adultos - pais e profissionais - em relação à própria sexualidade poderiam estar constituindo motivações ocultas, articuladoras do sub-texto de um discurso autoritário.

O trabalho aqui comentado, embora relativo a pessoas com deficiência mental, foi escolhido para esta exposição por ser emblemático, por retratar uma realidade mais ampla: "anjos" e "feras" tendem a alternar-se na leitura social do fenômeno da sexualidade de pessoas diferentes, sejam elas deficientes, negras, índias ou doentes mentais.

Alias, tendem a alternar-se na própria leitura social da deficiência como um todo pois, como já discuti em outros textos, os preconceitos advindos das atitudes frente à deficiência terminam por corporificar-se em estereótipos das pessoas nessas condições: "vítima", "herói" ou "vilão". Esses estereótipos contribuem fortemente para a cristalização do estigma, impedindo, em decorrência, o relacionamento interpessoal legítimo, autêntico e menos conflitivo (Amaral, 1988; 1992); ou se quisermos: relações em níveis conflitivos mais transparentes e gerenciáveis, mas, sobretudo, relações menos metafóricas.

Enfim, a temática da sexualidade, em sua articulação com as questões da adolescência e da deficiência, não pode ser isolada quer dos movimentos pulsionais humanos, quer das estruturas de poder.

É, acima de tudo, uma questão política.

 

Referências Bibliográficas

Amaral, L.A. (1985). Do Olimpo ao Mundo dos Mortais. São Paulo: Edmetec - Edições Médicas e Técnicas.         [ Links ]

Amaral, L.A. (1992). Espelho convexo: o corpo desviante no imaginário coletivo, pela voz da literatura infanto-juvenil. Tese de Doutoramento. Instituto de Psicologia. Universidade de São Paulo.         [ Links ]

Erikson, E. (1976). Infância e Sociedade. Rio de Janeiro: Zahar, 2ª edição.         [ Links ]

Giami, A. e D'Allones, C. R. (1984). As representações da sexualidade dos deficientes mentais pelos pais e educadores. In: M. I. D'Avila Neto. (org). A Negação da Deficiência. Rio de Janeiro: Achiamé/Socius.         [ Links ]

Goffman, E. (1982). Estigma: Notas sobre a Manipulação da Identidade Deteriorada. Rio de Janeiro: Zahar.         [ Links ]

Sartre, J. P. (1966). El Ser y la Nada. Buenos Aires: Losada.         [ Links ]

Vash, C. (1988). Enfrentando a Deficiência. São Paulo: EDUSP/ Pioneira.         [ Links ]

Velho, G. (1989), Desvio e Divergência: uma Crítica da Patologia Social. Rio de Janeiro: Zahar.         [ Links ]

Wallon, H. (1968). L'Évolution Psychologique de l'Enfant. Paris: Colin.         [ Links ]

Werebe, M. J. G. (1984). Corpo e sexo: imagem corporal e identidade sexual. In: M. I. D'Avila Neto (Org.). A Negação da Deficiência. Rio de Janeiro: Achiamé/Socius.         [ Links ]

 

 

(1) Departamento de Psicologia da Aprendizagem, do Desenvolvimento e da Personalidade, Instituto de Psicologia. Av. Prof. Mello Moraes, 1721 Cidade Universitária - Caixa Postal 66.261 CEP 05508-900 São Paulo - SP