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Temas em Psicologia

Print version ISSN 1413-389X

Temas psicol. vol.2 no.2 Ribeirão Preto Aug. 1994

 

DESENVOLVIMENTO

 

A imitação como um processo de construção de significados compartilhados(1)

 

 

Maria Isabel Pedrosa2

Universidade Federal de Pernambuco

 

 

O objetivo primordial deste trabalho é articular níveis de consideração sobre o fenômeno imitativo: um que investiga seu papel no processo interacional de crianças pequenas (1 a 3 anos) e o outro que trata a imitação como constitutiva da função de representação e do processo de diferenciação eu-outro. Como objetivos secundários pretendeu-se discutir: a) os critérios empíricos empregados comumente para a identificação da ação imitativa e b) evidenciar a relevância de se tomar o episódio interativo - e não apenas a ação imitativa - como unidade de análise para a consideração do fenômeno imitativo.

A discussão sobre o papel da imitação na ontogênese da criança aparece em contextos teóricos que tentam explicar os mecanismos de estruturação da representação (cf. Wallon, 1979, 1986a; Piaget, 1975; Piaget e Inhelder, 1980). Esta discussão inicia-se com a dificuldade de se chegar a um acordo conceituai sobre o que é imitação.

Wallon (1979) coloca o problema chamado a atenção para duas formas distintas de conceituar a imitação. A primeira diz que a imitação é um ato que reproduz um modelo, mas isto implica admitir a representação anterior ao ato imitativo. Em apoio a esta colocação de Wallon, pode-se mencionar o trabalho de Meltzoff e Moore (1977) que evidencia comportamentos imitativos em crianças, numa idade muito precoce, onde o poder de representação não existe manifestamente.

Uma segunda maneira de definir a imitação é pela semelhança entre dois atos, se os seus protagonistas estiverem em situação de observação mútua. Esta definição é, aparentemente, mais objetiva, porém inclui fenômenos outros que não devem ser considerados imitação, como, por exemplo, o comportamento de dois animais famintos que apresentam o mesmo comportamento diante de uma presa: a semelhança entre estes comportamentos se deve ao despertar simultâneo do mesmo instinto. Apesar da situação possibilitar a observação mútua, o que regula o comportamento desses animais é a própria presa e não o seu parceiro da espécie. A ação para ser considerada imitativa deve, pois, ser regulada pelo alvo que lhe serve de parâmetro para se indicar a semelhança.

Wallon (1979) concebe a imitação como uma atividade onde a representação deve chegar a formular-se. As etapas sucessivas da imitação

"obrigam a reconhecer um estado do movimento, em que este deixa de se confundir com as reações imediatas e - práticas que as circunstâncias fazem surgir dos seus automatismos, e um estado de representação em que o movimento a contêm já antes de ela saber traduzir-se em imagem ou de explicitar os traços de que deveria ser composta" (pp. 137-138).

Wallon (1979) acredita que o ato imitativo surge da atividade postural e distingue uma imitação espontânea e uma imitação inteligente. Na primeira, o modelo não se impõe como algo exterior ao sujeito, apesar de ter surgido sob a forma de percepção, parece-lhe íntimo e o impede ao ato imitativo que complementa e restabelece um acordo psicomotor. Na segunda, o ato imitativo distingue-se do modelo: o sujeito decide por imitar ou não algo sentido como exterior a si próprio. A passagem da primeira para a segunda é, porém, um processo lento e complexo. A imitação inteligente tende a estabelecer uma dissociação entre o que é percebido, desejado ou imaginado e o que é efetuado. Essa oposição propicia o plano da representação A representação seria, segundo ele, o resultado da duplicação do real, ou seja, o desdobramento do plano do sensível e do concreto em um equivalente, formado de imagens, de símbolos e de idéias.

Mas, de que maneira o ato imitativo contribui para a construção da representação? Como se dá o desdobramento?

Seguindo a interpretação walloniana, entende-se o processo de imitação como um estado de fusão e diferenciação entre o sujeito e o modelo. E este modelo é, a princípio, o outro.

A criança observa ativamente os outros que a atraem, há uma tendência de se unir a eles numa espécie de participação efetiva. Daí se formam os ingredientes básicos do processo imitativo: uma constelação perceptivo-motriz ou uma plasticidade perceptivo-postural. Estes ingredientes se constituem em uma espécie de modelo íntimo, agrupando impressões diversas e esparsas no tempo, numa fórmula global. Esta fórmula, em seguida, tende a transformar-se, a efetivar-se no meio físico, em termos sucessivos, para compor o desenrolar do ato imitativo. Aparentemente, não existe problema nesta transformação se se conceber que a ordem dos gestos está implicada no esquema do registro dos mesmos. Mas não é bem assim que se interpreta o modelo: ele é concebido como um conjunto, como algo organizado que corresponde a uma impressão global. Visto desde modo, constituise num problema o fato de esmiuçá-lo em seus termos sucessivos. O êxito de uma imitação é conseguido quando os gestos se articulam com uma topografia e um momento, integrados na realização da totalidade.

Começa, então, a oposição ao modelo: a efetivação dos gestos exige comparação e toda comparação exige desdobramento. Mesmo a imitação imediata, na presença do modelo, implica a confrontação dos termos sucessivos atuais com o seu protótipo, apreendido na totalidade do modelo. O trabalho deve ser dividido entre a execução e o controle do ato. Destaca-se deste trabalho a noção de semelhança.

Para se indicar uma semelhança e não apenas reconhecê-la, parece existir uma figuração que poderia ser considerada uma representação prévia. Mas essa figuração pode estar longe, ainda, de satisfazer as condições de representação. Quaisquer circunstâncias de que resultem uma concomitância ou outras afinidades podem parecer autêntica semelhança. Entretanto, é possível se reconhecer aí, um prelúdio de representação.

A semelhança é uma qualidade que se desprende dos objetos, das ações e que permite uni-los, apesar de serem distintos sob outros aspectos. Na medida em que permite associá-los, a semelhança é, em potência, categoria. Inicialmente ela é destacada por uma espécie de participação material. Mas é a forma ou outra dimensão que se comunica e que se tornará a qualidade a classificar. Nas analogias, mesmo nas mais simples, são as ações de resultados semelhantes que se convertem numa espécie de poder simbólico.

A similitude dos processos de imitação e de representação induz a se pensar, também, na influência ou participação do primeiro no segundo. É evidente que os dois processos se desenrolam em planos distintos: um no plano motor e o outro no das imagens e dos símbolos. Mas a força da analogia se deve ao fato de os dois processos compartilharem um problema em comum: transformar uma fórmula íntima, resultado de uma condensação de impressões e experiências diversas, em termos sucessivos, logo, devendo ser dimensionada no tempo.

Continuando no mesmo referencial teórico walloniano, o pensamento parece corresponder a um sistema onde as impressões e experiências se delineiam como figuras e unidades de consciência sobre um campo diverso e difuso. Imagens ou idéias, quaisquer que sejam a complexidade de sua realidade, formam um sistema simplificado, apreendido pela consciência de uma só vez, instantaneamente.

O desenvolvimento do pensamento implica ele tomar-se discursivo para subsistir e ser utilizado em outros momentos, com outras realidades. Enquanto isto não acontece, o pensamento permanece dominado por impressões sucessivas sem analisar e diferenciar as relações entre as coisas ou as situações. É um pensamento concreto e sincrético impotente para se decompor em partes que possam ser articuladas e reorganizadas de outra forma e assim possam corresponder a outras experiências . Falta ao pensamento um campo de representações onde ele possa evoluir (Wallon, 1979; 1986b).

Cada representação, que condensa um conjunto de impressões de um certo momento, tende a delimitar-se pelas relações com outras e se desenvolve por comparações e oposições. A linguagem participa desse processo.

Há uma suposta similaridade entre mecanismos inerentes à imitação e à representação: ambas são a redução de impressões mais ou menos esparsas em uma fórmula global e como que atemporal; a ambas cabe transformarem-se em termos sucessivos, ou seja, no ato imitativo e no pensamento discursivo, respectivamente, implicando, por conseguinte, o aspecto temporal; a linguagem é, portanto, constitutiva do pensamento. Sendo de origem social, ela introduz na consciência os quadros de conversões que possibilitam traduzir as representações em termos compartilháveis com o outro.

Os trabalhos de Nadel (1986) e Nadei e Baudonnière (1981) evidenciam grande quantidade de comportamentos imitativos entre crianças, fazendo-os afirmar que a base principal das relações sociais entre pares de crianças no curso do terceiro ano de vida é a imitação imediata. Eckerman, Davis e Didow (1989) mostraram que em crianças de aproximadamente 2 anos de idade, interagindo com pares não familiarizados, surge uma nova forma de organização comportamental: a criança, repetidamente, imita as ações da brincadeira da outra, propiciando a geração de jogos sociais que parecem construções do momento e não restabelecimento de scrípts praticados antes com parceiro familiar.

Através de um planejamento experimental, Eckerman e Stein (1990) compararam crianças de 24 meses interagindo em díade, com um adulto, numa situação de jogo. Para oito crianças o adulto reagia, programadamente, imitando a ação da criança no jogo, para outras oito, o adulto reagia ao mesmo material de jogo, mas de maneira diferente, não relacionada às ações da criança, procedimento este que se assemelha à maneira de um parceiro criança reagir quando tem menos de 24 meses, segundo observações anteriores. A suposição dos autores citados era a de que a ação imitativa, que surge mais freqüentemente em torno dos 24 meses, constitui um dos elementos que contribui para uma nova forma de organização comportamental identificada empares de crianças desta idade: a imitação instiga a imitação e conduz à geração de jogos sociais em díades. Os resultados do experimento descrito, feito com díade criança-adulto, apontam na direção suposta e os autores enfatizam a necessidade de prosseguir os estudos observando crianças interagindo em situação natural.

A partir de então, surgiu o interesse em realizar o presente trabalho com o objetivo de investigar os possíveis papéis desempenhados pelas imitações ocorridas, num contexto interacional de recreação livre.

A suposição que se tem é de que a ação de imitar o outro e o reconhecimento de estar sendo imitado podem gerar significados compartilhados pelas crianças interagentes, de modo a propiciar a transformação do movimento (ação imitativa) em um ato, cuja eficiência não está na ação muscular, postural ou fisionômica, mas na força de evocar um resultado que extrapola o campo do concreto e, até, das circunstancias presentes. Em outras palavras, a ação imitativa passa a ser considerada um correlato empírico de um processo que instaura um desdobramento do real; logo estar-se-ía falando dos primordios da representação.

Para a realização desta investigação foram utilizados os registros que compõem o acervo do LABINT - Laboratório de Integração Social Humana.

 

CARACTERIZAÇÃO DOS REGISTROS

Os registros são vídeo-gravações que correspondem a 20 horas de filmagem, realizadas durante um ano. No início da coleta as crianças de ambos os sexos, tinham idades que variavam de 1 ano e 4 meses a 2 anos e 9 meses(3)(4). Estas crianças freqüentavam uma creche pública municipal, da cidade de São Paulo, e eram provenientes de famílias de baixa renda.

As filmagens foram realizadas, semanalmente, no período de recreação livre, que acontecia ou no pátio da creche, ou na sala pertencente ao próprio grupo. As crianças brincavam com material disponível existente na própria creche.

 

RESULTADOS

O primeiro ponto que deve ser destacado a partir da análise dos dados é a dificuldade de se classificarem algumas ações semelhantes como imitativas ou não imitativas. Para o reconhecimento de uma ação imitativa bastaria, a princípio, que a criança, orientada para o parceiro, executasse uma ação semelhante. Mas há uma variedade grande de situações que põe em dúvida este reconhecimento.

A primeira dúvida surge quando a ação semelhante se deve à coincidência de objetivos: um objeto novo no ambiente, ou um objeto "redescoberto" pode atrair igualmente duas crianças. Ex.: Daniel (2:1) segue Rafael (2:9) que se movimenta no pátio, de um lugar para outro; aparentemente, a primeira criança imita a segunda, executando o mesmo roteiro, mas as tentativas de alcançar uma sacola de plástico, que estava na mão de Rafael, sinalizam seu interesse pelo mesmo objeto. Pode-se argumentar que a coincidência de objetivos corresponde a um tipo de imitação. É difícil distinguir, porém, se a coincidência de objetivos se deu pela atratividade do objeto para duas ou mais crianças, ou se este objeto tornou-se atraente para uma, porque a outra se interessou por ele.

O segundo conjunto de comportamentos, que são questionáveis quanto ao seu caráter imitativo, refere-se àquelas ações semelhantes que demonstram, antes de tudo, orientação de atenção ou sinalizam disponibilidade para interagir. Assim, Vivi (2:4) e João (3:0) estão sentados no chão, um próximo ao outro. Vivi manipula brinquedo e canta, João parece muito atento ao que ela faz. Vivi levanta-se e vai sentar-se num sofazinho; João a segue e se senta ao seu lado, sempre orientado para ela. Neste caso, seguir o mesmo roteiro e sentar-se ao lado, não parecem ser ações imitadas por João mas, sim, ações circunstanciais, porque lhe possibilitam observar o que Vivi está fazendo; o seu interesse está voltado para a manipulação que ela faz com o brinquedo e não para o seu deslocamento.

A terceira classe de comportamentos, que põe em discussão o critério empírico utilizado, corresponde à semelhança de ações quando as crianças seguem a mesma regra establecida no grupo. Exemplos deste caso são evidenciados quando a pajem chega na sala oferecendo o suco e as crianças imediatamente se sentam no chão para pegar o seu caneco, ou quando a pajem sinaliza, de alguma maneira, que a brincadeira deve terminar e várias crianças começam a guardar os brinquedos na caixa. Em ambos os exemplos, as crianças seguem uma regra já indicada pela pajem, em momentos anteriores, mesmo que ela não seja reafirmada naquele momento. A argumentação contrária que pode ser feita neste caso é de que as crianças, estando em situação de orientação mútua, podem seguir a regra porque a outra está seguindo, caracterizando, deste modo, uma ação imitativa.

Assim como se põe em questão o caráter imitativo de algumas ações semelhantes, assim também existem ações diferentes em seu formato motor, mas que parecem ser imitação. Desta maneira, fala-se em imitação quando João (3:0), orientado para Vivi (2:4), bate palmas enquanto ela bate na boneca, chegando a ajustarem-se ritmicamente.

As dificuldades existentes para aplicação do critério de reconhecimento de uma ação imitativa exigem a consideração do segundo ponto de discussão deste trabalho, qual seja, o recorte empírico que constitui a unidade de análise da pesquisa.

Para reconhecer uma ação imitativa é preciso considerar a seqüência interacional em que ela ocorre. Várias pistas de contexto tornam-se relevantes. No exemplo indicado acima, onde Daniel seguia Rafael pelo pátio, surgem várias questões que, se respondidas, esclareceriam a classificação pretendida: onde estava esta sacola antes? o que Rafael fazia com ela? de que brincava Daniel? qual o seu parceiro anterior? e ainda, se Daniel conseguiu ficar com a sacola, o que ele fez com ela? foi uma ação relacionada à de Rafael anteriormente?

Posto desta maneira, fica evidente que apenas recortar a ação semelhante, de um parceiro orientado para o outro, não é suficiente para reconhecer a ação imitativa. Fica evidente, também, que o dado empírico é construído pelo pesquisador que seleciona uma ação do sujeito, articulando-a com outras, em meio a muitas realizadas.

O terceiro ponto de discussão refere-se à análise do papel da imitação na interação social. É preciso deixar claro, desde o início, que o objeto de estudo deste trabalho é a imitação imediata, ou seja, aquela que é realizada imediatamente após a ação da outra criança ou ainda durante a sua execução.

A partir dos episódios imitativos identificados, ao longo de um ano, foi possível elaborar cinco categorias, tomando-se como critério o arranjo interacional que surgiu com a ação imitada ou que a incorporou como parte daquele segmento interacional. Esta análise evita, portanto, a consideração de se a criança teve ou não uma intenção determinada ao imitar a outra. Chama-se a atenção de que não se trata de categorias excludentes; existem elementos comuns nas categorias, mas são as diferenças que delimitam uma nova classe.

Categoria 1 - Foram agrupadas, nesta categoria, aquelas imitações em que o parceiro imitado não percebeu a imitação do outro, ou não se orientou para ele; em conseqüência, não houve modificação no arranjo interacional em curso e aquela imitação parece não "aproveitada".

Categoria 2 - A imitação, reconhecida pela criança imitada, é repetida por esta; na seqüência, pode haver sugestões de novas ações que passam a ser imitadas. Há evidências de estar havendo um esforço ativo das crianças para o estabelecimento de sincronia rítmica e, até, de simultaneidade.

Exs.: (a) Numa seqüência identificada como o episódio das carreiras, Daniela (3:0) sai correndo do fundo da sala, num roteiro circular, em ritmo cadenciado, e sonorizando de modo sincronizado a esse ritmo. Alexandre (2:9), orientando-se para ela, a segue de perto, no mesmo roteiro, ajustando-se àquela mesma cadência, porém, sem sonorizar, (b) Ainda neste mesmo episódio, num momento posterior, algumas crianças entram na sala correndo na direção da parede do fundo; entre elas estão Paola (2:11) e Alexandre, orientados para Daniela, que chega em seguida. Esta pára diante da parede, encosta as duas mãos nela e demora um pouco; olha na direção de Alexandre e Paola e depois se afasta de costas, com a "cabeça mole", ou seja, movimentando-a para a direita e para a esquerda; Alexandre aproxima-se de Daniela e os dois andam pela sala de "cabeça mole". Paola, ainda orientada para Daniela, ri e faz um leve movimento de cabeça, esboçando um gesto imitativo.

Categoria 3 - A imitação compõe uma seqüência interacional existindo, entretanto, outras ações que fazem parte daquele arranjo. Embora possa haver ajustamentos rítmicos das ações imitadas é possível identificar um outro alvo que orienta as ações das crianças.

Ex.: Numa seqüência interativa identificada como episódio do Cachorro, Alexandre (2:10), de quatro pés, "latia" e abria a boca fingindo uma postura de ameaça. Vânia (3:0) e João (2:9) corriam afastando-se do "cachorro" e davam gritinhos quando ele se aproximava. Em seguida, Paola (3:0), Ariane (3:7) è depois Telma (2:9) introduziram-se na brincadeira fugindo do cachorro, acompanhando o roteiro dos dois primeiros, rindo alto e agitando o corpo.

Categoria 4 - A imitação engendra uma nova seqüência interacional; a partir da ação imitada se inicia um arranjo interacional ou se substitui um arranjo existente. A ação imitada não continua, forçosamente, a fazer parte do novo arranjo, ela parece, às vezes, apenas um fator desencadeador.

Ex.: Numa seqüência identificada como episódio de Mãe e Filha, Daniela imitou uma menina maior, que fazia o papel de mãe de Vanessa (2:6), quando foi convidada a voltar para a sala dela. Daniela se pôs atrás de Vanessa e, com uma peça de jogo, começa a "ensaboar" o cabeia dela. Ela acrescenta alguns comentários do tipo: "você vai tomar banho, fia (filha)! Sente aí". Daniela olha para Tiago, vê que ele manipula os objetos e fala gritando, em tom de repreensão: "não mexe". Algumas crianças se incluem na brincadeira mas outras não conseguem, apesar de tentarem.

Categoria 5 - A ação imitada é reconhecida numa seqüência de reciprocidade, entendida aqui como um segmento interacional onde há revezamento de papéis, sendo este revezamento o que marca o início de um novo turno. Aqui as crianças desempenham papéis complementares mas, no turno seguinte, elas invertem os papéis: a primeira faz o que fez a segunda e esta faz o que fez a primeira. Neste caso, a imitação acontece imediatamente depois dos parceiros realizarem uma ação de tipo complementar e exige que os dois imitem, um ao outro, concomitantemente, mas estejam, neste momento, novamente em uma interação complementar.

Ex.: Daniela (2:1) está em pé numa cadeirinha do balanço e Ubiratã (1:9), do lado de fora, o impulsiona. Após algum tempo, eles invertem os papéis; Daniela sai do balanço e passa a impulsioná-lo, enquanto Ubiratã entra e se põe em pé na cadeirinha.

O conjunto de dados analisados evidencia uma pequena percentagem de ações imitativas incluídas na categoria 1. Isto indica, primeiramente, que as crianças, das idades observadas, ao imitarem seus parceiros, o fazem diante deles e as crianças imitadas não são indiferentes à ação imitativa da outra. Os dados desta categoria confrontados com os das outras quatro, conjuntamente, onde se evidencia que o arranjo interacional em curso é substituído ou modificado, de modo a considerar a ação imitativa que ocorreu, indicam que a imitação propicia a manutenção das interações de crianças pequenas bem como a geração de jogos sociais tal como foi sugerido pelos trabalhos de Grusec e Abramovitch (1982) e Eckerman et al. (1989), respectivamente.

Os comportamentos imitativos da categoria 2, que sugerem haver um esforço ativo de ajustamento sincrônico, parecem assegurar a continuidade da ação imitada, tornando a seqüência imitativa mais prolongada. Esta categoria é muito simples aparentemente, porque a atenção da criança está voltada, basicamente para a igualação de suas posturas e movimentos. A análise qualitativa dos episódios aqui classificados possibilita, entretanto, evidenciar a construção de significados compartilhados a partir desses ajustamentos. Nem sempre se tem pistas para realizar estas inferências, nem tão pouco se afirma aqui que todas estas imitações constroem significados, mas aponta-se a possibilidade disto acontecer. Um caso especialmente esclarecedor é indicado a seguir.

Lucinéia (2:4) e Daniela (2:1) estavam num balanço, elas riem enquanto Cristiane (1:9) e Eliane (2:0) as impulsionam. Daniela e Lucinéia param de rir e, momentos depois, as outras duas crianças afastam-se. Lucinéia ri alto e Daniela ri igual, acrescentando ao riso uma agitação do corpo, quando Cristiane volta a impulsionar o balanço junto com Rafael (2:9) que ocupou o lugar que antes era de Eliane. Em seguida Rafael pára de impulsionar e as crianças cessam o riso; mas ele volta a impulsionar e elas recomeçam, depois ele solta o balanço e elas param de rir. Rafael recomeça a impulsionar e Lucinéia fica de pé, olha Daniela e recomeça os gritinhos e risadas. Daniela olha para os dois e também ri, grita e agita as pernas.

É evidente a imitação que ocorria entre Daniela e Lucinéia; as duas se reguiavam, sinalizando para os outros dois parceiros o que de mais interessante acontecia na brincadeira: o impulso alto do balanço. Pode-se dizer que o riso alto, com gritinhos e agitação do corpo constituem-se num código comunicativo. Esta interpretação corrobora a posição defendida por Nadei et al. (1989) de que as imitações que ocorrem entre as crianças pequenas, que não dominam, ainda, um código lingüístico verbal, compõem um sistema transitório de intercâmbio socialmente sustentado, desempenhando um papel preponderante na comunicação entre os pares.

Quando a imitação compõe a seqüência interacional, mas existe algo que orienta o comportamento dos parceiros interagentes, categoria 3, muitas vezes é possível reconhecê-la como indicador de a criança está incluída naquele arranjo, embora ela não seja o único indicador possível.

As imitações que foram classificadas na categoria 4 podem ser pensadas como indicadoras de proposta para o parceiro. Num dos episódios esta interpretação é especialmente fortalecida Vânia (2:0), sentada, gira o corpo e se põe de quatro pés, numa ação de levantar-se. Daniela (2:2) que também estava sentada a uma certa distância, orientada para ela, gira o corpo, se põe de quatro e fala "miau, miau". Vânia, em pé, corre, olha Daniela, ri e dá gritinhos. Rafael (2:9) e Cristiane (1:9) também se põem de quatro pés. Isto indica que Daniela recortou aquela postura, dentre outras, que compunham a ação de levantar-se de Vânia, acrescentandolhe o "miau, miau". O grupo tomou aquilo como sugestão de uma brincadeira de gatinho.

A imitação que corresponde à reciprocidade de papéis, categoria 5, caracteriza um modo aparentemente mais complexo de interação. Olhando-a sob o prisma da imitação, identificam-se vários segmentos interacionais estruturados pela complementaridade de papéis entre os parceiros mas, prolongando a dimensão temporal, estes segmentos compõem outro segmento maior e, aí, pode-se identificar uma seqüência interativa cuja estrutura é a limitação.

As repetições de ação e, principalmente, as repetições de turnos, com papéis invertidos parecem ser um jogo de experimentação, em que a criança tenta descobrir os aspectos iguais, opostos e complementares, sentindo, desta forma, as emoções correspondentes de um e de outro lado. Este jogo de semelhança e alternância propicia a diferenciação do eu e do outro, seguindo a interpretação Wallosiana apresentada na parte introdutória.

 

CONCLUSÃO

Finalmente, chega-se ao ponto central deste trabalho que é a questão de como se pode articular o papel da imitação no processo interacional com a sua função de constituir a representação da criança.

Ora, foram vistas, através da análise qualitativa dos dados, as inúmeras indicações de que a imitação serve como ações sinalizadoras no ambiente interacional. O riso alto, a agitação do corpo e os gritinhos constituíram, conjuntamente, em um dos episódios, um código comunicativo entre as crianças. Foi sugerido também que a imitação pode servir de sinal distintivo dos participantes do arranjo interacional, ou que a imitação pode ser tomada pelo parceiro como uma sugestão de uma brincadeira a ser realizada conjuntamente. Além disso, a própria constituição da identidade da criança pode estar sendo favorecida pela realização de ações semelhantes numa mesma seqüência interacional, ou ações semelhantes que são, ao mesmo tempo, papéis complementares invertidos em turnos distintos.

Em todos estes casos interpretados aqui existem significados compartilhados pelas crianças que são instaurados a partir de um movimento - que é uma ação muscular, postural, fisionômica - mas não um movimento qualquer, e sim aquele mesmo movimento que está sendo ou acabou de ser realizado pelo parceiro. Este movimento tem, portanto, a força de evocar algo não totalmente presente no campo do concreto e do sensível, porque os significados que lhe são atribuídos extrapolam esta realidade, embora precisem tê-lo como suporte. Há, pois, evidência de um início de desdobramento da realidade.

 

Referências Bibliográficas

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(1) Este trabalho recebeu o suporte financeiro do CNPq e da FACEPE.
(2) Laboratório de Interação Humana Depto de Psicologia. R. Dom Miguel de Lima Valverde, 88/1001 CEP 52020-120 Recife - PE E-Mail: PEDROSA@NPDl.UFPE.BR
(3) Não se tem condição, no momento, de indicar as porcentagens corretas de cada classe de idade, uma vez que os dados estão sendo revistos.
(4) Daqui em diante, as idades são indicadas da seguinte maneira: 1:4 = 1 ano e 4 meses.