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Temas em Psicologia

versión impresa ISSN 1413-389X

Temas psicol. vol.2 no.2 Ribeirão Preto ago. 1994

 

DESENVOLVIMENTO

 

De Animorum Medicamentis: conselhos e pespectivas para o futuro oferecidos a um adolescente do século XV

 

 

Marina Massimi1

Universidade de São Paulo - Ribeirão Preto

 

 

INTRODUÇÃO

"Aquele que desejar subir aos céus eternos após a morte, leia com ouvidos atentos este documento": o documento à qual se refere este solene e grave convite é um pequeno livro manuscrito cujo título define programaticamente um importante objetivo: De Animorum Medicamentis, ou seja, Os Remédios para os Ânimos.

Provavelmente escrito na última década do século XV, por Tideo Acciarini, um educador e filólogo relativamente famoso nos círculos inteletuais e nas cortes da Itália humanista da época, este "receituário"para o cultivo e a cura dos "ânimos humanos" era especialmente dedicado a um adolescente cujo nome tornarase famoso pela simples circunstância de ter nascido numa das mais poderosas e ilustres famílias reais de seu tempo. Tratava-se de Juan das Astúrias, nascido em 1479 dos reis espanhóis Fernando e Isabel, de quem Acciarini cobiçara tornar-se preceptor. Com efeito, o livrinho fora escrito justamente com o objetivo de cativar os favores e os interesses da corte espanhola, embora, como informam os biógrafos, o autor não tenha conseguido lograr sua meta. Todavia, por outro e bem diferente motivo, o De Animorum Medicamentis tornar-se-ia, depois de vários séculos, alvo de interesse dos historiadores da Psicologia.

Se Acciarini não chegara a realizar o projeto de ser mestre do jovem príncipe espanhol, seu nome está porém ligado ao de outro famoso jovem que fora na verdade seu discípula no estudo do grego e da filologia: Marcus Marulus, humanista dálmata e autor do primeiro texto, até hoje conhecido, onde comparece o termo Psychologia: o Psychologia De Ratione Animae Humanae (1511). Com efeito, a palavra "Psicologia", embora composta por dois substantivos próprios da língua grega antiga, não consta nos textos gregos e latino clássicos e medievais. O enigma das origens do termo atraiu o interesse dos historiadores: quais seriam as origens da palavra Psicologia? Qual seria sua significação? E qual seria a peculiaridade de um tratado de Psicologia com relação aos tradicionais Perí Psique ou De Anima? A procura das possíveis origens da inspiração de Marulus ao "inventar"esta expressão, nos levou, há alguns anos (Massini, 1983) a repercorrer o caminho de formação inteletual do mesmo, em busca dos lugares, dos mestres e das fontes que contribuíram à sua educação humanista. Foi assim que "conhecemos" o nome de Tideo Acciarini, e sua obra manuscrita cujo título revelava-se promissor na perspectiva de uma História das Idéias Psicológicas. Duas cópias desse manuscrito, possivelmente a original e uma transcrição mais tardia, encontram-se na Biblioteca Vaticana de Roma. O manuscrito, elaborado em idioma latino renascentista, é composto por cinqüenta e nove folhas (correspondentes a 118 páginas): o bom estado de conservação (com exceção feita à primeira página, cujas primeiras linhas são ilegíveis) e a clareza da caligrafia tornam relativamente fácil a sua leitura.

 

TIDEO ACCIARINI, ESCRITOR E EDUCADOR DO SÉCULO XV

Temos algumas notícias acerca da biografia de Tideo Acciarini, através de uma fonte do século XVIII (a Biblioteca Picena o sia Notizie Istoriche delle Opere e degli Scrittori Piceni, escrita em Osimo por F. Vecchietti) e pelos estudos de alguns autores mais recentes, em particular F. Lo Parco (1918), P. Verrua (1923) e G. Praga (1954). Além disso, algumas informações encontram-se no Dizionario Bibliográfico degli Italiani (do Instituto da Enciclopédia Trecccani).

Acciarini nasceu em Sant' Elpidio, pequena cidade da Itália Central (Província de Ascoli Piceno), por volta de 1430, filho de Matteo Nícolò. Desde a sua juventude, teve oportunidade de freqüentar em sua região, rica de fermentos humanistas, importantes centros culturais e políticos como o círculo de Aeneas Sylvius Piccolomini, em Monte Marciano (Ancona) e a corte da família Sforza (Pêsaro). De 1469 até 1471 desempenhou ofício de professor nas Escolas de Humanidades da Dalmácia, e nessa ocasião teve como aluno Marcus Marulus. Ainda em 1475 encontrava-se em Zara e de 1477 a 1480 leciona na cidade de Ragusa. Em 1480 regressara à Itália, estabelecendo sua residência em Cosenza, onde ensinava Retórica e Filosofia Moral e de onde iniciou uma intensa correspondência epistolar com Ângelo Policiano, um dos mais significativos representantes do Humanismo italiano. Em 1490 voltou à sua terra natal, fixando sua residência em uma localidade chamada Monte Santo (atual Potenza Picena).

 

O DE ANIMORUM MEDICAMENTIS

O De animorum Medicamentis insere-se perfeitamente na tradição dos tratados ético-pedagógicos da cultura humanista, tais como ILibri delia Famiglia (1434) de Leon Battista Alberti, o Tractatus de Liberorum Educatione (1942) de Aeneas Sylvius Piccolamini, De Educatione Liberorum et eorum claris moribus (1444) de Maffeo Vegio da Lodi, De Ingenuis Moribus et Liberalibus Adolescentiaie Studis (escrito entre 1400 e 1402) de Pier Paolo Vergerio. Se for comparado com esses escritos mais famosos, o livro de Acciarini não apresenta marcos particularmente originais. Relevante e nova é, porém, a ênfase no objetivo: conforme declara o próprio autor nas primeiras páginas do texto, os "remédios" para o "ânimo" são estimados como o dom mais precioso que possa ser feito a um homem e como a contribuição mais significativa a ser oferecida para a construção da vida individual, social e política. Com efeito, o "ânimo'" é considerado a essência do ser humano, o bem sumo e inalienável que este possui; mas, embora por natureza ele seja inclinado à verdade, à bondade e à justiça, é passível de desvios e de vícios. Por isso, faz-se necessária a educação, que é ao mesmo tempo cura e correção, consolidação e modificação do indivíduo, tendo em vista os ideais pessoais e sociais, reflexão sobre si mesmos e atuação política e discurso público.

O "ânimo" para Acciarini é expressão da vida subjetiva e fundamento da convivência humana e da sociedade civil. Por isso, a sua formação e sua "terapia" assumem um valor primário.

Importa observar também o uso do termo animus: Na língua latina clássica, esse termo assume diversas significações. Cícero, por exemplo, emprega-o nas Tusculanae como sinônimo de "princípio pensante", ou "espírito", diferenciando-o da anima entendida como "princípio vital", ou "sopro de vida". Da mesma forma, no livro De Oratore, o animus é definido como sede do pensamento, ou pensamento e inteligência. O animus assume sentidos diferentes, em outra obra do mesmo autor (Pro Marcello), onde corresponde ao "coração", ou seja à sede da coragem, dos desejos, das inclinações e das paixões, todos aqueles fenômenos em suma que a terminologia da Psicologia moderna define como motivações e emoções. Na obra poética Georgicas de Virgilio, o animus indica propriamente o caráter, a natureza do indivíduo.

A leitura dos De Animorum Medicamentis parece indicar que Acciarini entenda por "ânimo" a natureza racional do ser humano. Da mesma forma que outros humanistas (como por exemplo, Aeneas Sylvius Piccolamini), Acciarini pensa que a razão represente a dignidade peculiar do ser humano: "o homem é configurado conforme a razão represente a dignidade peculiar do ser humano: "o homem é configurado conforme a razão - escreve na folha 5 - de maneira que não faça nem pense nada que seja inconveniente". A razão é comparada a uma voz única e articulada; quando o homem se afasta dela fica como mudo, perde a sua identidade (é semelhante a um monstro da natureza possuindo apenas a aparência humana), e a sua personalidade se desagrega: "Realize todas as coisas de maneira que a razão tempere o desejo, porque, se renegarmos, o ânimo flutua aqui e lá, da mesma forma que um navio sem leme, ou como um corpo privado dos olhos vaga segundo um percurso incerto, ou como um cavalo sem freios se perde no tumulto da batalha"(fl.11).

A primazia do "ânimo"revela sua origem divina: com efeito, a razão no homem é "o instrumento de Deus"(fl. 28, b). É indício disso a sua natural inclinação para o bem e a instintiva repulsão para o mal: "As sementes do Bem estão no ânimo do homem. Por isso podemos facilmente estimular o homem à justiça (...). Da mesma forma como uma grande luz pode brotar de uma centelha alimentada por um espírito leve, também a virtude se afirma através de uma mínima exortação à honestidade"(fl.38).

Portanto, o animus humano possui um espécie de autonomia, pois basta-se a si mesmo: "O ânimo é livre, cresce por si mesmo, é alimento para si mesmo; administra-se, comanda a si mesmo, participa da divindade, inclina-se naturalmente às coisas retas, é inimigo feroz dos vícios" (fl. 39b). Seu destino natural é a realização do bem: "Se medirdes a ti mesmo, se meditares acerca de ti mesmo, então comprenderás que nasceste para realizar ações honestas e não para fazer o mal" (fl.40). Assim considerada, a razão bem educada torna-se o instrumento da felicidade do homem e a sua verdadeira riqueza: "A coisa mais útil não são as vestes frígias, nem as roupas refinadas ou as muitas riquezas, nem as grandes obras ou possuir uma grande quantidade de escravos, nem as insígnias e os livros, não são os corpos ornados por pedras preciosas, mas ter uma razão perfeita. Em virtude desta o homem pode viver feliz e ser bem aventurado."(fl. 39).

A tarefa principal do homem racional no mundo é a do conhecimento: "O lúmem da mente, que é a coisa mais divina dada ao homem por Deus, nos foi concedido por este motivo: para que possamos indagar as causas das coisas e tudo quanto é digno de ser conhecido: o curso da lua e o do sol, o caminho incerto das estrelas, os números siderais, as órbitas dos astros celestes, as qualidades dos ventos, a alternância dos anos e dos séculos, dos dias e das noites, o fluxo e o refluxo da maré, as fozes e as correntes dos rios, e as causas invariáveis de todas as coisas dignas de conhecimento, através das quais somos levados a reconhecer o sumo Criador" (fl.36). É evidente que o conhecimento assim definido assemelha-se muito à ciência natural, pois do ponto de vista metodológico trata-se de entender as causas dos fenômenos e, quanto aos objetos, investiga-se acerca da estrutura do céu e da terra, ou seja do mundo da natureza.

O otimismo da visão humanista acerca do ser humano reflete-se na proposta educativa que Acciarini faz ao seu jovem interlocutor: "E' conveniente que o homem (...) tenha uma razão perfeita, um ânimo puro e imaculado e seja imitador de Deus'7 (fl. 44b). O ideal a ser alcançado na vida é a posse da virtude, ou seja da perfeição do ânimo, que para Acciarini coincide com o saber. Na instabilidade e variabilidade da condição humana, é preciso construir a vida sobre fundamentos firmes e inalienáveis: "Reconheças como bens seguros, os que são teus, que não podem ser alienados nem perecem pelas armadilhas da sorte. Com efeito, a beleza das formas decai e se deteriora com o tempo. Consideramos, por exemplo, a saúde: esta pode ser consumida pela luxúria, pelas doenças, pelos anos. Somente o saber é nosso, pois somente este não pode ser corropindo pela sorte, pelas mentiras, pela doença ou pela velhice." (fl. 48). Da mesma forma, "as jóias, as pratas, o outro, e todos os bens que poderás possuir, incluindo o próprio reino, nem sempre te serão concedidos. Somente o dom da virtude nunca te abandonará, uma vez que o tenhas conseguido para ti." (fl. 21). Além disso, a virtude é a garantia de continuidade na história, pois através dela o homem alcança a imortalidade, ou seja a "memória sempiterna do nome" (fl. 40b).

Ontem como hoje, o homem busca uma certeza para dar significado e utilidade à própria existência. A adolescência e a juventude são as idades da vida nas quais esta busca aparece mais explícita e apaixonada: se, conforme Acciarini ensina ao seu interlocutor, o saber, e não a riqueza ou o poder político e militar, pode proporcionar tal certeza, é todavia necessário que esta se apoie na fé em Deus e na Igreja e na relação com os outros seres humanos. "O temor de Deus, declara o autor, é o princípio de todas as boas doutrinas e de toda sabedoria. Com efeito, depende do temor de Deus evitar os vícios e reconhecer o caminho da virtude." (fl. 29b). A Ele, reis e príncipes devem obedecer. De forma semelhante, escreveram Pier Paolo Vergerio ("Com efeito, que haverá de restar entre os homens de venerável e de venerado, se a Divina Majestade é desprezda?", 1400-02, citado por Nunes 1980, p. 85) e Aeneas Sylvius Piccolomini ("Quanto mais alto o berço, tanto mais te deves comportar com humildade, submeter-te à religião e participar dos ofícios sagrados (...) Acautela-se para não pensares que estás acima da religião, por te competir o nome de altíssimo Príncipe. Nas coisas de Deus não és senhor mas filho da Igreja, sujeito à autoridade do sacerdote." citado em: Nunes, 1980, p. 89). Já outros autores da época, como por exemplo, Niccoló Macchiavelli, pensam que não existiam limites ao poder absoluto do Príncipe e consideram a religião não como uma instância superior à qual submeter-se mas como um recurso para o exercício e a afirmação incondicionada de tal poder. Pelo contrário, para Acciarini, a fé em Deus é expressão da própria natureza do homem, que como já dissemos, participa da Razão divina. A palavra "religião" é entendida neste contexto não na significação própria da tradição medieval (a saber, como o pertencer a uma determinada regra ou experiência de comunidade eclesial), mas no sentido próprio dos antigos clássicos, ou seja como atitude devota frente às coisas de Deus e como respeito pelo sagrado (Bossy, 1990).

No relacionamento com os outros semelhantes, a racionalidade deve prevalecer sobre a instintividade: de maneira particular, é preciso evitar a violência e a crueldade, que são características próprias das feras e que por sua vez suscitam ódios e desejos de vingança: "Nos castigos, evite a violência e a crueldade. Com efeito, não convém ao homem ter algo em comum com as feras. Na verdade, as vinganças repetidas reprimem o ódio de poucos e suscitam o de muitos." (fl. 24b). Considerando a variabilidade da sorte humana, é preciso ser caridoso e compassivo com os pobres e os infelizes. Esta visão é expressiva do novo conceito de "filantropia" que se afirmara, a partir do século XV (Bossy, 1990) e que consiste numa transformação radical das caritas da tradição medieval: trata-se de um sentimento de benevolência e de humanitas ativa mas abstrata, entendida como dever do cidadão (Bossy, 1990).

São estas, portanto, as características que definem o animus do homem e os atributos que qualificam o seu estado de perfeição. O objetivo de Acciarini porém não se limita apenas a propor este ideal de vida; ele quer indicar o método para alcançar esta perfeição, evidenciando as dificuldades e sobretudo indicando "receitas" práticas para superá-las. Por isso, os de Animorum Medicamentis são uma espécie de "mapa" para que o jovem interlocutor possa reconhecer e percorrer o caminho que leva à felicidade.

 

OS "REMÉDIOS" DO ÂNIMO, OU SEJA, RECEITAS PARA A FELICIDADE

A busca da felicidade é o objetivo comum aos homens de todos os tempos e em todos os lugares. Todavia, a questão é encontrar um caminho seguro que leve a busca a bom termo, uma "perspectiva" que oriente o presente e garanta a meta no futuro. A esse respeito, ontem como hoje, as propostas e as respostas são muitas e diferenciadas. Em primeiro lugar, há diferenças nos modos de entender o que seria a felicidade. Como declara o mesmo Acciarini, "há entre os filósofos muitos que instruem acerca da vida feliz, cada um conduzindo-nos por um diverso caminho: Jerônimo diz que a vida feliz consiste na ausência de dor, Herilo diz que consiste no conhecimento das coisas, Epicuro no prazer, Califo e Diodoro na ausência de dor e no prazer, Zeno na honestidade, Aristóteles e outros peripatéticos essencialmente na virtude, mas também na posse das coisas exteriores", (fl. 47).

Ausência de dor, prazer, conhecimento, honestidade, poder, virtude: ao que corresponderia o rosto da felicidade? A resposta de Acciarini é perentória e deriva logicamente e sua concepção de homem, anteriormente explicitada: "Aquele que desejar uma vida feliz, entenda que esta consiste no conhecimento da divindade e no fruto da ação justa. Esta se comprova pelas palavras e pelos fatos." (fl. 32). A felicidade não é uma abstração filosófica ou um sonho irrealizável: ela se identifica com uma vida feliz e se documenta nas palavras e nos fatos.

A felicidade não é algo que o homem possa encontrar fora de si, nas condições externas e nas circusntâncias de sua história pessoal, pois "a sorte é variável" (fl. 28). O homem frente à vida é como um navegador que planeje uma longa viagem no mar. Para poder enfrentar a travessia, "é preciso levarmos somente aquelas coisas que possam salvar-se dos naufrágios e que nos conduza a um porto seguro." (fl.28). Além disso, o indivíduo deve aprender a aceitar as mudanças da fortuna, construindo a sua personalidade de maneira que seja consistente em si mesma e independente da variabilidade das circunstâncias: "Se em tudo tu quiseres ser feliz, dispõe a ti mesmo para aceitar ambas as sortes (...) de modo que tu não sejas orgulhoso pela boa sorte, nem deprimido pelas adversidades. Esta condição é própria de quem tem ânimo forte e constante." (fl. 22).

Em suma, "ninguém alcança a felicidade e a imortalidade pela boa sorte, pelo domínio, pela força. A verdadeira riqueza do homem é uma vida inocente e pura aos olhos de Deus, cheia de fé e de caridade. Reconheçamos que esta é a herança verdadeira e estável, que ninguém poderá alienar de nós, nem é algo que possa ser adquirido por natureza e sim por imitação. É preciso viver conforme a razão, nem é suficiente viver se não é viver retamente" (fl. 6). A felicidade, portanto, se atinge com o empenho da liberdade humana e, sendo que não consiste na aquisição da riqueza e do poder, mas na aprendizagem de uma vida conforme a razão, o caminho concreto para atingir tal objetivo é a imitação de quem vive retamente. A "filosofia" proposta por Acciarini como caminho para a felicidade, não consiste então numa especulação teórica acerca da essência da mesma, em seguir os exemplos dos homens que testemunham concretamente a realização deste ideal na vida.

E este é o medicamentum primeiro do ânimo, o caminho seguro a ser percorrido, a primeira forma do homem cuidar de si mesmo e afirmar sua verdadeira identidade: "Se o camponês cuidadoso ama as ervas do horto e o jardineiro ama as pequenas flores e as arvorezinhas fecundas por causa de frutos pouco duráveis, e para cultivá-las se canse dia e noite, por que nós deveríamos desprezar a filosofia, cujos frutos são admiráveis e eternos e que nos introduz na verdadeira dignidade da nossa condição humana? (...) Por acaso é possível que quem possui a mente, despreza esta disciplina transmitida por inspiração divina? Pois somente por ela curam-se doenças do ânimo e as depressões, distingue-se o bem do mal, o que é justo do que é injusto, o que é preciso buscar do que é preciso fugir, o que seja humano do que seja divino, de que forma amar os pais, a pátria, os anciãos, os amigos, os cidadãos, os peregrinos e os magistrados, os servos e as mulheres. Além disso, ela nos ensina de que modo venerar a Deus, respeitar os anciãos, obedecer às leis, cuidar dos filhos, aproveitar com sabedoria da boa e da má sorte, rejeitar os prazeres, despojar-nos a nós mesmos e assim viver uma regra de vida que nos permita, ao fim de nossa existência terrena, participarmos da vida bem aventurada unidos na familiaridade com Deus." (fl. 48b).

A "filosofia" assim entendida proporciona "receitas "para a condição humana individual e para a convivência social e política. É importante evidenciar que a proposta dos De Animorum Medicamentis é dirigida a um jovem príncipe, herdeiro de um dos mais poderosos e ricos reinos do mundo daquela época. Portanto, não é indiferente a maneira decisa com a qual Acciarini recusa o poder e a riqueza como "receitas para a felicidade"e aponta para o caminho de uma vida conforme a razão que rião pode ser adquirida com o dinheiro e com o poder mas só pode ser aprendida com o empenho e a fadiga da liberdade. Aliás, segundo Verrua (1923), poderia ter sido exatamente este posicionamento a causa da impopularidade de Acciarini junto à corte espanhola e do fato que o autor não conseguira atingir o objetivo prático de seu tratado: o de tornar-se preceptor do jovem Dom Juan.

Com efeito, para Acciarini, bem como para outros humanistas (tais como Leon Battista Alberti e Francesco Patrizi da Siena), o poder deve ser adquirido pela virtude da vida e não pelas riquezas materiais nem pela condição social de origem. Este posicionamento é significativo de uma mudança quanto à concepção do poder: com efeito, esse não é mais atribuído aos homens pela vontade divina ou pela condição de nascimento mas é obtido pelo empenho do indivíduo no plano da vida cultural, social e política. O esforço e a capacidade individual são os fatores que contribuem uma nova aristocracia: o caminho do poder é aberto para todos os que demonstrem merecê-lo. Algumas frases do texto são muito expressivas a respeito: "Não apenas os reis e os príncipes mas todos os que nasceram numa condição humilde podem tornar-se ilustres pela santidade e pela justiça da vida." (fl. 22b). "A maior parte daqueles que nasceram numa condição humilde podem alcançar o sumo grau de poder e dignidade pela virtude" (fl. 16b). E, ainda: "Quem não admirará a virtude, a única por meio da qual os homens que nasceram em condição humilde conseguem atingir o poder? Isso é claro através de alguns exemplos: Tullio Ostilio alcançou o domínio do Império Romano, sendo sua condição de origem a de pastorear as ovelhas morando num barraco no campo. Seu governo foi tal que obteve a admiração de todos e na hora de sua morte todo o povo chorou pelador. Por qual motivo Sócrates foi julgado pelo oráculo de Apoio o homem mais sábio? Porque Eurípides foi estimado como o maior entre os trágicos? Porque Demóstenes foi o mais ilustre entre os oradores? Certamente só pela virtude: esta não exclui nenhum homem de sua posse. Podemos consegui-la se formos ávidos dela e não por sorte ou por raça." (fl. 58 b). Em particular, a condição para um bom exercício do poder e para alcançar a plena dignidade da condição humana é o cultivo do ânimo pela sabedoria:

"O homem sábio difere do homem ignorante tanto que a natureza divina difere da mortal. A ti cabe decidir se buscar a sabedoria mais do que qualquer outra coisa. Afirma uma sustentação do Grande Platão: o homem sábio é imitador, conhecedor e amante do único, verdadeiro e sumo Deus. Por esta - participação à vida divina, o homem é dito feliz. Escutes também Protágoras, ou melhor, pratique o pensamento dele: "Saberá dirigir bem o reino quem tiver bem educado o ânimo na sabedoria. Com efeito, não pode acontecer diversamente: é incapaz de governar os outros, quem tiber pouco cuidado consigo mesmo."(fl. 31).

A mentalidade que norteia o afirmar-se de uma nova hierarquia social, propondo novos critérios que orientem a ascensão econômica e social, e sobretudo uma nova visão do papel do intelectual, enfatizando seu compromisso político e civil, que transparecem das palavras acima citadas, são características próprias do Humanismo e do Renascimento italiano. Nesse sentido, afirma por exemplo E. Garin que "nota característica comum da educação do humanismo é o seu sentido social e civil" (citado em: Nunes, 1980, p. 137). Em particular, o conceito de "virtude", tema privilegiado pelos Humanistas, acarreta esse sentido social e político. Com efeito, a virtude, por eles concebida, não se identifica com a tradicional imagem da virtude cristã, mas muito mais com o conceito de areté dos antigos gregos, ou seja aquela capacidade peculiar do homem que o destina à perfeição e garante seu domínio sobre as coisas. Então, a virtude em sua própria essência, é profundamente ligada ao poder: o ápice deste visão é o pensamento de Niccoló Macchiavelli.

A modalidade para adquirir a virtude assim entendida é a imitação dos exemplos de outros homens do passado e do presente: "A virtude, verdadeira e sólida herança que ninguém pode tirar de nós, não é algo que possa ser adquirido por natureza mas pode ser construída através da imitação" (fl. 6). Com efeito, como afirmara o humanista Francesco Patrizi da Cherso, "todos os homens tendem naturalmente à imitação" (citado em: Nunes, 1980, p. 91). A personalidade humana, de fato, se constrói socialmente: por exemplo, "quando é eliminada a presença de testemunhas, a vontade costuma pecar.

Quando estamos sozinhos, para evitar o pecado, precisamos nos lembrar de alguém cuja memória veneramos."(Acciarini, fl. 52). Por isso, através da imitação dos outros, pode-se aprender o bem e também o mal. Por exemplo, "nada é mais perigoso do que imitar os luxuriosos. Escute Sêneca: o amigo acostumado aos prazeres aos poucos enfraquece. O companheiro ruim, mesmo que tu sejas puro e simples, pode comunicar-te, por contágio, o rubor" (fl. 36 b). Portanto, é muito importante o discernimento com que escolhemos as companhias, os amigos, os exemplos a seguir: "Evita nos homens o que é condenável e imita o que é bom (...) Admira não aqueles que falam muito, pois as palavras são volúveis, mas os que realizam a razão do reto viver, antes do que as palavras, e cuja vida e conduta seja igual ao que eles ensinam com as palavras" (fl. 14b -15). O exemplo a imitar não são tanto discursos, mas uma experiência humana concreta, caracterizda pela coerência entre o ideal e a prática: "Epicuro dizia que precisamos escolher um homem bom para tê-lo sempre frente aos nossos olhos, de maneira tal que, olhando para ele, sempre vivamos fazendo tudo como se ele olhase para nós." (fl. 56). Isso explica o costume dos antigos de auxiliar essa memória através das imagens (por exemplo, esculturas) colocadas nos átrios das casas (fl. 25), ou cantando as gestas dos antepassados em momentos de convívio social (f. 50-50, b). A eficácia da imitação demonstra-se também no plano político: para o governo do reino, nada é melhor do que o próprio exemplo dos príncipes e dos reis, ao qual os povos e as nações poderão conformar-se. (fl. 8).

A conseqüência principal da ênfase na imitação como modalidade de formação do homem "virtuoso" é a importância atribuída à edução, característica essa comum a todos os Humanistas. A concepção da plasmabilidade do ser humano, o poder dos hábitos na construção da personalidade, embasa a afirmação de que a educação detém uma função prioritária na vida individual e social. Para demonstar a força do hábito, Acciarini serve-se de um exemplo histórico. Trata-se de uma demonstração feita por Lycurgo frente ao povo ateniense: dois cachorros, gêmeos mas criados segundo modalidades diferentes (um instruído na caça, outro acostumado à abundante comida), são colocados frente a dois "estímulos": uma panela cheia de comida e uma pequena lebre. Então, o primeiro direciona-se para perseguir a lebre, o segundo alcança a panela, (fl. 49b). Por isso, os primeiros anos de vida são decisivos para a definição do temperamento e das tendências da personalidade: "Dos primeiros anos de vida, o ânimo das crianças seja formado e disposto para o bem: de fato, os vícios que crescerem conosco, dificilmente poderão ser eliminados."(fl. 20, b).

A própria modalidade da amamentação tem uma grande influência na formação do caráter do sujeito. Nesse sentido, recomenda-se sempre, quando for possível, a amamentação ao seio materno: "A descendência deve ser criada pela amamentação ao seio materno. Quando isto não for possível, é bom seguir a recomendação de Crisippo: a ama deve ser prudente, sóbria, sábia, de bons costumes, morigerada e não deve ensinar à criança nada que seja inconveniente."(fl. 13, b).

Da mesma forma, deve ser escolhido como mestre de primeiras letras um homem cuja vida seja pura e livre de qualquer tipo de crime, "de maneira que, sendo de costumes irreprensiveis, seu saber seja livre dos vícios." (fl. 13b). De fato, o "ânimo" infantil é semelhante ao pêlo branco das ovelhas. Uma vez que esse for manchado, é impossível reconduzi-lo à candura originária, mesmo após muitas lavagens em água. (fl. 13, b). Da mesma forma, é preciso que o pai cuide e controle a qualidade das pessoas que freqüentam a sua casa, para que seus filhos não escutem delas palavras inconvenientes nem sejam influenciados por exemplos pouco edificantes. (fls. 47 e 47, b).

Outra idade muito significativa para o processo de formação da personalidade é a adolescência: "o ânimo, bem educado na virtude, em toda idade da vida, é capaz de autoridade e de dignidade e na velhice torna-se grande. O que você tiver recolhido quando adolescente, se for cultivado deste a tenra idade, será recolhido como fruto da maturidade." (fl. 24). Ou, em outras palavras, "convém aos homens que desde a adolescência se dediquem à virtude, pois a idade facilmente acarreta os desvios." (fl. 24, b).

Um aspecto muito relevante do processo de formação é o cultivo da memória: "Em primeiro lugar, recomendo-te o exercício da memória, desde a puberdade, pois esta é o armazém das boas artes e da boa disciplina." (fl. 49, b).

A educação, além disso, tem o poder de modificar o comportamento do indivíduo, bem como de curar as "doenças do ânimo": "Se o camponês cuidadoso pelo seu trabalho torna fecundo e fértil o campo que era estéril, nós não devemos duvidar de que (...) as doenças do ânimo podem ser eliminadas pela educação nas boas artes."(fl. 30, b).

Em suma, é preciso que o processo educacional aperfeiçoe a natureza, pois só pela colaboração de ambos é possível alcançar a perfeição: "é reconhecido por todos que sem a disciplina das boas artes, a natureza é cega, bem como sem a natureza a disciplina é falha." (fl.21, b).

Um vez estabelecidas as bases constitutivas dos "remédios para o ânimo", Acciarini passa a descrever de forma mais detalhada, os métodos específicos dessa "terapêutica".

 

MÉTODOS PARA O CULTIVO DO ÂNIMO

Antes de mais nada, é preciso dedicar-se ao cultivo do ânimo. Com efeito, Acciarini observa que o descuido consigo mesmo é uma atitude muito difundida entre os homens os quais, em muitos casos preocupam-se mais com a posse dos bens materiais e dos reinos do que com a verdade do próprio ser: "Se observarmos os comerciantes, os mercadores, os que se dedicam aos negócios ou as artes militares e considerarmos quantos perigos eles enfrentam por terra e por mar para conseguir alguns gens materiais e efêmeros, e para realizar esse objetivo não são impedidos pelas chuvas, e pelos montes e florestas, pelos rios, nem temem o perigo de ladrões, o frio ou o ardor do sol, o que acharemos seja necessário fazer para obter a posse luminosa e eterna das virtudes? Essas, com efeito, são preciosíssimos ornamentos do ânimo, não apenas acarretando satisfação das nossas necessidades humanas, mas também não abandonando quem as possui. Por outro lado, convém observar que os homens, embora capazes de razão e embora tenham consciência do que é justo e bom, todavia nem sempre estão atentos a isso. Quando o corpo começa a ter febre, nós chamamos o médico, procuramos os remédios necessários, aplicamos cataplasmas e buscamos não esquecer nada que posse ser útil à saúde. Pelo contrário, no que diz respeito às doenças do ânimo, nós não sabemos reconhecê-las nem prevê-las. Assim, com a maior leviandade, deixamos entrar os vícios, e angustiados nós mesmos os procuramos quando esses não se apresentam espontaneamente. E, em nossos corações, achamos que a virtude é própria dos míseros (fl. 15-15 b).

Um aspecto muito importante do cuidado consigo mesmo é, portanto, a prevenção das doenças do ânimo: "Tendo acolhido essas lições como remédios para aplicar sobre as tuas feridas, não permitas que essas te cubram ou piorem ainda mais." (fl. 52, b).

Esta comparação entre a medicina do corpo e a medicina do ânimo é a nosso ver muito significativa, pois vislumbra a exigência de uma "higiene"da subjetividade humana e aponta sua importância para o indivíduo e para o corpo social. Evidentemente, esta visão relaciona-se profundamente à antropologia humanista, que acarreta uma nova imagem do homem e de seus problemas, em particular enfatisando a capacidade de autodeterminação que todo homem possui, a possibilidade que ele tem de construir, ou modificar seu destino concreto. Isto implica, como conseqüência, a necessidade de conhecer os meios para alcançar tais objetivos. É emblemático, nesse sentido, o famoso trecho de Pico delia Mirandola (1463-1494), onde o filósofo imagina a fala de Deus ao homem recém criado:

"Ó Adão, eu não te dei um lugar determinado, nem um aspecto próprio, nem algum privilégio teu, de modo que aquele lugar, aquele aspecto, aquele privilégio que tu desejares, tu o obtenhas e conserves conforme o teu desejo eoteu conselho. A natureza limitada dos astros é contida no âmbito das leis por mim prescritas. Tu determinar ás a tua natureza sem ser constrangido por nenhum limite, segundo o teu arbítrio, em cujo poder Eu mesmo me entreguei... Eu não te criei nem celeste nem terreno, nem mortal nem imortal, para que você se modelasse a si mesmo quase como sendo livre e soberano artífice, esculpindo tua figura segundo a forma por ti escolhida. Tu poderás degenerar, assumindo a natureza inferior dos animais; tu poderás, conforme a tua vontade, conformar-te às coisas superiores que são divinas" (trad. livre; citado em: Reale e Antiseri, 1986, pp. 49-51).

Uma vez reconhecida a responsabilidade do ser humano com relação ao cuidado do próprio ânimo, são sugeridos alguns recursos: em primeiro lugar, a oração e a meditação dos textos sagrados. Esses representam um modelo ideal a ser seguido, uma orientação que ilumina a busca de cada um: "E assim como os olhos, embora constituídos pela natureza para ver a luz, exercem sua função prestabelecida somente à presença do sol, da mesma forma a mente que investiga acerca da verdade conforme a vontade de Deus, não pode realizar esta tarefa sem a presença d'Ele." (fl;. 34).

Além disso, a memória de Deus permite ao homem corrigir-se de seus pecados:

"Assim, da mesma forma em que a maioria das doenças, mesmo graves, podem ser curadas por um leve cataplasma, igualmente qualquer homem ímpio que se aproxime do templo de Deus, pode tornar-se melhor em virtude da presença do próprio Deus. O ânimo, mesmo quando for embebido de erros, pode purificar-se uma vez que for admitido ao sacrário da filosofia e à leitura dos textos sagrados. Aos poucos, o ânimo liberta-se do mal e, se a razão for mestra, alcança a virtude e a santidade." (fl.38).

Outro recurso aconselhado por Acciarini é a leitura dos livros de filosofia, especialmente os de filosofia moral: "Muitas vezes retoma os livros de filosofia que tratam dos costumes. Esses te instruirão acerca dos modos de comportamento. Com clareza, através deles, tu conhecerás os homens que realizam a virtude e desejarás imitá-los (...) Tendo esta filosofia como mestra, tu realizarás obras justas e viverás salvo, livre e feliz. Se tu quiseres que todos te sejam submissos, deves submeter a ti mesmo à razão." (fl. 51-51 b). Como já observamos, trata-se aqui de uma filosofia prática, mais do que de especulação metafísica, como resulta claro também nesta breve sentença: "A verdadeira filosofia é viver em santidade." (fl. 52).

Em primeiro lugar, o estudo da filosofia deverá conduzir ao conhecimento e à direção de si mesmo: "Isto o oráculo respondeu a Sócrates: -nada é mais divino do que o conhecimento de si mesmo. Portanto, muitas vezes tu deves ler os livros úteis para isso, pois neles encontrarás muitos conselhos acerca da saúde e da glória de teu nome, coisas que ninguém te dirá, ou por causa da adulação, ou por consenso no mal, ou por medo." (fl. 18, b).

De modo semelhante à filosofia moral, também as assim chamadas "disciplinas liberais" têm a função de esclarecer o ânimo acerca de si mesmo (fl. 13). Essas disciplinas são a história, a eloqüência, o desenho, a música, a ciência natural, a medicina, o direito.

Segundo Acciarini, é muito importante evitar o ócio e a preguiça, pois "o ânimo nunca deve enfrequecer-se". Evidentemente, o repouso é necessário, mas de maneiras que não distraía das ocupações convenientes, pois "da mesma forma que um campo torna-se estéril pela falta de cuidados do camponês, e nele começam a e crescer os espinhos, assim o ânimo enfraquece-se e enlanguece pelo ócio." (fl. 25, b). Por isso, no tempo livre, recomendam-se as boas leituras (fl. 8, b).

Enfim, a aptidão em conhecer e controlar o próprio ânimo têm como fruto a capacidade de exercer o poder sobre os outros: citando Protágoras, Acciarini afirma: "saberá bem dirigir o seu reino quem educar seu ânimo à sabedoria. De fato, é incapaz de governar os outros quem tiver pouca atenção consigo mesmo."(fl. 31).

Os métodos para o cultivo do ânimo sugeridos por Acciarini se baseiam numa nova maneira de entender a "ética cristã", inaugurada pelo humanismo. Em particular, como evidencia Bossy (1990), a "disciplina interior" e, para o humanista, expressão de um cristianismo interiorizado e individualista que dita normas de comportamento, mais do que ser uma experiência de fé e de pertença à comunidade cristã entendida como um corpo social e como âmbito originário da moralidade.

 

MÉTODOS PARA CULTIVAR O CORPO

Acciarini considera o homem como uma unidade psicossomática. Por isso, de um lado, as doenças e os vícios do ânimo podem atingir a saúde do organismo físico, por outro, o desequilíbrio físico do organismo, devido a causas externas ou internas, pode acarretar conseqüências no plano psíquico. Por exemplo, o excesso nos prazeres e nos alimentos e bebidas induz conseqüências graves para o homem como um todo: "Os desejos da libido destroem e atormentam o ânimo, gerando inúmeras ansiedades e tormentos incessantes. Tudo isso debilita os corpos, torna doentes os homens, encurta a vida, arruina a virtude e induz o desprezo das leis humans e divinas." (fl. 33 b). Do mesmo modo, "o estômago não deve ser enchido em excesso, nem por alimentos nem por bebidas, pois isso costuma tornar obtusos o corpo e amente." (fl. 33 b). Sugere-se um regime apropriado à saúde do corpo que, em primeiro lugar, "evite todos os alimentos gordurosos, ou que aumentem em excesso o sangue. De fato, conforme afirma o grande médico Galeno, o ânimo, oprimido pelo excesso de sangue e pela gordura, não pode contemplar as coisas celestes. Com efeito, a virtude a verdade das coisas são invisíveis e incorpóreas e somente podem ser investigadas pela mente que é invisível e incorpórea." (fl.33 b).

Um outro aspecto do cuidado com o corpo é o da compostura no comportamento exterior: "o discurso, o modo de andar, de sentar-se, de esticar-se, o cuidado do corpo e do rosto, os movimentos das mãos e dos demais membros devem conservar sempre seu decoro." (fl. 22, b).

O ócio não é apenas inimigo da alma mas também do corpo: por isso, é importante exercer alguns esportes, como por exemplo o pugilato, o jogo de bola, a corrida, o lance do disco, o cavalo, a caça etc... (fl. 8, b).

Por fim, é oportuno que o jovem seja instruído nas disciplinas militares, sobretudo no que diz respeito à capacidade estratégica e aos métodos para guiar o exército e organizá-lo. (fl. 10, b).

 

COMO CORRIGIR OS VÍCIOS

Antes de mais nada, é preciso reconhecer que os vícios são os principais obstáculos à perfeição da natureza humana: aliás, constituem o que Acciarini define "o delírio supremo". Com efeito, é comparável à loucura a atitude do homem que, "podendo contemplar com os olhos do ânimo a forma e o rosto da virtude, tão bonita e preciosa, e podendo avaliar pela razão a utilidade da mesma virtude, decida colocar em segundo plano esta ocasião de grandeza e se abandone a vícios que, uma vez enraizados, não poderão ser arrancados por nenhum recurso da medicina" (fl. 45, b).

A causa desta atitude é, segundo Acciarini "um falso juízo" acerca do que realmente tem valor. A dinâmica pela qual os vícios se introduzem na pessoa é através de uma certa "força tênue"que esses possuem, de maneira que "às escondidas e com insídias eles agem lentamente e desapercebidos levam a ferida à putrefação sem mais esperança de cura", (fl. 38b). Por isso, é muito importante cuidar de que o ânimo não seja atingido por nenhum vício, pois a tolerância de um delito, mesmo que pequeno, "nos tira do justo modo de vida e nos rende totalmente submetidos aos prazeres" (fl. 11 b).

Considerando tais premissas, o método mais eficaz para combater os vícios é a prevenção, pois é preferível "eliminar a doença em seu princípio"(fl. 11 b). A melhor forma de prevenção do vício, para Acciarini, não é porém o medo, mas o amor à virtude: "Muitos acham que a meditação da morte e o temor do castigo eterno sejam causas da inocência ...Eu, todavia, não acredito que o vício seja eliminado pelo temor...Com efeito, quem evita os vícios por medo do castigo, uma vez que não houver punição, entregar-se-á a toda sorte de delitos" (fl. 6). Em segundo lugar, é importante o "reconhecimento do erro", "pois este é um motivo muito importante de correção": "de fato, não aceita remédio quem não reconhece estar doente" (50, b-51). Nem sempre tal reconhecimento acontece, pois a tendência mais instintiva do ser humano é a de "ter na frente dos olhos os vícios dos outros e atrás das costas os próprios" (fl. 43 b). Em terceiro lugar, é preciso corrigir e punir o pecado.

 

RECEITAS PARA A CONVIVÊNCIA SOCIAL E PARA A VIDA POLÍTICA

Uma vez fornecidos conselhos para a cura do ânimo do indivíduo, Acciarini passa a esclarecer seu jovem interlocutor acerca de critérios e recursos adequados para a prática social e política: a começar pelo amor devido aos pais ("nada, com efeito, é mais ímpio do que sermos negligentes para com aqueles que nos geraram e criaram, e que te amam sobre todas as coisas"(fl. 17) e ao mestre. Deste é particularmente enfatisada a função educativa: "Recompenses o teu mestre com um respeito cheio de admiração. Reconheças que tu cresces através dele, que te transmite regras de vida mais preciosas do que qualquer reino." (46 b). Acciarini recomenda muita atenção quanto aos critérios para a escolha da esposa: esta deve ser sadia e honesta, laboriosa, discreta, casta e religiosa (13 b).

Amigos, confidentes e bons conselheiros são muito importantes mas é preciso selecioná-los com muito discernimento: "a ninguém confie os segredos de seu coração, a não ser àquele que compreenda tais segredos como se fossem seus." (fl. 13). Por isso, ao examinar as pessoas para ponderar se elas são dignas de amizade, é necessário observar como elas agem com relação às suas coisas: "Com efeito, é impossível que os que agem mal em seus negócios, possam ser bons conselheiros nos negócios dos outros." (fl. 27b).

Quanto à modalidade de tomar decisões, Acciarini sugere muita atenção e ponderação e a consideração dos "conselhos daqueles homens que são respeitáveis por costumes, fé, conhecimento, idade e santidade (fl. 8). Nunca é recomendável seguir a opinião da massa. (fl. 18). O tempo é um fator indispensável para que um juízo prudente e amadurecido possa ser elaborado: "Para decidir algo, utiliza tempo e diligência. Com efeito, é impossível ao mesmo tempo decidir uma coisa às pressas e examiná-la, nem existe nada que possa ser realizado com o mérito da diligência ao mesmo tempo que com a graça da rapidez." (fl. 45).

Grande consideração é atribuída ao "discurso". Como bom humanista, Acciarini recomenda um uso prudente da boca, pois ela é "o vestíbulo do ânimo, a janela do discurso e a praça do pensamento." (fl. 45). Por isso, "não pode-se brincar em discursos ruins, nem tua boca pronuncie nunca palavras vulgares. Com efeito, o uso das palavras obscenas aos poucos elimina o pudor e nada é mais detestável, num príncipe." (fl. 41). Observa-se que o discurso tem um grande poder de controle sobre os homens: "Lembre-se que, para apaziguar a multidão desordenada ou para estimular os ânimos ao trabalho, ou para obter graça, nada é mais adequado do que um discurso ameno, fascinante e elegante. Portanto, convém estudar para obter a dignidade da eloqüência." (fl. 10). Tal dignidade se alcança sobretudo pelo uso da razão: "Na conversa, use a razão. De fato, é preciso cuidar para que a língua não antecipe o que nós ignoramos no ânimo."(fl.11). Por sua vez, isto poderá ser alcançado através do "exercício contínuo da meditação das máximas dos sábios." (12 b). Considerando o poder do discurso ("uma palavra dita ao povo, é irrevogável", fl. 11), convém falar somente quando é necessário, ou seja em dois casos: "ou quando devemos falar de algo que conhecemos bem e que provoca a admiração dos outros, ou quando somos obrigados a falar por necessidade" (fl. 27 b). Em tais ocasiões, Acciarini recpmenda que "os reis e os príncipes falem pouco e com modéstia. Então seu discurso seja breve, construído com elegância e dignidade, ornado por citações de autores clássicos, como uma profecia. Isso acontecerá se tu antes de falar, meditares pois a voz não deve nascer da garganta nem do paladar mas do coração" (fl. 9 b).

Quanto à participação à vida política e, em particular, à gestão do poder, são qualidades importantes a grandeza e a força do ânimo: "Convém que aquele que governa um grande império tenha um ânimo grande e intrépido, não pusilânime. Com efeito, o império é fortalecido e sustentado pelos homens fortes, mas é destruído e enfraquecido pelos homens fracos." (fl.43 b). Ao governante não convém a ira nem a vingança e a violência (fl. 44). A bondade e a liberalidade são dotes que propiciam o amor e a estima dos súditos. Assim, também nas guerras e na conduta com os inimigos, Acciarini recomenda a temperância e a clemência: "Quando a sorte te favorecer concedendo-te a vitória sobre povos e nações, lembre-te que não deves perseverar na destruição e na violência, além do necessário. É suficiente punir os responsáveis pelos crimes e castigar as injustiças. A multidão conheça os dons de tua clemência, pois o temor, o terror, a inimizade, o ódio, a crueldade, ameaçam a estabilidade do poder. Pelo contrário, a liberalidade, a indulgência, a clemência não apenas consolidam o poder mas também o acrescem, (fl. 9 b). Com efeito, "a obediência induzida pelo uso da força não é tão durável quanto a vontade espontânea e sincera de aderir" (fl. 9).

Algumas atitudes são sobremaneira prejudiciais à vida social e política: em primeiro lugar, a ambição desmedida que impede o homem de ser feliz: "Com efeito, o homem ambicioso se inquieta ao ver alguém que o supera ou ao reconhecer-se inferior a outro, e por isso vive numa aflição constante". (fl. 46 b). Em segundo lugar, é condenável a avareza, pois esta gera o ódio dos outros, sobretudo quando o avarento cobiçar os bens alheios "pois, os que cobiçam os bens dos outros querendo apossar-se destes, são destruídos ou pela multidão ou pelos indivíduos. Eles correm o risco de cair nas prisões, nos exílios, nas torturas e vivem necessariamente atormentados pois o homem que age no temor constante, dia e noite é consumido pelo medo e não existe algo pior do que este tipo de ansiedade." (fl. 27). Enfim o excesso de cobiça leva o sujeito à miséria.

 

CONCLUSÃO

De Animorum Medicamentis representa, pois, um conjunto de conselhos e perspectivas para o futuro oferecidos a um ilustre adolescente no fim do século XV. Da leitura das páginas de Acciarini transparece a afirmação de que o valor prioritário, o objetivo principal dos cuidados no processo de desenvolvimento do ser humano, deve ser o "ânimo". Seja qual for a condição social ou política do sujeito, seja qual for a sorte da história pessoal e civil, o aperfeiçoamento do ânimo humano é a garantia para a felicidade. Uma felicidade que não é obtida antes de mais nada pela posse de bens ou pelo favor das circunstâncias exteriores, mas que é uma conquista primariamente interior e pessoal, embora tenha expressões e conseqüências no plano social e político. Com efeito, a perfeição do ârdmo coincide também com o verdadeiro poder do homem, ou seja com a capacidade de dominar a si mesmo, a natureza e os outros.

A subjetividade humana aparece, então, na perspectiva do Humanismo, como o centro da vida cultural e social. Uma subjetividade, porém, que se realiza na ação e no convívio social e que, de qualquer forma, deve ser educada para atingir sua verdade. É este o primeiro passo na direção do que virá a ser a primazia da subjetividade na cultura ocidental moderna.

 

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(1) Depto de Psicologia e Educação Faculdade de Filosofia Ciências e Letras Av. A Constantino, 150, Jardim Recreio - Ribeirão Preto (SP)