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Temas em Psicologia

versão impressa ISSN 1413-389X

Temas psicol. vol.2 no.2 Ribeirão Preto ago. 1994

 

SAÚDE

 

Psicoterapia na rede pública de saúde

 

 

José Roberto Tozoni Reis

Universidade Estadual Paulista - Botucatu

 

 

A oferta de tratamento psicoterápico na rede pública de saúde é relativamente recente e deve ser considerada no conjunto de transformações que tem caracterizado o campo da assistência em saúde mental. O programa de saúde do Governo do Estado de São Paulo (gestão Franco Montoro) destacava já em 1983, a necessidade de transformar substancialmente a assistência em Saúde Mental. Como em todo o país, a realidade assistencial baseava-se na hospitalização psiquiátrica, de ineficácia conhecida há décadas, mas privilegiada no Brasil, a partir dos anos sessenta, por constituir reduto de interesses econômicos da rede hospitalar privada. Os poucos ambulatórios de psiquiatria existentes limitavam-se a efetuar prescrição de medicação psicotrópica. Para mudar essa realidade, a Secretaria de Saúde propôs, então, a criação de ambulatórios de Saúde Mental e de equipes de Saúde Mental nas Unidades Básicas de Saúde. Na mesma época, o Ministério da Previdência e Assistência Social preconizava também a reforma da estrutura assistencial, através da diminuição das internações psiquiátricas e da ampliação da rede ambulatorial e de serviços alternativos do tipo Hospital-Dia, Pensão Protegida, etc...(BRASIL. Ministério da Previdência e Assitência Social, 1983). Mas o que se pregava em documentos oficiais era sistematicamente negado nas práticas efetivas: enquanto o Ministério da Previdência e Assistência Social elaborava programas com essa orientação, o INAMPS, seu braço executor, continuava patrocinando descaradamente políticas de incentivo à internação psiquiátrica fechada.

Assim como o Estado de São Paulo, alguns outros Estados adotavam, na época, políticas semelhantes, o que propiciou a convocação da I Conferência Nacional de Saúde Mental. Esse evento, realizado em 1987, buscou definir diretrizes para a área de Saúde Mental, em consonância com a Reforma Sanitária proposta pela VIU Conferência Nacional de Saúde, no ano anterior. Em seu relatório final, o primeiro ponto referente ao modelo assistencial propõe: "Reversão da tendência hospitalocêntrica e psiquiatrocêntrica, dando prioridade ao sistema extra-hospitalar e multi-profissional como referência assistencial ao paciente, inserindo-se na estratégia de desospitalização" (BRASIL. Ministério da Saúde, 1988, p. 18). E parte fundamental dessa estratégia é a extinção progressiva das instituições psiquiátricas asilares.

No final desse memo ano, o Congresso Nacional dos Trabalhadores em Saúde Mental aprovou a estratégia de luta "Por uma sociedade sem manicômios" que se tornou referência política para a mudança da assistência em Saúde Mental. A tese da desospitalização ganha força e é apresentada ao Congresso Nacional, através do Projeto de lei 3.657=A/1989, de autoria do deputado Paulo Delgado. O projeto prevê a transformação do modelo assistencial através da extinção progressiva dos manicômios e sua substituição por outros recursos assistenciais. Tendo sido aprovado por unanimidade na Câmara dos Deputados, aguarda votação no Senado Federal.

Durante esse período de intensa mobilização e discussão, como evoluiu a assistência em Saúde Mental? Se tomarmos o Estado de São Paulo como referência, veremos uma significativa criação de serviços extra-hospitalares no período de 1983 a 1986, que se caracterizou, principalmente, pela implantação das chamadas "equipes mínimas de saúde mental" nas Unidades Básicas de Saúde e pela ampliação da rede ambulatorial, gerando uma pequena diminuição dos leitos hospitalares ocupados. A partir de 1986, o ritmo dessa implantação foi arrefecido e a política de desospitalização progressiva muitas vezes obstruída por interesses econômicos e políticos por ela prejudicados. Mas, no geral, pode-se dizer que a tendência tem-se mantido, embora muitas vezes restrita à ótica simplista da diminuição de custos.

Entre os profissionais de saúde e os planejadores públicos há hoje um razoável consenso no sentido de reconhecer a falência do modelo hospitalar no atendimento em Saúde Mental. No entanto, a colocação em prática dessa diretriz tem sido morosa por pressão dos interesses econômicos que se beneficiam das internações psiquiátricas e por falta de decisão do poder público em assumir claramente tal perspectiva.

Paralelamente, assistimos à ampliação progressiva do conjunto de práticas terapêuticas ofertadas à população. Dentre essas estão as psicoterapias. Tal ampliação pode ser vista como uma conquista da população trabalhadora que tem condições de recorrer apenas aos serviços públicos em suas aflições. Técnicas anteriormente acessíveis apenas a setores socialmente privilegiados agora são colocadas à disposição de um número bem maior de pessoas, democratizando as oportunidades de tratamentos. Bezerra Jr. (1987) aponta que:

"o aumento da oferta de serviços na área de saúde mental significa reconhecer a importância do sofrimento psicológico como óbice para o bemestar da população e o direito que ela tem de poder contar com o que ha de melhor no campo das terapêuticas pra enfrentá-lo. Mais ainda: possibilita que muitas situações conflitivas ou mal-estares psíquicos que de outro modo seriam vividos como fatalidade ou remetidos a causas e soluções equivocadas (místico-religiosas, político-ideológicas etc.) sejam enfim reconhecidos por profissionais habilitados e tratados de modo mais adequado, quer através de técnicas psicoterápicas, quer através do uso de instrumentos como medicamentos específicos e bem administrados". (Bezerra Jr., 1987, p. 136)

Ao mesmo tempo, aponta também a falácia de se acreditar que o aumento da demanda constatada na área de Saúde Mental seja espontânea, ou naturalmente provocada como decorrência do crescimento da população e melhora da capacidade do sistema de saúde para percebê-la e acolhê-la.

Esse aumento da demanda também deve ser visto como um produto social, uma demanda:

"forjada pela condição de miséria e exploração impostas à maioria da população que, sem alternativas políticas adequadas, adoece (porque sucumbe à patologia sob pressões psicológicas insuportáveis ou como estratégia de sobrevivência através do benefício previdenciário); forjada pela estrutura de relações de produção capitalista que alienam o ser humano dos produtos de seu próprio trabalho e transformam sua existência numa estória sem sentido; eforjada pelo próprio aparelho médico na medida em que vai paulatinamente incorporando novos espaços sociais sob sua tutela: quanto maior a oferta de serviços psi, maior o campo de ação medicalizadora, maior o efeito de psiquiatrização do cotidiano, maior a necessidade de terapeutas e terapias". (Bezerra Jr., 1987, pp. 138-139).

Podemos afirmar que efetivamente as condições de miséria social contribuem para fragilizar psiquicamente as pessoas, mas o adoecer psíquico não pode ser reduzido a produto da exploração econômica ou da alienação, como se fosse possível reestabelecer as condições plenas de saúde com sua simples remoção. Nem todos os exploradores e miseráveis adoecem necessariamente, da mesma forma que nem todos os neuróticos ou psicóticos são pobres ou explorados economicamente. O sofrimento psíquico, embora circunscrito por condições sociais e expresso de uma forma culturalmente determinada, possui um estatuto próprio, e pode e deve ser tratado com técnicas adequadas. As psicoterapias são importantes instrumentos desse tratamento.

A implantação das psicoterapias no contexto dos serviços públicos não tem sido fácil, apesar do reconhecimento que vem conquistando por parte dos usuários. Por um lado, há aspectos institucionais que trabalham contra o otimização de seu uso. Em geral, os serviços públicos carecem de diretrizes programáticas claras que definam prioridades e promovam a necessária integração entre seus diversos programas. Faltam também políticas coerentes de recursos humanos que permitam a qualificação de seus profissionais para esse tipo de atendimento, através de supervisões e cursos de atualização e reciclagem. Devemse ainda considerar as condições de trabalho muitas vezes desfavoráveis e os níveis salariais nada alentadores. Dado que as universidades não preparam adequadamente seus alunps para o exercício da psicoterapia, e nem para o trabalho no serviço público, o psicólogo ou psiquiatra que se propõe a realizar psicoterapia em ambulatório ou centro de saúde terá que se desdobrar em esforços e gastos pessoais para superar as condições adversas que encontra.

Por outro lado, as concepções dominantes no campo das psicoterapias constituem elas mesmas um fator limitante à sua aplicação nos serviços públicos. As avaliações das experiências desenvolvidas têm mostrado a imperiosa necessidade de submeter as práticas e teorias psicoterápicas a rigorosa apreciação crítica que contemple sua constituição histórica, sua inserção cultural, seus fundamentos epistemológicos e suas marcas ideológicas.

Costa (1989) desenvolveu um trabalho nesse sentido que se tornou referência obrigatória para aqueles que se dedicam à psicoterapia. Considerando a psicoterapia como "atividade terapêutica dirigida a pessoas com conflitos psíquicos, com ou sem sintomas clínicos-psiquiátricos manifestos" (Costa, 1989, p.17), constata que grande parte dos pacientes que procuram os serviços públicos apresentam uma sintomatologia clínica não contemplada pela nosografia tradicional: a "doença dos nervos", "nervosismo", "estado nervoso", "sistema nervoso", "nervos fracos" são termos que ouvimos cotidianamente, usados tanto para descrever, quanto para explicar uma condição de sofrimento. Se tomados no sentido neuroanatômico, como ocorre freqüentemente, não são passíveis de uma conversão a um conteúdo psicológico e, por conseqüência, são considerados impossíveis de serem entendidos e abordados. Aí já estamos a meio passo da adoção de procedimentos estereotipados: a constatação da impossibilidade de uma abordagem psicoterápica por falta de preparo do cliente e a limitação da conduta à prescrição medicamentosa que irá estimular a produção de dependência farmacológica.

Costa (1989) designa essa atitude como "o preconceito do modelo único da comunicação humana", que, como outros preconceitos, tem sua origem numa crença no valor universal da nosografia e numa certa concepção de aparelho psíquico dominante nos meios psicoterápicos, que se baseia na matriz de todas as psicoterapias: a psicanálise.

As psicoterapias de uma forma geral, e a psicanálise em especial, desenvolveram-se historicamente como uma prática privada em consultórios. Esse desenvolvimento se deu sob a égide das relações de trabalho liberal, sob forma de contrato privado livremente estabelecido entre cliente e terapeuta. Tal condicionante marcou profundamente as práticas psicoterápicas, as teorias que as fundamentam e os psicoterapeutas que as praticam. Um de seus pressupostos é o de que paciente e terapeuta compartilham de uma mesma condição social e cultural e que têm, portanto, a mesma visão sobre o tratamento e seus objetivos, sobre os seus rituais e sobre o contrato que rege as relações entre seus partícipes. Diferentemente, no entanto, do que ocorre nos consultórios particulares, os clientes doo serviço público provêm de estratos sociais diferentes daqueles dos terapeutas, em geral oriundos das classes médias. Além da assimetria presente em todo início de processo psicoterápico no qual o paciente se coloca como carente do saber do terapeuta, está presente também uma hierarquização que é social. Além de saber-se doente, o paciente sabe também que está se relacionando com alguém que pertence a uma classe social superior, que tem hábitos e valores diferentes, que se veste diferentemente, que tem mais direitos civis, que tem o poder institucional e que nem mesmo foi escolhido por ele para tratá-lo.

Enfim, o tradicional enquadramento psicoterápico que favorece uma certa intimidade não faz muito sentido nessa situação, porque não está sintonizado com as experiências culturais da maioria dos pacientes. As diferenças sociais estão presentes com todo o seu peso.

As mediações institucionais também impõem a sua marca, reforçando a desigualdade. O estado brasileiro fez historicamente da prestação de serviços à população pobre um meio de cooptação política através da criação de laços de características clientelístas. Apesar da conquista formal do direito ao acesso igualitário aos serviços de saúde, a maioria das pessoas recebe o atendimento como um favor que fica devendo ao profissional, à instituição, ou ao político que o "providenciou". Se está recebendo um favor, o paciente não tem o direito de contrariar aquele que o atende, que poderia então cancelar a prestação do serviço.

A desconsideração das questões relativas a essas diferenças entre terapeuta e paciente no serviço público é denominada por Costa (1989) como "o preconceito dos sujeitos formais e abstratos na relação terapeuta-paciente". O terceiro preconceito é o "preconceito da essência da doença", que se refere ao etnocentrismo arraigado nas noções de indivíduo e de psicoterapia e que se expressa na desconsideração das diferenças culturais nas formas de expressão da subjetividade. Educados e treinados nos valores da afetividade e privacidade da família nuclear burguesa, muitos terapeutas tendem a considerar que conflitos psíquicos se expressam exclusivamente através de referências à afetividade, à vida familiar e à sexualidade, não valorizando as referências ao corpo, típicas da "doença dos nervos", e ao mundo do trabalho como material digno de presidir o desenvolvimento de processo terapêutico. Não conseguem enxergar seus pacientes nas suas diferenças determinadas pelos processos diferentes de socialização.

Em geral, grande parte - pelo menos metade dos pacientes dos ambulatórios de saúde mental - são diagnosticados como portadores de distúrbios de linha neurótica ou reativa, o que os coloca, teoricamente, como potenciais beneficiários de tratamento psicoterápico. Apesar da ampliação das equipes de saúde mental e da incorporação de novas técnicas aos serviços públicos, boa parte dos pacientes continua sem ter acesso ao atendimento psicoterápico e recebendo cuidados psiquiátricos que se restringem à prescrição de psicofármacos. Nos serviços que já têm implantadas as atividades psicoterápicas, os recursos disponíveis são insuficientes para atender à demanda. O trabalho a partir do qual elaboramos estas reflexões se desenvolveu num ambulatório de grande porte que apresenta essas características. Apesar da existência de vários grupos de psicoterapia e de um grande número de atendimentos em psicoterapia individual, a fila de espera para psicoterapia nunca se extingue.

Realizamos nosso trabalho no Ambulatório de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Botucatu. Os participantes dos grupos estudados foram escolhidos entre os pacientes que eram atendidos num sub-programa conhecido como "retorno geral". As atividades desse sub-programa consistiam em consultas realizadas por médicos residentes de 2º ano de Psiquiatria, com intervalo médio de 30 a 90 dias entre as consultas. Os residentes revesavam-se nesse subprograma a cada período de três ou quatro meses, o que impedia um seguimento mais prolongado no tempo e também o desenvolvimento de um vínculo que pudesse vir a ser instrumentado terapeuticamente. O principal instrumento terapêutico era, evidentemente, a prescrição de psicofármacos.

Torres e Cerqueira (1992) procederam a uma avaliação desse sub-programa examinando prontuários de todos os pacientes atendidos no período de um ano. Constataram que 51,1% dos pacientes recebiam diagnósticos relativos a transtornos neuróticos e 12,0% relativos a transtornos reativos. Mais de 90% desse grupo recebia algum tipo de medicação, predominantemente ansiolítico. Dados referentes à caracterização da população atendida no referido sub-programa mostram que aproximadamente dois terços (67,1%) dos pacientes são do sexo feminino e quase metade (48,3%) situa-se na faixa etária entre 21 e 40 anos. A maioria apresenta baixo nível de escolaridade: 53% de analfabetos ou curso primário incompleto e apenas 10,5% tendo completado o primeiro grau (antigo ginasial). Quanto à inserção no mundo do trabalho, a maioria (51,7%) refere-se a "prendas domésticas", enquanto 28,3% exercem ocupações consideradas menos especializadas e o grupo dos inativos e desempregados corresponde a 15,1%. Dados referentes a local de residência mostram que apenas 28% reside em Botucatu, município em que se situa o ambulatório, 29,2% reside em municípios próximos e 42,1% provém de localidades mais distantes.

Partimos para a formação de quatro grupos de psicoterapia verbal com freqüência mensal, tendo por referência a necessidade de ampliar o atendimento psicoterápico para esse grupo de pacientes, levando em consideração os dados referidos.

Para a maioria dos pacientes não é possível comparecer às sessões semanalmente, ou mesmo quinzenalmente, em função da distância entre o ambulatório e a residência e também da impossibilidade de se ausentar do trabalho. Mesmo assim, a freqüência às sessões muitas vezes foi prejudicada por dificuldades de transporte. Comumente, o meio de transporte usado entre o local da residência e o ambulatório é o ônibus ou perua fornecida pela Prefeitura Municipal, que volta no final da tarde. Por isso, comparecer a uma sessão implica gastar o dia todo de trabalho, sendo muito maior o tempo dedicado ao deslocamento e à espera do que o consumido em atividade terapêutica. Além disso, a disponibilidade do meio de transporte está sempre sujeita às ingerências da política municipal.

No início de 1991, dedicamo-nos a selecionar os participantes dos grupos, através da análise de prontuários, e iniciamos as sessões no mês de junho. Foram selecionados inicialmente 44 pacientes que haviam sido diagnosticados como portadores de transtornos neuróticos ou reativos, que foram distribuídos em quatro grupos. Os pacientes nãb passaram por uma etapa de psicoterapia individual que os preparasse para as atividades grupals, tendo sido apenas informados pelo médico residente que os atendia sobre o que era psicoterapia grupal e comunicados das datas das sessões. Essa etapa preparatória não pode ser cumprida por falta de tempo e de profissionais que fizessem essa preparação e avaliassem a motivação dos pacientes para o tratamento grupal. De todo modo, julgávamos que quaisquer que fossem suas condições motivacionais, o tratamento grupal seria necessariamente mais benéfico do que o que vinha sendo recebido até então.

Foi estabelecido que os grupos seriam abertos, iste é, que outros pacientes poderiam se admitidos no grupo na medida em que houvesse vagas. A duração das sessões seria de 90 minutos e cada sessão seria seguida por uma fase em que o médico residente faria as prescrições de medicação.

Assumimos a coordenação dos quatro grupos e incluímos nas equipes terapêuticas o médico residente que vinha até então sendo o responsável pelo atendimento dos pacientes no sub-programa "retorno geral". A partir de março de 1992, as equipes terapêuticas foram ampliadas com a inclusão de um psicólogo em estágio de aprimoramento.

A definição do papel da equipe terapêutica foi determinada pelo objetivo de propiciar condições que favorecessem a expressão de conflitos através de verbalizações que possibilitassem a elaboração dos mesmos. Para tanto, deveríamos estabelecer e manter as regras do funcionamento grupal. Adotamos uma preocupação especial com a linguagem, evitando na medida do possível, termos que não faziam parte do vocabulário dos pacientes. Logo aprendemos o cuidado com interpretações que se referissem a mecanismos inconscientes que pudessem não ser compreendidas. Optamos por intervenções predominantemente interrogativas que objetivaram colocar cada um em atitude de investigação de aspectos não considerados nos relatos e também procurando estabelecer relações entre os conteúdos dos relatos e os sentimentos por eles suscitados. Quando necessário, as falas dos terapeutas evidenciavam a complementação dos papeis envolvidos nas situações referidas, e apontavam as contradições presentes nos discursos. Buscamos também estimular o desenvolvimento do processo grupal questionando sobre como a fala de cada um repercutia nos demais.

A primeira constatação sobre a experiência foi a ampliação quantitativa e qualitativa do atendimento através dos grupos. Além de permitir o atendimento de um número maior de pessoas, o grupo possibilita romper com o modelo médico tradicional no qual o paciente costumeiramente desfia uma série de queixas para no final receber uma orientação ou uma receita de medicamento. Também pode oferecer uma situação na qual seja possível a cada um produzir uma ressignificação para o seu sofrimento e sua vida.

Para muitos, a ampliação quantitativa dos atendimentos é a grande virtude da psicoterapia grupal. Não é esse o nosso caso. Em primeiro lugar, acreditamos que o grupo é um espaço com maior potencial terapêutico na medida em que amplia a presença de agentes terapêuticos. Adotamos a tese de Moreno de que "o agente terapêutico para um determinado membro do grupo pode ser qualquer indivíduo ou uma combinação de indivíduos" (Moreno, 1967, p. 26). Além disso, enquanto na situação da terapia individual o paciente se limita a falar de sua vida e receber do terapeuta um significado para ela, no grupo é possível vivê-la diretamente no calor das emoções que a situação engendra. No ambulatório público, em função das diferenças sociais já apontadas, há ainda mais razões para se optar pelo trabalho grupal. A assimetria presente em qualquer terapia, que se fundamenta na suposição do saber do terapeuta, é agravada, pois o paciente sabe estar diante de alguém que pertence a uma classe hierarquicamente superior, o que reforça mais ainda a submissão numa situação de terapia dual. O grupo oferece a possibilidade de superação da solidão diante de uma entidade superior, relativizando o poder do terapeuta, permitindo a formação de alianças e o desenvolvimento da solidariedade. Bezerra refere-se à possibilidade do grupo favorecer a expressão dos pacientes: "Colocados entre pares, o paciente poderá exprimir sentimentos e cotejar sua experiência com um conjunto de pessoas que compartilham com ele o mesmo universo sócio-cultural. A palavra do parceiro de grupo talvez contenha maior plausibilidade, isto é, talvez possa veicular modelos de identificação mais próximos, mais apreensíveis do que é oferecido pelo terapeuta" (Bezerra Jr., p. 167). Além de tudo, as condições grupais permitem romper com o rígido modelo da relação médico-paciente, calcado no binômio autoridade-submissão, tão presente nos serviços públicos.

As considerações aqui desenvolvidas referem-se ao período de um ano, correspondendo a 9 ou 10 sessões. Verificamos nesse intervalo um índice de abandono do tratamento equivalente a 50%, o que consideramos alto quando comparado a grupos de sessões semanais. Os grupos mantiveram-se com o número médio de 10 pacientes com o ingresso de substitutos, enquanto a freqüência média às sessões ficou em torno de 70%. Pudemos verificar que a irregularidade da freqüência em alguns casos refletia uma peculiaridade no tocante à concepção do contrato terapêutico, que considera sem grande importância alguns aspectos que costumamos valorizar. A presença não é considerada necessária por alguns pacientes quando não se encontram em crise ou quando não necessitam de receita para obter a medicação. Muitas vezes, as dificuldades de transporte eram os reais motivos das ausências.

Outro dado interessante refere-se à volta às sessões depois de longo período de ausência. Alguns pacientes considerados desistentes ao final do primeiro ano voltaram posteriormente a freqüentar as sessões. Quando interrogados sobre o período de ausência, pareciam surpresos com a pergunta, pois consideravam natural não comparecer as sessões se não se consideravam estar necessitando delas.

A inserção dessa experiência numa instituição médica marca-a significativamente na medida em que a cultura médica mostra-se presente em todos os momentos e situações que a circunscrevem. A relação médico-paciente ancora-se na autoridade concedida pelo suposto saber profissional e na passividade imposta pela subordinação do paciente. Ao médico cabe prover a cura enquanto o paciente deve fornecer as necessárias e objetivas informações sobre sua história a partir das quais o saber médico irá atuar. Qualquer expressão subjetiva é considerada desnecessária ou até mesmo inconveniente. Os rituais burocrático-institucionais confirmam a posição do paciente: a atitude de submissão é requerida a todo momento passando pelo preenchimento de fichas, pelos diversos deslocamentos necessários para conseguir a consulta, pelo tratamento recebido dos funcionários e pela paciente espera do atendimento, As filas e a necessária passividade da espera mostram repetidamente ao paciente o seu lugar e confirmam a passividade como qualidade indispensável ao contexto. Poderia haver um outro sentido para a conhecida rotina dos serviços de saúde de requerer a presença de todos os pacientes no início do período, enquanto os atendimentos serão realizados durante todo o transcorrer do mesmo?

Assim, os pacientes de nossos grupos dirigiam-se a nós como manda o figurino médico. Descrevendo suas dores corporais, pedindo orientação e esperando a medicação. Parece que as informações recebidas antes e no início do processo sobre as relações no contexto psicoterápico grupal eram semanticamentes entendidas mas não assimiladas. Esse padrão foi dominante no início de todos os grupos. O terapeuta ocupava a posição central a quem se recorria individualmente para falar das queixas corporais, esperando receber alguma forma de resposta. Quando perguntado sobre o que lhe provocava a fala de um colega, freqüentemente o paciente interpelado passava a falar de seus próprios sintomas, pedindo para si a atenção do terapeuta. Com o transcorrer das sessões, a circularização da palavra foi progressivamente se instalando; aos poucos uma articulação formal entre as falas passou a expressar as alterações do processo grupal e a definir temas dominantes em determinadas sessões.

A referência a dores corporais foi outra constante em todos os grupos. A doença dos nervos expressa-se através do corpo: dores de cabeça, dores musculares, dificuldades de movimentação, taquicardias, restrições respiratórias são seus conteúdos. A dor psíquica expressa-se através do corpo. Além da falta de aprendizado para esse tipo de expressão subjetiva, há também a pressão da experiência com a instituição médica. O percurso habitual que conduzia a psicoterapia incluía uma ou várias passagens por consultas médicas anteriores. Nessas ocasiões, aprendia-se a falar somente das dores físicas. O padrão consolidara-se e agora repetia-se no grupo. Alguns pacientes apresentavam concomitantemente doenças físicas (vasculares, ginecológicas, cardíacas, ortopédicas). Freqüentemente, ocorria com essas pessoas fazer descrições queixosas referidas a essas doenças como se estivessem numa consulta da respectiva especialidade.

A evolução mostrou-se, nesse aspecto, através de um lento deslocamento de foco, de fala sobre sintomas corporais para referentes subjetivos, tais como tristeza, angústia, depressão, mágoa, raiva e para conflitos interpessoais, principalmente familiares. Em alguns momentos eclodia uma espécie de regressão grupal, desencadeada pela fala de um membro do grupo que restabelecia o foco nas dores corporais e a partir daí vários outros membros adotavam conduta semelhante.

A grande maioria dos pacientes tomava regularmente alguma medicação, em geral benzodiazepínica. O simbolismo desse uso foi tema presente em diversas sessões, ocasiões em que se evidenciava um sentido mágico, na medida em que ela era inócuoa diante do sofrimento mas continuava sendo percebida como indispensável. O decorrer dos processos grupais revelou uma tendência à diminuição do consumo dos medicamentos e uma dificuldade para abolição definitiva desse uso. Em geral, a diminuição evoluía até que o paciente chegasse a ingerir apenas meio comprimido por dia, ou em dias alternados, ou até mesmo incluindo um maior espaçamento temporal, mas mantendo-o sempre à mão para o uso eventual. Em casos de agudização dos sintomas, vimos ressurgir a esperança numa cura medicamentosa, expressa através do pedido de alteração do remédio então utilizado.

Inicialmente, a prescrição medicamentosa era feita pelo médico residente após as sessões grupais, atendendo individualmente a cada paciente. Verificamos que essa prática tendia a facilitar a expressão de queixas fora do contexto grupal e a reforçar condutas compatíveis com o tradicional padrão de subordinação às expectativas do médico. Passamos, então, a adotar a forma de prescrição coletiva de breve duração imediatamente após o término das sessões.

Para finalizar, consideremos os conteúdos das queixas expressas no contexto grupal. Nesse campo, a definição dos papéis sexuais foi um diferenciador importante. Para os homens, o principal núcleo de sofrimento está relacionado ao trabalho: doença impossibilitando o trabalho, aposentadoria provocando doença e sofrimento agravado pela perda das condições de trabalho provocada pela doença. Chamou atenção a referência à doença como responsável pela incapacitação pelo trabalho, configurando o que foi designado por Souza (1983) como "estratégia de sobrevivência".

As mulheres queixavam-se mais da vida familiar: as dificuldades para administrar a casa com poucos recursos, a preocupação e excesso de trabalho com os filhos pequenos, o sofrimento provocado pelas desavenças com os filhos adolescentes e pela indiferença dos filhos adultos foram referências constantes. Apenas um outro tema aparecia mais: os conflitos conjugais. Maridos que não dão a atenção desejada, que têm amantes, que espancam as esposas, que não cumprem seu papel de provedor econômico e submetem sexualmente as esposas compõem um painel que revela a realidade da vida familiar como opressora para a maioria das mulheres e que se completa sempre com a infelicidade sexual. A associação entre alcoolismo do marido e frigidez da mulher apareceu com bastante freqüência. Ao mesmo tempo em que é motivo de sofrimento, o casamento é vivido como uma fatalidade que não pode ser mudada, seja pelas limitações econômicas, seja pelo conformismo produzido pela ideologia familiar e reforçado pela religiosidade.

Essas constatações indicam que as diferenças culturais mostram-se mais nítidas entre os homens no que se refere às formas de vivenciar e especialmente expressar o sofrimento psíquico. Quando comparamos os conteúdos das falas de pacientes de classe média com as dos trabalhadores braçais notamos que nestes as questões referentes à afetividade, privacidade e sexualidade são quase inexistentes, e, quando aparecem, denotam importância secundária. O papel de trabalhadorocupa o centro da cena e ofusca os demais. As mulheres, por outro lado, parecem viver a condição feminina como um agravante do sofrimento. Esta vivência e mais os temas referidos durante o processo mostram uma maior aproximação com pacientes típicas de consultório no que se refere à vivência do sofrimento psíquico.

 

Referências Bibliográficas

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