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Temas em Psicologia

versão impressa ISSN 1413-389X

Temas psicol. vol.2 no.2 Ribeirão Preto ago. 1994

 

SAÚDE

 

Permanência e diversidade nas representações sociais da hipertensão arterial essencial(1)

 

 

Mary Jane Paris Spink

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

 

 

INTRODUÇÃO

A teoria das representações sociais foi introduzida por Serge Moscovici em 1961 com a publicação de seu estudo sobre a representação social da psicanálise. Incorporando análise de entrevistas e de artigos publicados na mídia francesa, esta pesquisa inseria-se na temática conhecida na França como vulgarização da ciência e tinha como principal preocupação a compreensão da construção de teorias do senso comum a partir da divulgação das teorias científicas.

Embora numa perspectiva histórica fique claro que a empreitada moscoviciana seria melhor caracterizada como um esforço de revitalização da psicologia social do conhecimento, Moscovi preferiu enfatizar mais o papel possível das representações sociais na derrocada dos modelos mais tradicionais de psicologia social, então criticados pela postura individualista, e no delineamento de uma disciplina mais obviamente comprometida com o social.

Inserindo-se, assim, como contra-corrente, a teoria das representações sociais foi anunciada, no texto introdutório da segunda edição do livro Representação Social da Psicanálise (Moscovi, 1978), como perspectiva integradora e até mesmo revolucionária. Dizia Moscovici: "Minha ambição era mais vasta. Queria redefinir os problemas e os conceitos da psicologia social a partir deste fenômeno, insistindo sobre sua função simbólica e seu poder da reconstrução do real. "(p.14) Ou seja, pensou-a enquanto eixo organizador da disciplina, passível de englobar tanto os conceitos tradicionais de atitude e opinião quanto os conceitos emergentes da cognição social tais como atribuição de causalidade, os protótipos e os schemata.

Esta ampliação do escopo da teoria das representações sociais, assim como sua fertilidade enquanto campo de pesquisa empírica, tornou-a bastante popular levando à formação de uma ampla rede de pesquisadores de tendências teóricas e metodológicas muito diversas. O caos resultante, inteiramente bemvindo do ponto de vista de Moscovici, foi logo apontado pelos críticos como prova da falta de clareza conceituai e metodológica (por exemplo, Jahoda, 1988).

Passados trinta anos, a rede de representações sociais continua a ser extremamente diversificada parecendo-nos, entretanto, que esta diversidade tende a uma organização em torno de dois pólos distintos: um primeiro polo concentrado no interesse pela estrutura das representações sociais e o segundo centrado mais diretamente na questão da linguagem como instrumento de criação da realidade social.

O primeiro polo agregador está centrado nos dois processos de elaboração das representações: a objetivação, definida como a transformação dos conteúdos abstratos em conteúdos concretos; e a ancoragem enquanto processo de incorporação de novos elementos no pensamento já constituído a partir das pressões do grupo. Estes dois processos vêm sendo paulatinamente estudados através de técnicas de análise multifatorial que possibilitam evidenciar tanto as semelhanças - enfatizando o consenso - quanto as diferenças interindividuais. Estudos que, segundo explicita Doise em seu recente livro sobre técnicas quantitativas de análise das representações, mantém a especificidade da perspectiva da psicologia social uma vez que privilegiam a relação entre o metasistema social e o sistema cognitivo mantendo-se fiel à pergunta central deste campo de estudo: "que regulações sociais atualizam quais funcionamentos cognitivos em que contextos específicos". (Doise et al. 1992, p.13)

Esta corrente parece ser coerente com a proposição de McGuire (1986) de que os estudos de cognição social - incluindo aí as representações sociais - constituem mero interlúdio na longa história do estudo das atitudes, história esta marcada por três ondas sucessivas: a mensuração das atitudes nos anos 20; os estudos sobre mudança de atitude nos anos 50 e a era que se inaugura de estudo da estrutura de atitudes. Vale apontar, também, que neste longo período o conceito de atitude sofreu mudanças sucessivas marcadas pelo abandono da dimensão social e que as representações sociais, concebidas como teorias práticas que englobam as atitudes, constituem uma reaproximação do sentido original das atitudes sociais estudadas por Thomas e Znaniecki nos anos vinte.

Já o segundo polo identificado tem como eixo central o interesse pela filosofia da linguagem. As representações sociais, neste polo, perdem suas raízes moscovicianas transformando-se em "versões", no dizer de Potter e Whetherell (1987) ou retórica na proposta de Billig (1987), com função instituinte nas relações sociais. Imperam aqui as diferentes formas de análise de discurso sendo a ênfase não mais na estrutura das teorias subjacentes e sim na funcionalidade das versões para a criação da ordem social.

Como contraponto, a vertente que vimos desenvolvendo (Spink, 1993a, 1993b)(2) faz uma interface com os dois pólos aqui identificados, aproximando-se da corrente discursiva pela ênfase na funcionalidade do discurso e da corrente estrutura lista pela ênfase dada à relação entre o sistema metasocial e a construção cognitiva das teorias de senso comum. Trata-se, sobretudo, de um enfoque marcado pela perspectiva construcionista influenciada, entre outros, por Bergman e Luckman (1966) mas com a presença, também, da perspectiva foucaultiana, seja na vertente dos estudos históricos sobre a loucura e a justiça, seja na vertente epistemológica (Foucault 1966,1969).

Esta forma de trabalhar centra-se em específico no processo de elaboração das representações sociais. Difere, entretanto, das outras duas correntes por fazer uma leitura do social marcada não apenas pelos fatores situacionais usualmente associados com o meta sistema social, como também pelos diferentes tempos históricos que permeiam a construção dos significados sociais. Dito de outra forma, segundo esta vertente, a elaboração das representações sociais, enquanto formas de conhecimento prático que orientam as ações no cotidiano, se dá na interface de duas forças monumentais. De um lado, temos os conteúdos que circulam numa dada sociedade e que têm suas origens tanto nas produções mais remotas constituintes do imaginário social, quanto nas produções culturais locais e atuais que emergem da convivência cotidiana. De outro lado, temos as forças decorrentes do próprio processo de interação social e as pressões para definir uma dada situação de forma a confirmar e manter identidades coletivas.

O contexto, nesta perspectiva, passa a ser definido não apenas pelo espaço social em que a ação se desenrola, como também a partir da perspectiva temporal. Não falamos aqui do tempo medido pelo relógio ou pelo passar dos meses e dos anos. Falamos do tempo interno marcado pela relação entre o imperativo da ação e as determinações inscritas na consciência coletiva. Assim, o tempo que marca o contexto pode ter diferentes durações.

Chamemos de tempo curto o foco na funcionalidade da representação. O caso prototípico destes estudos seria a análise de discurso, no sentido que os modernos Wittgensteinianos lhe dão, onde a ênfase é na construção sócio-cognitiva enquanto construção marcada pela funcionalidade. Contexto, neste sentido, consiste na descrição clara da situação interacional e da retórica que a pontua. Por exemplo, a entrevista médica, a entrevista psicológica, uma conversa entre iguais, a repreensão de um empregado pelo patrão etc.

Ampliando a saliência do contexto, chamemos, a seguir, de tempo vivido a expansão do tempo curto de modo a aí incluir as determinações resultantes dos processos de socialização. Estamos agora no território do habitus (Bourdieu, 1983); das disposições adquiridas em função da pertença a determinados grupos sociais. No estudo das representações sociais, contexto, neste sentido, tende a ser trabalhado de duas formas distintas. Num sentido mais imediatista a inserção social é presumida e analisada através dos grupos de identificação e conseqüentes prescrições de papel: médicos, operários, adolescentes de classe média. O contexto é subsumido então pelo conhecimento que temos do grupo de pertença e/ou pelo contexto imediato da ação: a instituição de trabalho, a fábrica, a escola.

Ainda como tempo vivido, o contexto pode ser expandido de modo a englobar uma comunidade. Inserem-se aqui os estudos etnográficos onde contexto compreende não apenas o habitus como também as características mais globais do entorno social, É neste sentido que Jodelet (1989a, p. 41) afirma que "as representações sociais devem ser estudadas através da articulação dos elementos afetivos, mentais e sociais integrando a cognição, a linguagem e a comunicação através da tomada de consciência das relações sociais que afetam as representações e da realidade material, social e ideacional sobre a qual eles vão intervir". Preceito este que aproxima a psicologia social da antropologia enriquecendo a primeira pela expansão do contexto e a segunda pela atenção aos aspectos cognitivos/afetivos da vida social.

O tempo vivido que emerge destes estudos etnográficos, entretanto, abre caminho para as memórias coletivas que são o domínio do tempo longo. Como a própria Jodelet observou em seu estudo sobre a loucura (1989b, pp373-374).

"Com exceção dos dados de observação direta dos doentes, estes diferentes componentes englobam tanto os conhecimentos de segunda mão quanto os saberes emprestados de outros domínios de atividade relacionados ao ethos do grupo, à sabedoria popular ou à cultura local. (...) Circulando nas palavras, nas expressões de linguagem, nos conteúdos do discurso social, incarnados nos gestos, eles existem como depósitos da memória coletiva, que nada mais é que a palavra transmitida e o corpo moldado. Nada pode lhes escapar. Eles formam uma espécie de reservatório de referentes para prescrever sobre os doentes e seu estado e orientar-se frente a eles..".

Com o tempo longo, deparamo-nos com os conteúdos culturais cumulativos de nossa sociedade; ou seja, com o imaginário social. Deparamo-nos, pois, com as fronteiras da história das mentalidades que possibilita enriquecer nossa compreensão dos conteúdos das representações sociais desvelando nelas as permanências. Assim, quanto mais englobarmos em nossa análise o tempo longo - os conteúdos do imaginário social - mais nos aproximaremos das permanências que formam os núcleos mais estáveis das representações sociais. No sentido oposto, quanto mais nos ativermos ao aqui-e-agora da interação, mais nos defrontaremos com a diversidade e a criação.

 

PROCEDIMENTO DE PESQUISA

A possibilidade de trabalhar os três tempos simultaneamente vem sendo explorada numa pesquisa sobre a relação médico-paciente no caso específico da hipertensão arterial essencial. A hipertensão essencial foi escolhida como cenário tanto pela sua prevalência na sociedade moderna como pela falta de conhecimentos precisos sobre sua etiologia.

Como principal informante foi escolhido um médico clínico geral com interesse na questão da interação entre médico e paciente. Esta escolha visou maximizar a chance de obtermos uma entrevista médica cuidadosa pois não era nossa intenção acrescentar ao já enorme volume de pesquisas que visam demonstrar a incompetência interacional dos médicos consulentes.

O objetivo principal da pesquisa era entender como as representações orientavam a ação, entendendo ação como prescrição de tratamento no caso do médico, e aderência a este no caso dos pacientes. Partindo do pressuposto de que as representações de médico e pacientes diferiam por sua proximidade relativa com a informação da ciência, estávamos também interessados em entender como as visões diferentes eram negociadas na consulta. Com este intuito, foram gravadas quatro consultas deste médico com duas mulheres e dois homens, sendo que duas das consultas foram realizadas numa clínica particular e as outras duas num ambulatório público. Em momento posterior, entrevistamos o médico e os quatro pacientes de modo a entender melhor o sistema representacional que dava sustento à interação.

As entrevistas foram transcritas e submetidas à análise de discurso utilizando para isto uma técnica de associação de idéias que vem sendo desenvolvida no Núcleo de Estudos sobre Representação da Saúde e Doença do Programa de Pós-graduação em Psicologia Social da PUC/SP. Seguindo os passos básicos desta técnica, o discurso foi transposto em sua totalidade para um mapa, respeitando a ordem da fala original, sendo os conteúdos alocados às colunas relativas às diferentes dimensões da representação: o conteúdo cognitivo, as práticas relatadas e o afeto emergente. Este mapeamento inicial das associações feitas foi então sintetizado em um diagrama de forma a ilustrar a construção representacional, como será demonstrado a seguir.

Na impossibilidade de apresentar os resultados referentes a todos os sujeitos e às três etapas da análise (representações do médico, representações dos pacientes e relação médico-paciente) escolhemos focalizar o discurso do médico pois é este que melhor permite ilustrar o jogo de saibras resultante da presença simultânea de permanências e diversidades no canpo representacional.

A entrevista com o medico foi analisada buscando compreender: o que é a hipertensão; quem é o hipertenso; quais as bases de sustentação da prática clinica e que afeto é investido na interação cem os pacientes hipertensos. Nesta análise, procurou-se entender o contexto a partir de dois eixos. Primeiramente, tomando com o referencia a Medicina enquanto grupo de pertença, e procurando aí os conteúdos identificatários a partir da cemparação entre a perspectiva da Medicina no tratamento da hipertensão e os ajustes necessários ao transpor a teoria para a prática do consultório. Isto nos possibilitou entender o tempo vivido.

A seguir, localizamos este discurso no contexto da tempo lcngo a partir de uma análise retrospectiva das teorias médicas sebre a hipertensão essencial utilizando para isso os editoriais do The Lancet e do Journal of the American Medical Association (JAMA), a partir dos primeiros números existentes na biblioteca da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Ou seja, a partir de 1899 para o The Lancet, e de 1912 para o JAMA. Escolhemos estes dois periódicos por serem eles os mais antigos na área da Medicina; e escolhemos trabalhar com os editoriais por expressarem estes a visão oficial do corpo editorial das revistas. A primeira menção à hipertensão essencial encontrada data de 1912, no caso do JAMA, e de 1929, no caso do The Lancet.

 

RESULTADOS

Os resultados serão aqui apresentados de modo a possibilitar fazer o contraponto entre os conteúdos históricos - as ressonâncias do passado - e o discurso do médico sobre sua prática marcado pela diversidade resultante dos modos particulares de enfrentamento do cotidiano da clínica médica. Dividimos esta análise em três sub-tópicos: as ressonâncias do passado, as práticas médicas comuns no tratamento da hipertensão e as soluções emergentes no cotidiano da clínica.

1. AS RESSONÂNCIAS DO PASSADO

Como pode ser visto na Figura 1, a representação de hipertensão deste médico está centrada na idéia de doença; mas uma doença sui generis que não tem causas bem delineadas, nem senpre produz sintomas reconhecíveis e depende da boa vontade do paciente para que possa ser adequadamente controlada. Como diz nosso informante,

 

 

"é doença porqte ela represetava uma alteração do normal, dos padrões normais da fisiologia e que acaba levando a prejuízos para o paciente a médio prazo. Então não sei se é uma doença ou um problema. Um problema que ele precisa se conscientizar e procurar resolver né, porque senão ele vai ter prejuízos, vai trazer prejuízos para ele".

De fato, a leitura dos editais indica que a perspectiva da doença tende a ser substituída pela noção de risco - o problema na citação acima - pois, como foi afirmado no editorial do J AMA de 19 de abril de 1985 (Hypertension: Some Unanswered Questions), os hipertensos "não são doentes no sentido usual da palavra".

Mas, não há dúvida de que, para este médico, a hipertensão é um problema sério de saúde pública tanto por sua incidência na população, quanto pelos padrões epidemiológicos de mortalidade e morbidade a ela associados. Estas afirmações do médico vêm corroboradas por referências ao estudo epidemiológico clássico nesta área, o estudo longitudinal de Framingham realizado na década de 60 (Framingham et al, 1978). Mas, o contraponto essencial é sempre o desconhecimento das causas da hipertensão, discurso este que reflete o cenário que emerge da análise dos editoriais que ao longo do tempo oscilam entre a esperança de estar próximo da explicação causai orgânica e o reconhecimento da heterogeneidade dos mecanismos causais (Etiology of Essential Hypertension, JAMA, 1947; Progress in Essential Hypertension, The Lancet, 1979;Hypertension: Some Unanszvered Questions, AMA, 1985).

Curiosamente, os aspectos psicossomáticos estão presentes bastante precocemente na explicação da etiologia da hipertensão, sendo que, já em 1919, Moschowitz se referia à relação entre personalidade e hipertensão. A hipertensão foi, ainda, o tópico escolhido para discussão por ocasião do lançamento da revista de Medicina Psicossomática, em 1939. Mas estes são mecanismos que sempre tiveram um estatuto problemático na Medicina, seja pela natureza da explicação, seja pela dificuldade de sua incorporação plena na prática clínica. Como pode ser visto na Figura 1, os dois eixos explorados na psicossomática estão fortemente presentes nas construções da hipertensão apresentadas pelo nosso médico: a personalidade e as causas associadas ao meio ambiente, especialmente o stress da vida urbana.

Vale apontar, ainda, na análise da Figura 1, para a associação entre os fatores individuais e a predisposição familiar, ilustrada no discurso do médico pela menção à incidência da hipertenção entre os negros. Esta associação é especialmente interessante porque esta questão constitui excelente exemplo da complexidade dos mecanismos da hipertensão, não só porque tudo indica que a hipertensão em indivíduos de raça negra obedece a diferentes mecanismos, como também porque há evidência de que esta associação é perpassada por fatores sócio-econômicos, sendo mais intensa nas classes sociais privilegiadas (Kag et al, 1991).

A Figura 1, centrada na representação de hipertensão e de hipertenso tem, evidentemente, um viés cognitivista. Permite mostrar como teorias médicas datadas alimentam representações atuais numa combinação sui generis de conteúdosque irão embasar a forma específica com que um médico em particular lida com o cotidiano da clínica. Permitirão entender, por exemplo, a opção por uma prática mais centrada no paciente, opção esta que tem por substrato o refrão repetido inúmeras vezes na entrevista de que "a Medicina sabe tratar a hipertensão mas não lhe conhece as causas". As representações sociais são estruturas cognitivo-afetivas e é ao trazer a prática clínica para este cenário que o elemento afetivo começara a emergir.

2. "SABEMOS MUITO COMO TRATAR MAS O OVE A OENTE NÃO SABE É DAR ATENÇÃO À PARTE DO AMBIENTE": OS DILEMAS DA MEDICINA

A Figura 2 é uma síntese do discurso relativo à prática da Medicina no campo da hipertensão. Há dois eixos principais no discurso de nosso médico: de um lado, abundam medicamentos para reduzir a pressão, de outro lado, a Medicina não sabe daar atenção ao paciente.

 

 

O tratamento, até a década de 50, esteve centrado principalmente nas intervenções cirúrgicas e na dieta. De acordo com Moser (1986), alguns fámacos já eram utilizados, como o Veratum nos anos trinta e os thyocianatos nos anos 40. Mas, face à alta toxicidade destes medicamentos, a opção principal estava na interveção cirúrgica - as adrenalectomias e simpatectomias - e nas múltiplas formas de dieta, como a de restrição de sal, introduzida por Ambard em 1904, e a famosa dieta de arroz introduzida por Kempner em 1944. A partir da década de 50, entretanto, a indústria farmacêutica passou a investir pesadamente na hipertensão e a descoberta dos diuréticos e vasodilatadores na década de 50 e depois dos diferentes tipos de bloqueadores representaram uma verdadeira revolução para o tratamento da hipertensão. Como diz o nosso médico:

"Existe umas coisas interessantes na medicina. Muitas vezes apesar de não se saber a causa profundamente o tratamento é bem conhecido e até não é difícil na maioria dos pacientes. Então a gente tem até um ditado médico que é muito usado: 'erre o diagnóstico mas acerte a conduta'. Até existe este tipo de coisa porque no fundo, o que o paciente precisaria é a conduta. Mas é claro que se a gente puder esclarecê-lo o mais possível ele vai colaborar com a conduta".

Assim, no afã de resolver o problema, muitos médicos focalizam a conduta - os procedimentos clínicos propriamente ditos - e esquecem o paciente. Alis, Page, em seu histórico sobre os novos medicamentos introduzidos a partir da década de 50, relata que "no início os efeitos colaterais eram assustadores, mas não havia nenhuma legislação ameaçadora no que diz respeito ao uso de nossos pacientes para avaliar os efeitos do tratamento" (1976, p.810). Ou seja, os pacientes eram utilizados como cobaias. Foi apenas na década de 60 que começaram a ser realizados estudos clínicos para avaliar o efeito do tratamento, e somente nos anos 80 encontramos referência à qualidade de vida nos editoriais pesquisados.

A mudança de atitude face aos efeitos colaterais do tratamento foi provavelmente fruto das transformações ocorridas no código de ética médica que, como sabemos, responde às transformações ocorridas nas ideologias sobre a cidadania. Mas, é possível que a pouca atenção dada à perspectiva do paciente seja também sintomática da dificuldade implícita dos médicos de se relacionarem com seus pacientes. Como diz o médico por nós entrevistado, "o paciente muitas vezes tá recebendo já três ou quatro remédios e ninguém conversou com ele".

O que mais chama atenção na Figura 2 é a contraposição entre a Medicina no caso geral e as soluções particulares encontradas a partir da experiência clínica, marcada no discurso pelo refrão: " eu não". Isto nos leva a examinar a Figura 3 onde a ênfase é na criatividade das soluções particulares.encontradas no cotidiano para dar conta das contradições percebidas na Medicina aprendida na Escola. É nesta tarefa de resolver no cotidiano os impasses históricos do tratamento da hipertensão que o discurso passa a ser marcado pela diferença: "eu não, eu faço de forma diversa". Mas, igualmente, é neste afã de construir a diferença que o afeto emerge com maior força.

 

 

3. CRIANDO SOLUÇÕES, GERANDO CONFLITOS

A Figura 3, dando continuidade à Figura 2 está organizada nos dois eixos relativos às dimensões das práticas correntes no tratamento da Hipertensão: "eu" adoto a conduta correta na prescrição de medicamentos, e "eu" procuro trabalhar a dimensão psico-social.

Adotar a conduta correta implica, segundo as associações presentes no discurso, controlar os efeitos colaterais assim como em adequar a prescrição às necessidades econômicas dos pacientes, ambos fatores percebidos como dificultadores da aderência ao tratamento. Vale pontuar aqui que a preocupação com os efeitos colaterais do tratamento, como já foi apontado anteriormente, é fenômeno recente. Os estudos clínicos para avaliar os efeitos do tratamento datam da década de 60 e a perspectiva do paciente, marcada pelos estudos sobre os efeitos do rotulamento, só se faz presente na década de 70 com a publicação dos resultados de uma pesquisa canadense sobre trabalhadores de uma indústria de aço (Gibson et al, 1972).

O tratamento em si, portanto, surge como mais um fator complicador da clínica, não só pelas complexas interações entre fármacos e as condições orgânicas do paciente como também pela presença historicamente marcante dos fatores associados à personalidade e ao estilo de vida. É esta dimensão psico-social que emerge mais fortemente no discurso do nosso médico sobre a prática clínica. Ou seja, a opção particular neste caso não foi o caminho da ética, evidenciado no discurso dos efeitos colaterais ou do rotulamento, e sim a retórica da relação médico-paciente enquanto relação terapêutica. Esta relação, seguindo a lógica da associação de idéias do discurso do médico, se dá numa dupla perspectiva: criar um vínculo que possibilite a busca de informações e conscientizar o paciente para assegurar sua cooperação.

Criar o vínculo implica estabelecer uma relação de empatia para que o paciente possa desabafar, conversar de coisas íntimas e assim, supostamente, revelar a trama causal de sua hipertensão. Deixar, enfim, emergirem as causas últimas da ansiedade e do stress, elementos intrínsecos da teoria com a qual este médico funciona. É preciso, enfim:

"...primeiro criar um vínculo com eles. Nem todo paciente a gente consegue isso porque depende da empatia e tal mas a gente sempre tenta, né. E se for criado o vínculo é procurar no poucos e se abra e e vá desabafando alguns aspectos. Se a gente sente que o problema é estrutural. é mais sério, de personalidade, então ele precisaria de um tratamento mais prolongado, psicoterapico."

Desabafar passa ainda por uma teoria implícita sobre gênero. Por exemplo, o stress é componente fundamental da teoria que se esboça, pois todos os pacientes "são pessoas com muito stress, pessoas que não conseguem lidar com isto" Mas o stress é diferente para homens e para mulheres estando, no caso das mulheres, associado com a esfera sexual Diz ele:

"Mas a gente vê muito às vezes ê problema na esfera sexual né. Muitas pacientes, principalmente isto com mulher. Não sei se é, mas eu vejo com mulher, né."

Embora considerado ingrediente essencial do tratamento da hipertensão, o vínculo é tarefa difícil pois se gera interesse gera também o desafio. Ou seja,

"O hipertenso é um paciente difícil É sempre um desafio; cada doente vai ter sua reação e os graves, os mais difíceis de abaixar, às vezes até, se a gente não tem um bom vínculo, ele começa a achar que você não está resolvendo o problema, porque tá sendo difícil baixar a pressão dele, nê (...) E aí é que vem o problema: eles procurarem os métodos alternativos que infelizmente aí tem muito, muito charlatão..."

A boa relação médico-paciente implica, também em conscientizar; explicar a situação de modo a assegurar a colaboração. Assim,

"A única forma de conseguir a colaboração, no meu ponto de vista, é sempre explicar muito bem o que é a doença, até em esquemas, em comparar com alguma coisa que ele conheça. Até muitas vezes a gente fala dos encanamentos para que ele sinta que a pressão da água seria igual à pressão do sangue (...)a gente tenta atemorizá-los de uma forma dosada mas precisa, eu acho necessário, dos riscos que estão por detrás disto, Então, de que está vivendo uma vida normal, pode ficar paralítico, pode ter um enfarto. Eles se assustam um pouco mas eu, tem que haver este lado, dosado, sem ser um terror para o paciente mas mostrando os riscoss e as conseqüências do problema".

Enfim atemoriza-los de forma a colaborar com o tratamento que, como já foi visto, implica não só controlar a pressão com medicamentos como também em alterar o modo de vida. Pois, segundo nosso médico,

"é um tratamento que depende muito da colaboração do paciente, como todo o tratamento, mas esse em particular depende muito porque ele tem que se conscientizar mesmo: tem que tomar uma dieta que ele não gosta porque tira um pouco o sal; precisa tomar remédios que às vezes ele estava se sentindo bem e eu vou com o remédio fazê-lo provisoriamente pior, ele se sentefraco, cai a pressão. Então aí é que vem a dificuldade. Na hipertensão isso é tremendo."

 

CONCLUSÃO

Concluindo, procuramos demonstrar, através da análise do discurso de um médico clínico geral, que as construções das teorias de senso comum - e estamos considerando aqui que grande parte da prática médica é feita a partir de reconstruções funcionais de conteúdos científicos - incorporam elementos contextuais que, quando o objetivo é entender o processo de elaboração das representações, precisam ser trabalhados a partir de uma perspectiva de múltiplos tempos de modo a englobar aspectos históricos e interacionais.

Tal empreitada, obviamente, não procurou apenas demonstrar um procedimento de análise marcado pela interdisciplinaridade. Procurou, antes de mais nada, ilustrar a riqueza de uma perspectiva teórica que, partindo dos postulados epistemológicos do construcionismo, permite uma compreensão mais globalizante das representações sociais sem cair no extremo empobrecedor das análises estruturalistas - que tendem a desvelar permanências - e nem no extremo oposto da análise de conversação que não consegue superar o "aqui-e-agora" da interação.

 

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(1) Esta pesquisa contou com a colaboração de Silvia Salvan, bolsista de Iniciação Científica, PUC/CNPq.
(2) Spink, M.J. (1993b) O contexto como pretexto. Paper apresentado no XXIV Congresso Interamericano de Psicologia, Santiago, Chile, 4 a 9 de julho de 1993.