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Temas em Psicologia

versão impressa ISSN 1413-389X

Temas psicol. vol.2 no.2 Ribeirão Preto ago. 1994

 

SAÚDE

 

O núcleo figurativo das representações de saúde e doença

 

 

Clélia Maria Nascimento Schulze

Universidade Federal de Santa Catarina

 

 

INTRODUÇÃO

O presente trabalho visa desvendar o núcleo figurativo das representações de saúde e doença por parte de grupos profissionais que têm uma preocupação central com questões de saúde.

Deve-se levar em conta o caráter exploratório do trabalho uma vez que não se buscou uma representatividade dos sujeitos nos grupos a que pertenciam. Muitos dos sujeitos foram escolhidos na comunidade universitária tendo a conveniência do acesso a eles como critério de escolha. Talvez o ponto mais forte do estudo seja o de uma nova proposta metodológica para se ter acesso ao núcleo figurativo representacional.

A Teoria de Representações Sociais (Moscovici, 1978,1981) pode ser considerada como particularmente útil no diagnóstico psicossocial voltado para problemas da área da saúde. Ela permite que se chegue ao conjunto central de cognições e representações de objetos sociais relevantes que facilitam a implementação de programas de saúde. Permite também que se conheçam as necessidades e interpretações de pacientes em relação à sua doença, sua condição, antes que se lhes dê um diagnóstico. Permite, além disso, que se confrontem diferentes representações em relação a um mesmo objeto social, por parte de diferentes grupos sociais. Assim, a compreensão das representações de saúde e doença por parte de grupos-alvo e outros relevantes não só é importante para que o profissional de saúde possa promover programas de forma eficaz, mas pode trazer solução a conflitos calcados em perspectivas cognitivas grupais antagônicas (por exemplo: numa equipe multi ou interdisciplinar a perspectiva médica versus a perspectiva psicológica).

Apesar da provisoriedade da Teoria de Representações Sociais e da necessidade de uma revisão do seu status enquanto teoria, pode ser considerada como importante para que se compreenda o movimento da construção do conhecimento numa perspectiva psicossocial. Assim, a proposta teórica de Moscovici pode ser considerada como uma psicossociologia do conhecimento.

 

REPRESENTAÇÕES SOCIAIS DE SAÚDE E DOENÇA

Vivemos numa época em que a saúde das populações se encontra ameaçada por vários agentes. Um desses agentes pode ser a incompetência no gerenciamento das questões de saúde, por parte das administradoras das instituições sociais responsáveis. Outro, seria a ausência de um planejamento estratégico mais global no uso da tecnologia avançada, utilizada no domínio da natureza. Como conseqüência destes problemas, a saúde dos habitantes deste planeta está ameaçada: pela água, pelos alimentos contaminados por produtos químicos tóxicos, pela poluição do ar.

Se, por um, lado doenças nutricionais e infecciosas são a causa de um grande número de mortes, principalmente em países como o nosso, por outro lado os países caracterizados por um grau mais avançado de industrialização e de domínio tecnológico são particularmente marcados pelos altos índices de doenças crônicas e degenerativas que podem ser vistas como doenças da civilização. Também notamos que doenças de cunho psicológico, como as depressões e a esquizofrenia, estão associadas a uma desestruturação do meio social.

A prática da medicina, no decorrer da história, tem sido a resposta aos problemas de saúde.

Segundo Capra (1993), no decorrer da história ocidental, a biologia tem caminhado muito próximo da medicina. Assim, não é surpreendente que os médicos tenham atitudes bastante sedimentadas na concepção mecanicista da vida, que se reflete na sua teoria e prática relativas à saúde e doença. Como resultado, o pensamento médico resultou no modelo biomédico que aborda o corpo como máquina e a doença como um prejuízo à mesma, sendo função do médico reparar os danos causados.

Esta versão de Homem, de saúde e doença, é repassada na academia e não é incomum que os currículos de medicina e de psicologia tragam ênfase seja no biológico ou no psicológico, não abordando o Homem na sua totalidade.

Assim, as duas profissões parecem estar tratando de aspectos diferentes do mesmo Homem. Os médicos ocupam-se do corpo e os psicólogos, da mente. Tendo essa realidade como "pano-de-fundo", há uma tradição de trabalhos voltados (mesmo que não explicitamente) às questões representacionais da saúde e doença.

O trabalho pioneiro de Herzlich (1973) sobre as representações de saúde doença, em duas populações - uma parisiense e outra da província - buscou abordar o fenômeno da comunicação social sobre a doença que é onde, segundo a autora, a experiência individual e os valores sociais se inserem. Ela discute o fato de que quando um indivíduo fala sobre a saúde e a doença, ele também fala sobre a natureza de seus vínculos com o ambiente físico e social, assim como sobre os aspectos da organização social.

Berlinguer (1988) escreve sobre as representações de doença, analisando as várias facetas desta realidade humana, retornando à doença como um objeto do conhecimento e da ação dentro de uma perspectiva de reforma sanitária.

Boltanski (1984), analisa a questão da doença e das práticas sociais, versando sobre: corpo, sexualidade, saúde, medicina, dieta etc. Segundo o autor, as representações da doença originam-se de uma re-interpretação, por parte dos membros das classes populares, de um jargão médico que eles não compreendem.

D'Houtaud (1974) escolhe estudar as representações de saúde entre indivíduos de diferentes classes sociais e categorias psicossociais, chegando a caracterizar diferentes modelos de saúde.

Nós também temos utilizado a teoria de Representações Sociais para diagnosticar as representações de pacientes portadores de câncer, em relação não apenas ao binômio saúde-doença, mas também a questões como a morte e o corpo. (Nascimento-Schulze, 1993).

Um aspecto de interesse central do presente estudo é o do núcleo figurativo das representações sociais de saúde e doença.

 

NÚCLEO FIGURATIVO OU NÚCLEO CENTRAL

Moscovici (1981), ao considerar o processo de objetificação - que é central para a compreensão da origem de uma representação social - afirma que objetif icar significa descobrir o aspecto icônico de uma idéia mal definida, ou seja, significa combinar o conceito com a imagem. Segue argumentando que, em cada sociedade, um grande conjunto de palavras circula em torno de um objeto específico e que somos obrigados a associá-lo com um significado concreto. Todavia, apenas uma fração das palavras é tomada para chegar à representação e este pequeno conjunto forma uma combinação. Este conjunto de palavras está incorporado no que Moscovici cognominou de núcleo figurativo, que pode ser considerado como uma imagem estrutural que reproduz de forma visível um arcabouço conceptual. O autor cita como exemplo o modelo popular de aparato psíquico que ele extraiu de seu estudo sobre as representações sociais da psicanálise (vide figura 1).

 

 

Nesse modelo - onde a libido é omitida - a imagem do confessionário emerge enquanto uma associação figurativa.

O modelo de saúde-doença citado por Herzlich é um outro exemplo do conjunto de palavras representativo do núcleo figurativo (vide figura 2).

 

 

Abric (1988) desenvolveu estudos sobre a estrutura interna e a dinâmica das representações que lhe permitiram chegar a uma teoria do núcleo central. A hipótese é a de que toda representação está organizada em torno de um núcleo central que determina tanto a significação como a organização da mesma. Esse núcleo estruturante tem uma função geradora e uma função organizadora.

O fenômeno de precipitação das idéias e representações em torno de um núcleo central é também explorado por Morin, segundo Dortier (1993), no seu quarto volume sobre o Método, onde Morin lança as bases para uma ciência das idéias, ou Noologia, e explora a maneira pela qual elas se organizam em sistemas mais ou menos coerentes. Assim, qualquer sistema de idéias, sejam as ciências, as ideologias políticas ou as teorias filosóficas, tendem a se organizar em sistemas que possuem uma configuração análoga e que se desenvolvem em torno de um núcleo central ou paradigma.

No presente trabalho nos interessa desvendar o núcleo figurativo das representações compartilhadas por determinados grupos sociais em torno do binômio saúde-doença. Pressupomos que tal binômio seja catalisador de idéias, explicações e práticas sociais que compõem a realidade cotidiana do homem comum.

 

METODOLOGIA

Em uma primeira etapa foram realizadas entrevistas semi-dirigidas com questões relativas a saúde e doença, buscando chegar às percepções dos entrevistados quanto a definições, atribuições de causas e descrições comportamentais. As entrevistas foram realizadas com médicos, estudantes, donas de casa, profissionais da área das Ciências Humanas e funcionários/servidores da Universidade.

As entrevistas foram transcritas e delas foram extraídas afirmações referentes a saúde - doença, que compuseram uma listagem de aproximadamente 200 frases. Estas frases foram examinadas por alguns especialistas na área, com o intuito de evitar frases redundantes ou ambíguas. Somente foram mantidas frases redundantes quando, apesar do conteúdo semelhante, expressavam níveis de abstração bastante distintos.

O material final foi composto de 52 frases relativas à saúde e 67 relativas à doença.

As 119 frases foram submetidas a uma análise de conteúdo para que se conhecessem as dimensões subjacentes à realização da tarefa posterior.

As frases referiam-se: (1) à aparência do indivíduo saudável e doente, (ii) aos comportamentos dos mesmos e (iii) às causas de saúde e doença que envolviam uma dimensão de atribuição externa e interna

PROCEDIMENTO DA COLETA

Os sujeitos de ambos os sexos foram agrupados seguindo sua categoria profissional. Abandonamos temporariamente a categoria "donas-de-casa" por contarmos com a participação de sujeitos/mulheres que além de cumprirem as tarefas domésticas e gerirem questões como a saúde da família, também desempenhavam tarefas profissionais diversas. Assim, julgamos que a combinação de variáveis (profissão x responsabilidade doméstica) poderia nos levar a resultados dúbios.

Optamos pelas categorias profissionais: médicos; estudantes de medicina; psicólogos; estudantes de psicologia e funcionários/servidores universitários com nível de escolarização médio e baixo.

A aplicação do material foi sempre realizada de forma individual.

Em uma primeira etapa, o sujeito lia a lista de frases relativas à saúde (ou doença). Metade dos sujeitos iniciaram a tarefa com frases sobre saúde e a outra metade, com frases sobre doença. A seguir, o sujeito deveria escolher as frases mais representativas de sua forma de pensar a saúde e a doença. Logo que terminassem a escolha, lhes eram passados cartões que continham as mesmas frases por ele escolhidas.

A segunda etapa do procedimento envolvia uma ordenação dos itens escolhidos e escritos nos cartões. Pedia-se ao sujeito que ordenasse os cartões segundo a importância das frases.

Todos os sujeitos liam todas as frases sobre saúde e sobre doença, e faziam escolhas, ordenações e conglomerados com o material por eles eleito.

O estudo contou com 70 sujeitos (14 psicólogos, 16 estudantes de psicologia, 10 médicos, 15 estudantes de medicina e 15 servidores).

Em seguida à realização dos agrupamentos, perguntava-se a cada sujeito o que o levara a agrupar os cartões daquela forma, sendo que todas as respostas eram anotadas.

 

RESULTADOS

Os dados classificatórios sugerem que os médicos e estudantes de medicina enfatizam a dimensão biológica, na consideração da doença, de forma mais acentuada que os psicólogos e estudantes de psicologia. Os médicos e estudantes de medicina priorizam questões como o desequilíbrio orgânico na condição do doente e a natureza biológica do indivíduo como variável central na determinação da doença. Todavia, os estudantes de medicina, ao classificarem os itens sobre saúde, enfatizam o estado emocional e psicológico do indivíduo, preferindo frases que descrevem o indivíduo saudável a outras. Também consideram bastante o fator preventivo.

Os psicólogos e estudantes de psicologia privilegiam frases que marcam atribuições de cunho externo, como "condições ambientais desfavoráveis" ou "fatores sociais adversos" ao considerar a doença, e dão maior ênfase a descrições de indivíduos saudáveis.

Ao examinar o material classificatório dos quatro grupos, saúde parece estar mais vinculada a variáveis psicológicas e a atribuições de responsabilidade individual enquanto que a doença emerge associada a dados de natureza biológica (e herdada) principalmente por parte dos médicos e estudantes, e a fatores sociais e ambientais negativos, no que tange ao grupo de psicólogos.

O grupo de funcionários/servidores utilizaram estratégias de escolhas bastante diversificadas, o que faz com que os dados emerjam com um padrão bastante heterogêneo. Apresentaram dificuldades na tarefa em que se pedia que agrupassem os cartões e quando faziam os agrupamentos tinham dificuldades em nomeá-los, pedindo muitas vezes que o pesquisador lhes fornecesse respostas para que pudessem escolhê-las. Apresentaram preferência em relação às frases com conteúdo mais concreto. Diferentemente dos outros grupos, revelaram uma identificação de suas experiências pessoais em relação ao material-estímulo. Identificaram o trabalho como sendo uma das causas de doenças assim como um indicador de saúde, escolhendo frases como "a pessoa tem vontade de trabalhar".

Sugerimos que próximos estudos explorem a questão das diferenças sócioeducacionais relacionadas a diferentes representações de saúde e doença. Também que seja considerado o grupo de "donas-de-casa" como uma fonte importante de dados sobre práticas sociais planejadas para a manutenção da saúde. Sugerimos também que técnicas de análise de dados que buscam uma estruturação da representação em torno de idéias-chave - como a utilizada por Flament (1986) sejam incorporadas à análise atual.

 

Referências Bibliográficas

Abric, J. C. (1988) L'étude expérimentale des reprêsentations sociales. Em, D. Jodelet (Org.), Les Reprêsentations Sociales. Paris: PUF.         [ Links ]

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