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Temas em Psicologia

Print version ISSN 1413-389X

Temas psicol. vol.2 no.3 Ribeirão Preto Dec. 1994

 

O que é "social" para a psicologia?

 

 

Ana M. A. Carvalho1

Universidade de São Paulo

 

 

Este trabalho propõe uma reflexão sobre o uso do conceito de social na Psicologia, através de dois recursos: um exercício metodológico sobre dados de observação de crianças em grupo, no sentido de experimentar recortes do fenômeno social humano que respeitem suas especificidades, mas que sejam adequados a uma abordagem psicológica; e uma breve análise comparativa do significado de "social" a que esse exercício conduz e os sentidos com que aparece em Pedrosa (1993)(2), Santos (1993)(3) e Meira (1993(4) - mais especificamente nos conceitos de interação social, jogos sociais, significados sócioculturais, papéis sociais e representação social.

A necessidade desta reflexão se colocou, em meu próprio trabalho, em decorrência da adoção de uma perspectiva etológica no estudo da ontogênese do comportamento social na criança. Ao se olhar para o ser humano com olhos de etólogo, é forçoso enfrentar a questão das diferenças entre o homem e os outros animais, e se perguntar se elas introduzem limitações relevantes para a utilidade desse tipo de enfoque. O homem, como muito animais, é uma espécie social. Mas será o social humano da mesma natureza que o dos outros animais sociais? Terão os conceitos de comportamento social, sociabilidade, sociedade, o mesmo significado quando aplicados a seres humanos e a outros animais? Sustento aqui, como em outras oportunidades (Carvalho, 1989a, b) e com outros autores (por exemplo, Morin, 1979; Hinde, 1987), que a história humana criou uma forma de vida social e de sociedade com características emergentes em relação à vida social animal, e cuja compreensão requer, por isso, o recurso a outros níveis de análise, mas que os fenômenos básicos da sociabilidade humana, tanto quanto os de qualquer outra espécie, foram moldados pela seleção natural. Existe, portanto, um sentido de "social" que é basicamente o mesmo para o homem e os outros animais, e é necessário identificá-lo claramente para que seja possível uma abordagem coerente com o nível de análise psicológico. Com bastante frequência, a Psicologia utiliza o conceito de "social" sem reconhecer e sem especificar a que nível de realidade está se referindo: expressões como "relações sociais", ou "fatores sociais", por exemplo, não são auto-explicativas quanto ao nível de realidade a que se referem - tanto podem designar fenômenos de ordem suprapsicológica, como relações de produção, quanto um fenômeno básico da sociabilidade humana, como o apego mãe filho.

Olhar para o comportamento de uma perspectiva comparativa pode contribuir para diferenciar e especificar esses sentidos possíveis do conceito de social, porque, ao mesmo tempo, ressalta especificidades e diferenças, e expõe semelhanças (Hinde, 1987). A vida social, entendida como alguma forma ou grau de regulação mútua entre organismos da mesma espécie, existe na natureza sob muitas formas diferentes (Lorenz, 1973). Mariposas que se reúnem (e até se tocam) em torno de lâmpada não constituem uma sociedade, nem mesmo um grupo social. Superficialmente semelhante, mas essencialmente diferente, é o caso de um cardume de peixinhos, onde a proximidade do co-específico é um fator regulador - embora o coespecífico ainda não seja um "indivíduo". Nesta forma de vida social, que Lorenz chama de "bandos anônimos", não há lugar para a individualidade: qualquer membro do grupo tem o mesmo poder de atração; não há líderes nem rejeitados; é talvez a única forma de vida social em que o amor cristão e a perfeita igualdade são naturalmente possíveis... Na evolução das formas de vida social, o surgimento do fenômeno da individualidade cria novas formas de regulação: cria lugar para o vínculo, para o amor e para o ódio, com seus custos e benefícios, mas apesar da enorme complexificação e das diferenças que esta novidade introduz, ainda estamos no âmbito dos fenômenos produzidos pela seleção natural.

O conceito de social definido pela ocorrência de regulação entre os membros de uma espécie é suficientemente amplo e suficientemente preciso para servir de ponto de partida deste exercício. A sociabilidade fica entendida, a partir dela, como a propriedade que têm certos organismos de regulagem e serem regulados pelos seus co-específicos. Como outras propriedades dos organismos, a sociabilidade tem características e funções específicas da espécie, e é parte da sua organização física e psicológica.

Mas há mais neste conceito de social. A regulação mútua entre membros de uma espécie, cria, mesmo nos animais, fenômenos que estão, em certo sentido, fora dos organismos individuais. A descrição do comportamento e das propriedades de todos os indivíduos de um grupo social não necessariamente permite compreender o grupo, e pode ser necessário recorrer a conceitos supra-individuais, relativos a relações entre os organismos - para dar exemplos simples, conceitos como distância interpessoal ou hierarquia de dominância. Nesse sentido, Carvalho et al (em prep.) propõem a conceituação do social como "o espaço de informação construído pelos seres que têm propriedade de sociabilidade". Esta conceituação ressalta o fato de que o social não está apenas no organismo individual, embora seja construído a partir de suas propriedades.

Até que ponto continuamos, tanto no âmbito da Psicologia, como no significado de "social" que é comum ao homem e a outros animais sociais. Quando a construção do "espaço de informação" passa a ser afetada por outros fatores além das propriedades dos organismos individuais, por uma dinâmica criada por propriedades do próprio espaço de informação, emerge um nível de fenômeno "social" que não tem contrapartida no reino animal; que Hinde (1987) chama de estrutura sócio-cultural, e para o qual o nível de explicação da Psicologia deixa de ser suficiente - embora, evidentemente, sua interpretação deva ser compatível com a explicação psicológica, uma vez que a emergência não implica a substituição ou desaparecimento dos outros níveis do fenômeno "social". Parece-me que a falta de clareza da literatura psicológica sobre os vários significados do conceito de social, e sobre as possibilidades de recorte dos fenômenos sociais para seu estudo, subjaz ao fato de a Psicologia frequentemente abordar o social, ou apenas como uma propriedade dos indivíduos (reduzindo, em última instância, seu foco ao comportamento individual), ou como algo inteiramente externo às propriedades dos indivíduos.

Um exemplo do primeiro desses casos pode ser encontrado no trabalho de Howes (1987). Orientada por uma perspectiva de desenvolvimento de competência social, Howes observou crianças de 1 a 6 anos, transversal e longitudinalmente, descrevendo e analisando cuidadosamente a ocorrência e as modalidades de interação social, via progressão em termos de desenvolvimento, a ocorrência e a evolução de relações estáveis, diferenças individuais e indicadores de competência social. Seu recorte de análise, como ocorre tipicamente na literatura psicológica, é o nível do comportamento individual: a presença de (certas) competências sociais no indivíduo determina o estabelecimento de amizades - como implica, por exemplo, esta conclusão:

"Most children who lost fríends through
separation replaced them with other
reciprocal fríends. Thisfinding suggests
that children vnthskills toform one

Curiosamente, o nível de análise permanece o mesmo quando Howes verifica que

"Children who maintained a large proportion
of their friendships appeared to be more
socially competent than children who lost their
friends through separation. This
suggests that, in these young children,
some social skills may be particular
to dyadic relationships. In the absence
of the relationship, the child may appear
less socially skilled" (p. 67).

Ou seja, embora esbarre na idéia de que o dado esteja indicando uma propriedade da relação, e não do indivíduo, a interpretação permanece no nivel da análise individual: já que a competencia está na criança, esta apenas parece menos competente.

Um exemplo do segundo caso - o social visto como externo ao individuo - pode ser encontrado no discurso sóciointeracionista. O sóciointeracionismo representa, a meu ver, um esforço consistente e bem sucedido no sentido de articular as duas "ordens" de fenômenos sociais humanos e propor uma abordagem num nível adequado à Psicologia. Como aponta Valsiner (1988), os fenômenos sócioculturais e históricos frequentemente entram - ou "pseudo-entram" - na análise psicológica como variáveis genéricas (do tipo classe social, religião, etnia, etc), sem que se aborde o processo através do qual se dão suas relações com o comportamento dos indivíduos. A grande contribuição do sóciointeracionismo é justamente propor a análise, o nível psicológico, do processo concreto pelo qual uma criança se constitui como um ser humano particular, membro de um grupo sóciocultural particular. Apesar disso, seu discurso ainda se debate com a oposição entre social e individual, porque não diferencia claramente os sentidos com que utiliza a palavra "social" - ora usada em um sentido muito amplo, de contexto cultural, ideológico etc, para indicar a experiência social concreta, ou seja, as situações em que indivíduos concretos se regulam mutuamente, com uma certa implicação de que esses dois níveis de "fenômenos sociais" são um mesmo. A dicotomia social-individual decorre desta imprecisão, e da ênfase no significado de social como contexto sóciohistórico, que é obviamente uma realidade suprapsicológica, como reconhece Valsiner (1988), ao distinguir duas facetas da "cultura": a "cultura coletiva", que seria a contrapartida psicológica da primeira, e seria resultado da internalização de experiências oferecidas pelas transações sociais.

Ora, o ponto de corte estabelecido por essa distinção, a meu ver, continua opondo o social ao individual: de um lado estã o "suprapessoal", o "coletivamente" ou "interpressoalmente compartilhado", de outro, o indivíduo, definido pelos limites de sua pele; ao passo que a distinção necessária e útil para a Psicologia é a que se refere ao supra psicológico - na terminologia de Hinde (1987), a estrutura sóciocultural. Este significado de social se opõe, não ao indivíduo, mas à ordem de fenômenos sociais, que está no âmbito da Psicologia: a díade, o grupo, também são sistemas psicológicos, embora sejam "suprapessoais" ou "supraindividuais" - tanto no homem como em outros animais sociais. Para dar um exemplo simples, seria impossível pensar na evolução do apego mãe-filho se não se concebesse a díade mãe-filho como um sistema, uma unidade biopsicológica.

Se estas colocações são pertinentes, é preciso enfrentar a questão de como tratar o social em uma abordagem psicológica, sem reduzí-lo ao nível da análise individual, mas também sem depender de constructos referentes a uma realidade assumida como suprapsicológica, o que seria um primeiro passo no sentido de diferenciar os usos do conceito de "social". O exercício metodológico que se segue é uma tentativa nessa direção, e consiste em perguntar: é um grupo de crianças brincando um grupo social? Por quais critérios se pode considerá-lo assim, se é que se pode? Dois caminhos parecem possíveis para procurar estas respostas: partir dos elementos componentes e chegar à idéia de grupo social a partir das relações entre eles (como em Hinde, 1979,1987) ou tomar o grupo como unidade de análise e investigar suas características. Este último caminho é que será ilustrado aqui.

 

UM GRUPO DE CRIANÇAS BRINCANDO

Entre outubro de 1985, e junho de 1987, acompanhei longitudinalmente, através de uma observação semanal ou quinzenal de cerca de uma hora, registrada em vídeo, um grupo de 15 a 20 crianças de 30 a 72 meses, que frequentavam um centro de recreação situado nas proximidades da cidade de São Paulo. Esta situação de observação tinha algumas características pouco usuais, que devem ser indicadas. Em primeiro lugar, de certa forma são quatro grupos, e não um, porque, a cada semestre, algumas crianças ingressavam, e outras saíam, mantendo-se no entanto, em cada ocasião de alteração, um núcleo constante de 10 a 15 crianças. Em segundo lugar, tratava-se de um grupo de idade heterogêneo, tipicamente com cerca de metade das crianças entre 42 e 54 meses, um quarto delas com 30 a 42 meses, e as restantes com 54 a 72 meses. Dois adultos do sexo feminino (eventualmente auxiliadas por um pajem), suDois adultos do sexo feminino (eventualmente auxiliadas por um pajem), supervisionavam as crianças; ambas eram educadoras experientes e com uma postura educacional centrada na valorização da atividade lúdica espontânea, e na interação livre entre as crianças, mas intervinham minimamente no direcionamento e estruturação das atividades e trocas sociais entre as crianças. Finalmente, o ambiente físico era privilegiado sob vários aspectos: o centro de recreação situava-se em uma chácara com grande disponibilidade de espaço externo, agradavelmente ajardinado, e estruturado em diversos "sub-espaços" definidos por mesinhas de atividades (argila, marcenaria, pintura, "potinhos", peças de madeira); tanque de areia com brinquedos diversos (pás, baldes e outras vasilhas, veículos, etc); tinas e piscininha com água disponível; brinquedos fixos, incluindo duas cabanas, caixotes de madeira e de papelão; externo gramado plano; duas áreas cobertas, ambas organizadas de forma a possibilitar escolha de atividades pelas crianças.

Ao longo dos dois anos, foram realizadas 40 sessões de observação. O procedimento de registro incluía três tipos de amostragem: registros de varredura, registros focais e registros de episódios, sendo que apenas os dados do primeiro tipo serão focalizados aqui. Nos registros de varredura (scanning), todas as crianças eram focalizadas, em sequência casual, durante o tempo mínimo necessário para que se pudesse identificá-las e descrever sua posição e orientação no ambiente, e a atividade que desenvolviam. Duas a cinco tomadas deste tipo, com duração de dois a cinco minutos, eram obtidas por sessão.

Pode-se pensar no grupo, em um primeiro momento, como um conjunto ou sistema de "pontos", identificado perceptualmente. Uma primeira propriedade desse sistema que as observações iniciais sugerem refere-se ao arranjo ou distribuição espacial dos pontos. Os registros de varredura, constituindo como que "instantâneos" do grupo, são adequados para a exploração desta possibilidade.

A figura 1 apresenta seis "desenhos" do grupo, construídos a partir desses "instantâneos", escolhidos entre aqueles obtidos nos dois primeiros meses de coleta que cobriam aproximadamente a mesma área. Os pontos representam as localizações dos membros do grupo, não identificados, e com um mínimo de informação sobre o ambiente físico (apenas as proporções em termos do espaço ocupado são constantes). Esta informação reduzida ao mínimo sugere, no entanto, algumas pistas: em primeiro lugar, este sistema de pontos em cada sub-conjunto, são variáveis, mas a forma de ocupação do espaço parece bastante regular, bem como o tamanho dos sub-conjuntos. Antes de acrescentar mais informação a esta descrição, podemos tentar verificar, de uma forma um pouco mais preci

 

 

A figura 2 a/b apresenta resultados de 40 varreduras quanto ao número de subagrupamentos verificados, e ao número de "pontos" em cada sub-agrupamento (sendo o adulto excluído nos sub-grupos que não o especificam). As varreduras examinadas são as 10 últimas de cada período de observação, ou seja, 2º. semestre de 85, lo. de 86, e lo. de 87.0 critério de sub-grupamento é proximidade espacial das crianças, definida como uma distância em que uma interação verbal ou física é possível sem locomoção dos parceiros; tentou-se evitar a inclusão de proximidades que, embora satisfizessem esse critério, apresentavam indícios de serem acidentais (por exemplo, uma criança passando por outra).

 



 

No conjunto destas 40 amostras, os "instantâneos" apresentados acima parecem se confirmar: raramente o grupo se apresenta,inteiramente aglutinado, ou inteiramente disperso; em vez disso, tende a se subdividir em quatro a cinco subgrupos, tipicamente díades ou sub-grupos de 3-4 membros (respectivamente, 37.8 e 40.0% dos 175 sub-grupos identificados em 40 varreduras). As duas informações contidas nessas figuras são razoavelmente compatíveis: ao longo dos quatro semestres, o "grupo" variou de 18 a 23 membros, dos quais de 8 a 19 estavam presentes nas varreduras examinadas, o que faria esperar uma proporção "número de sub-grupos/tamanho de sub-grupos" próxima da verificada na figura 2.

Supondo-se que esta descrição seja pertinente, seria esta distribuição a expressão de alguma propriedade do grupo enquanto fenômeno social? Por exemplo, poder-se-ia supor que a ocorrência e as características dos sub-grupamentos fossem função do tamanho do grupo. Talvez em um grupo pequeno se pudesse esperar uma aglutinação maior (ou seja, maior probabilidae dos elementos se reunirem em um único subgrupo); ou, de certa forma completamentarmente, em um grupo grande se pudesse esperar maior probabilidade de pontos isolados ou mais esfacelamento do grupo. Note-se que as duas hipóteses podem ser bi-caudais, refletindo diferentes suposições a respeito dos processos subjacentes à organização espacial do grupo - existência de mecanismos de espaçamento interpessoal, ocorrência ou não de atração/repulsão entre determinados componentes do grupo, disponibilidade de elementos aglutináveis etc. Mas antes ainda de examinar essas possibilidades e suas implicações, há uma suposição mais simples a ser considerada: a de que a distribuição reflita, não propriedades do grupo enquanto fenômeno social, e sim propriedades de ambiente físico e das formas de interação dos organismos individuais com este. No limite, se este fosse o caso, poderíamos descartar de imediato as noções de social e sociabilidade neste caso particular.

Sabemos, tanto pela observação cotidiana como por estudos anteriores (por ex., Smith e Connolly, 1975; Campos de Carvalho, 1990), que as características de estrutura e arranjo do ambiente físico afetam a organização espacial e o comportamento dos indivíduos em grupo. No último estudo citado, verificou-se que um certo grau e forma de estruturação do espaço, através da criação de "cantos" em ambiente previamente aberto e homogêneo, modificava a disperção/concentração dos indivíduos, e principalmente a distância entre as crianças e um membro particular do grupo: o adulto. No caso que estamos examinando, poderíamos supor que o número, o tamanho e a localização dos subagrupamentos fossem regulados primariamente, por exemplo, pela localização e tamanho das mesinhas de atividades e outros estruturadores do ambiente. De fato, quando se acopla à figura 1 a informação sobre esses elementos estruturadores (figura 3, na página seguinte) a distribuição de pontos no espaço parece um pouco menos aleatório quanto à localização dos sub-grupos, mas não tão claramente quanto ao seu número e tamanho. Nas 40 varreduras há uma variação de 0 a 10 crianças em torno das mesas e no tanque de areia; de 0 a 5 junto ao balanço de 2 lugares; de 0 a 4 dentro da cabana etc Pode-se pensar, provisoriamente, que a disponibilidade de espaço, e sua organização, permitem e até delimitam, mas não determinam exclusivamente, certas formas de distribuição dos elementos do grupo.

 

 

Voltamos então a examinar a possibilidade de que outros fatores, propriamente sociais, estejam refletidos na distribuição encontrada. A hipótese de que o tamanho do grupo (número de crianças presentes em cada ocasião dada) se relacione com o número e tamanho dos sub-agrupamentos é explorada na figura 4 A/B (ver página 11), através da frequência média de crianças isoladas, e número médio de sub-agrupamentos, no conjunto de 40 varreduras. A frequência média de isolados variou de 0 a 5 crianças, e não se correlaciona com o número de crianças presentes (r de Sperman = -0,20, NS). O número médio de sub-agrupamentos tendeu a aumentar com o número de crianças presentes (r de Spearman = 0,67, < p <01), sugerindo uma certa estabilidade no tamanho dos sub-grupos, o que já foi identificado em outros trabalhos (e.g. Moraes, 1980).

 


 

O ponto que interessa salientar aqui é a natureza dos fatores para os quais esse tipo de resultado orienta a nossa atenção: se a relativa estabilidade de tamanho de subgrupos é urna característica deste grupo; e se isto parece se refletir no fato do número de sub-agrupamentos se mostrar mais relacionado com o número de individuos presentes do que com propriedades do ambiente físico, já podemos falar do nosso "conjunto de pontos", como um grupo social, urna vez que, de alguma forma que ainda não identificamos, a distribuição espacial dos indivíduos é afetada presença/ausência do co-específico. Observe-se, além disso, que "número de indivíduos presentes" é uma propriedade ou característica do grupo, e não de seus membros.

Uma vez definido o grupo como um "grupo social", é possível formular uma série de perguntas sobre a natureza dessa sociabilidade; no caso da medida usada aqui, a primeira pergunta pode ser "o que regula as distâncias entre membros do grupo social?"

A suposição que ocorre mais imediatamente a respeito do mecanismo pelo qual as distâncias entre membros do grupo são socialmente reguladas é alguma forma de atração/repulsão entre os indivíduos. Estritamente, no entanto, ainda não deveríamos estar usando a palavra "indivíduos" para a qual não estamos preparados: a de que a regulação se dá, de alguma forma, por propriedades particulares dos membros do grupo. Para manter a coerência do exercício que vimos desenvolvendo, podemos supor, inicialmente, que a distribuição espacial tenha a ver com fatores relacionados com classes de membros do grupo. Sabemos, por exemplo, que o grupo é composto por adultos e crianças, meninos e meninas, com idades variando entre 30 e 72 meses. Sabemos também que a diferença entre os adultos e as crianças é fascinante identificável mesmo para uma criança pequena (Lewis e Brooks, 1974). Há também indicações na literatura de que crianças discriminam e se comportam diferentemente em relação a outras crianças maiores, menores ou de mesmo tamanho/idade (Carvalho, 1982; Lordelo, 1987; Lordelo e Carvalho, 1989) e de que alguma noção de identidade sexual está presente em crianças bem pequenas (Kohlberg, 1966). Tudo isso permite imaginar que a distribuição espacial do grupo seja regulada por processos de atração/repulsão mediados pela percepção da "classes" de idade/sexo dos membros.

Com base nesses critérios, podemos examinar inicialmente uma classificação baseada na distinção adulto-criança. Seria o adulto um fator de aglutinação neste grupo? Se fosse, deveríamos esperar agrupamentos maiores incluindo o adulto do que em sua ausência. Alternativamente, o adulto poderia ser um "equilibrador" de tamanho de subgrupo, ou seja, aparecer mais frequentemente em díades, com uma única criança, ou com duas, compondo um grupo de três (também um agrupamento típico, segundo os resultados anteriores). Ou ainda, pode ser que o adulto desempenhe funções diferentes para crianças de diferentes "classes".

As duas primeiras suposições são examinadas na Figura 2.c. Há certas dificuldades para a leitura deste tipo de dado, uma vez que a probabilidade dos subgrupamentos de cada tamanho, dado um número total de elementos agrupáveis, não é a mesma. Tentativamente, podemos comparar as distribuições das Figuras 2b e c através da Tábua de Limites de Confiança para Porcentagens (Geigy, 1965): dada uma incidência x de agrupamentos de cada tipo, há participação proporcional do adulto em cada tipo? Os resultados dessa comparação indicam que o adulto se agrupa proporcionalmente mais com criança isolada, compondo díades (44.7% dos agrupamentos que incluem adultos, contra 9.7% de incidência desse tipo de agrupamento na amostra, diferença significativa com p<.01); e agrupa-se significativamente menos com grupos de 3-4 crianças (18.4% dos agrupamentos que incluem adultos, contra 40.0% desse tipo de agrupamento na amostra p<.01); nos outros dois tipos de agrupamentos a participação do adulto não difere da esperada. Esse resultado sugere uma função equilibradora de tamanho de grupo. No entanto, no conjunto, a atração pelo adulto- ou, alternativamente, a atração do adulto por certos tipos de sub-grupamentos - explicam pouco a distribuição espacial do grupo: além de ser pequeno o número de sub-grupamentos que incluem o adulto (38 dos 175), sua participação nos três tipos de sub-grupamentos que não o incluem necessariamente é relativamente equilibrada, ou até abaixo do esperado.

Podemos agora tentar explorar mais a outra classe de membros do grupo, isto é, as crianças, classificadas por idade e sexo. Aqui esbarramos com uma dificuldade: uma vez que o grupo de que vimos falando se modifica em parte do longo dos quatro semestres de registro, não só pela introdução e saída de membros, como pela mudança de idade dos que permanecem, determinando portanto mudanças na sua composição em termos de classes de idade-sexo, torna-se necessário, para realizar esta classificação, passar a tratá-lo como um conjunto de grupos; ao mesmo tempo, a permanência de alguns membros introduz mais uma dimensão potencial para a classificação dos membros: a familiaridade com a situação, seja em termos de ambiente físico ou de grupo social.

Foram definidas duas classes de idade: os "grandes" (maiores de 4 anos no início do período) e os "pequenos" (até 4 anos); escolheu-se a idade de corte de 4 anos, porque, dada a variação etária do grupo, e a idade de ingresso mais comum, esse corte produziu uma distribuição aproximadamente equilibrada de "grandes" e "pequenos" em cada período, com exceção do primeiro (1985), onde predominavam crianças "grandes", por esse motivo, nas análises seguintes são excluídos os dados relativos a esse período, e os três restantes passam a ser designados como períodoss 1 (PI - lo. semestre 1986), 2 (P2 - 2o. semestre de 1986) e 3 (P3 - lo. semestre de 1987). A distribuição de sexos também resultou bastante equilibrada em cada período. Quanto à familiaridade, a cada período as crianças foram classificadas em "novatos" (os que ingressaram no período em questão e "veteranos" (que já frequentavam o grupo no período anterior). A mesma criança será portanto novata em um período e veterana no seguinte, e eventualmente mudará também de classe de idade. Não há nenhum caso de criança "grande novata", entre os pequenos, há um número mais ou menos equilibrado de novatos e veteranos em cada período; e, em cada período, novatos representam aproximadamente 25% do grupo, contra 75% de veteranos. Assim, embora o grupo não seja o mesmo em termos de composição individual de um período para outro, sua composição em termos de "classes" é bastante estável.

Utilizando essas classificações, podemos explorar incialmente a suposição a respeito de um possível papel diferencial do adulto em relação a diferentes "classes" de crianças. Quanto às classes de sexo e idade, uma vez que estão razoavelmente equilibradas na amostra, pode-se tentar uma comparação direta: encontra-se exatamente o mesmo número de agrupamentos desse tipo com crianças pequenas, contra 2 com crianças grandes. Supondo que, como sugerido anteriormente, o adulto atraia ou seja atraído pela criança isolada, tendendo a compor díade com ela, isto poderia estar indicando uma maior probabilidade de isolamento de crianças pequenas; de fato, nas 30 varreduras em questão há 53 registros de isolamento de crianças pequenas, contra 15 de crianças grandes. Comparando-se a proporção de díades adulto-criança pequena/grande (88% e 12%) com a proporção de isolamento nas duas classes de idade (78% e 22%), as diferenças não alcançam significância (Tábua de Limites de Confiança para Porcentagens, Geigy, 1965), o que sugere que o fator mediador do agrupamento com o adulto é o isolamento, e não a idade. Para esclarecer se essa mediação se dá através do adulto ou da criança seriam necessários dados sobre a iniciativa de estabelecimento de proximidade, que este tipo de registro não ofereceu.

A comparação entre crianças novatas e veteranas é mais difícil, já que suas proporções na amostra são desiquilibradas (aproximadamente um novato para 3 veteranos), e também que esta classe se superpõe com as classes de idade (não há novatos "grandes"). De forma aproximativa, e usando o mesmo procedimento de comparação entre proporções, não há diferença na incidência de isolamento entre novatos e veteranos, mas há uma tendência a maior proporção de díades adultocriança com novatos (29 registros de novatos contra 39 de veteranos quanto o isolamento, e o mesmo número (9) de díades com adulto).

O que estes resultados sugerem é que pelo menos uma das classes de membros do grupo - o adulto - regula e/ou é regulado por propriedades de "classes" de parceiros. É interessante notar que, neste caso particular, as propriedades aparentemente mais reguladoras não são as dadas por características individuais intrínsecas aos membros do grupo (sexo e idade), e sim por características de seu pertencimento ao, ou relação com, o grupo: familiaridade, e condição de isolamento.

O mesmo, como veremos a seguir, não se implica à outra grande categoria de membros do grupo (as crianças) entre si.

Os 133 sub-grupamentos (díades, 3-4 e 5+) de crianças identificados nas 10 últimas varreduras dos três períodos foram classificados quanto á sua composição em termos de sexo (masculino, feminino e misto), idade (apenas crianças pequenas, apenas crianças grandes, ou mistos) e familiaridade (apenas novatos, apenas veteranos ou mistos). A Figura 5 A/B apresenta as porcentagens de cada tipo de sub-grupamento, respectivamente, por sexo e por idade.

 

 

Para as duas variáveis, à medida que aumenta o tamanho do grupo aumenta também a tendência à "miscigenação", isto é, a sub-grupamentos mistos. As tendências identificadas são sugestivas de algumas pistas. Em primeiro lugar, a similaridade aparece como um mecanismo regulador de atração/repulsão; essa é uma tendência que já está relativamente bem documentada na literatura, especialmente em relação a sexo (Hartup, 1983). Se a similaridade de sexo e/ou idade parece mais determinante nos agrupamentos menores, uma implicação possível de que os grupos menores sejam mais regulados por mecanismos propriamente sociais (atração/repulsão entre os membros, mediadas pela similaridade/ dissimilaridade) do que os grupos maiores; estes poderiam ser talvez descritos mais adequadamente como "ajuntamentos" regulados principalmente por propriedades de organização do ambiente (por exemplo, atração por atividade ou local). Uma direção de investigação sugerida por essa possibilidade é a análise das atividades que ocupam os vários sub-grupamentos e/ou da orientação da atenção das atividades que ocupam os vários sub-grupamentos e/ou da orientação da atenção dos membros do grupo nos vários tipos de sub-grupos (para parceiros, ou para atividades). Uma outra direção, a partir da idéia de atração/repulsão entre membros do grupo, seria aprofundar a compreensão sobre fatores de atração, introduzindo, por exemplo, a hipótese de atração/repulsão interindividuais complementando ou modificando a regulação por classes. Essas análises são viáveis com o tipo de dado disponível neste registro, mas deixamos de persegui-las neste momento para possibilitar a retomada do argumento central desta apresentada

O objetivo deste exercício foi refletir sobre a possibilidade e a utilidade de um sentido de "social", operacionalizado pela concorrência de regulação recíproca entre co-específicos, para recortar e explorar um fenômeno que consideramos do âmbito do psicológico: o grupo de brinquedo. Note-se que, nas análises apresentadas, não chegamos ao nível do indivíduo - o que seria possível na continuidade da análise (cf. Carvalho, 1992) mas não é indispensável para uma abordagem psicológica do grupo, um fenômeno supraindividual.

A meu ver, o mesmo significado de social que utilizamos aqui caracteriza o uso de "interação social" em Pedrosa (1993) e em Meira (1993). Nesses dois casos, "social" qualifica um tipo de efeito interacional, definido simplesmente pela natureza dos eventos em interação - ou seja, o fato de que esses eventos são produzidos por co-específicos.

Já conceitos como jogos sociais e papéis sociais (Meira, 1993; Santos, 1993) requerem o significado mais amplo de social como "espaço de informação". Penso que, dependendo da forma de precisar seu significado, estes conceitos podem ou não ser esgotados ao nível da análise psicológica: na medida em que eles remetem a, ou requerem conceitos como estrutura sóciocultural ou representação social, estão lidando com propriedades emergentes do espaço de informação, e a tarefa é investigar de que forma essas propriedades se traduzem a nível psicológico.

 

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(1) Instituto de Psicologia. Endereço para correspondência: R. da Invernada, 12 - Carapicuíba, SP - 06355-340 Tel/FAX: (011) 727-0732 E-Mail: AMACARVACBRUSP.BITNET.
(2) Pedrosa, M.I.P.C. (1993) A imitação como processo de construção de significados. Reunião Anual da Sociedade Brasileira de Psicologia, Ribeirão Preto.
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(4) Meira, L. (1993) Processos interativos na resolução de problemas em matemática. Reunião Anual da Sociedade Brasileira de Psicologia, Ribeirão Preto.

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