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Temas em Psicologia

Print version ISSN 1413-389X

Temas psicol. vol.2 no.3 Ribeirão Preto Dec. 1994

 

Análise microgenética e videografia: ferramentas de pesquisa em psicologia cognitiva

 

 

Luciano Meira1

Universidade Federal de Pernambuco

 

 

Considerações de ordem teórica requerem a força de exemplos detalhados para
que adquiram substâncias. Um exemplo è não apenas a melhor forma de tornar concreta
que os princípios que dele são inferidos.
James Scott (1985)

É em movimento que um corpo mostra o que é.
Lev Vygotsky (1934/1987)

A análise qualitativa de processos cognitivos e da aprendizagem exige o exame de transformações relativamente sutis e rápidas nas relações entre ações (e.g., discursivas e gestuais) e a estrutura de situações específicas. A videografia (estudo da atividade através de filmagens em vídeo) e a análise microgenética (estudo detalhado da evolução das relações entre agentes e situações) combinam-se para formar um modelo de coleta e análise de dados que permite uma interpretação robusta e consistente dos mecanismos psicológicos subjacentes à atividade humana. Nas seções a seguir, apresentarei (1) um modelo de análise microgenética em Psicologia Cognitiva; (2) princípios metodológicos para o uso de vídeos na pesquisa científica; e (3) um estudo empírico que exemplifica o uso da videografia e da análise microgenética na área de resolução de problemas em matemática.

 

ANÁLISE MICROGENÉTICA

Historicamente, Jean Piaget pode ser considerado um dos principais precursores do método genético na análise do desenvolvimento intelectual. A natureza genética da teoria Piagetiana está presente sobretudo na análise da evolução e transformação gradual de estruturas cognitivas ao longo do desenvolvimento ontogenético e filogenético (Piaget, 1970). Também um precursor da análise genética do pensamento, Lev Vygotsky (1934/1987) argumentou por uma perspectiva do desenvolvimento consideravelmente mais ampla que aquela defendida por Piaget, ao incluir os domínios sócio-histórico e microgenético de análise. (Ver Wertsch, 1985, cap. 2, para uma discussão detalhada do método genético em Vygotsky.) Para Vygotsky, o domínio microgenético de desenvolvimento cognitivo está relacionado à formação de processos psicológicos no curso de alguns minutos ou segundos. Wetsch (1985) relaciona este domínio a "estudos longitudinais de curto prazo", e comenta que Vygotsky "observou que, ao ignorar esta forma de transição genética, estudos experimentais e de aprendizagem frequentemente falham no aproveitamento daquilo que podem ser seus dados mais interessantes."(p. 55) Vygotsky argumenta, entretanto, que a abordagem microgenética deve associar-se à análise do macro-contexto sóciocultural de desenvolvimento, a fim de que possamos identificar o significado das ações e processos mentais humanos.

A investigação psicológica deve, portanto, incluir um nível de discussão que denominarei microanálise interpretativa. Em primeiro lugar, esta abordagem interpretativa assume que a ação humana é rica em conteúdos semânticos (Packer e Mergendoller, 1989). Isto é, ações cognitivas, comunicativas ou gestuais possuem influência em virtude do significado que elas adquirem em contextos sócio-culturais específicos. Como conseqüência, esta abordagem implica uma descrição densa (Geertz, 1973) dos aspectos interacionais de atividade, tais como diálogos entre seus participantes ou a produção colaborativa de representações durante a resolução de problemas. Em geral, este tipo de análise não busca estabelecer as "leis" que governam a emergência de ações, mas identificar seus significados em relação a atividade e situações específicas.

A fim de construir explicações plausíveis sobre o significado de atividades diversas, e sobre a estrutura das situações sociais e materiais nas quais tais atividades emergem, esta abordagem examina em detalhe mudanças relativamente sutis nas relações entre agentes e suas ações. Entretanto, esta abordagemmicroanalítica difere daquela comumente usada nas Ciências Cognitivas (e.g., Ericsson e Simon, 1984), onde técnicas analíticas como a codificação de diálogos linha-por-linha visam identificar estratégias cognitivas supôstament "puras", através da "abstração" do contexto social da atividade onde os diálogos são produzidos.

A abordagem interpretativa proposta aqui tem as seguintes características. Em primeiro lugar, o exame detalhado de processos cognitivo-interacionais deve ser enfatizado sem comprometer a compreensão da atividade como üm todo. Em segundo lugar, esta abordagem é em grande parte qualitativa no sentido da ênfase na análise de protocolos (i.e., a transcrição das ações e discurso registrados em vídeos, por exemplo). Este objetivo está associado, por sua vez, ao uso de "exemplos" ou episódios prototípicos na elaboração e ilustração de princípios teóricos. A citação de Scott (1985) no início deste artigo exemplifica esta posição. Como conseqüência das características acima, a abordagem microgenética interpretativa baseia-se fortemente na apresentação de narrativas e explicações detalhadas dos fenômenos investigados, com pouco ou nenhum uso de esquemas tradicionais de categorização de estratégias.

Em suma, dois princípios devem guiar a análise microgenética. O primeiro recomenda que a análise de processos (e.g., de resolução de problemas) é sempre mais informativa que a descrição de produtos (e.g., estratégias de resolução). O segundo princípio complementa que a análise deve inspecionar ações detalhadamente, sem perder de vista o significado da atividade em que tais ações se inserem.

 

VIDEOGRAFIA

A videografia, ou registro em vídeo de atividades humanas, apresenta-se como uma ferramenta ímpar para a investigação microgenética de processos psicológicos complexos, ao resgatar a densidade de ações comunicativas e gestuais. De acordo com Roschelle, Jordan, Greeno, Katzenberg e Del Carlo (1991), a filmagem em vídeo pode ".. .capturar múltiplas pistas visuais e auditivas que vão de expressões faciais a diagramas no quadro-negro, e do aspecto geral de uma atividade a diálogos entre professor e alunos. (O vídeo) ê menos sujeito aos viés do observador que anotações baseadas em observação, simplesmente porque ele registra informações em maior densidade"

É importante lembrar, por outro lado, que a videografia não produz por si própria um registro completo e final da atividade investigada, e que a coleta de dados em vídeo não é um problema trivial que pode ser reduzido à quantidade de filmes produzidos. Roschelle et ai. (1991) listam as seguintes dificuldades da videografia, se comparada a observações in situ e registros etnográficos: (1) a tecnologia de vídeo possui menor resolução, contraste, foco, percepção de campo e profundidade que o olho humano, de maneira que o registro de muitas ações pode ser severamente limitado; (2) o vídeo é também menos sensível e seletivo que o ouvido humano, de maneira que a filmagem de indivíduos em atividade conjunta pode produzir registros confusos e indesejáveis. Neste sentido, a videografia deve combinar-se com métodos de observação etnográfica a fim de alcançar sua utilidade máxima(2). Observações etnográficas, portanto, permitem ao investigador maior acesso ao contexto de uma atividade, normalmente não capturado em vídeo. O contexto refere-se, por exemplo, a aspectos da organização social de uma sala de aula que exigem a interpretação in loco de um observador humano.

Uma questão comumente levantada sobre a videografia diz respeito a possíveis influências deletérias da presença de câmeras no contexto de investigação. Pesquisas que incluem o uso desta tecnologia têm demonstrado que a presença de câmeras no laboratório ou sala de aula é apenas tão intrusiva quanto a presença do próprio investigador, com a vantagem a favor do vídeo de que as reações dos sujeitos investigados terão sido registradas em detalhe. Na pesquisa em Psicologia, é importante (1) reconhecer que qualquer tecnologia de coleta de dados produzirá certos efeitos no ambiente investigado, e (2) trabalhar no sentido de registrar estes efeitos e desenvolver instrumentos analíticos que possam avaliar sua influência.

Com relação à análise de dados videografados, a estratégia que descrevo a seguir tem sido especialmente adequada para a investigação da atividade matemática de crianças durante sessões de resolução de problemas. (A última seção deste artigo resume um estudo realizado com base nesta estratégia). Os seguintes passos devem guiar a organização dos dados para análise: (1) assistir por completo e sem interrupções tantos vídeos quanto possível, realizando anotações preliminares sobre eventos associados ao problema de pesquisa; esta tarefa permite uma familiarização com os dados e a elaboração de uma caracterização geral da atividade; (2) produzir um "índice de eventos", que pode ser elaborado paralelamente à atividade descrita no item 1; este índice permitirá ao investigador um acesso mais rápido a segmentos específicos dos vídeos(3), (3) através do índice, identificar os eventos relacionados ao problema de pesquisa; esta fase inicia o trabalho interpretativo mais rigoroso, cuja natureza será discutida a seguir; (4) transcrever literalmente os eventos selecionados, com o maior número possível de detalhes; a transcrição não deve substituir o vídeo, mas servirá como apoio à análise minuciosa do mesmo(4); (5) assistir persistente e repetidamente estes segmentos (ou episódios), apoiado pela análise exaustiva das transcrições, a fim de gerar interpretações plausíveis dos microprocessos envolvidos na atividade; é importante lembrar que não há limites para quanto tempo o investigador deve deter-se em episódios específicos, pois o objetivo é construir uma caracterização densa sobre a atividade investigada, (6) ao divulgar resultados, apresentar interpretações ilustradas por exemplo prototípicos colhidos diretamente dos vídeos e transcrições, permitindo que o leitor possa compreender os argumentos e princípios teóricos sugeridos pelo investigador e/ou construir interpretações alternativas.

A interpretação de dados videográficos na perspectiva microgenética não é menos ou mais "objetiva" que a elaboração dos tradicionais esquemas de codificação da pesquisa experimental. Entretanto, a atividade interpretativa nesta abordagem envolve paradigmas metodológicos e teóricos distintos, além de representar um processo mais lento e complexo. Segundo Schoenfeld (1991)(5), a metodologia de análise e apresentação de resultados nesta perspectiva deve incluir o que chama de "argumentação competitiva". Na argumentação competitiva, o pesquisador deve permitir a outros tanto acesso quanto possível aos dados em vídeo, e discutir extensivamente com esta comunidade reduzida o possível leque de interpretações para eventos videografados. O problema básico para este grupo é responder "como" e "porque" um indivíduo engajou-se em determinadas ações durante a resolução de um problema matemático, por exemplo, e como estas ações (comunicativas, gestuais e cognitivas) evoluíram através da atividade.

Schoenfeld (1991) lista também várias questões sobre a análise videográfica, cujas respostas ainda são motivo de controvérsia na comunidade científica:

1. Como focalizar em tópicos que são centrais e não artefatuais ou efêmeros?

2. Como alcançar validade real...?

3. Como alcançar fidedignidade...?

4. Como apresentar os resultados...?

5. Onde publicar os monstros [sic] que resultam?

A maioria dos problemas citados por Schoenfeld afetam a pesquisa em psicologia de forma geral, na medida em que apontam pra dificuldades teóricas e metodológicas envolvidas na investigação e descrição de mecanismos cognitivos. Uma das vantagens da abordagem videográfica-microgenética, entretanto, é que através dela podemos construir uma compreensão profunda sobre alguns casos significativos, ao invés de conclusões supostamente amplas sobre muitos casos cujo significado compreendemos apenas superficialmente.

 

EXEMPLO DE PESQUISA MICROGENÉTICA-VIDEOGRÁFICA

O exemplo apresentado a seguir ilustra sumariamente o uso de vídeos e do método microgenético na investigação psicológica. O objetivo deste estudo (ver Meira, prelo) foi esclarecer como estudantes de primeiro grau constroem representações matemáticas durante a resolução de problemas envolvendo mecanismos físicos e funções lineares. Muitas pesquisas têm enfocado como crianças usam representações elaboradas por experts (e.g., professores na sala de aula), mas não há um consenso sobre como caracterizar as representações materiais construídas pelos próprios estudantes durante atividades maternaticas(6). Por um lado, sistemas simbólicos na atividade matemática podem ser analisados a partir de seu papel de mediador da comunicação e de suporte a processos cognitivos (Kaput, 1987). Esta perspectiva está frequentemente associada a uma visão clássica da Educação Matemática, onde a análise tende a opor processos cognitivos (tidos como puramente "internos") e processos de manipulação de símbolos físicos ou representações materiais (tidos como puramente "externos"). Por outro lado, se considerarmos a perspectiva sócio-cultural a que fiz referência na primeira parte deste artigo, convenções culturais tais como os sistemas simbólicos da matemática devem ser analisadas a partir de sua influência na emergência de atividades específicas, levando-se também em conta que seu significado é continuamente transformado por indivíduos em atividade. Esta perspectiva tem conseqüências importantes para o estudo da atividade representacional em matemática. Pea (1987), por exemplo, argumenta que representações materiais funcionam não apenas como "amplificadores" (de processos cognitivos e comunicativos), mas principalmente como transformadores da própria atividade que lhes dá origem.

No exemplo a seguir, o problema da construção de representações materiais é analisado a partir da atividade de um par de estudantes de oitava série durante a resolução de problemas matemáticos sobre um mecanismo com molas. Neste mecanismo, duas molas são suspensas no topo de uma escala numerada (ver a Figura 1). De acordo com a Lei de Hook, molas comportam-se linearmente de tal forma que se o comprimento inicial da mola é "b" e seu coeficiente de elasticidade é "a", cada vez que uma unidade de peso é colocada na mola, esta alonga-se "a" unidades. Então, se "X" unidades de peso são colocadas, a mola alonga-se "a vezes X" unidades e adquire um comprimento final "Y=zX+b". Em cada mola (marcada "branca" ou "preta"), os estudantes podiam colocar até três pesos, ou "X=3 libras" (ver a Figura 1). A tarefa analisada pede aos estudantes para resolver o seguinte problema: "poderá alguma das molas ser duas vezes mais longa que a outra, para uma quantidade apropriada de pesos?" Neste problema, as equações subjacentes ao arranjo físico eram: Y=2X+8 (para a mola "preta") e Y=X+7 (para a mola "branca").

 

 

A análise micro-genética interpretativa mostrará no episódio discutido a seguir que: (1) a competência representacional das crianças guarda relações intrínsecas com as circunstâncias materiais e interacionais do contexto de resolução do problema; e (2) as representações materiais elaboradas pelos sujeitos detêm um importante papel de mediação e estruturação da atividade de resolução de problemas, funcionando como a base material do desenvolvimento da compreensão matemática.

Baseados em manipulações prévias com estas molas durante a mesma entrevista, os estudantes observaram que o deslocamento por libra da mola "branca" alternava entre 1 e 1 1 /2 (uma percepção incorreta), de forma que a resolução do problema correspondeu a uma tentativa de impor regularidade ao comportamento desta mola, evitar cálculos com frações, e agrupar longas listas de dados a fim de resumir e facilitar computações complexas. A Figura 2 mostra uma primeira parte da evolução da representação construída por estes sujeitos. As fases desta evolução estão indicadas no protocolo abaixo pelas letras de A a G, e Figura 2 pelas áreas hachuradas. A reconstituição detalhada da atividade dos sujeitos durante a entrevista foi possível devido à densidade de informações registradas em vídeo. Os passos tomados na elaboração da representação no papel, por exemplo, foram minuciosamente reconstituídos a partir de uma investigação micro-analítica das imagens filmadas. Em seguida, a própria representação construída pelos sujeitos no papel foi digitalizada (via scanner), e os passos reconstituídos em seqüência (como na Figura 2) para efeito de apresentação de sua microgênese.

 



 

S1- É como se fosse 1,1 e 1/2,1,1 e 1/2, não é? (Observação empírica do comportamento da mola "branca".)

S2-Uh-huh.

S1- Vamos ver... temos que juntar... assim... somando 1,1,1 (Figura 2-A), então uh, sabemos que da segunda vez vai ser 3 (Figura 2-B), então estes vão ser 1, então 4 vezes vai ser 5 polegadas (Figura 2-C), então veja, é 1 polegada, 1 e 1/2, 1 polegada, 1 e 1/2 (Figura 2-D).

S2-Uh-huh.

S1 - Somando estes dois dá 2, quer dizer, dá 3, mais 2 dá 5... Então vamos dizer que nós fomos, isto é 1,1, vamos chamar de 1 unidade (Figura 2-E)... elevai, 4 vezes mais, então dá 20 polegadas para baixo (Figura 2-F)... Aquela (a mola "preta") só vai 2 polegadas de cada vez...

S2-Uh-huh.

S1 - Então, vamos colocar 1 a mais aqui (Figura 2-G, área 1) então esse vai ser 6 (Figura 2-G, área 2), 6 vezes 4 e 24 (Figura 2-G, área 3), okay.

Observe que S1 inicia a representação no papel com quatro marcas, cada uma representando um peso na mola (Figura 2-A). Por sua vez, o deslocamento da mola entra na representação através da quantidade indicada pelo parêntese (Figura 2-B). Entretanto, logo após SI voltar-se para S2 e chamar-lhe a atenção para o problema ("então veja..."), ele acrescenta as frações correspondentes aos deslocamentos de 11/2polegadas (Figura 2-D). Desta forma, as mesmas marcas desenhadas momentos antes como uma representação de pesos na mola, adquirem nova configuração e significado ao indicar deslocamentos parciais desta. Transformações como esta foram freqüentes durante as entrevistas, sugerindo que representações materiais não possuem significado fixo, mas sua função no contexto de uma atividade é continuamente transformada de acordo com exigências circunstanciais de situações específicas. No episódio acima, por exemplo, a transformação ocorreu no momento em que SI tentava tomar sua representação acessível a S2.

Em seguida, SI desenha o círculo mostrado na Figura 2-E, criando uma unidade que agrupa os efeitos de vários pesos na mola branca e permite o cálculo do deslocamento total resultante de um grupo destas unidades (Figura 2-F). Observe que isto facilita a resolução do problema, tornando mais rápido e fluente o cálculo para valores altos (e.g., 4 agrupamentos de 5 representa um deslocamento de 20), e o subsequente contraste solicitado no problema ("Y preta = 2Ybranca?"). Ainda a respeito da representação mostrada na Figura 2-F, observe também como as marcas no papel indicam quantidades de natureza diversa: 4 libras fazem a mola deslocar-se 5 polegadas, tomadas como "1 unidade"; 4 destas unidades (ou agrupamentos) fazem a mola deslocar-se 20 polegadas. Entretanto, nenhuma das dimensões trabalhadas pelos estudantes (pesos, deslocamentos, e agrupamentos) foram explicitamente rotuladas no papel, fazendo com que a representação apresente um caráter minimalista. O significado das marcas é, ao invés, distribuído espacialmente (dentro versus fora do círculo; ver Figura F), nos diálogos entre os sujeitos (quando estas dimensões são verbalizadas), no mecanismo (através de sua presença física na situação), e na própria memória dos estudantes a respeito de eventos e marcas grafadas no papel.

Ao iniciar os cálculos relativos à mola "preta" ("aquela só vai 2 polegadas de cada vez..."), S1 percebe que o deslocamento por unidade na mola "branca" (5 polegadas) não é múltiplo do deslocamento por peso na mola "preta" (2 polegadas), o que tornaria problemática a comparação entre as molas. Então, SI transforma a representação para a mola "branca" em vários locais (Figura 2-G), construindo uma relação multiplicativa entre os deslocamentos de cada uma das molas. Estas transformações mostram que uma representação é constituída de múltiplas áreas cujo conteúdo e significado podem ser manipulados de acordo com a emergência de novos objetivos durante a resolução de problemas.

Quinze minutos mais tarde, os estudantes já haviam feito progresso considerável na comparação dos deslocamentos das molas (ver a Figura 3). Vemos que o foco de sua atenção na resolução do problema proposto deveria ter sido o comprimento das molas (não o seu deslocamento), embora este fato não afete a análise proposta aqui. Ao final, os estudantes chegam a um ponto onde S2 propõe o fechamento da questão, e o seguinte diálogo emerge:

 

 

S2 - Não dá (o dobro), a diferença entre (os deslocamentos) [d] as molas não é o suficiente.

S1- É.

S2- Você concorda?

S1 - Espere, uh... é, eu concordo, ela simplesmente não, bom, a mola ("preta") cresce mas não o suficiente para (inaudível)... Não, espere, espere, se isto aqui é..,1,11/2, 1,11/2,1 (referindo-se à seqüência deslocamentos dentro do círculo que representa a "unidade"), então a próxima contagem não é 1 (indicador da "unidade", grafado imediatamente abaixo do círculo), então isto aqui não está certo, deveria ser 1 1/2 (Figura 3, área 1).

Observe que, ao passo em que S2 sentenciava a conclusão do processo, S1 iniciava uma nova tentativa de compreender o problema e a representação elaborada até então. Neste momento, S1 refere-se ao número antes usado para indicar um grupo de deslocamentos (Figura 2-E e Figura 3, área 1), e passa a interpretá-lo como elemento da seqüência de deslocamentos por peso. Mas para que este valor possa de fato completar a seqüência, S1 o transforma de "1" para "11/2". Claro que não é possível determinar se o sujeito de fato confundiu esta marca no papel como pertencendo à seqüência de deslocamentos logo acima (e tentava corrigi-la como um termo daquela seqüência), ou se estava insatisfeito com o resultado obtido até então e "encenou" o erro para justificar uma nova tentativa de cálculo. De uma forma ou de outra, vemos que a representação no papel funcionou como a base material das ações do sujeito, organizando-se e provocando uma nova série de ajustes na representação (Figura 3, áreas 2,3,4 e 5). {Por exemplo, a inclusão de um deslocamento de 11 /2 no topo da seqüência (Figura 3, área 2), ao mesmo tempo em que ajusta a soma de deslocamentos para um valor inteiro mais facilmente computável (S=9), produz uma seqüência de deslocamentos que não corresponde às observações empíricas realizadas pelos sujeitos ("É como se fosse 1,1 e 1/2,1,1 e 1/2"). Assim, ao mesmo tempo em que observamos continuidades entre o mecanismo físico e sua reprodução simbólica, vemos também rupturas onde a representação no papel assume uma função que permite aos estudantes realizarem inferências independentemente de suas observações empíricas. Finalmente, os estudantes escrevem a expressão "9 inches = 7 times" (Figura 3, área 5), que funciona como um sumário das computações realizadas até então. A elaboração desta expressão é importante no processo de resolução do problema por ser mais facilmente reproduzível (e.g., em outra folha de papel como substituta dos cálculos realizados), e utilizável na conversação entre os sujeitos. De fato, uma expressão semelhante é finalmente elaborada pelos sujeitos para gerar uma nova série de comparações entre os deslocamentos das molas.

Devido à extensão da microanálise apresentada em Meira (prelo), apresento a seguir um resumo das conclusões do estudo original. De acordo com a análise realizada, observou-se que as representações elaboradas pelos sujeitos apresentaram as seguintes características: (1) As representações matemáticas foram usadas para resumir, abstrair e transportar informações contidas em outras representações; (2) A mesma representação pode possuir múltiplos significados, que evoluem durante a resolução de problemas; (3) Embora as vezes aparentemente compactas, representações no papel podem ser compostas de "aglomerados" distintos, cada um dos quais permitindo inferencias quantitativas distintas; (4) Mesmo em uma representação estritamente não-algébrica, uma representação matemática pode conter "variáveis", cujo conteúdo e significado são manipulados, recombinados, ou mesmo abandonados, dependendo de circunstâncias emergentes na atividade do sujeito; (5) Representações podem apresentar um caráter minimalista, na medida em que informações "secundárias" (por exemplo, rótulos em tabelas de valores) surgem apenas no discurso do sujeito; (6) Representações são de certa forma "contínuas" com possíveis referentes físicos, mas também podem adquirir vida própria e passar a organizar a atividade da qual emergem; (7) Estratégias de resolução de problemas não são simplesmente aplicadas a representações, mas sua própria emergência pode depender da existência de representações específicas em uma dada situação.

Nos segmentos discutidos acima, fica claro que a construção da tabela envolveu bem mais que a aplicação de conhecimentos já estabelecidos e recobrados durante a entrevista. Ainda que tabelas de valores fosem ferramentas familiares na sua prática escolar, estes sujeitos apropriaram-se destas ferramentas e especializaram-nas de forma a resolver problemas emergentes durante a sessão de representações materiais como transformadoras da atividade na qual emerge, ao mesmo tempo em que são transformadas pelas circunstâncias do contexto de resolução de problemas (que inclui interações sociais e aspectos do mundo físico). Esta conclusão, entretanto, deve ser cuidadosamente qualificada pois representações não possuem, por si sós, qualquer poder especial para determinar o curso do raciocínio matemático. Ao invés disto, sugiro que representações materiais e a atividade matemática de resolução de problemas se constituem mutuamente.

Frequentemente, entretanto, a instrução matemática escolar é tal que restringe a produção de sistemas representacionais não-convencionais e especializados por parte do estudante, além de pretender suprimir sua suposta "dependência" em relação a representações materiais de forma geral (vistas apenas como um meio para a aquisição de competências mentais e "abstratas"). Entretanto, marcas e diagramas no papel não são meios menos sofisticados de fazer matemática, mas a própria base material da compreensão. A escola deveria, então, promover a produção de representações materiais, além de investigar cuidadosamente sua emergência e as formas pelas quais uma representação pode levar à criação de mais representações e argumentação na sala de aula.

 

CONCLUSÃO

O estudo sumariamente descrito acima exemplifica o poder da videograf ia e da análise microgenética na investigação de processos psicológicos complexos. Sem estas ferramentas, seria improvável que pudéssemos compreender com profundidade e ilustrar o caráter flexível e circunstancial de representações elaboradas durante a atividade matemática. A evolução gradual da própria representação no papel, por exemplo, só foi possível resgatar e reconstruir através da análise detalhada do vídeo da entrevista. Enquanto a videografia não se constitui uma panaceia metodológica que substitui definitivamente outros métodos de investigação, ela sem dúvida permite um acesso privilegiado aos conteúdos microscópicos da atividade humana. Por sua vez, o modelo interpretativo microgenético permite um nível explicativo da ação humana que escapa à análise tradicional através de esquemas de categorização de estratégias. O valor combinado da videografia e da análise microgenética amplia consideravelmente o poder exploratório da Psicologia Cognitiva, ampliando também os objetivos desta disciplina no sentido de investigar atividades complexas fora dos limites do laboratório.

 

Referências Bibliográficas

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Wertsch, J. (1985). Vygotsky and the Social Formation of Mind. Cambridge: Harvard University Press.         [ Links ]

 

 

(1) Endereço: Universidade Federal de Pernambuco, Mestrado em Psicologia Cognitiva, CFCH 8º Andar, Recife 50670-901 PE Brasil. Fone: 81-271 8272/Fax: 81-271 1843 / E-mail: LMeira@Cognit.Ufpe.Br
(2) Discussões detalhadas do método etnográfico são apresentadas em Geertz (1973) e Strauss (1987).
(3) Tecnologias computacionais de digitalização de imagem e som, associadas a programas de gerenciamento de vídeos, podem ser muito úteis nesta e em outras fases subsequentes da análise.
(4) Técnicas de transcrição de discurso são apresentadas em Gumperz (1982).
(5) Schoenfeld, A. (1991). On paradigms and methods: What do you do when the ones you know don't do what you want them to? Issues in the analysis of data in the form of videotapes. Artigo apresentado no Enconiro Anual da American Educational Research Association (AERA), Chicago, IL, EUA.
(6) A expressão "representações materiais" refere-se a símboloso e grafismos impressos em um meio físico qualquer (e.g., papel ou uma tela de computador).

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