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Temas em Psicologia

versão impressa ISSN 1413-389X

Temas psicol. v.2 n.3 Ribeirão Preto dez. 1994

 

O processo psicológico de conhecimento da realidade social, no Brasil do século XVI: caminha e piloto anônimo

 

 

Marina Massimi

Universidade de São Paulo - Ribeirão Preto

 

 

INTRODUÇÃO

O fato de que o descobrimento do Novo Mundo acarretou mudanças profundas na autoconsciência do homem moderno e na definição de conceitos antropológicos é um dado amplamente reconhecido e discutido pela historiografia. De maneira particular, as abordagens historiográficas mais recentes se debruçam sobre essa temática, nas diversas vertentes da História das Mentalidades da Psicologia Histórica, da História da Cultura. Estudam-se, por exemplo, os relatos das viagens e do reconhecimento das Américas considerando-os como expressões do imaginário europeu que projeta seus sonhos e seus medos sobre a nova realidade apenas desvendada: nesses, "o mundo é descrito como diferença, e o alvo como um desejo" (Defert, 1986, p. 69).

Alguns dentre os mais importantes estudiosos da epopéia dos descobrimentos portugueses e espanhóis apontam suas consequências no plano antropológico. Entre eles, Elliot (1984), afirma que, se a natureza do Novo Mundo atraiu a curiosidade e a admiração dos viajantes europeus, foi porém a questão da humanidade, ou do grau de humanidade, dos povos da América a causa do agitado debate durante o século XVI.

"O homem americano, mais ainda do que a entidade geográfica da América, impunha aos europeus uma revisão fundamental das atitudes e idéias tradicionais. Na altura da descoberta da América, já existia um certo número de categorias, latamente delineadas, nas quais os europeus podiam encaixar os diferentes povos do mundo... que... forneciam um enquadramento referencial tosco que podia ajudar os europeus a aceitar os povos da América. Mas inevitavelmente, ao longo do século XVI, o crescente conhecimento e compreensão dos indígenas americanos e das grandes diferenças existentes entre eles pôs a nu as inadequações do enquadramento intelectual e obrigou-o a modificar-se." (1984, pp. 5758).

De forma semelhantes, outros autores como Boxer (1988), Gliozzi (1977), Ferronha (1991) e Loureiro (1991) aprofundam esta temática. É necessário destacar também os resultados do congresso La Imagem dei índio en La Europa Moderna que se realizou em La Rábida (Espanha) em 1987.

Em particular, Todorov dedicou-se ao estudo do descobrimento do Novo Mundo como contexto do descobrimento que o eu faz do outro:

"El tema es immenso. Apenas lo formula uno en su generalidad, ve que se subdivide en categorias y en direcctiones múltiples, infinitas... Puedo concebir a esos otros como uma abstracción, como uma instância de la configuración psíquica de todo indivíduo, como el Otro, el otro y otro en relación con el yo: o bien como un grupo social concreto al que nosotros no pertenecemos" (1989, p.13).

Segundo Todorov, "el descubrimiento de América es lo que anuncia y funda nuestra identidad presente" (1989, p.15).

 

OBJETIVO

O objetivo do presente trabalho é um estudo da constituição do conhecimento social do outro, numa situação cultural nova. Abordaremos o processo psicológico de conhecimento da realidade social que ocorreu no contexto do descobrimento do Brasil, em 1500, assim como é documentado em relatos escritos de alguns dos seus protagonistas - a saber, Caminha e o Piloto Anônimo.

 

MATERIAL DOCUMENTÁRIO E SUA RELEVÂNCIA

São escolhidas duas fontes para a análise:

1. A "Carta de Pero Vaz de Caminha ao Rei D. Manuel" (Caminha, 1500), onde o autor descreve o "achamento" de novas terras, o povo que ali habita e as tentativas de estabelecimento de contato com "os naturais", na perspectiva de quem participou muito diretamente dos contatos, das decisões, das iniciativas.

2. O texto "Navegação do Capitão Pedro Álvares Cabral escrito por um piloto português" (Piloto Anônimo, 1500), onde o autor relata alguns dos mesmos fatos, na perspectiva de quem estava no navio, ocupando-se de um outro campo de interesse.

São relatos de sujeitos que vi vendaram a realidade brasileira por um breve prazo de tempo, como viajante ou navegador, elaborados para comunicar os acontecimentos como carta oficial ao Rei (no primeiro caso) e como relatório náutico (no segundo).

A característica marcante desse tipo de relato do século XVI é seu enfoque realista: como comenta Osório Dias, "não há aqui preocupações metafísicas, de saber se o homem é ou não naturalmente bom, nem políticas e sociais, de saber se é ou não superior ao homem civilizado da Europa. Há, apenas, narração de factos." (1961, p. 35).

Estes dois documentos que relatam o descobrimento do Brasil têm a mesma característica dos relatos de viajantes daquele período: o lado de qua a realidade social do outro é vista "por uma forma parcelar e, portanto, muito exterior e muito imediata, nos aspectos que mais rapidamente ressaltam de um primeiro contacto, ... não tendo em vista formar juízos valorativos, que procurassem distinguir o essencial e apreciar os factos segundo um critério válido e constante" (1961, pp. 4142).

 

HIPÓTESE

A nossa hipótese é a de que os autores, por estarem em posições distintas, com campo de ação e de interesse distintos, formulam um conhecimento da realidade social diferente e característico.

O "viajante" em seu primeiro contato com o ambiente social desconhecido, interpreta a realidade nova com que se depara a partir das categorias do mundo social sócio-cultural ao qual já pertence. Seria esta, prioritariamente, a posição do viajante. Mas, na medida em que o contato pessoal se dá mais diretamente, o "estrangeiro" é movido pela necessidade factual de manipular a realidade nova em que vive, e a partir disso é levado a transformar a concepção do outro e a própria consciência do mundo.

Supõe-se que a clareza sobre a existência desses diferentes processos de constituição do conhecimento da realidade social seja fator importante para uma correta leitura e interpretação da realidade documentada nas fontes historiográficas do século XVI.

 

REFERENCIAIS TEÓRICOS

Utilizamos o referencial teórico do fenomenólogo social A.Schutz (Schutz, 1979a, 1979b) para a apreensão da constituição do conhecimento da realidade social de um contexto cultural novo; e o conceito de intercâmbio simbólico desenvolvido a partir da noção de "fato social total" do antropólogo Mauss (1974), para a apreensão de uma modalidade de interação particularmente importante nas sociedades primitivas tradicionais.

O ESTRANGEIRO E O CONHECIMENTO DA REALIDADE SOCIAL

Schutz estuda processos ao nível de consciência da realidade social vivenciados por sujeitos que se afastaram de seu contexto cultural originário para participar de um outro.

O mundo social é descrito pelo sujeito como o campo de seus atos efetivos ou potenciais, estratificado em vários níveis de importância, que requerem diferentes graus de consciência. As linhas de importância delimitam um campo: ao "centro" estão os conhecimentos diretos da realidade em que o sujeito está interessado, definindo o campo de seus atos efetivos; ao redor deste estão os conhecimentos recebidos, suficientes e baseados na confiança; no setor adjacente estão as conjecturas e esperanças injustificadas; e mais além há a completa ignorância.

Frente a um novo contexto cultural, se o modelo de referência do grupo de pertença não for mais eficiente para interpretar e agir na realidade, há "crise": não pode dominar situações, não pode confiar nos conhecimentos recebidos, as receitas não são mais aplicáveis no grupo atual, interrompe-se o fluxo dos hábitos, emergem mudadas condições de consciência e de praxis. O mundo social, então, não é mais concebido como "relativamente natural" e o contexto se torna objeto de conhecimento; "o novo modelo cultural não representa um refúgio, mas um campo de aventura, não é algo óbvio mas um argumento discutível que precisa ser submetido à análise. Não se trata de um instrumento para resolver situações problemáticas mas ele mesmo constitui uma situação problemática" (Schutz, 1979a, p. 387).

O CONCEITO DE INTERCÂMBIOS SIMBÓLICOS

O conceito de "fato social total" foi formulado por Mauss (1974), na análise dos sistemas de troca em sociedades primitivas; sistemas estes caracterizados mais por dons recíprocos que por transações. O fato social total é dotado de significação simultaneamente social e religiosa, mágica e econômica, utilitária e sentimental, jurídica e moral, e até mesmo estética. Expressa um relacionamento que envolve todos os aspectos da existência.

Levi-Strauss (1982), retomou o conceito ressaltando o caráter de relações simbólicas nos sistemas das trocas baseados na reciprocidade. Fala-se em "troca simbólica" quando a reciprocidade é entendida como troca obrigatória de um bem ou serviço considerada como o dom. Fala-se em "intercâmbio simbólico" quando se ressalta o caráter inter-relacional desse tipo de interação social, em que se trocam sobretudo equivalentes simbólicos, e não tanto prestações de caráter material como bens e serviços embora estes sejam utilizados paara a interação.

A interação como intercâmbio simbólico tem sua origem no ato de dar. A expectativa da retribuição não se liga a um específico bem ou serviço, nem se dá segundo uma racionalidade de "custos e benefícios". A expectativa é de que se retribua de algum modo em algum momento oportuno, continuando uma relação útil e positiva para todos os sujeitos envolvidos na interação.

O intercâmbio simbólico é caracterizado por profunda confiança entre os agentes em causa, e pela transparência dos relacionamentos que exprime através dos gestos de dom.

Esse tipo de interação social é encontrado nas sociedades primitivas e tradicionais que possuem um tipo de racionalidade fortemente determinada pelas necessidades culturais, lógicas vitais, os afetos familiares e de amigos, que levam à solidariedade social. Assim, encontramos formas de intercâmbio simbólicos no cenário dos encontros e das interações de convivência que se estabelecem entre nativos e portugueses no Brasil do século XVI, mundo este descrito nos relatos por nós escolhidos.

 

PÊRO VAZ DE CAMINHA

Ominha escreve ao Rei, para dar-lhe conta do "achamento de terra nova", e quer fazer não só um relatório, mas uma descrição dos acontecimentos, atento a não "aformosentar nem afeiar" (1989, p. 9) nada; diz não querer pôr mais do que viu e lhe pareceu.

Ele não se interessa em comunicar ao Rei sobre a viagem e o caminho feito até então, mas seu interesse se alinha sobretudo em torno do novo e do diferente. Sua atenção está voltada para o novo campo de ação na terra recém-descoberta e aí nota-se o lugar privilegiado que a figura do índio ocupa.

Comunicando o achamento da nova terra, logo se dá notícia de que se teve "vista de homens que andavam pela praia" (1989, p.10). A partir daí, apreende-se um período de tentativa de cuidadoso contato com eles, e começa uma rica descrição de suas características, quer físicas, quer de costumes.

Nesta primeira fase, o conhecimento do índio se dá a partir de interações um tanto à distância: ficaram observando; aproximaram-se deles na praia mas não travaram conversas; trocaram alguns objetos, sinalizando disponibilidade a estabelecer relacionamento, que no entanto ficará para depois "por ser tarde e não poder deles haver fala por azo do mar" (p .10).

A partir dessa modalidade de interação inicial, se constituiu um específico conhecimento descritivo que dá ênfase ao diferente. Então, os índios são vistos como "homens pardos; todos nus, sem nenhuma coisa que lhes cobrisse suas vergonhas; traziam arcos nas mãos e suas setas" (p.10).

Na tentativa de aproximação, aqueles homens se mostraram prontos para um confronto ("vinham todos rijos para o batel" - p.10) mas também disponíveis para um encontro ("Nicolau Coelho lhes fez sinal que pusessem os arcos no solo e eles o puseram" - p .10).

Outro passo na tentativa de aproximação foi trazer dois índios para o navio. Numa interação mais próxima, começa a se articular também um conhecimento de sua subjetividade, ainda marcada pela atenção ao diferente: Agora Caminha conta não só que andavam nus mas que não estimavam "cobrir nem mostrar suas vergonhas, e estão acerca disso em tanta inocência como estão em mostrar o rosto" (p.11):

Na interação entre os portugueses e dos dois índios dentro do navio, formulou-se também um conhecimento de como os índios reagem àquilo que é o mundo dos portugueses, ao que é cuidadosamente preparado para recebê-los no navio (capitão sentado, alcatila aos pés, bem vestido, colar grande ao pescoço e outros sentados no chão ao redor), uma vez que "não fizeram nenhuma menção de cortesia nem de falar ao capitão nem a ninguém" (p. 12); mais tarde chegariam mesmo a deitar na alcatila para dormirem. Observa-se a reação deles frente a um carneiro, que quase tinham medo de uma galinha; nota-se que não quiseram comer quase nada do que lhes foi oferecido, lançando fora o pouco que provaram - inclusive vinho.

Frente à dificuldade de comunicação e ao pouco conhecimento dos índios e da terra, os portugueses procuravam ler os sinais segundo suas expectativas, segundo seus projetos. Assim, quando no navio o índio apontava para o colar de ouro e o castiçal de prata e em seguida para a terra, interpretaram "que dariam ouro por aquilo" (p.12).

Mas eram bem conscientes de fragilidade de tal interpretação, naquela situação de pouco conhecimento estabelecido: Caminha chega a explicitar "tomávamo-lo assim por o desejarmos, mas se ele queria dizer que ... isto não queríamos nós entender" (p.12).

Em seguida, dá-se continuidade às tentativas de estabelecimento de contato mais amplo com aqueles homens, através de interações de intercâmbio simbólico. Próprio dessa modalidade de interação social é a continuidade do relacionamento, a explicitação da disponibilidade em manter o relacionamento através de gestos de dois e retribuições recíprocas. Assim, notam-se movimentos de iniciativas e respostas que poderíamos comparar a um diálogo. E é dentro dessas interações que eles se dão a conhecer reciprocamente.

Nessa primeira fase, várias interações na modalidade de intercâmbio simbólico se estabelecem, sempre com base na troca de objetos, sinalizando disponibilidade recíproca à aproximação. De fato, foram várias tentativas de aproximação cuidadosas, onde se ia configurando a imagem do índio como disponível ao contato.

Atente-se à dinâmica de diálogos: Os portugueses são recebidos na terra e depois recebem os índios no navio. Em seguida, quando voltam à terra trazendo os hóspedes, um grupo de índios vêm ao encontro da embarcação, ávidos por trocar algo, e fazem tamanha "berberia" que os portugueses pedem que se afastem. Como resposta, os índios se afastam, mas também não aceitam que um degregado fique entre eles, e o devolvem inclusive com os objetos que levara para trocas. Os portugueses reatam a disponibilidade à interação voltando à terra e doando aqueles objetos a um índio que inicialmente havia acolhido o degregado. Uma outra vez, depois de os portugueses celebrarem uma missa numa ilha, observados pelos índios na praia, passa a observá-los enquanto tocam corno e buzina e dançam. Os índios procuravam se aproximar com seus barcos, e os portugueses responderam se aproximando para restituir a eles um remo que havia se perdido, mostrando disponibilidade de ajuda nas coisas que se referem a eles; e um dos portugueses chegou a descer em terra e se misturar entre os índios, que "lhe davam cabaças de água e acenavam aos do esquife que saíssem em terra" (p .15). Mas cuidadosamente eles voltaram à nau, interrompendo a interação.

Decidindo entre eles conhecer melhor o lugar, escolheram a interação direta com os naturais como a melhor estratégia (cf. p.16), e então voltam a tomar iniciativa de contato e vários portugueses descem à terra. Os índios responderam com muita disponibilidade depondo logo os arcos e se afastando como na outra vez lhes havia sido pedido. Os portugueses se misturam a eles e novamente trocaram objetos. Começam a misturarem-se em seus hábitos: o capitão pediu a um índio a pedra trazida no beiço, ele a colocou nos lábios do capitão; dois portugueses vão com uma gaia acompanhar um grupo de índios que cantavam e dançavam, e ali faziam também algumas brincadeiras, entretendo os índios. Mas a certo ponto estes se retiram.

Até então, os contínuos sinais de disponibilidade ao contato e as interações efetivadas constituem um contexto social dentro do qual se fez uma leitura dos acontecimentos e uma constituição de um conhecimento sobre os índios baseados na positividade. Tanto é que as diferenças até aqui registradas não trazem nenhum juízo negativo. Pelo contrário, são frequentemente avaliações positivas: os homens são bonitos, sua nudez é inocência, os cabelos são muito bem feitos etc. E o não reconhecimento da autoridade do capitão (também em terra) não foi tomado como desrespeito, como se poderia esperar, mas simplesmente consideraram que não o tomaram "por senhor, não entendem nem tomam disso conta" (p.17), conservando a abertura ao contato.

No entanto, frente à decisão que tinham tomado de se misturarem, frente à disponibilidade explícita de aprofundarem o relacionamento, aquele recuo dos índios no momento das danças e brincadeiras foi interpretado como ruptura, recusa, não somente daquele gesto, mas da própria relação com eles. Formulou-se um novo contexto social dentro do qual os acontecimentos são compreendidos com um significado diferente, e constitui-se um conhecimento totalmente diferente sobre quem é o índio. A visão é tão radicalmente diversa que o índio, nesse momento, não é visto como gente, mas ressalta-se seu caráter "bestial", exatamente a partir do ato de esquivarem-se: "logo de uma mão para a outra se esquivavam como pardais de cevadoiro" (p .18). Caminha dá ênfase ao lado de que os índios, como indivíduos, não mantêm a relação: "tanto que se despediu, que começou a passar o rio, foise logo recatando e não quis tornar do rio para aquém; os outros dois que o capitão teve nas naus, a que deu o que já dito é, nunca aqui mais apareceram" (p.18). Então conclui: "de que tiro ser gente bestial e de pouco saber, e por isso são assim esquivos" (p.18). Até mesmo os bons corpos admirados até então passam a serem vistos como um sinal de animalidade.

Caminha supõe a ausência total de cultura, imaginando que os índios não têm nem mesmo casas: "andam muito bem curados e muito limpos e naquilo me parece ainda mais que são como aves ou alimárias monteses, que lhes faz o ar melhor pena e melhor cabelo que às mansas, porque os corpos deles são limpos e tão gordos e tão formosos que não podem mais ser; e isto me faz presumir que não têm casas nem moradias a que se acolham, e o ar a que se criam os faz tais" (p.18).

É curioso notar que Caminha não tem consciência de que no dia anterior foram os portugueses quem se assustaram quando os índios avançaram nas embaracações ávidos por contato com eles, e de que naquela ocasião foram eles que se esquivaram da interação bastante semelhante à atitude dos índios, esta interpretada como ruptura e não-aceitação, sinal de animalidade. Não se trataria mais de um processo de regulação das distâncias interpessoais numa oscilação entre intimidade e distância?

Houve rupturas, mas as iniciativas de contato recomeçam, timidamente: o capitão manda um degregado para ficar entre eles, os índios o mandam de volta com dons, sem terem ficado com nada dele; depois, quando vários portugueses vão à terra para pegar água, são os índios que tomam iniciativa de proximidade maior: "misturaram-se conosco e abraçavam-nos e folgavam" (p.19).

Retoma-se a observação dos costumes e do modo de trajar o corpo, mas em termos de relação interpessoal começa a fase bem diferente. Não se trata mais de sinalizar disponibilidade a estabelecer um relacionamento, trata-se de efetivá-lo na proximidade.

Desde então portugueses e índios ficam misturados, um grupo de portugueses vai onde os índios vivem e onde estão as mulheres, conheceram suas povoações de casas, seus hábitos domésticos e alimentares...

Aparece também uma nova modalidade de intercâmbio simbólico, além da troca de objetos: sinalizam a disponibilidade a evolverem-se convivendo, participando dos gestos e hábitos do outro grupo. A partir de então, os índios se apresentam sem arcos e flechas, e se envolvem nos trabalhos, assumem o envolvimento com os portugueses naquilo que é o mundo deles: "misturaram-se todos tanto conosco que nos ajudavam deles a acarretar lenha e meter nos baleis e lutavam com os nossos e tomavam muito prazer" (p.20).

Em outra ocasião, durante a cerimônia religiosa dos portugueses em que carregavam uma grande cruz de madeira, alguns índios "se foram meter debaixo dela e ajudar-nos" (p.23), e durante a missa eles permaneciam misturados, gesticulando como os portugueses. Por outro lado, também os portugueses se envolveram com os costumes indígenas, quer voltando a dançar com eles (cf. p.23), quer oferencendo objetos seus para serem usados pelos índios segundo os seus costumes originais, como a passagem do marinheiro que presenteou um índio com um dente de javali que seria usado no beiço-furado, apoiado por cera também oferecida por ele (cf .p .21).

Num tal envolvimento, se constitui mais uma vez um novo contexto social, uma nova modalidade de interação donde se articula um novo conhecimento do

Não só a sua cultura volta a ser observada e avaliada positivamente ("um pano de penas de muitas cores, à maneira de tecido assaz formoso"; "cortam sua madeira e paus com pedras feitas como cunhas, metidas em um pau entre duas latas mui bem atadas, e por tal maneira que andam fortes" - p.20), mas a capacidade de envolvimento é reconsiderada ("andam já mais mansos e seguros entre nós do que nós andávamos entre eles" - p.22); "em maneira que são muito mais nossos amigos que nós seus - p.23; não aceitavam que dormissem com eles em terra, mas "se lhes homem acenava se queriam vir às naus, faziam-se logo prestes para ser reconsiderado também o significado de seus bons corpos: são corpos de homens, dados por Deus ("lhes Nosso Senhor deu bons corpos e bons rostos, como a bons homens"-p.22).

E a partir da disponibilidade dos índios de se envolverem com os portugueses em seus ritos religiosos e na aceitação do crucifixo. Caminha conclui o caráter humano dos índios:

"parece-me gente de tal inocência que se os homens entendesse, a eles a nós, que seriam logo cristãos" ... "esta gente é boa e de boa simplicidade" (p.22). Pareceu-lhe também, por essa aceitação, que eles não tivessem nenhuma religião (cf. p.24), mas a inocência deles chega a ser comparada à do homem originário, à de Adão(cf.p.25).

É nesta ótica que Caminha considera inclusive as perspectivas de futuro, como possibilidade de os índios tornarem-se cristãos. É nesta ótica, ainda, que pensa nos degredados que ficam, e nos próximos que deveriam vir em seguida ("se alguém vier, não deixe logo de vir clérigo para os baptizar, porque já terão mais conhecimento de nossa fé pelos dois degredados que aqui entre eles ficam" - p .25).

 

PILOTO ANÔNIMO

O conhecimento social do índio não faz parte do campo central de interesse do autor deste relato. Com efeito, o Piloto, pela própria tarefa que desempenha, está centrado no mundo social constituído pela vida no navio, enquanto que o índio é um elemento próprio do campo circunstante, campo em que os conhecimentos indiretos do outro, recebidos pela observação própria e pela informação de outrem, parecem suficientes e baseiam-se na confiança. Na estratificação do mundo segundo linhas de importância, (conforme o enfoque proposto por Schutz), a realidade social da nova terra ocupa uma posição de segundo plano dentro da perspectiva de relato do Piloto. O Piloto compartilha o interesse dos homens da armada de Cabral por conhecer quem eram os nativos. Ele mesmo afirma ser esta a intenção de algumas tentativas de interação iniciadas pelos seus companheiros, as quais presenciou ("para ver que povos eram aqueles", 1989, p. 37; "para saber que gente eram", p.38). Tal iniciativa, todavia, é marginal à seu campo de ação. Portanto, a descrição de hábitos e comportamentos dos índios que ele fornece é fruto de um processo social (o estabelecimento de uma relação com o outro) no qual ele não interfere.

Diferentemente de quando foi visto em Caminha, o conhecimento social, neste caso, não brota de uma interação, nem é modificado por ela. Assim, por exemplo, na carta de Caminha, a descrição dos trajes de guerra e das armas dos índios aparece repetidas vezes como um dos primeiros elementos que caracterizam as figuras dos índios encontrados e retratados. Tal ênfase é evidentemente relacionada à necessidade dos portugueses de disciminar as intenções de paz ou de guerra de quem encontram. No entanto, no relato do Piloto esse mesmo elemento aparece sem particular destaque, como um dos aspectos que compõem a imagem do indígena. Mais frequente no relato do Piloto é o uso de conjecturas e interferências na tentativa de interpretar o comportamento dos índios dentro do quadro de referência dos portugueses, recurso este que, segundo Schutz, é utilizado, no campo do conhecimento social, nos setores adjacentes ao centro de importância.

A característica dos índios que mais parece ressaltar aos olhos do Piloto é o fato de que "não havia ninguém na armada que entendesse a sua linguagem", fator este que dificultava a interação "de sorte que vendo isto, os dos batéis tornaram para Pedro Álvares" (p.37). De modo semelhante, a iniciativa dos portugueses de levarem para o navio dois índios "para saber que gente eram" não obtém bons resultados porque "não se entendiam por falas, nem mesmo por acenos", (p.38). Diferentemente de Caminha que arrisca uma interpretação do significado da linguagem gestual utilizada pelos dois índios naquela ocasião, o Piloto se limita apenas à constatação da impossibilidade de estabelecer uma comunicação verbal

Outras observações relativas aos índios formuladas pelo Piloto se referem ao aspecto físico desses e são semelhantes (embora de forma mais concisa) às descrições fornecidas por Caminha, contendo inclusive a mesma apreciação positiva: são "pardos" (p.37), "bem dispostos", "com cabelos comprimidos", "andavam todos nus sem vergonha alguma" (p.37).

Suas mulheres também "andam igualmente nuas", são "bem feitas de corpo" e "trazem os cabelos compridos" (p.38). É apontada também a maneira dos índios trajar em seus corpos:

"têm os seus cabelos grandes e a barba pelada; as pálpebras e sobrancelhas são pintadas de branco, negro, azul ou vermelho; trazem o beiço de baixo furado e metem-lhe um osso grande como um prego, outros trazem uma pedra azul ou verde e assobiam pelos ditos buracos", (p.38).

Em seguida, o autor descreve outros hábitos indígenas, como os relativos à pesca ("usam de redes, e são grande pescadores", p. 39), ao corte da madeira ("nesta terra não vimos ferro nem outro algum metal e cortam as madeiras com uma pedra", p.39), às moradias ("suas casas são de madeira, cobertas de folhas e ramos de árvores, com muitas colunas de pau pelo meio e entre elas e as paredes pregam redes de algodão, nas quais pode estar um homem, e de baixo cada uma destas redes fazem um fogo, de modo que numa só casa pode haver quarenta ou cinquenta leitos armados a modo de teares." (p39).

Na carta de Caminha, os elementos descritivos do índio integram um quadro cujo objeto central é o relato e a interpretação da complexa dinâmica de sucessivas interações em que se estrutura o primeiro "encontro" entre os índios brasileiros e os homens europeus. Na narração do Piloto, a descrição do índio responde a uma observação mais externa e descomprometida com relação à necessidade de estabelecerem-se formas de contacto social, de maneira que, mesmo quando trata de relatar momentos de interação entre os nativos e os portugueses, o Piloto não chega a atingir o significado e a riqueza de tais fenômenos de intercâmbio. A mesma festa de "confraternização" entre índios e portugueses, narrada por Caminha e por este valorizada, por exemplo, é descrita pelo Piloto com termos muito sucintos que se referem exclusivamente no comportamento dos nativos ("bailavam e tangiam nos seus instrumentos", p.38), sem fazer aceno algum ao envolvimento dos portugueses.

Por outro lado, a hipótese de que a atitude do Piloto frente aos índios é determinada pelo fato de seu campo central de interesse não ser o da nova terra mas o mundo social do navio, é confirmada na narração do episódio dos desgredados "condenados" a permanecer no Brasil. Os desgredados ("dois homens condenados à morte, que trazíamos na armada para este efeito", p.39) são parte da armada, campo central de interesse do autor. Neste caso, a referência a eles é expressão de um conhecimento mais direto e pessoal: são retratadas a dramática reação dos dois frente à perspectiva de ficarem sozinhos entre os índios ("começaram a chorar", p.39) e a resposta dos índios frente à situação, seja no nível comportamental ("foram animados pelos naturais do país", p.39), seja no plano do estado subjetivo ("mostravam ter piedade deles", p.40). A compaixão pelo trágico destino dos desgredados, que transparece nesta descrição fornecida pelo Piloto, é ausente na carta de Caminha, o qual se refere os desgredados, como sujeitos das primeiras interações com os nativos e como instrumentos importantes no projeto de reconhecimento da terra e dos seus naturais, mas já do ponto de vista de seu interesse central que é o conhecimento do Brasil.

Em síntese, pode-se considerar este segundo relato paradigmático de uma modalidade de conhecimento social do outro encarado como parte de um campo periférico de interesse que interfere só de forma indireta no mundo do autor. Nesse sentido, o índio aparece como objeto de curiosidade e não como sujeito e interlocutor da interação, como alteridade humana distante e não como presença viva e inquietante no campo de ação de quem escreve.

 

CONCLUSÃO

Fizemos um grande percurso, juntamente aos primeiros que aqui estiveram. Acompanhamos seu itinerário para a constituição do conhecimento da realidade social que encontraram: nova, diferente, desafiadora e, na linguagem de Schutz, "mais um campo de aventura do que um refugio".

Vimos como esse campo de aventura se constitui segundo perspectivas diferentes conforme as diversas posições dos autores frente à realidade.

Evidendiamos grandes diferenças entre a perspectiva de Pero Vaz de Caminha que visa descrever ao Rei o novo contexto da terra recém descoberta, onde o índio ocupa o lugar privilegiado e o diário de viagem do Piloto Anônimo - onde a figura do índio aparece como fora de seu campo de ação e por isso aparece descrito por uma observação mais externa e mais desinteressada.

Como viajantes e navegadores, se relacionam com a realidadde brasileira por um breve prazo de tempo e tendo em vista objetivos restritos. No entanto a perspectiva que esses objetivos definem, bem como as interações concretas, que requerem, definem um conhecimentos da realidade humana nova com conteúdos bem distintos.

Nos relatos por nós analisados, vimos como o conhecimento social neles elaborado não nasce tanto de uma posição genérica ou ideológica dos autores frente ao diverso, ao outro; a constituição do conhecimento da realidade social dáse a partir de interações concretas, dentro de projetos concretos. As diferentes modalidades de interação entre índios e portugueses - bem como suas mudanças determinam novas formas de conhecimento e apreciação da alteridade. E nas interações do intercâmbio simbólico, relacionar-se com o outro e conhecê-lo implica também mudar a própria consciência do mundo social, implica também mudar a si mesmo.

 

Referências Bibliográficas

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