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Temas em Psicologia

Print version ISSN 1413-389X

Temas psicol. vol.3 no.1 Ribeirão Preto Apr. 1995

 

A relevância da pesquisa na formação do psicoterapeuta: autonomia e qualificação profissional

 

 

William B. Gomes

Universidade Federal Do Rio Grande do Sul. Departamento de Psicologia

Endereço para correspondência

 

 

A prática psicoterapêutica é tradicionalmente conhecida como sendo o exercício de uma arte. O terapeuta, no contexto da singularidade de um caso, combina convicções teórica e sensibilidade pessoal para aliviar o sofrimento psicológico de alguém. O sucesso ou fracasso deste empreendimento permanece, quase sempre, restrito ao conhecimento tácito do terapeuta. Estudos de casos, uma modalidade de apresentação, discussão e compreensão clínica, tendem a misturar sentimento do terapeuta com descrições contaminadas por um determinado contexto teórico que, por sua vez, torna-se um critério necessário e suficiente em si mesmo. Indivíduos interessados em tratamentos são aceitos indistintamente sem procedimentos diagnósticos que certifiquem a propriedade da relação entre técnica e caso.

Também preocupante é a tradição da formação de psicoterapeutas. O treinamento valorizado pelo jovem psicólogo é, preferencialmente, externo à universidade. Estes centros de formação desenvolvem-se livremente sem exigências de qualificação de seus proponentes e sem regulamentação de critérios e estrutura curricular. Ademais, a formação centraliza-se no poder de um supervisor clínico que transfere o seu conhecimento ao nível de doutrinação (Langenbach e Negreiros, 1988). No entanto, esta situação apresenta algumas indicações de mudança como, por exemplo, a preocupação com o desenvolvimento de cursos de pós-graduação em psicologia clínica interessados não somente na reflexão teórica, mas na proposição de programas que atendam às peculiaridades culturais e econômicas da população brasileira (Feres, 1993).

Por outro lado, a difusão dos tratamentos psicológicos tem contribuído para que se coloque em pauta a necessidade de avaliação destes serviços profissionais. Principalmente, quando se discute a possibilidade de reembolso de tratamentos psicológicos através de seguradoras (vide Kazdin, 1986; e VandeBos, 1986).

Este trabalho tem dois objetivos. Primeiro, indicar a relevância e a necessidade da pesquisa sistemática tanto na formação, quanto na prática psicoterapêutica. Segundo, apresentar algumas possibilidades metodológicas de pesquisa em psicoterapia. Defende-se que a inclusão de técnicas e métodos de pesquisa na formação de psicoterapeutas é importante para: 1) estimular um aprendizado crítico e sistemático com a própria prática; 2) desenvolver uma relação crítica com o referencial teórico preferido; 3) alertar para a impossibilidade de uma teoria atender satisfatoriamente às diferenças individuais no desenvolvimento, psicopatologia e mudança de personalidade; e, 4) fomentar uma postura profissional mais autônoma e menos dependente de supervisões. Estas posições certamente questionam as bases organizacionais e econômicas do grande comércio da transmissão do saber clínico em psicologia. No entanto, apresenta-se como o fortalecimento de uma postura científica e sobretudo ética no campo dos tratamentos psicológicos.

O Conselho Federal de Psicologia (1988), em um empreendimento da maior importância, que aliás poderia ser repetido a cada 10 anos, estudou vários aspectos da prática profissional da categoria no Brasil. Os achados mostraram que de 1862 psicólogos consultados, 60,7% dedicavam alguma parte do seu tempo ao exercício da prática clínica. A magnitude desta informação não surpreende. A escolha da profissão é, em geral, guiada por um interesse clínico, já que este é o lado mais conhecido da prática psicológica. Também, não é nada surpreendente o alcance atual da difusão da psicoterapia. Um estudo recente com 288 estudantes das diversas universidades da Grande Porto Alegre (excluídos estudantes de psicologia e de psiquiatria) informou que 90% têm algum conhecimento sobre psicoterapia; 47,2% já leram livros sobre psicoterapia; 23% já estiveram em tratamento; 7,6% estavam em tratamento no momento da entrevista; 20,7% pensam em tratar-se assim que possível; e 58,4% fariam tratamento, se necessário (Gomes, Bianchi e Gotze, 1990).

Outro estudo (Gomes, Crescente, Fachel, Sehn e Klarmann, 1993) mostrou uma hierarquia interessante sobre a procura por tratamento psicoterapêutico entre estudantes universitários. Os achados informaram que 82,7% dos estudantes de psicologia dos 2 últimos anos já haviam procurado tratamento, o mesmo acontecendo com 46% dos alunos do início do curso de psicologia e com 21% dos alunos de outros cursos. Estes dados podem ser interpretados de várias maneiras. Podem indicar que estudantes de psicologia estão levando sua formação com muita seriedade e, assim, atendem a um consenso geral de que todos os psicólogos em formação devem submeter-se à psicoterapia. Mas, por outro lado, confirmam as constatações de Langenbach e Negreiros (1988) de que a psicologia é uma profissão autofágica. Em outras palavras, a proporção indicada de psicólogos em tratamento tende a permanecer após o término do curso entre aqueles profissionais que se dedicarem à área de psicologia clínica.

Não se pode e nem se pretende negar a importância do tratamento psicológico na formação de psicoterapeutas. No entanto, é chegado o momento de discutir criteriosamente a inclusão do treinamento em pesquisa nos programas de formação, principalmente quando se consideram as transformações que estão ocorrendo no entendimento da ciência psicológica no últimos anos. O conhecimento em psicologia tem avançado com muita rapidez. Estima-se que a cada 5 anos o conhecimento desta ciência é revisado ou substituído. Por isto, enfatiza-se que na formação do psicólogo sejam privilegiados modos de questionar e pensar. Pouco adianta a repetição conformista de teorias e práticas.

Mahoney (1993), em uma conferência apresentada no III Congresso Europeu de Psicologia, em Tampere, Finlândia, destacou cinco mudanças importantes na ciência psicológica deste fim de século. São elas: 1) o declínio do behaviorismo e da psicanálise; 2) o declínio das abordagens autoritárias para o conhecimento humano, referindo-se especialmente ao positivismo lógico (o que também poderia incluir a teoria marxista); 3) a corporificação tardia da psicologia, referindo-se ao rompimento do dualismo mente-corpo e a abertura para estudos psiconeurológicos, psicofarmacológicos e neurocognitivos; 4) o amadurecimento da psicologia dos direitos humanos, referindo-se à psicologia da mulher, à psicologia de grupos minoritários, à psicologia dos deficientes, à psicologia ambiental e à psicologia da cultura; e, 5) a revolução da psicologia cognitiva.

Sobre a revolução cognitiva é interessante ressaltar alguns aspectos abordados por Mahoney (1993). Primeiro, o autor apontou para duas mudanças importantes no estudo da cognição, a saber: 1) a substituição de modelos lineares e centralizados, chamados de executivos, para modelos curvilineares e descentralizados, chamados de coalizantes; e, 2) a substituição de modelos baseados na analogia de circuitos elétricos para uma abordagem neuro-endocrinológica. Segundo, chamou atenção para as discussões transteóricas que estão sendo provocadas pela psicologia cognitiva. Realmente, o diálogo transteórico é uma raridade entre nós. Enfatiza-se muito a interdisciplinaridade talvez, interpreto, por uma procura por confirmações extramuros ou ainda por socorro metodológico e interpretativo. Não deixa de ser uma vigorosa abertura para a renovação e ampliação de conceitos e modos de acesso a objetos de estudo. Contudo, a discussão transteórica é fundamental para, ao menos, fazer-se justiça ao objeto que se estuda. E necessário o refinamento de modos de descrição e conceituação para embasarmos nossa prática com mais segurança e autonomia.

A ênfase de Mahoney (1993) no diálogo transteórico questiona uma tradição de cultura psicológica que pode ser caracterizada como sectária. Aliás, Matos (1988) nos advertiu sobre este problema quando constatou que nossa formação é marcada por uma hegemonia teórica. Há entre estudantes de psicologia uma tremenda curiosidade por teorias de personalidade, por exemplo, sem contudo apresentar nenhum interesse pelo status lógico-metodológico destas teorias e, muito menos, por suas bases empíricas. Por outro lado, considerações metodológicas ainda não se incorporam às disciplinas dos cursos de graduação. Disciplinas de metodologia ou mesmo práticas de pesquisa empírica não faltam, mas não passam, na maioria das vezes, de atividades isoladas. Ainda é incipiente entre nós a tradição de levar para as nossas disciplinas os trabalhos publicados por revistas científicas que apoiam ou contrariam assertivas teóricas. O desejado seria iniciar os nossos alunos, desde cedo, na prática de colocar em dúvida as posições opinitivas para verificá-las através de pesquisa empírica. Mas isto não seria tudo. Estes alunos também aprenderiam a ser críticos com as bases epistemológicas e lógicas destes estudos. Uma conseqüência positiva seria o desenvolvimento de uma necessidade de definir os limites entre especulação teórica e achado empírico, e entre achado empírico e interpretação. Lamentavelmente, estas diferenciações são pouco cultivadas entre nós.

Qual o impacto destas considerações para a prática psicoterapêutica? Em primeiro lugar, é preciso entender como teorias psicoterapêuticas nortearam os rumos da psicologia nas últimas décadas. A grande adesão de psicólogos à prática psicoterapêutica ocorreu no decênio dos anos 40. Dois fatores contribuíram para esta mudança: o grande desapontamento com as proposições dos grandes sistemas psicológicos (estruturalismo, funcionalismo, behaviorismo, gestalt e psicanálise) e a premência de atendimento psicológico aos soldados vitimados pela II Guerra Mundial. Em conseqüência, a psicologia clínica transformou-se na mais poderosa Divisão da American Psychological Association e, em um plano teórico, as psicoterapias ocuparam o lugar dos antigos grandes sistemas (Hilgard, 1987). Um exemplo interessante é o caso da psicologia da personalidade. Cada teoria de psicoterapia derivava sua teoria de personalidade. Hoje, entendemos que este reducionismo empobreceu o estudo da personalidade. As teorias e práticas psicoterapêuticas parecem nascer de uma combinação entre personalidade e experiência de seu autor e respondem apenas a determinados estilos individuais ou personalidades.

Mahoney (1991) informou que, para psicoterapeutas com muita experiência clínica, os fatores mais importantes para sucesso terapêutico eram, nesta ordem: apoio social ao cliente, personalidade do terapeuta, relacionamento terapêutico, auto-estima do cliente, experiência do terapeuta e motivação do cliente. Os fatores menos importante eram: autoconsciência do cliente, duração do tratamento, inteligência do cliente e orientação teórica do terapeuta. Alguns destes achados foram anteriormente descritos em outro estudo (Gomes, Reck e Ganzo, 1988). Com efeito, parece que estamos caminhando para um consenso de que orientação teórica em si não é um fator qualificador de tratamento psicológico. Reflete, muito mais, a preferência de um profissional do que a garantia de um bom atendimento.

Do lado do cliente, está cada vez mais claro que diferentes personalidades respondem distintamente a diferentes tratamentos podendo, inclusive, falar-se que certos tratamentos seriam contra-indicados para certas pessoas. Passos importantes nesta direção estão sendo dados por Blatt e Ford (1994), como será comentado posteriormente.

Mahoney (1993) também indicou que o autoritarismo epistemológico esta declinando na psicologia. No Brasil, principalmente dos anos 70 em diante, o interesse por questões epistemológicas sempre esteve em destaque. Caracterizouse por um repúdio à dominação do positivismo lógico e por uma apologia da relevância de pressupostos marxistas para o desenvolvimento de uma psicologia socialmente relevante (Gomes, 1990). Hoje, compreendemos que o fim do autoritarismo epistemológico vale para os dois lados da moeda. No entanto, nos meados dos anos 80 convivemos com outra polarização: o debate metodológico entre critérios qualitativos e quantitativos. Felizmente, as discussões sobre o declínio do autoritarismo epistemológico também esta clarificando as relações entre quantidades e qualidades em pesquisa psicológica.

Convém recapitular, brevemente, as principais diferenças entre métodos qualitativos e quantitativos. E comum o entendimento de que a relação entre estes dois critérios de pesquisa é de complementaridade. No entanto, é preciso ter cuidado com esta noção de complementaridade. Pesquisas qualitativas não podem ser reduzidas à condição de estudos exploratórios que apenas embasam verificações quantitativas posteriores. Estas pesquisas, na tradição da ciência humana, estudam o capta, quer dizer, o que é tomado. Já métodos quantitativos, na tradição de ciência natural, estudam o data, quer dizer, o que é dado. A força unificadora entre estas duas direções é que ambas apontam para o que deve ser realizado, ou acta. Com efeito, são maneiras diferenciadas de relação com o objeto. Acta, numa visão moderna, é a ciência na qual a combinação do que é dado e do que é tomado constitui uma razão ou prática (Lanigan, 1988).

E oportuno especificar um pouco mais as características dos dois critérios. Os métodos qualitativos caracterizam-se pelo desenvolvimento de uma análise sistêmica dividida em quatro passos: 1) definição de hipóteses; 2) teste de possibilidade ou verificação; 3) descrição de resultados ou explicação da experiência ou experimento, e 4) obtenção de resultados ou proposições. Em contraste, os métodos quantitativos caracterizam-se pelo desenvolvimento de uma análise sistemática dividida em quatro passos: 1) definição de hipóstases; 2) teste de probabilidades ou verossimilitudes; 3) predição de resultados ou explanação, e 4) afirmação de conhecimento ou afirmação.

Alguns termos mencionados para enfatizar a diferença entre os dois procedimentos requerem esclarecimentos. O termo hipóstase é raramente usado e o termo hipótese tanto é usado como definição de proposta de pesquisa, quanto como indicação de possibilidades interpretativas. Mora (1986) define hipóstase como referindo-se a uma frente de aparências que pressupõe uma realidade. Em sentido prático, indica o movimento de uma abstração, quer dizer, de um conceito baseado em aparência para uma realidade constatável. Uma vantagem para o uso do termo é a de definir, com mais propriedade, as etapas para a realização da ciência natural como um processo de invenção e demonstração. A desvantagem é sobrecarregar de jargões nossas teorias, dificultando sua compreensão.

Os termos explicação e explanação são utilizados no sentido francês de explication de texte e réduction de texte, respectivamente (Lanigan, 1992). Assim, por explicação entende-se a reconstituição de uma mensagem concreta por análise ou criticismo, enquanto que, por explanação entende-se a reconstituição descritiva de uma experiência ou experimento.

Em conseqüência, os modelos de pesquisa decorrentes das especificidades mencionadas desenvolvem-se através de diferentes modelos: as análises qualitativas numa tradição de fenomenologia, semiologia, etnografia e historiografia e, as análises quantitativas numa tradição da lógica formal, matemática e estatística. Por fim, os resultados qualitativos constróem um paradigma, no sentido de processo, estrutura ou símbolo, enquanto os resultados quantitativos determinam um protótipo, no sentido de relação, magnitude ou sinal. E importante lembrar também a diferença entre símbolo e sinal. O conceito de símbolo destaca a condição metafórica das interpretações e alerta para o perigo de generalizações transcontextuais. Já o conceito de sinal remete a uma condição na qual objeto e conceito estão de tal forma imbricados que a distinção entre um e outro torna-se impraticável. Um perigo, nestes métodos, é a generalização derivada de contextos forçados de escolha. Nestes casos, as afirmações do pesquisador, embora empiricamente confirmadas, atestam apenas as idiossincrasias de sua inventividade.

Com estas diferenças bem compreendidas podem-se demarcar os movimentos entre os dois critérios. Pode-se, por exemplo, calcular a probabilidade de possibilidades definidas qualitativamente ou, ao contrário, testar possibilidades interpretativas de diferenças definidas estatisticamente. De qualquer modo, é bom ter sempre presente que a diferença entre os dois critérios não é apenas metodológica. E, essencialmente, epistemológica. Não se trata apenas de verificar diferenças em procedimentos lógicos. Trata-se, fundamentalmente, de visões diferenciadas de acesso ao objeto de estudo.

Estas aplicações metodológicas são ilustradas em um estudo de Gomes, Reck, Bianchi e Ganzo (1993). Neste estudo, examinaram-se, do ponto de vista do capta e do data, percepções sobre a experiência de estar ou passar por uma psicoterapia, sobre a relação com o terapeuta e sobre os resultados obtidos. Por exemplo, as percepções sobre os resultados obtidos em psicoterapia, recolhidos através de entrevistas, constituíram uma descrição de mudança referente às dimensões centrais do funcionamento psicológico. Na verdade, estas mudanças podem ser definidas como uma nova maneira de lidar com as cognições, com os afetos e com as ações.

Com relação aos processos cognitivos, a experiência terapêutica modificou o modo de conhecer-se e de discernir-se. Os clientes passaram a entender-se melhor, refletir mais, reconhecer inseguranças e medos, organizar os pensamentos e colocar ordem nos seus próprios problemas. Com relação à afetividade, as descrições destacaram as mudanças nos modos de relações com os próprios sentimentos. Aprenderam a entendê-los, elaborá-los, verbalizá-los, torná-los verdadeiros e a deixá-los acontecerem. Para estes clientes, a experiência terapêutica significou um redimensionamento do espaço interior. E, com relação ao comportamento, estes clientes descreveram suas mudanças em termos de novas maneiras de administrar seu tempo, de determinar-se para a realização de projetos e de redimensionar suas relações interpessoais. Também indicaram que estas mudanças eram percebidas, ainda que em diferentes graus, por parentes, amigos e colegas.

O parágrafo anterior deve ser entendido no contexto da lógica qualitativa. Aparentemente, pode indicar uma generalização de mudanças obtidas em psicoterapia. No entanto, pode, simultaneamente, ser e não ser uma generalização. Em princípio, ele foi escrito para informar possibilidades comunicadas pelos entrevistados. Uma vez demarcadas, as possibilidades indicadas podem ser calculadas. Foi o que fez o estudo de Gomes, Reck, Bianchi e Ganzo (1993). Por exemplo, de 133 sujeitos que responderam a um questionário, algumas das mudanças reconhecidas foram: colocar ordem nos problemas (82%); entender e elaborar melhor os sentimentos (91%); verbalizar melhor os sentimentos (84%); melhor determinação na realização de projetos (82%), e que suas mudanças foram constatadas por parentes (74%), amigos (81%) e por colegas de trabalho (63%). Uma análise fatorial através de rotação varimax confirmou que estes itens faziam parte do perfil de uma experiência bem sucedida em psicoterapia.

Estas constatações reafirmam o papel da pesquisa como recurso de descoberta e informação. Destacam, também, a função da pesquisa como prática continuada de avaliação terapêutica. Para ilustrar as considerações apresentadas é interessante descrever, ainda que brevemente, dois programas de pesquisa em psicoterapia: um nos EUA., outro no Canadá. O programa americano segue a tradição psicanalítica das relações objetivas e trabalha com métodos estatísticos rigorosos. O programa canadense segue uma tradição humanística e trabalha com os métodos qualitativos.

Nos EUA., Blatt e Ford (1994) estudaram 90 pacientes diagnosticados como severamente perturbados, que estavam em tratamento de longa duração em uma instituição psiquiátrica. Estes pacientes já haviam experimentado outros tratamentos psicológicos com duração média de 2 anos, sendo que alguns deles já haviam passado por breves hospitalizações com duração média de 4 meses e meio. Os dados foram obtidos de duas fontes: testes psicológicos e registros e observações clínicas. Os testes utilizados foram: Rorschach, Teste de Apercepção Temática, Escalas Wechsler de Inteligência e Desenho da Figura Humana. Os registros clínicos dos casos foram pontuados por dois juizes de forma independente. As observações clínicas das enfermeiras, assistentes sociais, psiquiatras e psicólogos constituíram uma narrativa clínica que foi pontuada por meio das escalas preparadas para este fim. A coleta de dados foi realizada em duas etapas: a primeira após a sexta semana de tratamento intensivo e a segunda após o décimo segundo mês.

Os resultados alcançados por Blatt e Ford (1994) trazem novas contribuições para a psicologia em diferentes aspectos. Primeiro, demonstraram a eficácia do programa terapêutico utilizado. Os pacientes apresentaram diminuição de freqüência ou severidade dos sintomas clínicos, melhoras nas relações interpessoais, aumento de inteligência e diminuição de fantasias sobre relações interpessoais irrealísticas. Segundo, inovaram no modo de interpretar os testes psicológicos; por exemplo, o teste de Rorschach foi utilizado na abordagem da teoria cognitiva e da representação e não por meio da abordagem original da teoria de percepção. A nova abordagem permitiu a integração de um conjunto de teorias explícitas de personalidade e de uma diversidade de observações que podem ser feitas sobre as respostas apresentadas aos estímulos ambíguos do teste. Contudo, os autores advertiram que a nova abordagem não dispensa os procedimentos tradicionais de pontuação do teste. Terceiro, combinaram a utilização da descrição de sintomas clínicos com registros de manifestação de transtornos no comportamento social. E quarto, apontaram para a configuração de duas psicopatologias básicas que respondem diferentemente às técnicas de tratamento.

As configurações seriam as personalidades anaclíticas e introjetivas. A personalidade anaclítica foi caracterizada por uma personalidade cujo processo de desenvolvimento psicológico centra-se numa linha de relações interpessoais. A psicopatologia apresentada nestas personalidades seria: infantilidade das relações, histeria e esquizofrenia não-paranóide. Por sua vez, a personalidade introjetiva foi caracterizada por uma personalidade cujo processo de desenvolvimento psicológico centra-se numa linha de "senso de self". A psicopatologia apresentada, nestas personalidades, seria: paranóia, obsessividade-compulsividade, depressão introjetiva e narcisismo fálico. Desta forma, pacientes anaclíticos caracterizavamse por distúrbios primários nas relações interpessoais e pacientes introjetivos por distúrbios no autoconceito, auto-estima e identidade. Ambos os pacientes obtiveram melhoras no tratamento. Contudo, pacientes anaclíticos responderam melhor a psicoterapias de apoio enquanto que pacientes introjetivos responderam melhor a tratamentos psicanalíticos.

No Canadá, Rennie (1992) apresentou um programa de pesquisa inteiramente diferente do estudo de Blatt e Ford (1994), mas igualmente inovador. O autor investigou a experiência terapêutica na perspectiva de 14 clientes de um centro de atendimento para universitários, com idade variando entre 25 e 40 anos, e que estavam em tratamento por um período entre 6 meses e 2 anos. Nesta pesquisa, o cliente era convidado para ouvir a gravação ou assistir ao videoteipe de sua sessão terapêutica, logo após seu término. Solicitava-se ao cliente que indicasse qualquer coisa que lhe chamasse atenção enquanto estivesse ouvindo ou vendo o teipe. Estas sessões de pesquisa duravam de 2 a 4 horas. As implicações éticas deste procedimento foram discutidas em Rennie (1990). O critério de análise dos dados, baseados na Grounded Theory (Strauss e Corbin, 1990) é muito semelhante ao utilizado por Gomes, Reck, Bianchi e Ganzo (1993). A análise enfatiza um processo de teoria generativa mais do que verificacional e movimenta-se da categorização do material nativo (demarcação de sentido conforme indicação dos entrevistados), para a categorização analítica (conceituação categorial proposta pelos pesquisadores). Por fim, interpretam-se as relações entre categorias e suas relações com o capta.

As descrições obtidas por Rennie (1992) apontaram para a função da rellexividade como a expressão da experiência consciente e da consciência da experiência em psicoterapia. O estudo traçou o movimento transformador entre percepção e expressão na formação do sentido consciente através de uma consciência de si mesmo no contexto terapêutico, do que é certo para si em um determinado momento, e do que é ser adequado na situação, ou seja, monitorando cursos alternativos de ação no contexto da situação. O autor interpretou estas reduções como uma indicação da função da reflexividade na eficácia do tratamento, desde que está relacionada com a deliberação e implementação de novos comportamentos e de novas maneiras de ser. O estudo foi também uma exploração muito rica dos sistemas metacomunicativos que estão atuando numa relação terapêutica. Ademais, o estudo trouxe contribuições para distinções fenomenológicas importantes como, por exemplo, as diferenças entre os processos cognitivos de lembrar e de elaborar. Os participantes do estudo aprenderam durante as sessões de pesquisa a diferenciar quando estavam trabalhando com lembranças de quando estavam elaborando pensamentos novos e, também, a indicar esta discriminação.

Os dois estudos mencionados exemplificam a importância da pesquisa em psicoterapia. Confirmam a viabilidade do uso de diferentes métodos e teorias e ainda renovam instrumentos psicológicos tradicionais, como testes e entrevistas. No Brasil, vivemos um paradoxo curioso. Por um lado, exaltamos o estudo de história; por outro, tendemos a percorrer um caminho à margem da história, como se fosse possível fazer uma ciência à parte. A ideologização das aulas dos cursos de graduação e dos organismos profissionais, e seu distanciamento das condições atuais do mercado de trabalho e da prática científica comprometem o desenvolvimento da psicologia como ciência e profissão.

O avanço de nossa ciência não está na exclusão de métodos ou teorias, nem na defesa de utopias ideológicas (Gomes, 1990). Está, certamente, na opção por instrumentos de trabalho compatíveis com a vocação e personalidade do pesquisador e, sobretudo, em uma disposição cosmopolita para o diálogo transdisciplinar.

As vicissitudes da formação do psicólogo clínico foram competentemente analisadas por Langenbach e Negreiros (1988). As autoras alertaram-nos para a formação paralela, doutrinária e sectária destes profissionais, mas mostraram-se esperançosas quanto à perspectiva de que as universidades mudassem este quadro através dos programas de pós-graduação. No entanto, nossos Programas de Pós-Graduação em Psicologia Clínica ainda caminham muito lentamente nesta direção. A motivação maior parece voltar-se para as questões ideológicas, filosóficas, antropológicas e sociológicas, em clínica e psicoterapia. Caracterizam-se muito mais por um "pensar a situação clínica" do que pelo desenvolvimento de programas e técnicas compatíveis com nossa realidade cultural.

Para concluir, é bom reafirmar que a tarefa psicoterapêutica não deixa de ser uma arte, assim como saber redigir um texto científico é também uma arte. No entanto, estou convicto de que a psicoterapia não pode sustentar-se em crenças teóricas. Técnicas e práticas devem submeter-se sistematicamente ao escrutínio de testes empíricos. No caso, arte seria a capacidade de saber recriar técnicas e situações de pesquisa para compatibilizá-las com a realidade terapêutica, e a ideologia seria a preocupação permanente com a cidadania dos usuários (o direito do indivíduo a um bom atendimento).

 

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