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Temas em Psicologia

versão impressa ISSN 1413-389X

Temas psicol. vol.3 no.1 Ribeirão Preto abr. 1995

 

Formação e atuação do psicólogo organizacional: uma revisão da literatura

 

 

José Carlos Zanelli

Universidade Federal de Santa Catarina. Programa de Pós-Graduação em Psicologia e Programa de Pós-Graduação em Administração

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O objetivo do presente trabalho consiste em analisar pesquisas que tratam da formação e atuação do psicólogo organizacional. Para tanto, foram utilizados desde relatórios de circulação interna em unidades acadêmicas até publicações de maior penetração, como livros e artigos em periódicos científicos. Assim, uma bibliografia extensa subsidiou o presente trabalho, não se restringindo, portanto, à que consta, no final, nas referência bibliográficas.

Trabalhos sobre a formação e atuação do psicólogo, no geral e nas áreas específicas, vêm sendo desenvolvidos desde a década de 50, no Brasil. Contudo, pode-se afirmar (Zanelli, 1992) que, no que tange especificamente à Psicologia Organizacional, tais estudos apresentam-se em menor quantidade.

Psicologia Organizacional é a denominação amplamente empregada no Brasil para designar estudos de cunho acadêmico ou teórico e as aplicações da psicologia no âmbito das atividades laborais ou das organizações de trabalho. Psicologia do Trabalho é algumas vezes utilizada para conotar matizes políticoideológicas ou, mesmo, no sentido direto das relações ou tarefas laborais. Em um sentido inclusivo, tem-se preferido a denominação Psicologia Organizacional e do Trabalho.

A Psicologia Organizacional contemporânea enfatiza a interação das características do trabalhador, da estrutura organizacional e do ambiente externo. Na interpretação de Landy (1989), representa uma das mais diretas tentativas de colocar os princípios de comportamento em prática, enquanto, para Nicholson (1982), "a Psicologia Organizacional é uma área altamente ativa entre as Ciências Sociais Aplicadas" (p. 1).

No Brasil, o quadro geral do ensino da psicologia é mais ou menos uniforme. Verifica-se que não passou por modificações significativas desde a época de sua implementação oficial, na primeira metade da década de 60.

O conjunto de atividades das pessoas que compõem uma profissão estão interligadas e dependem do ensino. Por sua vez, o ensino depende de inúmeras variáveis que lhe são associadas. Quando se pensa em formação profissional e atividades de trabalho, incluem-se os contextos em que estas duas dimensões ocorrem. Esquematicamente, as duas dimensões seriam representadas por meio de campos que se interpenetram. Tais campos estão imersos na macro-estrutura em interação dinâmica.

Os trabalhos aqui analisados, de algum modo, focalizam as discrepâncias existentes entre a situação atual e uma situação desejada. Discrepâncias podem ser interpretadas como problemas. Problemas podem instigar a busca de alternativas de intervenção. Analogamente, as leituras foram dirigidas para caracterizar os principais problemas registrados na literatura, suas configurações e as alternativas de intervenção sugeridas para a formação e atuação do psicólogo organizacional.

Os conteúdos aqui trazidos, deve-se ainda acrescentar, ou fazem parte de trabalhos que pretendem abranger o espectro mais amplo da formação e da atuação do psicólogo ou tratam especificamente do psicólogo organizacional. Têm a preocupação, via de regra, de buscar um perfil representativo do profissional, para que sirva como um parâmetro ou alvo de referência. Na maior parte, possuem natureza reflexiva e questionadora, baseando-se nas leituras, vivências e interpretações dos autores. Quando envolvem estudos de campo, com poucas exceções, apoiam-se em dados fornecidos por algumas dezenas de sujeitos ou em conteúdos revelados por poucos participantes; no primeiro desenho, na maioria das vezes, o procedimento é predominantemente quantitativo, enquanto no segundo, como é usual, é predominantemente qualitativo. Também em grande número, não indicam com clareza uma matriz de referência teórica que permita consistência para o corpo do trabalho e sustente as considerações ou conclusões.

Finalmente, em seu conjunto, somam-se muitos aspectos descritivos da situação passada e atual da formação e da atuação. Contudo, são raros os relatos de experiências efetivas de intervenção, de modo a apontar conhecimentos e habi1 idades na formação e atividades no exercício profissional para ampliar e difundir informações com potencial remodelador. Existe, no geral, uma inércia ou impotência na promoção de transformações reais do preparo acadêmico e do campo das atividades profissionais.

 

PROBLEMAS E CONTEXTOS

Pessoti (1988) relata que, "no Recife, o grande pioneiro Ulisses Pernambuco, neurologista e psiquiatra, criou, em 1925, o Instituto de Seleção e Orientação Profissional de Pernambuco" (pp. 23-24). Para Crochik (1987), "a Psicologia aplicada ao trabalho surge no interior de Institutos..." (p. 18). É interessante notar que os primórdios da Psicologia Organizacional, no Brasil, têm ocorrência externa ao circuito acadêmico. Zanelli (1994b) assinala que "as pressões do desenvolvimento industrial promoveram o incremento da área para consumo próprio. Esta situação perdura, sendo particularmente verdadeira, dissociando o trabalho acadêmico do âmbito da aplicação em organizações" (p. 26).

Os conteúdos curriculares já nasceram com uma tendência crescente de tecnificação. Os interesses voltam-se para a aquisição de técnicas de aplicação do conhecimento científico, em franco desfavor de saberes mais fundamentais, como o metodológico e o filosófico. Em contraposição, a trajetória dos psicólogos que se estabilizam na área, em empresas, mostra que passam da concentração em atividades técnicas para um aumento de atividades que requerem uma visão ampliada do fenômeno comportamental, dos negócios e da sociedade.

A competência do psicólogo para as atividades em empresas, em tese, mostra-se prejudicada pela formação. A precariedade da formação do psicólogo brasileiro tem sido amplamente denunciada e acusada de piorar ao longo das décadas. Iniciativas de reformulação curricular constituem tentativas emperradas. Prolongam-se durante anos, sem alterar a essência dos conteúdos e procedimentos. Trazem à tona a complexidade de uma questão que não se esgota apenas na modificação curricular.

As reformulações curriculares movem-se por referências particularistas, intuitivas e assistemáticas. Nunca são justificadas pela necessidade de atualizar conteúdos obsoletos ou de redistribuir as cargas horárias, face às transformações substanciais na própria organização do conhecimento psicológico. O processo de reformulação curricular é prejudicado pelos interesses dos grupos imediatamente envolvidos na sua realização e pela instância das relações afetivo-emocionais. As demandas sobre o currículo vão desde a solicitação de maior número de disciplinas até a premência de formar psicólogos preparados para atuar no interior do país. Uma faixa extensa de demandas, naturalmente difícil de se equacionar.

Uma das explicações atribuídas à precariedade da formação, no geral, diz respeito ao rápido crescimento da quantidade de cursos de psicologia, que transformou recém-graduados, com insuficiente experiência em pesquisa e ensino, em professores. A situação relativa ao magistério das disciplinas da área organizacional é agravada pelo fato dos profissionais com maior experiência serem absorvidos pela carga de trabalho nas organizações que os empregam e pela baixa remuneração docente. Os que se dirigem para o ensino de tais disciplinas, muitas vezes, fazem-no porque são "as únicas disponíveis", sem interesse verdadeiro e prática na área.

O modelo que sustenta a formação é ultrapassado e, embora gestado na década de 50, até hoje a essência do curso não foi reformulada, ainda que alguns manifestem desejar preparação teórica e técnico-prática, visão ampla dos diferentes enfoques da psicologia, aprofundamento na área de interesse, vinculação político-social dos conteúdos e interdisciplinaridade. Entretanto, o padrão observado na maioria dos alunos de psicologia é de passividade e dependência da leitura acumulada pelos professores. Os professores, por sua vez, baseiam-se em leituras quase sempre traduzidas e importadas do contexto norte-americano, muitas vezes com o agravante de marcada desatualização.

O currículo mínimo predispõe para a localização da psicologia entre as profissões liberais e direcionamento para a área clínica. A quantidade de disciplinas voltadas direta ou indiretamente para o exercício profissional em organizacional é fortemente limitada. Mais ainda, os conteúdos de disciplinas como, por exemplo, Psicologia do Desenvolvimento, raramente são associadas à dinâmica do ser humano adulto que trabalha e não manifesta patologias.

Os procedimentos instrucionais são discursivos e os conteúdos veiculados são superficialmente informativos e generalistas. Os conteúdos e direcionamentos para a área organizacional são, via de regra, insuficientes para se afirmar que a formação está sendo efetivamente realizada.

O currículo da graduação, além de como é projetado formalmente, por meio de sua concretização cotidiana, tem importância crucial no estabelecimento de opções teóricas, escolha das atividades de trabalho, formas de encarar a realizada e busca de alternativas de intervenção. O modo como os alunos são formados permite antever as atividades e inserções da categoria nas próximas décadas.

Um currículo apresentado por Castilho e Cabral (1953), em início de vigência do Instituto de Psicologia Aplicada da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, na época, incluía "Trabalho de Pesquisa" como disciplina estabelecida na seriação para os alunos do curso de profissionalização em psicologia. Infortunadamente, a disciplina não inspirou sua permanência nos currículos posteriores, que se espalharam pelo país. É curioso observar que o artigo já traz em seu título características que são referidas até hoje quando se trata do assunto: "problemas da formação de psicólogos."

O currículo mínimo federal não prevê espaço destinado à pesquisa. Matos (1988) constatou que, no Brasil, é "quase nada" o interesse pela pesquisa em psicologia "por problemas institucionais, organizacionais ou por qualquer coisa que se refira a desempenho de trabalho" (p. 119).

Falta preocupação com a pesquisa e com a extensão de serviços à comunidade. A formação metodológica científica é mínima. Não se verificam atividades de treino em pesquisa ou esforços para sedimentar as atividades de aplicação em bases teóricas e metodológicas. O resultado é a produção de um profissional com baixo nível de conhecimento, com domínio de algumas técnicas dispersas e precário exercício crítico sobre o contexto em que vai atuar. A sustentação de um pensamento crítico adviria dos fundamentos de disciplinas como a filosofia, a sociologia e a antropologia - em geral, circunscritas a um semestre nos cursos.

O desenvolvimento de uma atitude científica nos alunos encontra obstáculos diversificados, desde a deterioração dos laboratórios, o despreparo ou a desmotivação do professor pesquisador, a precariedade das bibliotecas, até a crescente falta de verbas para pesquisa repassadas pelas agências de fomento. Os programas de pesquisa, na maior parte da psicologia brasileira, carecem de amplitude e estabilidade. A produção de conhecimentos na área organizacional é muito pequena, quase inexistente. Existe uma forte dependência da produção norte-americana. Mesmo que se queira, torna-se difícil, pela escassez, fundamentar um trabalho sem lançar mão de recursos estrangeiros. Impõe-se a utilização crítica dos conhecimentos importados e, principalmente, estimular a produção com características nacionais. Atividade a ser construída pelo professor, ainda que difícil, pelas restrições do contexto mediato e imediato e pelas próprias limitações do docente.

O exercício profissional, por mais óbvio que pareça, nem sempre é percebido como o acoplamento da teoria e da prática. O termo prática é aqui empregado no sentido de investigação e ou de intervenção controlada.

O julgamento da prática oferecida nos cursos, como oportunidade para a aquisição de experiência, revela-se insuficiente em maior percentagem na área organizacional, seguida pela área escolar e, depois, pela clínica, conforme os dados da pesquisa do Conselho Federal de Psicologia - CFP (Gomide, 1988, p. 73). A carga horária obrigatória de 500 horas de estágio é francamente insuficiente para preparar um profissional legalmente habilitado para o exercício das diversas atividades de trabalho.

As atividades desempenhadas pelo psicólogo organizacional brasileiro, no geral, são pouco diversificadas. Ficam muito aquém da magnitude que os problemas do mundo do trabalho impõem. O psicólogo mantém-se em atividades tradicionais da área. Em outros países, durante a década de 60, o encaminhamento para atividades que extrapolam o escopo das atividades tradicionais e uma redefinição do modo de encarar as próprias atividades justificou a mudança do termo psicologia industrial para psicologia organizacional.

Entre os psicólogos, a maioria tem apenas uma visão parcial e negativa das atividades em psicologia organizacional. A área é referida através de manifestações nitidamente enviesadas e preconceituosas. A rejeição se dá em nível apriorístico e com justificativas ingênuas. Entretanto, tomando como base o critério do maior número de profissionais em dedicação exclusiva, a área organizacional é o espaço mais estável, demarcado e definido do campo profissional da psicologia brasileira.

Por outro lado, é na área organizacional onde se encontram "os maiores contingentes dos que desejam mudar-se desta área ou mesmo de profissão" (BorgesAndrade, 1988, p. 266). A opção pela área é explicada por razões financeiras: em média, é a área onde se obtêm os melhores salários. Uma parcela -significativa entre cerca de um quarto do total de psicólogos ativos (aqueles que se dedicam às atividades em organizações) certamente vivenciam conflitos relativos à permanência no local de trabalho. Esta situação desconfortável nas histórias de vida dos profissionais psicólogos em empresas é explicada pelos valores que os alunos trazem e os cursos reforçam e pelo despreparo para o convívio de trabalho no ambiente organizacional.

A incerteza característica do mercado de trabalho para o psicólogo compele-o a deixar atividades exercidas com maior interesse ou a diversificar empregos para aumentar seus rendimentos. Os empregos em organizações, com freqüência, são mantidos como propiciadores de condições para uma futura dedicação à clínica, quando não em atuação simultânea. Isto torna as atividades em organizacional "um peso", sem envolvimento efetivo e aprofundamento nos estudos para melhor desempenho na área. Levam, mesmo, a tentativas de desenvolver os trabalhos na empresas com feições da clínica em consultório.

A imagem do psicólogo organizacional é qualificada como "empobrecida" e pouco atrativa: segmento menos nobre do campo profissional. Isto permanece difundido entre professores, alunos e profissionais psicólogos. O leigo em psicologia, em geral, tem dificuldade para entender o que o psicólogo faz dentro das organizações. Mais precisamente, o próprio psicólogo carrega tal dificuldade. Ao nível pessoal, aumenta sua frustração e angústia por um trabalho que não o realiza. Isto, somado aos valores que lhe foram incutidos, afasta-o da carreira ou até da profissão. Quando se mantém, permanece em atividades rotineiras, sendo raro encontrálo em posições gerenciais, onde aumentaria as possibilidades de intervenções.

A imagem do psicólogo, socialmente difundida, quase sempre coincide com a imagem do clínico. Encontram-se elementos que produzem indefinições para o psicólogo que atua em organizações e para os demais profissionais que interagem com ele. Incertos quanto à própria identidade, despreparados para as atividades organizacionais, procurando transferir características clínicas para a atuação em organizações, muitos psicólogos acabam prejudicando a sua integração no contexto. Estabelece-se um ciclo no qual, pela estranheza dos demais profissionais às respostas do psicólogo, aumenta seus sentimentos de inadequação, ansiedade pela ausência de repertório compatível com as solicitações e insatisfação crescente com a alternativa de trabalho que aceitou.

O sentimento de exclusão do psicólogo organizacional em relação ao campo da psicologia evidencia-se quando passa a se autodenominar profissional de recursos humanos ou quando diz que "não se sente psicólogo".

O descaso da formação quanto ao despreparo para o exercício nas empresas surge alarmante face à realidade de que cerca de um quarto dos que se inserem na vida profissional como psicólogos dirigirem-se para o trabalho em organizações. Ainda mais, cerca de um terço da amostra estudada (Bastos, 1988) em algum momento da vida profissional já atuou em atividades da área. Em outras palavras, apesar da maioria dos alunos passarem pelo curso "como se a área não existisse", parte deles acaba desenvolvendo as atividades profissionais em organizações, sem respaldo formativo suficiente e sem motivação, comprometendo a imagem do profissional psicólogo, que extrapola para a categoria como um todo.

Weber e Carraher (1982) relatam que o Ministério da Educação e Cultura apontara como "uma distorção a corrigir" a ênfase dos cursos na formação de psicólogos clínicos. Existe uma marcada ênfase no tratamento de patologias como tendência predominante na definição da profissão e na formação.

O processo formativo é reconhecidamente distorcido, segmentado e insuficiente. Não prepara para a atuação em equipe multiprofissional, no contexto sistêmico de qualquer organização. Não há preocupação com o grupo, com a coletividade. Trata-se o indivíduo, isoladamente, em seu sofrimento. O psicólogo, como um profissional que intervém ao nível individual, contrapõe-se às possibilidades de trabalho que poderia desenvolver nas organizações. Explicar a realidade fundamentado em uma análise parcial, conduz o psicólogo a dificuldades de ajustamento no ambiente das organizações, onde se encontram profissionais com perspectivas diferentes ou acostumados a outros recortes.

 

ALTERNATIVAS DE INTERVENÇÃO

Pensa-se em desenvolvimento de competência como um sistema que inclui informações concernentes às atividades de trabalho, às atividades do ambiente ou situação de trabalho e às características humanas requeridas ou desejadas (conhecimentos, habilidades, etc). O sistema de ensino-aprendizagem deve ser eficaz em promover a sistemática aquisição de habilidades, conceitos, referenciais c atitudes que resultem em desempenho satisfatório.

A competência profissional é resultante do desenvolvimento das habilidades e conhecimentos exigidos para o desempenho satisfatório das atividades de trabalho. De um modo abrangente, competência envolve habilidades e conhecimentos para exercer controle sobre a própria vida, superar efetivamente problemas específicos, modificar-se e modificar o ambiente, em contraste com a mera habilidade de ajustamento ou adaptação às circunstancias conforme elas são. Por meio de situações e problemas típicos do exercício profissional, de atividades potenciais que por alguma razão não são desenvolvidas, dos conceitos e instrumentos comumente utilizados, das expectativas e necessidades daqueles que são envolvidos pela ação profissional, e assim por diante, podem-se deduzir as habilidades e conhecimentos necessários no preparo do profissional.

Considere-se ainda que a formação, realizada com base no conhecimento disponível na psicologia e em outras áreas de conhecimento, deve visar as necessidades da população e as possibilidades de atuação no campo profissional. Ou seja, deve colocar-se bem além das atividades cristalizadas no mercado de trabalho, para propiciar o desenvolvimento de atividades potenciais (Botomé, 1988).

A expectativa das organizações em relação ao trabalho dos psicólogos tem mudado em muitos casos: não se quer meros aplicadores de alguns testes ou técnicas, mas profissionais para resolver problemas num âmbito maior, usando os recursos que julgarem mais adequados ou necessários.

Chama a atenção, em um artigo da primeira metade da década de 50 (Dória, 1953/1954, p. 62), tratando da formação e regulamentação da profissão, a alusão feita às possibilidades de um exercício mais amplo do que apenas a aplicação de testes, nas empresas, em uma época em que as atividades eram incipientes, no Brasil, e marcadas pela psicometria. Há três décadas, Andrade (1966) apontava a expectativa, da parte dos empregadores, de um maior conhecimento específico dos psicólogos sobre as atividades da área.

Não basta ampliar quantitativamente as atividades do psicólogo, é imprescindível estabelecer uma atuação com boa qualidade. Urge fazer o que nos compete e é possível, apesar das limitações. Compartilha-se a idéia de que o campo e a necessidades de aplicação da psicologia são irrefutáveis. Também é inegável a existência de um corpo teórico que permite sustentação à prática. O desenvolvimento pregresso e o futuro de uma profissão dependem das condições históricoestruturais da sociedade em que ocorre, mas também dependem da ação de seus integrantes, em um caminho de mão dupla. São precisos conhecimentos e iniciativas que consigam ir além do que já se faz.

Espera-se que os professores de disciplinas em nível intermediário do curso, e mesmo no início, vinculem os conteúdos que ensinam às capacitações que o aluno deverá ter como objetivo terminal ao se graduar. Ou seja, a clarificação dos objetivos terminais do curso deverá nortear as inter-relações de objetivos e conteúdos em todo processo formativo.

É necessário reverter o quadro de grande parte dos professores das disciplinas da área por não terem vivência de trabalho em empresas, como psicólogos organizacionais. Bem ou mal, os professores cumprem uma função de modelo. O aluno, enquanto não descubra a área em sua verdadeira extensão e as necessidades de superação, repetirá os padrões estereotipados que lhe são fornecidos.

Um objetivo fundamental da educação é o de conduzir o aluno a pensar com autonomia e iniciativa, de modo que possa encarar os problemas que se lhe apresentam (ou problematizar) e encontrar alternativas de solução.

A busca do desenvolvimento da aprendizagem autônoma, ou seja, aprender sem necessariamente depender do vínculo formal a uma instituição ou saber utilizar os recursos disponíveis para incrementar os próprios conhecimentos, esbarra, entre outros fatores desfavoráveis, com a ausência do hábito de leitura entre muitos alunos. O curso reforça tal padrão, pelo pequeno número de textos para serem lidos em disciplinas geralmente orientadas em base de reduzidas apostilas.

Se a profissionalização for colocada como o objetivo do curso, a aquisição de autonomia profissional pode ser promovida em um currículo que privilegie a pesquisa nas primeiras fases e a extensão nas últimas, por meio de um aumento gradativo na carga horária da extensão e na complexidade dos problemas a serem enfrentados. O aluno passaria do papel de observador para as atividades de planejamento, execução e avaliação de projetos, ao final. O intercâmbio entre teoria e prática seria contínuo e a formação estruturada de modo que se esclareça a necessidade de manter teoria e prática indissociadas.

Poderiam ser criadas oportunidades de participação em projetos de pesquisa desenvolvidos por professores e alunos vinculados à área. Esta participação deveria ser incentivada desde as fases iniciais do curso. A graduação seria melhorada se a pesquisa passasse efetivamente a ser entendida como elemento indispensável na profissionalização. Além disto, a produção do conhecimento seira incentivada, em busca de nossa própria suficiência.

Entretanto, as disciplinas do curso de psicologia não exigem sequer leitura e análise dos relatos originais de pesquisa. Uma forma de tornar os cursos menos livrescos e mais vinculados à realidade local ou regional seria dar maior espaço para a pesquisa e para a extensão. Sugerir que o aluno seja melhor formado com a participação em projetos de pesquisa e oportunidades de construção do conhecimento, esbarra em difícil problema, no que concerne à realidade da psicologia organizacional, face à absoluta escassez de pesquisas na área, no país.

Se, por um lado, a prática destituída de fundamentação metodológica e teórica reduz-se ao tecnicismo, de outro, um fazer destituído de reflexão crítica é alienado. O psicólogo é um profissional que deve aplicar o conhecimento proveniente da investigação científica de sua área e refletir permanentemente sobre as conseqüências desta aplicação. Mais importante que o domínio de técnicas, é preciso saber decodificar a cultura da organização ou obter elementos que permitam decidir colocar ou não os seus conhecimentos e habilidades a serviço de um dado contexto. O entendimento das relações no mundo do trabalho obriga colocar o aluno em atividades muito próximas no chão de fábrica.

É difundida a opinião de que é necessário formar profissionais e não técnicos, no sentido de que tenham sólida fundamentação teórica e capacidade para aprender, gerar ou modificar técnicas, além do preparo ético-político para questionar a finalidade da aplicação técnica. Contudo, é preciso estar atento para não esquecer do ensino de técnicas básicas, no curso, para que a situação não se torne polarizada e extrema, produzindo um profissional com capacidade argumentativa mas desprovido do manejo de instrumentais.

Os estudantes, em semestres finais de graduação, revelam uma limitada compreensão do que é possível fazer com o domínio do conhecimento em psicologia. O próprio psicólogo aceita e se confina à realidade restrita do mercado de trabalho. Se ele não luta pelas atividades potenciais do campo (para isto seria necessário, no mínimo, estar informado sobre a ampla gama de atividades possíveis), quem o fará? Cabe suspeitar se o próprio psicólogo sabe o que a psicologia organizacional tem para oferecer. Pode-se, assim, chegar à incômoda conclusão de que o psicólogo espera ser solicitado pelos outros profissionais em algo que ele próprio desconhece.

O profissional da psicologia deve não apenas saber o que tem para oferecer, deve saber fazê-lo, como também tornar claro para os demais profissionais o que pode oferecer. É necessário "ser capaz de fazer", mais do que "saber". Para tanto, o currículo deve ter a forma de uma descrição das competências ou habilidades, ao invés de simplesmente prescrever uma lista de conteúdos.

O psicólogo que se insere em uma organização deve ser capaz de compreender suas inter-relações sistêmicas, a partir de elementos que capta através da estrutura formal e informal. Deve saber como definir o seu papel naquele contexto específico, propondo intervenções metodologicamente consistentes e ciente de suas finalidades e conseqüências. Ao lidar com a pessoa, elemento nuclear de sua atuação, deve voltar-se continuamente para as vinculações com o grupo que a pessoa integra ou integrará, o contexto organizacional e o contexto societário maior. Precisa visualizar as necessárias conexões multidisciplinares e posicionarse de forma que os demais profissionais da organização possam entender a sua prática.

A natureza da atuação em psicologia é claramente multidisciplinar, isto é, não pode prescindir do conhecimento produzido em outras áreas de conhecimento. Intervenções no ambiente organizacional requerem, sem dúvida, informações oriundas da administração, sociologia, antropologia, economia, ciências políticas e outras. Exige dos professores um domínio de conhecimentos que vai além dos conteúdos mais restritos à sua área de interesse.

Além da multidisciplinaridade, deve-se manter o princípio da interdisciplinaridade, promover intercâmbios entre as dimensões biológica, sociológica, econômica e cultural, introduzindo no currículo disciplinas de áreas afins (sociologia, filosofia, etc.) e de outras áreas (computação, por exemplo), implantando projetos interdepartamentais de pesquisa e prestação de serviços à comunidade. O psicólogo deve ser capaz de assimilar, desenvolver e aplicar os avanços da psicologia ao nível mundial.

É preciso enfatizar a necessidade premente de criação de pelo menos um centro de referência para a psicologia organizacional no país, com o estabelecimento de um programa de pós-graduação claramente voltado para a área e produção científica consistente e continuada.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os parágrafos a seguir pretendem, a título de conclusão, resumir aspectos destacados de trabalhos relativos à formação do psicólogo brasileiro para as atividades em organizações.

Mello (1975) já apontara que atividades características da aplicação da psicologia nas organizações são entregues "a elementos com menores qualificações", reclamando por "uma formação mais bem cuidada e um interesse por esse tipo de trabalho..." (p. 51).

Há uma década e meia, Malvezzi (1979) deixou claro que os psicólogos profissionais de recursos humanos permanecem afastados dos modelos explicativos da realidade das organizações, não possuem parâmetros de julgamento do próprio trabalho e mantêm-se distantes do papel de agentes de transformação, restritos à prestação de serviços técnicos e operativos.

Uma análise dos currículos dos cursos de psicologia, realizada em 1982 pela Comissão de Ensino do Conselho Regional de Psicologia - 6ª Região, revelou que existe marcada desproporção, não favorável à psicologia organizacional, entre a quantidade de disciplinas voltadas, direta ou indiretamente, para a preparação dos alunos ao exercício profissional nas organizações.

Face às denúncias dos trabalhos anteriores, Zanelli (1984) apresentou uma proposta para supervisão de estágio em psicologia organizacional, buscando aproximar os alunos de um modelo referencial que permitisse visualizar os processos organizacionais e, deste modo, ampliar o enfoque para além do nível individual.

Bastos (1992) aprofundou a análise das mudanças nas práticas dos psicólogos organizacionais, procurando identificar o sentido de tais mudanças e em que medida propiciam a construção de modelos mais ampliados e inovadores. Zanelli (1992), tendo como objetivo identificar e analisar necessidades derivadas das atividades de trabalho do psicólogo organizacional brasileiro e suas inter-relações com a formação profissional, concluiu que a falta de apreensão crítica da realidade e a falta de domínio científico resume a realidade da formação. Apontou uma escolha a ser feita: "ou se move a psicologia mais vigorosamente para o âmbito da aplicação organizacional ou se deixam as organizações para outros campos de aplicação científica" (p. 206).

Finalmente, tentando identificar movimentos emergentes na prática dos psicólogos brasileiros nas organizações de trabalho, ao comparar com as atividades tradicionais, Zanelli (1994a) reconheceu como principal eixo de transição a passagem para funções de natureza estratégica. Assim, tais atividades emergentes, "são vistas inseridas no contexto e endereçadas na busca da saúde mental e da qualidade de vida no ambiente extensivo do trabalho" (p. 56). O psicólogo assume o papel de consultor, onde "passa a municiar a organização de conceitos e referenciais" (nas palavras de um dos participantes da pesquisa). Torna-se imprescindível acompanhar as redefinições dos espaços ocupacionais e das novas formas de gestão do trabalho.

 

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