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Temas em Psicologia

versão impressa ISSN 1413-389X

Temas psicol. vol.3 no.2 Ribeirão Preto ago. 1995

 

COGNIÇÃO E LINGUAGEM

 

A concepção de linguagem como instrumento: um questionamento sobre práticas discursivas e educação formal

 

 

Ana Luiza Bustamante Smolka

Universidade Estadual de Campinas - UNICAMP

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CONCEPÇÃO DE LINGUAGEM: POSSIBILIDADES E LIMITES\ NA PERSPECTIVA HISTÓRICO-CULTURAL

Estudos que assumem a perspectiva histórico-cultural e consideram o papel do signo/palavra na constituição do funcionamento mental geralmente derivam das formulações de Vygotsky (1984), a concepção de linguagem como instrumento.

Inspirado na idéia marxista de trabalho como a principal relação que o homem estabelece com o ambiente, Vygotsky deriva suas conseqüências psicológicas, levantando questões sobre a natureza das relações que se estabelecem entre o uso de instrumentos e o desenvolvimento da linguagem. Retomando as idéias de Hegel e Marx, Vygotsky aponta a função mediadora como a analogia básica entre signo e instrumento, ressaltando, no entanto, as diferenças essenciais entre estes. Os instrumentos são meios de controle e domínio da natureza e orientam o comportamento para o objeto da atividade, provocando modificações nos objetos. Em contraste, os signos são meios de atividade interna, dirigidos para o controle do individuo, modificando as próprias operações psicológicas e não o objeto sobre o qual incidem. Controle da natureza e controle do próprio comportamento estão interrelacionados de tal forma que as mudanças produzidas pelo homem na natureza modificam o próprio homem. Assim como o uso de instrumentos amplia a gama de atividades onde novas funções psicológicas se desenvolvem, o uso de signos muda fundamentalmente toda a atividade psicológica (Vygotsky, 1984).

Desdobramentos e expansões desta elaboração teórica de Vygotsky por outrosautores nem sempre exploram conceituações que expandem a idéia marxista do uso de ferramentas pelo homem e têm, de fato, incluído uma diversidade de formulações e interpretações, o que levanta a necessidade de se apurar conceitualmente e problematizar o núcleo da proposição vygotskiana com relação à questão da linguagem. Na realidade, no que concerne à noção de instrumento, estudiosos e divulgadores de Vygotsky, como Van der Veer e Valsiner (1991), Wertsch (1985), Kozulin (1990), traçam origens distintas: tanto Marx quanto Espinoza, tanto Pavlov quanto Kohler parecem ter contribuído para tal formulação.

Quando se fala do caráter instrumental da linguagem, pode-se fazer referência à noção de fabricação e/ou de uso de instrumento, no seu aspecto funcional e utilitário. Neste sentido, a linguagem é vista como um "meio" para atingir um fim, o que não distingue esta noção de uma concepção clássica em que a linguagem é vista como meio/veículo de expressão, comunicação, representação.

Um outro modo de conceber implica a linguagem como instrumento que faz parte de uma ação, transforma a ação, mas não é a própria ação. Esta concepção nos leva a indagações tais como: Qual a natureza da "linguagem" concebida como instrumento? O queé instrumento: a linguagem ou o signo? Pode-se falar de linguagem sem signo? Dada a materialidade simbólica do signo, como podemos conceber a "incorporação" deste às várias formas de ação humana (papel do signo na atividade mental/de linguagem)?

Neste ponto, devemos reconhecer ambigüidades na obra de Vygotsky, o que possibilita destaques e interpretações diferenciadas: o signo como estímulo instrumental (1989/1929); a linguagem como instrumento no processo de comunicação; a linguagem como função; a função de mediação do signo, etc. Com respeito ao próprio signo, Vygotsky não é claro, deixando margem a várias interpretações como, por exemplo, de natureza saussureana (Suassure, 1975), quando fala de som (aspecto externo) e significado (aspecto interno) da palavra; ou peirceana (Peirce, 1975), quando fala de mediação semiótica e da não correspondência estrita, ou do descolamento entre significado, som, palavra, coisa, pensamento.

Vygotsky refere-se ao caráter instrumental da linguagem, mas destaca e enfatiza o signo como instrumento. E, ao tomarmos o signo como instrumento, podemos considerar a linguagem como ação, não simplesmente "meio", mas "modo" de ação (aqui vale lembrar que, feita a tradução do Russo para o Inglês, means pode significar meio e modo).

Mas, considerar a linguagem como modo de ação não traz nenhuma especificidade à concepção de Vygotsky, uma vez que este modo de conceber esta também presente em outras tendências, tanto de caráter pragmático (Austin, 1975), quanto de caráter cognitivista (Piaget, 1976). Em ambas, destaca-se a ação instrumental da linguagem, seja na interação/comunicação, seja na operação/representarão. Sem que há realmente algum aspecto distintivo na concepção vygotskyana de linguagem?

Do nosso ponto de vista, as elaborações de Vygotsky vão além da questão instrumental. Anunciam outras possibilidades de se conceber a linguagem, o que traz para o centro das discussões a questão do seu caráter constitutivo. Além disto, aponta para a psicologia como um possível e necessário lugar de indagação e investigação da linguagem.

Em nossos estudos e discussões, consideramos que esta forma de conceber a linguagem - como instrumento - acaba por negligenciar o aspecto constitutivo, que transparece em afirmações de Vygotsky tais como:

(...) assim como a interação social é impossível sem o signo, é também impossível sem o significado (...) A interação social pressupõe a generalização e o desenvolvimento do significado verbal; a generalização torna-se possível somente com o desenvolvimento da interação social" (Vygotsky, 1987, p.48)

O caráter constitutivo da palavra vai adquirindo relevância para Vygotsky e é problematizado no último capítulo de Pensamento e Linguagem, quando ele explora as relações entre pensamento e linguagem e indaga, por exemplo: "O que distingue a palavra de outros objetos? Como a palavra representa os objetos na consciência? O que faz da palavra uma palavra?" (Vygotsky, 1987, p.247).

Perguntamos então: o que diferencia a linguagem de outros instrumentos? O que diferencia a linguagem de outras ações? E perguntamos ainda: encontramos resposta para isto no próprio Vygotsky, ou temos de sair do escopo de seus trabalhos para elaborarmos soluções (ou outras proposições)? O que significa, ou em que consiste o caráter "constitutivo" da linguagem?

Para encaminhar estas questões, consideramos importante retomar e discutir os pressupostos de natureza marxista que, ao nosso ver, melhor sustentam a proposição da linguagem como instrumento, atribuindo, no entanto, especial destaque ao processo de significação, ou seja, ao processo de produção de signos e sentidos, a partir mesmo do dialético movimento produção/produto. Parece ser este movimento dialético de produção de significação que, incluindo o aspecto instrumental, possibilita transcendê-lo. Se a noção de instrumento aparece como fundamental, ela não é de modo algum suficiente para dar conta da complexidade, da dinamicidade e das peculiaridades da linguagem.

A simples utilização de instrumentos não caracteriza a atividade especificamente humana, dado que os animais também usam instrumentos. Mas é a produção, enquanto trabalho material e simbólico, significativo, enquanto atividade prática e cognitiva, que distingue e instaura a dimensão histórica e cultural.

São os interstícios desta produção que Vygotsky problematiza. E para o homem produtor de signos, de cultura, que Vygotsky olha. E sobre o homem, que fala, que pensa, que significa, que ele se indaga. E sobre o que o falar faz com o homem. É isto que ele vai tentativamente esboçando, já no manuscrito de 29 (Vygotsky, 1989).

Neste manuscrito, Vygotsky problematiza o Homo Duplex, aquele que tem a possibilidade de se desdobrar pelo signo (eu/mim, eu/outro) e, pela linguagem, controlar e ser controlado, experienciando o drama das relações interpessoais; busca compreender o funcionamento do signo na atividade mental, na formação do que ele chama "personalidade", e pergunta:

O que é o homem? Para Hegel, ele é um sujeito lógico. Para Pavlov, é um soma, um organismo. Para nós, o homem é uma pessoa social -um agregado de relações sociais, corporificado num indivíduo. (Vygotsky, 1989, p.66).

Para o homem, pessoa social, "é impossível relacionar-se diretamente consigo mesmo. Indiretamente é possível" (Vygotsky, 1989, p.66). Esse "indiretamente" pressupõe o signo, o outro, a dimensão social. Suas concepções das relações signo/palavra/pessoa (ele não usa o termo "sujeito") aproximam-se da uma visão benvenisteana (Benveniste, 1976) - a linguagem possibilita e instaura a subjetividade, a reflexividade.

Junto a uma preocupação e uma ênfase na possibilidade de controle e na consciência, Vygotsky anuncia um "prefácio à psicologia humana" (Vygotsky, 1989, p.72), chamando a atenção para a dimensão dramática da personalidade e sugerindo, a partir de Politzer, que "a psicologia deve ser desenvolvida nos conceitos de drama e não nos conceitos de processos" (Vygotsky, 1989, p.71). "Um drama... é impossível nos sistemas orgânicos" (Vygotsky, 1989, p.67).

Podemos depreender daí uma concepção de homem não como (sujeito) uno, mas (pelo menos) duplo, na luta/tensão constante - social, mental - entre autonomia/submissão; homem capaz de, experienciando e condensando diversas posições/papéis sociais, controlar (o outro, a si próprio) e resistir. Nesta concepção, o homem não é simplesmente produto das circunstâncias, mas (agente que) transforma as circunstâncias e se transforma (se produz) nesta atividade. De maneira talvez mais pertinente hoje, dizemos que o homem produz linguagem, e se produz simultaneamente na/pela linguagem. Neste trabalho social e simbólico de produção de signos e sentidos, a linguagem não é só meio e modo de (inter/ oper)ação, mas é também produto histórico, objetivado; é constitutiva/constituidora do homem enquanto sujeito (da e na linguagem).

No âmbito destas concepções e indagações, a ênfase no instrumento, como "meio" e como "modo" de ação, não abrange a especificidade da linguagem - ao mesmo tempo atividade constitutiva - do homem enquanto sujeito - e produto das práticas sociais.

Vygotsky realmente não explora ou não sistematiza as idéias a respeito dos aspectos constitutivo e histórico da língua/linguagem. Mas levanta indagações que remetem a essas questões.

No texto de 34, Vygotsky mais uma vez problematiza a consciência, criticando duramente a psicologia por não ter enfrentado, por ter desprezado, por não ter se colocado a questão central do pensamento verbal (atividade mental e fala): We need to clarify the functional role of verbal meaning in the act of thinking (1987, p.249).

Perseguindo com paixão a dinâmica thinking!speech, Vygotsky explora múltiplas e intrincadas relações palavra/som/significado/sentido suspeitando das palavras, mencionando a complexidade, intuindo e anunciando a incompletude da linguagem: os conceitos transformam-se, "precisamos estudar como os sentidos transformam as palavras, como os conceitos mudam de nomes" (Vygotsky, 1987, p.276); "sujeito gramatical" e "sujeito psicológico" não coincidem (Vygotsky, 1987, p..281); a palavra não coincide com a coisa, não coincide com o pensamento; o sentido independe da palavra...

Mas como os sentidos se produzem?

Vygotsky ensaia:

The crux of the matter is that the immediate communication of consciousness is impossible not only physically but psychologically... (it) can be accomplished only indirectly, through a mediated path. This path consists in the internal mediation of thought first by meanings and then by words. (1987, p.282)

Na primeira parte desta citação, a questão da comunicação, da função comunicativa da linguagem é desfocada e, junto com ela, a função instrumental. Emerge, em meio às indagações e imprecisões do autor, uma reflexão que indica e privilegia a dimensão significativa, constitutiva da linguagem.

No entanto, procurando encaminhar uma resposta, Vygotsky fala também em "percurso", em internal mediation by meanings. Como caracterizar este "percurso" (mediated path) no meio das não-coincidências apontadas? Poderíamos falar de/conceber a relação pensamento/palavra em termos de "percurso"? E o que seria, em que consistiria internal mediation by meanings?

Vygotsky finaliza este texto dizendo que "a palavra é a manifestação mais direta da natureza histórica da consciência humana"; "o significado da palavra é o microcosmo da consciência humana" (1987, p. 285).

Ora, a idéia de (significado da) palavra como microcosmo da consciência desloca a noção de "percurso", tanto quanto a noção de "instrumento". Remete a uma concepção de linguagem/palavra/Verbo que condensa e dispersa múltiplos sentidos.

O problema da compreensão parece, assim, ganhar relevância em detrimento da comunicação. Compreender palavras implica compreender pensamentos, motivos, desejos... e isto pode implicar "meias palavras", palavras "erradas", ou até palavra nenhuma...

A linguagem nem sempre comunica, não é transparente, ela significa por meio do "não dito" e não necessariamente significa por meio do que é dito. Admite a pluralidade de sentidos e significados, é polissêmica. A linguagem é fonte de equívocos, ilusões, mal-entendidos. Podemos dizer que ela "trabalha" ou "funciona", às vezes "por si", produzindo múltiplos efeitos, independentemente das intenções de quem fala; ela escapa ao conhecimento, poder e controle do homem.

Se Vygotsky intuiu isto, não chegou a explicitar. Talvez, aqui, encontremos mais claramente os limites de sua posição. Pois se o homem produz linguagem, ele não (ou nem sempre) a controla; perde o controle do produto, da sua própria produção... (e com isto se perde?)

Colocam-se assim algumas questões que incitam o atual debate: Alienação (na linguagem)? Provavelmente... Ilusão (do sujeito)? Possivelmente... Mas, contraditoriamente, constitutivamente, condição humana, demasiadamente humana...

 

LINGUAGEM E ENSINO: DISCUTINDO POSSIBILIDADES DE INTERPRETAÇÃO E ANÁLISE

Na tentativa de colocar em discussão concepções de linguagem e conhecimento embutidas nas práticas pedagógicas, e de explorar algumas implicações em termos de ensino e pesquisa, optamos por enfocar o movimento enunciativo em uma sala de aula de primeira série do primeiro grau. A partir do registro videogravado e transcrito de situações em que a professora e as crianças trabalham no período inicial da alfabetização, problematizamos modos de dizer e de ensinar, levantando questões teóricas e metodológicas sobre a linguagem, o conhecimento e o ensino da língua. Como elemento desencadeador, recortamos, do material empírico, a seguinte instância de enunciação, que aconteceu na sala de aula três dias após o feriado de Tiradentes:

Pro: Qual foi o dia que falou do T'?

Cri: Ontem

Pro: Ontem? Ontem não. Ontem não foi feriado. Qual feriado falou sobre o "T"?

Cri: Foi segunda e terça-feira. (crianças falando, muitas vozes)

Pro: Qual feriado falou do "T" na terça-feira? Vocês lembram? Tânia, Tatiane, e que tinha na palavra, psiu! que também tinha "T". Qual é o dia que falava do "T"?

Cri: Teia!

Pro: Mas tem feriado por causa da teia ?... a pessoa homenageada começava com T?

Cri: Teresa!

Pro: É, a Teresa. Mas não é feriado por causa da Teresa. É por causa de quem ?

Cri: Tiradentes!

Cri: Isso!Alguém sabe escrever Tiradentes?

Cri: (olhando no caderno) Eu sei!Eu sei!Eu sei!

Como uma forma de problematizar primordialmente a questão da linguagem, centramos atenção no enunciado inicial da professora:

"Qual foi o dia que falou do 'T'?"

Uma primeira indagação que pode ser levantada diz respeito ao aspecto sintático deste enunciado, já que este aparece como incorreto do ponto de vista da gramática normativa da língua portuguesa.

Possíveis versões corretas, marcadas pela forma escrita de linguagem, seriam, dentre outras:

Qual foi o dia EM que SE falou do "T"?

Em que dia nós falamos do "T"?

Quando falamos do "T"?

A primeira versão parece a mais próxima da formulação da professora. A elisão de dois termos na versão falada, marca a diferença entre as duas. No entanto, podemos perguntar: qual é o efeito desta elisão? Ao se mudar a posição do sujeito enquanto categoria (gramatical), modifica-se também o "sentido" (literal?) do enunciado? A que se refere este enunciado? O que é dito? Como é dito?

Com o objetivo de examinar criticamente e apontar os limites de uma análise realizada estritamente do ponto de vista da gramática normativa, podemos admitir que, mesmo "errado", ou mal formulado, o enunciado da professora: "Qual foi o dia que falou do "T"?" tem duas frases, uma principal (qual foi o dia) e uma subordinada adjetiva restritiva, que começa com o pronome relativo "que". A frase subordinada qualifica o nome "dia" o qual aparece, neste caso, como o sujeito da frase.

Da versão correta também constam duas frases, uma principal (qual foi o dia), e uma subordinada adverbial temporal. A palavra "que", precedida pela preposição "em" possui uma função sintática diferente (conjunção temporal), de modo que os sujeitos nas duas frases são distintos: "dia" é o sujeito gramatical na primeira. Na segunda, "dia" é indicador temporal e o sujeito da frase está marcado pela partícula de indeterminação do sujeito, "se".

Se, do ponto de vista da gramática normativa, o enunciado não é correto e não comunica efetivamente (será a linguagem "instrumento" de comunicação?), é possível notar, por outro lado, que um processo de interlocução se instaura e se efetiva.

No processo de interlocução, a professora é levada a reformular sua fala várias vezes. Apesar disto, a formulação básica não muda. A professora traz, a cada vez, novos elementos para qualificar (qual) "dia": "feriado", "terça feira". Ela substitui termos mas, apesar destas mudanças, o "erro" (sintático) persiste em todas as formulações posteriores. (Neste sentido, afastamos a hipótese de um "lapso", considerando o "erro" como indicador de um certo modo de falar). Algo na natureza deste "erro", na sua forma e na sua persistência, nos leva a considerá-lo - do ponto de vista teórico e metodológico - como merecedor de atenção especial.

Na tentativa de considerar o erro não como um fato isolado (na língua), mas como uma instância significativa numa trama mais ampla das relações textuais/sociais, somos levados a problematizar os aspectos sintáticos, a indagar sobre a linguagem em funcionamento, e a analisar o discurso da professora relacionado às suas estratégias de ensino.

Ao olharmos para o movimento interlocutivo percebemos que a clareza e a possibilidade de compreensão não estão na "qualidade" do enunciado, no modo como se usa a linguagem como "instrumento", mas nas relações que se estabelecem entre os interlocutores. O enunciado não pode ser encarado como um veículo por meio do qual se transmitem mensagens, mas como algo que acontece na dinâmica de sua elaboração. A possibilidade de compreensão de um enunciado não está, portanto, na língua em si e em sua correção, mas no movimento de produção/construção conjunta dos interlocutores em interação. O funcionamento do discurso não é apenas e integralmente lingüístico e não se pode defini-lo senão em referência ao "posicionamento" dos protagonistas e objetos do/no discurso.

Diante disto, torna-se relevante considerar o lugar institucional que a professora ocupa. Ela foi investida pela sociedade e pela instituição educacional como a sua representante autorizada. Ela tem o poder de instaurar as relações de ensino na sala de aula. Ela tem a responsabilidade de transmitir à criança o legado histórico cultural da sociedade, organizando formas adequadas da atividade educativa. E ela será avaliada dentro da instituição em relação a isto. Portanto, é alguém cujo acesso ao conhecimento está socialmente atestado, é alguém de quem se pode/deve esperar o domínio deste conhecimento dentro das normas de correção. É alguém que tem um domínio técnico frente à atividade educativa. Neste sentido, fica pressuposto que, sobretudo no que concerne ao ensino da língua, uma professora não poderia falar errado.

É a partir destes parâmetros e pressupostos socialmente instituídos que o "erro" se produz como tal. Na tentativa de compreender/explicar este fato, podese argumentar que, na fala cotidiana, a omissão de pequenas partículas acontece freqüentemente, o que caracterizaria a ocorrência do erro pelo principio de "economia", o qual, na dinâmica de funcionamento, afeta e modifica os usos da linguagem. Neste caso, poderíamos dizer que a elisão das partículas pode consistir num modo específico de falar, que pode estar sendo usado/aceito/compreendido em vários contextos, mas que (ainda?) não se tornou legítimo e pertinente ao discurso escolar.

Podemos identificar ainda, no enunciado da professora, um modo de ensinar que se atualiza na fala, nas sucessivas reformulações, e que mantém, por meio destas, uma coerência estratégica. Seu modo particular de apresentar o assunto (ou objeto de conhecimento, a letra "T") fornece às crianças elementos para uma construção peculiar, dentre muitas possíveis. Este modo de ensinar presente na fala da professora não é o modo erudito pressuposto, nem é o socialmente aceito, mas resulta também eficaz. Nota-se que, apesar da persistência do erro, o processo de interlocução se realiza. As crianças respondem às perguntas da professora, esta seleciona algumas das respostas das crianças, e a dinâmica discursiva... acontece. As crianças acabam chegando à resposta esperada pela professora (turno 10).

Se, em termos do processo de ensino, a interlocução gera a resposta esperada, por que a formulação da professora provoca estranheza? (Para quem?) A "efetividade" do ensino nos faz indagar, portanto, sobre os critérios que definem a validade e a legitimidade das práticas educativas, dos modos de ensinar. ENSINAR e FALAR aparecem como fatos distintos mas inescapavelmente relacionados no contexto escolar.

Podemos relacionar/interpretar o modo de falar da professora como um certo modo de agir/estar na sociedade, que condensa diferentes aspectos, lugares e posições sociais (sua história, grupo social, posição socio-econômica, formação profissional, prática pedagógica, etc). As múltiplas vozes que ecoam nesta fala sugerem que simples relações lineares de causa e efeito não contribuem para uma compreensão do acontecimento discursivo, e não auxiliam numa explicação teórica. Não encontramos, no episódio, elementos para afirmar, por exemplo, que a fala da professora implica um modo errado de pensar; que seu modo de falar implica um modo errado de ensinar; que as crianças não estão aprendendo ou que estão aprendendo "coisas erradas", ou de maneira errada. Isto levanta a questão da construção do conhecimento e sua relação com o que tem sido referido como a "constitutividade" da/na linguagem. O que significa assumir que a língua/linguagem é constitutiva do conhecimento?

A linguagem nomeia, identifica, designa; recorta, configura, estabelece relações; mais do que um "meio", é um modo de (inter/oper)ação: relação com o outro, atividade mental; um modo, fundamental, de significação (produção de signos, de sentidos). A linguagem tem a propriedade de remeter a si mesma, ou seja, fala-se da linguagem com e pela linguagem. Ainda, o homem fala de si, se (re)conhece, se volta sobre si mesmo pela linguagem. A linguagem nem sempre comunica, ela não é transparente; ela significa por meio do "não dito" e não necessariamente significa por meio do que é dito. Podemos dizer que ela funciona, às vezes, por si, produzindo múltiplos efeitos, múltiplos sentidos...

A linguagem não se reduz, portanto, só nem simplesmente, a um "instrumento" de comunicação, à transmissão de informação; conhecimentos e sentidos se produzem com/por ela, nela e "fora" (ou além) dela. Com isto, admitimos que os processos de significação transcendem a linguagem falada, mas indagamos se e como haveria significação (conhecimento, história, sentido) sem linguagem (Palavra/Verbo).

O aprofundamento e a reconsideração destes pontos de referência teóricos nos levaram a uma nova aproximação do material empírico e à necessidade de apurar concepções e argumentações no que concerne às análises.

O movimento enunciativo que tem início com "Qual foi o dia que falou do "T"? implica um modo de proceder com relação à circunscrição ou delineamento do objeto de ensino/conhecimento, o que implica, por sua vez, uma intenção da professora de destacar determinado aspecto da forma escrita de linguagem (letra 'T) , por meio de recursos como o feriado de Tiradentes, que ocorreu numa terçafeira; de nomes de colegas que começam com T' , etc.

Se a professora conduz (ou "controla"?) o que se poderia chamar de passos, ou dicas, pedagógicos, ela não controla seu (modo de) dizer... No que aparece como "ruptura" do caráter sintático podemos entrever um imbricamento de vozes: a formulação "Qual foi o dia que falou do T'? " indica a voz de um "sujeito professor" que fala de um lugar institucional, que condensa autoridade, conhecimento e objetividade; ao mesmo tempo em que marca o espaço de um sujeito empírico que, ao falar de um certo modo, é flagrado num certo (não) saber.

Retomando o que apontamos aqui como "erro" na formulação da professora, podemos considerar que o verbo "falou" não se refere simplesmente ao sujeito (gramatical) da sentença, indeterminado ou oculto, mas implica um sujeito escondido, ocultado, omitido, na própria fala.

Este modo de referir, que implica a ausência de uma marca explícita da pessoa que fala/falou (alguém falou, quem falou? a gente? "ele"?) desloca o sujeito concreto, empírico, psicológico (sujeito do discurso) e remete - necessariamente - a uma "terceira pessoa", sujeito representado, generalizado, ao mesmo tempo "abstraído" e "impregnado" (sujeito no discurso) cuja voz não só ecoa, mas se sobrepõe no discurso proferido/referido: uma voz que, nesse modo de dizer, condensa, de alguma forma (sintático, semântico, discursivo) um conjunto de regras anônimas e se configura em uma determinada "formação discursiva" (Foucault, 1987) que sustenta possíveis sentidos. Assim, esse modo de dizer, que parece estar totalmente fora da maneira escolar, acadêmica de falar, fora do gênero "erudito", encontra-se, paradoxalmente, constituído por este mesmo modo/gênero, na medida em que, ao apagar um possível sujeito concreto (não foi "a gente" - professora e alunos - que falou; não fui "eu", enquanto professora, que falei), faz ouvir a voz de um discurso "científico", cujo modo de dizer fala, aparentemente, por si, como evidente (qual foi o dia que falou...).

Mesmo assim, fica difícil falar na "evidência" de UM sentido. Pois se as palavras condensam múltiplas vozes, elas fazem também circular outros múltiplos sentidos que se dispersam e não são evidentes. Dispersão e não evidência marcam a trama de interlocuções, o que não impede - pelo contrário, parece abrir, viabilizar - a possibilidade de construção/produção de imprevisíveis sentidos no jogo discursivo.

A posição do sujeito - que fala mas não controla seu próprio dizer - configura o problema da autonomia/intencionalidade do sujeito e da lingua: o que o sujeito faz com a língua/linguagem, o que a língua/linguagem faz com o sujeito; e nos leva, sobretudo no que concerne à relação pedagógica, à indagação de o que e como se (efetiva quando se) ensina. Se não se pode afirmar a evidência de UM sentido na língua, como pensar (que se produz) a eficácia do ensino?

O fragmento enunciativo recortado para análise provoca, assim, uma série de questões, algumas das quais vêm sendo debatidas no âmbito da psicologia, da pedagogia, da lingüística, e que dizem respeito às concepções e relações entre pensamento e linguagem, ao caráter constitutivo da linguagem, aos modos de apropriação/construção de conhecimentos, à produção de sentidos, aos modos como as vozes dos outros "habitam" a enunciação dos sujeitos...

 

Referências Bibliográficas

Austin, J.L. (1915)How to Do Things with Words. Boston: Harvard University Press.         [ Links ]

Bcnveniste, E. (1976) Problemas de Lingüística Geral. SP: Editora Nacional/EDUSP.         [ Links ]

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Kozulin, A. (1994)La Psicologia de Vygotsky. Madrid: AJianza Editorial.         [ Links ]

Piaget, J. (1916)Le Langage et la Pensée chez l'Enfant. Paris: Delachaux et Niestlé         [ Links ].

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Vygotsky. New York, Plénum.         [ Links ]

Wertsch, J.V. (1985) Vygotsky and the Social Formation of Mind. Cambridge, MA: Harvard University Press.         [ Links ]

 

 

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