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Temas em Psicologia

versão impressa ISSN 1413-389X

Temas psicol. vol.3 no.2 Ribeirão Preto ago. 1995

 

A QUESTÃO DA INTEGRAÇÃO DO DEFICIENTE

 

Educação especial, psicologia do surdo e bilinguismo: bases históricas e perspectivas atuais

 

 

Regina Maria de Souza

Universidade Estadual de Campinas. Centro de Estudos e Pesquisas em Reabilitação (CEPRE/UNICAMP) lRua Dr. Quirino, 1856 13015-082 - Campinas, SP. Tels.: (0192) 2.2024-2.1452

 

 

Nos últimos dois congressos internacionais sobre educação de surdos, sediados no Brasil, em 1993, pode-se verificar uma forte tendência à defesa do ensino especial para surdos. Os argumentos que considerei mais importantes foram: a permanência na escola especial ofereceria à criança surda, principalmente aquela pertencente à grande maioria dos pouco favorecidos, oportunidade de aprender a falar e a se valer da leitura labial, via trabalho especializado, bem como de se alfabetizar, o que significaria poder contar com um forte recurso comunicacional com a comunidade ouvinte, falante e letrada em português.

Seriam estes argumentos perfeitos se, de fato, as coisas acontecessem assim. Segundo o ponto de vista que defenderei aqui, na prática a realidade é outra em decorrência do conjunto de idéias sobre "surdo" e "surdez" que fundam e cristalizam a prática profissional, dita "especial" (seja pedagógica, seja psicológica ou qualquer outra). Tentarei estabelecer a contraposição destas idéias com aquelas que sustentam o ensino bilíngüe para surdos. Apesar da oposição conceituai entre uma prática educacional bilíngüe e aquela especial, apresso-me em dizer aqui que o ensino especial muito poderia oferecer ao surdo, e ganhar em sustentação teórica, se se transformasse em ensino bilíngüe. O caminho não é, pois, implodir o passado e suas construções, mas, antes, rever a história em suas contradições e acertos, buscando-se uma síntese, traduzida numa praxis pedagógica mais efetiva e, necessariamente, ética.

Permitam-me, pois, voltar no tempo e tentar resgatar os fios que teceram o casulo da pedagogia especial, da psicologia do excepcional, da educação medicalizante.

Durante toda a Antigüidade, com o aval de filósofos como Aristóteles, até quase o final da Idade Média, os surdos eram considerados imbecis e, portanto, sem direitos legais ou civis. O código Justiniano de 529, entretanto, já distinguia surdos congênitos daqueles que haviam adquirido a surdez após terem recebido instrução. A estes, e apenas a estes, era concedido o exercício da cidadania (Moores, 1987).

No entanto, já no final da Idade Média e início da Idade Moderna, alguns poucos surdos se constituíram na centelha que abrigaria a sociedade a construir uma nova compreensão da surdez e da pessoa surda de nascença. Isto porque o desejo da nobreza de manter preservada e protegida a riqueza no interior da própria família levou à prática comum da consangüinidade. Com isto, começaram a aparecer casos de crianças surdas nobres, várias primogênitas e do sexo masculino e, portanto, potenciais herdeiras. O código de Justiniano já previa que os surdos que pudessem receber educação formal teriam seus direitos legais preservados e poderiam herdar propriedades, dirigindo seus assuntos através da escrita. Neste contexto, surge o primeiro mestre de surdos da história, o frei beneditino Pedro Ponce de Leon (1510 - 1584), que atendeu a crianças da nobreza espanhola, entre elas, as da família Velasco. O aparecimento de dois outros educadores de surdos, Juan Pablo Bonet e Manuel Rodriguez de Carrion, ocorreu apenas após 30 anos da morte de Ponce de Leon, condicionado pelas necessidades da mesma família Velasco (Moores, 1987).

A educação dos jovens surdos nobres era realizada através da exposição, desde cedo, ao alfabeto digital e à escrita que, por sua vez, era compreendida como um importante meio facilitador de aprendizagem da fala pelo surdo. Observo, aqui, que a atenção dada à fala era relativa, tendo em vista a importância social que se atribuía ao conhecimento da escrita, condição necessária e suficiente para o surdo ter direitos legais (Sanches, 1990).

A Idade Média desemboca na Modernidade com uma nova e embrionária concepção sobre o surdo. A pessoa surda passa a ser percebida como alguém passível de receber instrução e de ser instruída. Esta nova abordagem toma forma no interior dos movimentos sociais e intelectuais de renovação cultural e artística que caracterizaram o Renascimento. O humanismo emergente, supervalorizando o homem e suas realizações, não negou ao surdo sua humanidade, seu potencial humano "natural". Antes, ofereceu aos pedagogos renascentistas uma excelente oportunidade de mostrar, de fazer realidade este renascer.

Além dos novos discursos sobre "homem" e "educação", ao renascimento e à modernidade associa-se uma profunda alteração da ordem econômica e política, vigente em todo a Idade Média, com o ruir do feudalismo.

O fim do regime feudal rompe o isolamento entre as comunidades, propicia intercâmbios, põe em contato culturas e povos diferentes, além de ativar os centros urbanos. Houve grande êxodo rural e, conseqüentemente, o acúmulo nos centros urbanos de um grande contingente de camponeses desempregados e despreparados para as novas relações de trabalho que o liberal-capitalismo emergente impunha. Construíram-se os estereótipos sociais do "louco" e do "delinqüente" ao mesmo tempo em que se aglutinavam, nas cidades, os "improdutivos" e os "deficientes". Urgia manter a ordem, o funcionamento social normal e garantir a reinserção produtiva do desajustado (Foucault, 1991). Para tanto, postulava-se:

1. que se deveria encerrar ou excluir temporariamente o "anormal" para que pudesse ser reintegrado, após um necessário período de reabilitação;

2. que era necessário disciplinar o corpo e a conduta do paciente, bem como se apoiar nos saberes de áreas que, atualmente, conhecemos como biologia e medicina; era fundamental entender-se a "anormalidade", os "desvios", as "aberrações"; era crucial, ainda, desenvolverem-se mecanismos de mensuração do indivíduo "anormal" para que se pudessem arquitetar as técnicas que suprimiriam, mascarariam e/ou minimizariam sua deficiência.

Já na modernidade, o Estado - ao menos nas constituições - tomava para si o dever de "reabilitar" o "anormal" através de mecanismos institucionais que asseguravam sua reclusão e confinamento. Apareceram as prisões, os manicômios, as escolas especiais, os colégios internos, etc. Vemos surgir as primeiras escolas para surdos, os primeiros institutos para a educação dos cegos, a ortopedia dos defeitos físicos, o tratamento moral da loucura, uma prática pedagógica corretiva e adestradora, dirigida tanto aos seres humanos "normais" como àqueles ditos "anormais" (Foucault, 1991).

A modernidade faz do corpo "objeto de cuidado", as marcas da excepcionalidade passam a ser compreendidas como sintomas orgânicos sociais passíveis de serem tratados, como escreveu Lajonquière (1994)(1), ora via intervenção estritamente médica, ora via uma estimulação sensorial de caráter metódico e moral. Não é mais o aluno, enquanto organismo social, que a escola recebe, mas o deficiente auditivo e sua deficiência; a ele - ao "deficiente" - caberia a submissão às práticas "ortopédicas" de reabilitação na busca do resgate de uma função que já deveria ser operante.

Neste contexto histórico emergem os embriões das duas filosofias de reabilitação educacional do surdo: o oralismo e o gestualismo. Ambos postulavam a reabilitação da deficiência e o ensino monolíngüe como objetivos-fim da educação. Entretanto, por caminhos diversos. Vejamos.

O oralismo, classicamente, apoiava-se na noção de que a língua oral era em tudo superior à "mímica" ou à "comunicação gestual" dos surdos. Havia, portanto, desconsideração do status lingüístico das línguas de sinais (L.S.). Como postulou Zamorano (19981 e 1988), em sua dissertação de mestrado e tese de doutorado, a língua oral melhor se prestava, por ser um instrumento simbólico mais rico e complexo, à expressão do pensamento e às atividades simbólicas necessarias à cognição. Esta idéia, diga-se de passagem, é muito antiga. Em 1751, Diderot (1993), em seu texto Cartas sobre os surdos-mudos para uso dos que ouvem e falam, deixou implícito que não havia sistemas comunicativos superiores às linguagens orais, mas explicitou que, mesmo entre elas, existiam línguas mais "perfeitas" - ou com menos inversões - do que outras. Todavia, não eram só os argumentos filosóficos que sustentavam as idéias em prol da oralização. Explicações religiosas também eram utilizadas. Por exemplo, para o educador de surdos Johann Conrad Amman (1669-1724), médico por formação, a fala era um presente de Deus ao homem, a marca que o distinguia dos animais irracionais. Ensinar o surdo a falar adquiria, no bojo de tais premissas, uma função divina.

Contemporâneo de Diderot, Heinicke (1729-1784) - conhecido como o fundador do oralismo - postulava que a fala deveria ser ensinada antes da escrita porque esta era a ordem natural das coisas (Moores, 1987). Aliás, a idéia de que a escrita é uma tradução da oralidade perdura até hoje, e como sabemos, tem produzido práticas alfabetizadoras que mais dificultam do que auxiliam a criança em seu processo de construção do objeto escrito.

Historicamente, o oralismo sofreu, ainda, forte influência das idéias dos eugenistas quanto à necessidade de se purificar a raça e de se manter preservada a língua oral nativa, contra os efeitos considerados nefastos dos fluxos imigratórios. Neste sentido, a L.S. dos surdos representava uma dupla ameaça. Em primeiro lugar, poderia se constituir num elemento facilitador de associações e casamentos entre surdos, o que - pensava-se - poderia levar a uma maior incidência de surdez. Em segundo lugar, era uma língua desconhecida pela maioria, o que não deixava de ser ameaçador (Lane, 1989). Um oralista famoso, defensor de tais idéias, foi também o inventor do telefone. Dr. Alexander Graham Bell. A época era 1883, ano de publicação de seu clássico livro: Memoir upon the Formation ofa Deaf Variety of the Human Race (Bell, 1883). Três anos antes, portanto em 1880, havia ocorrido em Milão um congresso internacional de especialistas. Naquele encontro os profissionais surdos foram proibidos de votar, foram considerados "doentes" c "constitucionalmente frágeis", estabeleceu-se que o melhor para eles seria aprender a falar e a passar por ouvintes por meio de um processo educativo reabilitador e perseverante: o Método Oral Puro. A ênfase pedagógica passou desde então - a ser direcionada à articulação eà qualidade da voz. A integração, a ser mensurada pelo quanto o surdo pudesse, escondendo seu defeito, se comportar como ouvinte. Cristalizou-se a educação ortopédica para surdos.

Inúmeras escolas especiais foram fechadas sumariamente ou deixadas à própria sorte, com subsídios escassos ou insuficientes, pelo receio de se tornarem "focos" disseminadores das L.S. A orientação era que as crianças surdas fossem, preferencialmente, colocadas em escolas regulares junto com alunos "normais" e que não tivessem nenhum contato com outras crianças surdas. As dificuldades naturais poderiam ser compensadas pelo acompanhamento com professores especializados. Ou ainda, se isto não fosse possível, Bell sugeria, por exemplo, que se formassem nas escolas regulares grupos com 5 ou 6 surdos que fariam algumas atividades escolares - esportivas, artísticas - junto com classes de crianças ouvintes de igual nível escolar (Lane, 1989).

Bell exortava os professores a se empenharem em esquecer que tinham diante de si crianças surdas para que elas próprias esquecessem a surdez (Lane, 1989).

Com um expediente tão simples como este, desde 1880, nossa sociedade vem resolvendo as questões ligadas ao ensino de surdos negando a surdez. Nada mais simples do que postular que todos são iguais, embora uns um pouco mais iguais do que outros, embora uns com necessidades mais especiais do que outros. Tomou, assim, redobrado fôlego um tortuoso idealismo na educação e na psicologia.

O gestualismo, forma embrionária da Comunicação Total, teve suas raízes na mesma época em que se iniciou forte defesa ao oralismo, isto é, meados de 1750. O seu defensor mais importante foi o abade francês Charles Michel de L' Epée.

Como já disse anteriormente, a ideologia reinante em relação à pessoa "deficiente" previmos como tais idéias subsidiaram a pedagogia oralista; mas como estas idéias influenciaram o gestualismo? O enfoque gestualista originou umnpraxis pedagógica muito diversa. Vejamos porque.

No afã de evangelizar os mendigos surdos de Paris, L' Epée aprendeu com eles a linguagem de sinais que utilizavam para se comunicar entre si. E improvável que UEpée tivesse percebido que o complexo sistema gestual daqueles surdos fosse, de fato, uma língua. Não havia contexto filosófico para que pudesse ir tão longe. Naquela época, Rousseau defendia a existência de uma linguagem universal e transparente, não mediada, sem metáforas, sem a necessidade constritora de uma gramática (Sacks, 1990).

Diderot (1993), por seu turno, defendia que a linguagem dos surdos-mudos possuía a necessária transparência para os estudos filosóficos sobre a evolução das línguas humanas. Dizia que as linguagens evoluíam e neste processo de acréscimos perdiam em transparência e, o que era pior, deixavam de ser isomórficas ao engenho da alma em seu trabalho de "captar" e "expressar" a realidade, pela intromissão nas línguas das inversões. Por este caminho, Diderot concluiu que a língua francesa era mais adequada à ciência e a produção de conhecimento por ter menos inversões e, conseqüentemente, por ser mais isomórfica ao funcionamento mental.

L' Epée, contemporâneo de Rousseau e Diderot, exultou com sua "descoberta": havia encontrado a linguagem universal hipotetizada por Rousseau! Além disto, pensava ter conferido a ela a perfeição ao fazê-la se amoldar à gramática francesa (Lane, 1989). Anunciou a todos sua maior invenção: os Sinais Metódicos (hoje se chamaria Francês Sinalizado).

Apesar de incentivar o uso desta língua, não se empenhava tanto - como seus colegas oralistas - em fazer surdos falarem. Para que o faria?

L'Epée tinha o aval de importantes pensadores da época. Afinal, o que ele como educador havia criado, a partir do que chamava "mímica" dos surdos, era considerado por filósofos como Condillac mais do que uma linguagem; era qualificada como uma "arte" de ensinar, que nada devia às qualidades da própria fala e mesmo as superava. (Sacks, 1990). O currículo era vencido em sua escola pela escrita e ensinado pelos professores através dos Sinais Metódicos (falavam e sinalizavam ao mesmo tempo).

A ideologia reabilitadora teve, pois, com L'Epée, outra roupagem. Já não era mais a deficiência física do surdo o alvo para correção, mas sim seu próprio modo de se comunicar.

Tanto oralistas, quanto gestualistas propunham-se a pasteurizar as diversidades por meio da normatização ou ação corretiva. Os primeiros voltaram-se contra a seqüela orgânica e os segundos contra a própria língua dos surdos. A meta de ambos era o monolingüismo, embora divergissem na ênfase que davam à reabilitação ou ao treinamento oral. Para os oralistas, os surdos eram enfermos organicamente, e os gestualistas, por seu turno, não conseguiram superar uma atitude lingüística etnocentrada. A partir de 1970, o gestualismo, mais embasado por pesquisas, influenciado pelos ares neoliberais da época, se refaz em roupagem e na forma como passa a ser referido. Surge a Comunicação Total. Com o tempo, a frustração com os resultados do oralismo, levou vários oralistas a engrossar a lista de adeptos da comunicação total. Ao aceitá-los, esta abordagem sofreu a influência de suas idéias, sem que tivesse havido reorganizações conceituais críticas substanciais. O resultado é que, hoje em dia, tem-se comunicadores totais com idéias muito próximas às dos oralistas, enquanto outros se inclinam e defendem o bilinguismo. De qualquer modo, a conduta escolar que assumem ainda reflete forte influência da ideologia corretiva e reabilitadora que norteou a praxis pedagógica de seus antepassados. Praxis, aliás, presente no ensino especial de um modo freqüente e facilmente observado.

Se a prática pedagógica era ortopédica, a atuação do psicólogo escolar, via de regra, pactuava com aquela abordagem (Lane, 1993).

Nos alvores deste século, os estudos psicométricos de Alfred Binet entusiasmaram os psicólogos pela possibilidade de se mensurarem, objetivamente, os "desvios" psicológicos de um sujeito, ou de uma população inteira, em relação a uma norma.

Devido aos grandes bloqueios comunicacionais entre psicólogo ouvinte e aluno surdo, os testes passaram a ser instrumentos quase únicos de acesso ao sujeito, a partir dos quais se estruturavam programas remediativos de intervenção. A não compreensão áostatus bilíngüe dos surdos pelo psicólogo traduziu-se em reduzido empenho, por ele, na aprendizagem e fluência em L.S. Essa situação estende-se até hoje. Um estudo ilustrativo das dificuldades comuns encontradas no trabalho psicoterapêutico com surdo pode ser lido em Hoyt, Siegelman e Schlesinger (1981).

Na década de 60, Myklebust publicou um livro, Psicologia del Sordo, que haveria de se tornar um clássico para os psicólogos estudiosos da surdez. Naquele seu texto, Myklebust (1971) resenhou várias pesquisas psicométricas realizadas com surdos, comparando-as com seus próprios estudos. Assinalou um conjunto de dificuldades cognitivas que poderiam se associar à surdez, por vinculação etiológica, e que abrangeriam características como problemas de memória, de utilização e compreensão das categorias de "espaço" e "tempo", certa rigidez nos processos de pensamento, com decorrente prejuízos no funcionamento mental.

Outros trabalhos, que tinham como objetivo principal comparar as dificuldades entre pessoas surdas e aquelas ditas "normais", multiplicaram-se ao longo dos anos, como pode ser constatado em, e é exemplo disto, minha própria dissertação de mestrado (Souza, 1986). Apesar de oferecerem explicações diversas para tais "diferenças", enfatizei - por exemplo - naquele meu estudo, que as dificuldades afetivas detectadas estavam intimamente relacionadas à privação lingüística que imputávamos a essas pessoas; infelizmente, quase a maioria deles acabou por enriquecer ainda mais os argumentos em prol de uma atuação psicológica médica, corretiva ou preventiva dos sintomas que, "fatalmente", a teoria esperava que emergissem. Estava instaurado um círculo vicioso: a privação lingüística, provocada pelos preconceitos da sociedade e dos profissionais em relação à L.S., acabava por condicionar graves comprometimentos afetivos e cognitivos no surdo, o que, por sua vez, compelia o psicólogo a adotar uma praxis "reabilitadora". Não havia, aparentemente, outra saída.

Na escola, esta situação harmonizava-se com a natureza reabilitadora do próprio ensino.

Lane (1993) criticou de modo muito interessante o que se conhece na literatura por "psicologia da surdez". A seguir, farei uma resenha comentada de suas idéias principais.

Em seu texto, e logo no início, Lane (1993) assinala as incríveis semelhanças entre as características atribuídas aos africanos pelos colonizadores europeus com aquelas usualmente assinaladas nos surdos. Para ele, este fato sugere que as descrições psicológicas produzidas pela "psicologia da surdez" refletem menos os traços afetivos dos surdos do que os próprios interesses dos especialistas que os constróem; portanto, constitui-se - enquantopraxis - em ato colonialista.

O colonialismo implica o assujeitamento de um povo, do qual se retira o poder, ao qual se impõem uma língua e modo de conduta estrangeiros, e para o qual se estrutura uma educação compatível com o viés do opressor.

Com esta premissa, Lane faz um paralelo entre negros africanos e surdos.

Parte da premissa de que o colonizador constrói, em primeiro lugar, uma imagem negativa e depreciativa do colonizado com o intuito de justificar sua ação político-cultural sobre ele. Lane procura demonstrar que negros e surdos não foram exceções a tal prática. A partir da leitura de 350 artigos e livros, Lane relacionou as características psicológicas mais comumente atribuídas aos surdos. Da mesma forma, durante os últimos anos, valendo-se de texto sobre os africanos, construiu uma lista de termos qualificativos ligados a eles. Depois, comparou os resultados.

Do ponto de vista das palavras utilizadas para adjetivar os dois grupos, surdos e negros são semelhantes e inferiores nos planos social, cognitivo, comportamental e emocional.

Apesar de os aspectos levantados a respeito dos surdos serem contraditórios entre si (por exemplo, são rotulados ao mesmo tempo de "agressivos" e "submissos", "frios" e "passionais", "explosivos" e "tímidos") têm em comum o fato de serem negativos. As incoerências fazem suspeitar da validade das contribuições que, até agora, a "psicologia da surdez" vem produzindo.

Lane, num segundo momento, insere as contribuições da psicologia no interior da ideologia audista.

O termo audista foi utilizado pela primeira vez em 1977 por Tom Humphries, educador e autor surdo americano, para designar o empreendimento opressivo, sobre os surdos, conduzido por especialistas que afirmam servi-los.

Segundo Lane (1993), o termo audismo refere-se ao sistema educacional que, detendo os saberes de "especialistas", ocupa-se em produzir e legitimar julgamentos sobre "surdez" e "surdos". A instituição audista descreve, avalia, estabelece qual a escola que melhor convém ao surdo e, às vezes, até mesmo onde é mais apropriado que resida. Ela inclui profissionais como administradores, supervisores, conselheiros e reeducadores de surdos, professores, certos intérpretes, fonoaudiólogos, psicólogos, psiquiatras, assistentes sociais. Ou seja, qualquer categoria profissional que ofereça serviço a uma instituição audista, compartilhando com seus pressupostos. E quais são estes pressupostos? Vejamos.

1. Postulam que a surdez é fruto de uma enfermidade ou de um acidente genético que, enquanto tal, se associa freqüentemente a outros distúrbios. Neste sentido, Vernon (citado por Lane, 1993)afirma que as características do comportamento identificadas como típicas do surdo são, amiúde, conseqüência dos efetivos interacionais entre a perda auditiva e as lesões do sistema nervoso central ligadas ao fator etiológico da surdez. Colocado de outra forma, a idéia de que o surdo é constitucionalmente inferior funda a instituição audista.

2. Sustentam, eu acrescentaria, alguns mitos, entre os quais: que a L.S. é prejudicial para o desenvolvimento da fala; que devido à facilidade com que é aprendida desmotiva o surdo a se empenhar nos arduos exercícios de voz ou dos órgãos fonoarticulatórios; que interfere negativamente sobre a escrita; que provoca isolamento do surdo ou, mais recentemente, que o impede de adquirir "língua materna" (entendida, literalmente, como língua da mão que, na grande maioria das vezes, é ouvinte). Quando são mais condescendentes, permitem o uso de gestos mas, antes, impõem a gramática da língua oral ou inventam sistemas sinalizados estranhos aos surdos.

Os audistas tendem a negar o status lingüístico da L.S. ou a sua importância na educação. Vejam-se, por exemplo, as discussões feitas por Perello (1972) sobre o assunto. Em seu texto, equipara a L.S. - uma língua - à mímica - uma arte ou ato de expressar algo por meio de gestos, conforme definem nossos dicionários. Defendem, como Webster (citado por Lane, 1993), que não é a falta de L.S. que diminui as chances de êxito do surdo, mas a sua própria surdez.

Para sustentaros pressupostos (1) e (2) acima descritos, o audismo constrói e/ou se vale de teorizações médico-biológicas que procuram sustentar a (pseudo) inferioridade dos surdos. E em tal horizonte discursivo que as academias formam uma população anual de alunos audistas nas mais diversas áreas. Com o psicólogo, não é diferente.

Estes alunos, quando profissionais, acreditam, sinceramente, que o melhor que têm a fazer é avaliar para diagnosticar "desvios associados", elaborar estratégias e/ou programas corretivos e orientar os pais, dando-lhes suporte para que elaborem e consigam conviver com a idéia de terem procriado um organismo portador de uma seqüela patológica crônica.

A conduto terapêutica, ou clínico-educacional, passa a centrar-se sobre o corpo, treinando-o, corrigindo suas imperfeições, reabilitando suas anomalias para que seu proprietário (o deficiente) possa, após um período de reclusão institucional, adaptar-se à engrenagem produtiva da sociedade. No Brasil, a grande maioria dos surdos, quando consegue ocupação é como mão-de-obra semi ou não-qualificada. Porque a escola não teve tempo de lhe dar a devida instrução, por estar empenhada demais com sua "enfermidade", o surdo terá mínima chance de ascender hierarquicamente ou de realizar outras opções.

Na escola, ou nos centros de reabilitação, via de regra, os surdos são cuidadosamente divididos segundo a perda auditiva, o comprometimento motor e/ ou psicológico. A instituição audista propõe-se a oferecer atenção individualizada a cada tipo de caso e não a cada indivíduo real. O aluno é transformado em uma entidade "a-histórica", tratado como sendo um ser sem passado mas cujo futuro deve ser definido pela e na própria instituição.

Os testes avaliatórios, como bem disse Foucault (1991), convertem-se em procedimento de objetivação da prática corretiva e de assujeitamento. A atenção e os cuidados que os profissionais audistas têm em relação ao "deficiente auditivo", colocam-nos como "benfeitores" perante a sociedade, a família do "deficiente" e, lamentavelmente, perante o próprio surdo. A sofisticação material e o treinamento de recursos humanos de que se valem, transformam-nos em produtores e detentores do saber sobre o surdo. Está fechado o círculo! Imerso em tal meio de cultura, o surdo constrói a identidade de deficiente; estrutura uma auto-imagem negativa, com fortes traços de dependência de seus "benfeitores" a quem, não raro, servem voluntariamente. Ao mesmo tempo, evita contato com surdos "não reabilitados" e desenvolve vergonha de si próprio ou da linguagem de sinais (Kannapel, 1978).

Em tal quadro de referência, o processo de dominação é inconsciente aos profissionais. Não há, em geral, intenções perversas nas pessoas. Muitos técnicos são abnegados, idealistas e se empenham em trabalhar dando o melhor deles. O problema é a ideologia que lhes foi imposta em seu curso de formação, que orienta e determina suas ações e os impede de questioná-las.

E oportuno dizer aqui que as relações estruturais de opressão, como diz Lane (1993), são resultantes de forças historicamente determinadas, provavelmente as mesmas que condicionaram a apropriação dos corpos pelo Estado, o ganho de poder pela medicina, o darwinismo social, a eugenia, a escalada e aplicação indiscriminada de testes, o etnocentrismo, a inegável separação entre ricos e pobres. O profissional, uma vez que aceite se ocupar de oprimidos, não encontra espaço para refutar as condições vinculadas a tal engajamento, anteriores ao seu próprio nascimento e que se manterão, possivelmente, após sua morte (Memmi, 1984).

Entretanto, novas possibilidades têm sido vislumbradas atualmente pelo conjunto de idéias que tecem e estruturam o bilinguismo. Vejamos.

O bilinguismo teve suas raízes na mesma época (1950-1960) em que começou a florescer a sociolinguística, com uma preocupação dirigida para estudar os fenômenos de linguagem em seu contexto social de ocorrência (Labov, 1977). Os estudos de Labov, entre eles um de 1968 (Labov, Coher, Robins e Lewis, 1968), chamavam a atenção para a existência de variações sistemáticas dentro de uma mesma comunidade majoritária de fala. Uma das contribuições mais importantes destes trabalhos foi terem demonstrado a inexistência da "pureza" lingüística, ou seja, que a heterogeneidade, a evolução da língua, as mudanças eram fenômenos esperados e, em grande parte, intimamente relacionadas com variáveis sociais.

O paradigma de grande prestígio na lingüística da época era o chomskiniano. Autores como Weinreich, Labov e Herzog (1968), coerentes com esta abordagem, explicavam que a heterogeneidade refletia uma parte inerente da competência lingüística unilingue. Para eles, não era a presença mas a ausência de variação que deveria ser considerada como disfuncional.

A década de 70, que deu abrigo às idéias de Weinreich e Labov, caracterizou-se por movimentos político-sociais patrocinados pelas ou em prol das minorias. O mundo acompanhava com interesse, estranhamento ou perplexidade as passeatas feministas, as reivindicações dos negros Black Power, Woodstock e as idéias hippies, para citar alguns exemplos. O marxismo, que questionava a ideologia capitalista e propunha uma transformação radical na natureza das relações econômicas e sociais, tomava força, penetrava nos meios acadêmicos e fazia um número cada vez maior de seguidores.

Observava-se, ainda, sensível aumento no interesse e na produtividade de pesquisas em antropologia, com uma preferência marcada pela etnografia como método de estudo de culturas diferentes ou de grupos sociais minoritários. Ligada à antropologia e à sociologia qualitativa, a etnografia constituía-se em uma importante oposição ao modo quantitativo e positivista de se fazer ciência. Seus princípios fundantes entravam em choque, por exemplo, com a idéia vigente de "neutralidade científica", explicitavam o fenômeno da diversidade possível na interpretação dos dados, relativizavam e problematizavam conceitos como os de "normalidade" (Lüdke e André, 1986; Ezpeleta e Rockwell, 1989). Na década de 60, ganhava prestígio também a psicologia social.

Foi nesta época, e talvez não por acaso, do ponto de vista do contexto histórico, que Stokoe, docente e lingüista do Gallaudet College, notou que atrás da multiplicidade e diversidade dos gestos empregados pelos surdos havia semelhanças estruturais cabíveis de serem analisadas de modo similar ao fonológico. Concentrando sua atenção neste aspecto, demonstrou que os sinais eram formados por um número limitado e pequeno de unidades que, por elas mesmas, nada significavam, como os fonemas nas línguas orais. Propôs que cada palavra em sinal tinha pelo menos três partes independentes: locação, formato de mão e movimento, e que cada uma destas partes possuía um número limitado de combinações. Constatou 19 formas de mãos diferentes, 12 locações, 24 tipos de movimentos e inventou uma notação para representá-los. Em Sign Language Structure, Stokoe (1960) demonstrou que a estrutura da língua de sinais possuía aspectos similares à estrutura de todas as línguas. Portanto, era, de fato, uma língua.

Nos anos seguintes, houve um pipocar de trabalhos que demonstravam que crianças surdas, filhas de pais surdos e sinalizadores, tinham um melhor desempenho acadêmico e construíam uma auto-imagem mais positiva quando comparadas com crianças surdas filhas de pais ouvintes. Vejam-se, por exemplo, os estudos de Meadow (1960,1969,1980); Stuckless e Birch (1966) entre outros. Poucos anos depois, já por volta de 1980, alguns pesquisadores começaram a assinalar as dificuldades, no contexto de ensino de língua, do uso concomitante pelo professor - da língua oral e a de sinais. Trabalhos como os de Kluwing (1981), Strong e Charlson (1987) ou o de Woodward e Alien (1988) apontavam inconsistência gramatical e, mesmo, agramaticalidade nos enunciados realizados em prática bimodal (fala mais sinal). As questões que começaram a ser colocadas eram: em tal contexto, os alunos conseguiriam aprender uma língua, qualquer que fosse? Não seria sobrecarregá-los demais expô-los, ao mesmo tempo, à língua oral e a uma língua sinalizada artificial?

Além destas questões, outras de natureza ética, impuseram-se. Para ilustrar, Bouvet (1979) defende a L.S. como primeira língua da pessoa surda. Os trabalhos começaram a se multiplicar em todas as áreas e ofereceram argumentos fortes para a germinação da proposta de ensino bilingüe. A Suécia toma dianteira e reconhece a Língua de Sinais Sueca como língua oficial e instaura o ensino bilingüe para surdos em todo o país. E o que vem a ser, afinal, o ensino bilingüe?

O bilingüismo parte do pressuposto de que o surdo deve ser exposto à L.S. o mais cedo possível. Defende que os conhecimentos lingüísticos, construídos por ele nesta linguagem, serão ativados e muito lhe facilitarão a aquisição da língua oral. Advoga a importância do domínio das duas línguas pelo surdo e reconhece que, em tal situação, o surdo poderá ter uma identidade bicultural.

Os argumentos que os bilingüístas utilizam, via de regra, para sustentar suas convicções são os seguintes:

A linguagem tem papel crucial no desenvolvimento dos processos psicológicos superiores, como a leitura e a escrita. Este papel será considerado constitutivo ou instrumental, conforme a abordagem teórica do pesquisador. Entretanto, todos concordam que a aquisição da linguagem pelo surdo não deve ser obstaculizada pelo meio (Ferreira Brito, 1993).

A linguagem "natural" para o surdo é a gestual dado que, em situações livres, onde não haja restrições lingüísticas, a pessoa surda vale-se principalmente de sinais em suas interações dialógicas (Moura, Lodi e Pereira, 1993).

Existe um período ótimo para a aquisição da linguagem. Esta idéia é respaldada pela noção, proveniente da neurologia, da existência de "horários biológicos críticos" que regulam as diferentes aprendizagens. Estando o organismo fora deste "horário", deste momento biológico crítico para a aquisição de linguagem, ela é, se não impedida, pelo menos seriamente prejudicada (Rodrigues, 1993).

Toda língua deve ser respeitada, enquanto tal, em suas regras próprias de construção e realização. Neste sentido, a L.S. é tão rica quanto qualquer outra e pode expressar qualquer tipo de pensamento ou sentimento (Ferreira Brito, 1985). Porque é facilmente adquirida pelo surdo, o uso da L.S. na escola pelo professor evita retardos desnecessários no cumprimento do currículo. Por meio dela, o mestre pode realizar efetivamente seu papel pedagógico deixando ao fonoaudiólogo, ou ao logoterapeuta, a função de trabalhar com a oralidade.

A partir de tais premissas, a escola passa a ser compreendida como uma comunidade bilingüe, onde profissionais surdos e ouvintes atuam como pessoas que participam efetivamente da construção do conhecimento pelo educando surdo. Neste contexto, professores ouvintes devem ser bilingües e os necessários educadores surdos, fluentes em L.S.

Behares (1993) chama a atenção para os seguintes aspectos:

1. A educação bilingüe não deve se restringir ao plano estritamente lingüístico, mas fundar-se num marco de referência mais amplo, integrando as duas línguas no contexto cultural em que são usadas. Ao indivíduo surdo, portanto, a escola deve possibilitar a constituição de uma identidade bicuitural confortável.

2. O desenvolvimento lingüístico processa-se no interior de uma cultura, da qual a pessoa deve servir-se para aceder às culturas majoritárias. Daí a necessidade de a escola bilingüe estar aberta a representantes da comunidade surda, que dela não devem apenas fazer parte, mas exercer funções efetivas (pedagógicas, administrativas, etc).

3. A língua de sinais não deve ser ensinada à criança surda como um instrumento artificial de comunicação. Deve ter acesso a ela o mais cedo possível: na escola ou através de instrutores surdos que a acompanhem em casa. Acrescentaria que os pais devem ter clara consciência do que significará para eles optar por um ensino bilingüe, isto é, precisarão aprender L.S. Isto não significa que serão obrigados a falar com sua criança utilizando a L.S. Como em qualquer meio social bilingüe, haverá provavelmente situações de mescla, mecanismos de ajustes discursivos ou de eleição de um sistema em detrimento de outro. Cada família, em liberdade, encontrará as próprias saídas em relação à sua situação bilingüe. Como legítimos representantes da comunidade ouvinte, os pais deveriam, idealmente, ter representação na própria escola, o que significaria fazer parte constitutiva do seu corpo social (Veja-se um pouco mais sobre esteaspecto também em Sánchez, 1991).

4. Além de suas funções técnicas, os mestres surdos têm o objetivo fundamental de estabelecer um modelo cultural surdo-positivo para as crianças surdas. Isto não se consegue empregando-se surdos em funções subalternas. E necessário que o adulto surdo tenha funções prestigiosas deacordo com suas capacidades. O aluno surdo, observando-o, poderá construir uma visão positiva da surdez, projetando-a na construção de sua auto-estima e expectativas sociais futuras. Na mesma linha, mestres e profissionais ouvintes (fonoaudiólogos, psicólogos, etc.) serão responsáveis na escola por apresentar à criança surda o modelo cultural e lingüístico do ouvinte.Tratando-a com respeito, aceitando-a em sua diversidade, estes profissionais lhe possibilitarão construir e vivenciar confortavelmente seu modo de ser bilingüe e bicuitural.

5. Sem impedimentos comunicacionais, o currículo escolar pode ser apresentado mediante a L.S., a escrita e/ou literatura ou, mesmo, em língua oral, conforme seja necessário, seguindo a mesma cronologia, exigências e qualidade aplicáveis à educação de ouvintes.

A idéia de ensino bilingüe para surdos é muito recente, como já foi dito. Baseia-se em alguns pressupostos, entre os quais:

1. Não há deficiência a ser reabilitada.

2. A escola não deve confinar o surdo; antes, ampliar-lhe o horizonte expondo-o a duas 1 ínguas eculturas. Neste sentido, não é descabido pensar-se que crianças ouvintes possam estudar em escolas bilingües para surdos. Da mesma forma, aliás, que crianças ouvintes nativas no Brasil, por opção dos pais, estudem em escolas americanas, japonesas, alemãs, etc.

3. A diversidade, fenômeno constitutivo da própria vida, enriquece e, por isto, não há por que normatizar ou pasteurizar a realidade no intuito de exterminá-la.

 

CONCLUSÃO

O Ensino Especial, tal como é praticado hoje em dia, pouco tem a ver com um modelo bilingüe. A passagem para a Educação Bilingüe constitui-se muito mais em uma mudança de ideologia a respeito da surdez do que em uma troca de uma metodologia por outra. Como diz Behares (1993), a Educação Bilingüe propõe o abandono das práticas clínicas ou terapêuticas, para transformar a educação dos surdos em uma pedagogia socializada, na qual os traços sociais da surdez ocupam o centro da atenção e as condições sociocognitivas das crianças surdas são tomadas como realidades a partir das quais elaborar um modelo educativo (p. 46).

A saída da criança bilingüe para o ensino regular não teria grandes problemas se lhe fossem possibilitados intérpretes. O papel deste profissional é fundamental em universidades, hospitais ou organismos públicos. Cada sociedade, com base em suas necessidades, deveria organizar serviços de intérpretes da forma que lhe fosse mais racional e conveniente. A Suécia, por exemplo, conseguiu boas saídas em sua opção nacional pelo ensino bilingüe para surdos. A Venezuela e o Uruguai, países que também adotaram oficialmente o bilingüismo, têm divulgado em congressos resultados bastantes animadores. Da mesma forma, experiências interessantes e muito sérias vêm sendo realizadas nos EUA, no Brasil e em vários lugares do mundo. Portanto, temos já interlocutores com os quais trocar idéias se, de fato, for nosso interesse dar ao surdo o direito de ser surdo.

E quanto ao psicólogo eà psicologia?

A meu ver, a psicologia acumulou ao longo de todos esses anos um considerável conhecimento sobre o ser humano. Há, sem dúvida, ainda um longo caminho a ser percorrido mas a psicologia tem conseguido avanços importantes. Sua contribuição à educação de surdos é inquestionável, desde que não assuma a visão audista.

Como em qualquer comunidade, haverá surdos buscando psicoterapias, necessitando de outros tipos de ajuda especializada ou que terão pais que precisem de orientação. Aliás, como acontece com ouvintes. A psicanálise nos ensinou que a normalidade é uma utopia e que, em muitos casos, o divisor de águas entre o "normal" e o "patológico" não é absolutamente claro. Somos organismos em luta pela vida, buscando a realização de nossas paixões, da forma que podemos e com aquilo de que dispomos. Os surdos não são diferentes. Logo, não há por que não considerá-los, em natureza, idênticos a nós. Não há por que impormos a eles nossa imagem e semelhança, não há por que tentarmos ser deuses. Eles são diferentes? São. Por uma circunstancia da natureza? É, por uma ocorrência natural. E qual a conseqüência disto? Não falarão, via de regra, da mesma forma que nós, por mais que se esforcem ou perseverem realizando terapias. Entretanto, se comunicação em igual fluência, que a nossa na fala, em L.S. Se educados, terão acesso à cultura da comunidade. Se pertencerem à comunidade surda, provavelmente, terão alguns padrões de comportamentos ou valores diferentes dos nossos. Patologia? Não, talvez apenas diferenças culturais.

Ouso propor que, enquanto psicólogos, se assumirmos a concepção bilingüe, mudaremos radicalmente a natureza de nossa atuação com a pessoa surda: de "reabilitadores" passaremos a "psicoterapeutas", a "psicólogos escolares" ou a qualquer outra função. Não nos enganemos, todavia. Não há como exercer nossa profissão, numa situação bilingüe, se não formos bilingües. Não há como ajudar a pessoa surda se não conhecemos seu contexto social. Do modo como saímos da faculdade, só podemos trabalhar com surdos oralizados e com domínio de nossa língua: parece que não mais que 5% do total (Souza, 1986). Não há como instaurar uma relação de ajuda a surdos, desconhecendo sua língua. Do ponto de vista simbólico, não usar a L.S. com o surdo pode significar, para ele, que não o aceitamos inteiro, que negamos nele justamente uma de suas partes mais importantes e a partir da qual ele se constitui somo sujeito.

O domínio da L.S. é suficiente para o psicólogo? Não, não é. Haverá, certamente, um longo caminho que ele deverá percorrer junto com os surdos, durante o qual descobrirá as formas ou as áreas em que mais poderá ser útil. Terá que passar pelas angústias e dúvidas de todo aquele que não aceita submeter-se ao que lhe é designado.

A autora acha que encontrou algumas saídas para seus próprios dilemas, mas isso já se constitui tema para um outro trabalho.

 

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