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Temas em Psicologia

versão impressa ISSN 1413-389X

Temas psicol. vol.3 no.3 Ribeirão Preto dez. 1995

 

Trabalhar com relato oral quando a prioridade é recompor uma história do cotidiano

 

 

Zélia M.M. Biasoli-Alves

Universidade de São Paulo - Ribeirão Preto

 

 

Estudar a família, seu cotidiano, o espaço destinado à criança, a visão do tempo da juventude, a explicação dos modos de ser das relações entre gerações, tem levado a um leque de possibilidades e de necessidades de coleta de informações. Leque de possibilidades porque a família não é uma unidade estática, mas um organismo social mutante, cooperador, desenvolvimentista, adaptante, atuante e tem, por isto mesmo, sofrido extensas e profundas modificações ao longo do tempo, mas, em especial, no século XX, que viu se acelerarem as transformações nos valores em que ela se assentava, atingindo tanto a forma como ela se compõe quanto a maneira como se dá a convivência no seu interior. O pesquisador tem, então, sido remetido para temas e estratégias de coleta de informações em fontes variada^ que o põem face-a-face com a necessidade de estudos que recomponham períodos da história mais recente. Talvez movidos pela decepção com o empirismo quantitativo de pesquisas que ofereciam uma grande quantidade de dados separados de seu contexto original, e uma visão fragmentada da realidade, psicólogos, sociólogos, educadores e historiadores passaram a ir em busca das cartas, diários, diografias, autobiografias, fotografias e relatos orais como fontes válidas de dados em seus projetos.

Trata-se de um tipo particular de investigação que Tapia (1994) diz ser uma reconstrução da história como um processo de descobrimento de valores. Segundo a autora, cada raça e cada época parecem ter tido uma sensibilidade particular para determinados valores e, em contrapartida, padecido de cegueira para outros; isto convidaria o pesquisador a buscar dados que lhe possibilitassem desenhar um perfil estimativo de certos períodos históricos, caracterizados por sistemas típicos de valores - portanto, distintos uns dos outros - que delineariam, em última instância, a sua "face", ao mesmo tempo em que permitiriam mostrar seu encadeamento na transformação e substituição gradual dos ideários subjacentes às mudanças no comportamento.

Thompson (1992) afirma que toda história depende basicamente de sua finalidade social. Tomando por base este raciocínio, poder-se-ia, então, fazer uma divisão em que, de um lado, colocar-se-ia a história oficial, escrita e documentada através dos tempos, caracterizada como sendo a das classes dominantes, em que os feitos e a produção cultural conservados são aqueles vinculados a tais classes, havendo nela raros espaços para o relato da vida do homem comum (Arantes, 1984) e, de outro, a história oral, responsável pela transmissão da cultura, das tradições e dos feitos do homem em todas as sociedades até à consolidação do letramento, e mais recentemente, aquela que busca resgatar emoções, sentimentos e detalhes de um passado não muito longínquo, impossíveis de serem alcançados de outra forma que não através da "conversa" com os que viveram a época e os acontecimentos.

Assim, em algumas sociedades, ainda hoje, a transmissão oral da história desempenha um papel fundamental na sua existência e nelas o ancião ocupa um lugar de honra; sua voz é privilegiada porque é a responsável pela propagação dos costumes, crenças e experiências; é ele o "arquivo" por excelência de seu povo e, como tal, respeitado por ser o detentor de um conhecimento primordial na manutenção daquela cultura.

De outro lado, quando o pesquisador, não importa se historiador, sociólogo, educador ou psicólogo, direciona sua atenção para o cotidiano de tempos atrás, e não para a cronologia ou fatos sociais de grande monta, ele pode se beneficiar de uma grande quantidade de material histórico importante, mas que permanece inexplorado, oculto nas experiências e vivências de pessoas idosas, que foram os partícipes de uma época, e que podem, através do seu relato, oferecer as informações que serão o substrato para o estudo daquele contexto. Então, em pleno final do século XX, a memória dos velhos, vem a ser o meio que os pesquisadores têm valorizado e explorado para reproduzir o passado. E não se trata de estar obtendo conteúdos pessoais de pouco significado; ao contrário, é preciso não esquecer que os velhos estão e estiveram sempre presos à comunidade, à sociedade, ao seu grupo cultural e étnico, e é a vida que aconteceu neste meio que o seu relato expressa.

Talvez seja por estas razões que Queiroz (1991) diz que a história oral pessoal é um "fato social total" que permite a apreensão dos diversos aspectos referentes ao grupo, à camada, à sociedade bem como àqueles que dizem respeito, mais de perto, ao indivíduo como ser bio-psico-social. Sem dúvida, tem-se que admitir que ele, como parte orgânica da vida coletiva, não pode eliminar os traços da influência que o contexto exerce, e ao se revelar, põe em evidência as idéias, o modo de ser, as crenças do grupo.

Em outros termos, reafirma-se um modelo bi-direcional de socialização, em que o sujeito é determinado simultaneamente por si mesmo epelo social, bem como influencia na composição e determinação deste. Está-se diante de um sistema de permutas contínuas e altamente eficazes, o que torna o indivíduo tanto expressão de si mesmo quanto de seu grupo e, por conseguinte, de uma época.

Ao mesmo tempo, não se pode ignorar que, de certa forma, não há lembrança objetiva, pois a cada recordação são atribuídas significações particulares e especiais. Também, toda "história devida" é reconstituída sob o peso de necessidades presentes e, então, deve ser, para maior rigor nas análises e interpretações, confrontada com reminiscências de experiências paralelas e situada em relação à história social, política e cultural da geração à qual ela pertence (Fernandes, 1992).

Entretanto, é fundamental salientar que a história oral é uma história construída em torno de pessoas e, por isto mesmo, assume contornos peculiares. Primeiro, ela lança a vida para dentro da história, alargando seu campo de ação, trazendo detalhes de emoções, de atitudes e de sentimentos. Segundo, ela opera uma espécie de dialética dos saberes, uma síntese entre o dado social e o vivido individualmente, em que o vivido circula e se dissolve no interior do dado (Fernandes, 1992). Terceiro, ela admite heróis vindos não só dentre os líderes, mas da maioria desconhecida do povo, estabelecendo uma permuta entre comunidade e história, que por sua vez irá permitir que pessoas comuns compreendam evoluções, mudanças e os reflexos em suas vidas, o que significa favorecer o entendimento entre classes sociais e gerações. Quarto, ela traz para o pesquisador, segundo Thompson (1992), entre outras coisas, um retorno na forma de sentimentos de pertença a um lugar e a uma época.

É, pois, dentro desta perspectiva de construir uma história em torno de pessoas que este trabalho se insere e seu objetivo está em levantar aspectos relativos a procedimentos para o uso mais eficiente da estratégia de coleta de dados - relato oral - e, conseqüentemente, apresentar propostas para análises - à guisa de exemplificação - que se adeqüem às características que tais informações assumem, tomando por base estudos que vêm sendo levados a efeito pelo grupo de pesquisa que desenvolve projetos sobre família e socialização.

 

O TRABALHO COM RELATO ORAL

As Entrevistas

Trabalhar com relato oral, quando a prioridade é recompor uma história do cotidiano de muitas décadas atrás, implica, de início, dois pontos interligados: de um lado, a necessidade de ativar o dinamismo da memória do narrador, do outro, a de buscar dados que respondam à "curiosidade"gerada no e pelo projeto.

Ozouf (apud Demartini, 1992) fala em "Arquivos Provocados" e talvez se pudesse falar em "Arquivos Salvos", pois a criação de um arquivo depende destas fontes específicas de informação e se estas desaparecem, o arquivo não tem condições de vir a existir.

Mas, a qualidade do arquivo não vem espontaneamente, e é-se levado a admitir que o seu conteúdo, extensão e precisão estão condicionados à maneira de o pesquisador entrar em contato com seu tema, com seus possíveis informantes e, em especial, com o deslanchar das "conversas". Há, pois, que cuidar de todos os detalhes, porque todos eles serão importantes, uma vez que o objetivo final do pesquisador é o de desenhar quadros representativos da percepção dos "sujeitos" integrada à percepção elaborada por ele a partir do contato prolongado com os dados.

Com base nesta argumentação, os projetos(1) estão sendo planejados visando entrevistar pessoas com idade próxima aos 80 anos (ou mais), partindo de solicitações gerais "para contar a sua vida, em especial na infância", e tendendo gradativamente para temas de interesse mais específicos do pesquisador, ligados ao cotidiano e à vida familiar.

A seleção de informantes passa, então, pelo critério de idade, preferindose os nascidos do final do século passado até 1920, na região de Ribeirão Preto(2), Estado de São Paulo-Brasil (o que abarca as cidades da vizinhança e também a zona rural), economicamente independentes e residentes com sua família. Tais pessoas são localizadas através da indicação de conhecidos, a quem é falado sobre a pesquisa em andamento e a necessidade de encontrar idosos, com boa memória e dispostos a conversar com um estranho sobre sua vida. Uma vez de posse de algum nome, o pesquisador entra em contato, usando como referência quem fez a indicação e solicita uma primeira "conversa" para explicar do "que se trata". Quando existe anuência, é marcada a primeira entrevista, que será realizada na casa do informante, no dia, horário e local que ele achar mais conveniente. E a esta se seguirão tantas outras quantas forem necessárias para que o relato seja considerado detalhado e completo, tendo-se o cuidado de escutar a gravação da sessão anterior para verificar o que ainda está faltando e só aí programar a próxima(3)e(4).

O preparo dos dados para análise

A etapa seguinte consiste no trabalho minucioso de transcrição e revisão de tudo o que foi gravado durante cada entrevista, resguardando-se o linguajar próprio de cada informante, suas pausas, e até entonações, para então considerar que os dados estão prontos para que a análise seja inciada.

O procedimento de análise qualitativa

Trabalhar, seguindo o modelo de análise qualitativa para dados de entrevista, proposto por Biasoli-Alves e Dias da Silva (1992), implica uma série de passos que se iniciam com a leitura e releitura das transcrições e terminam com o burilar a redação, incluindo nela as falas dos informantes que, de forma mais significativa, expressam o que o pesquisador pretende exemplificar.

As leituras têm a função de, ao mesmo tempo, colocar o pesquisador em contato com a grande diversidade de informações que estão contidas nos relatos, em seus diferentes níveis, e fazer com que apareçam certos aglomerados. A estes se pode atribuir significados aproximados, que levem à definição de categorias. As leituras ainda permitem que se desenhe(m) a(s) forma(s) como se desenrola a fala dos informantes, os caminhos seguidos pela sua memória e, muitas vezes, as necessidades que eles têm de ocultação ou justificativa de certos fatos, pessoas, situações e, em especial, o campo das emoções e sentimentos, de uma visão de mundo construída na infância.

Este é, contudo, um momento do trabalho do pesquisador, subdividido em dois: o do isolamento de seu gabinete, seguido do discutir e partilhar com outros da equipe - que também se debruçam sobre as mesmas transcrições - quais os aspectos que estão ficando salientes em suas análises e quais são as categorias empíricas que estão surgindo, face ao conjunto de tópicos vinculados ao tema que foram investigados.(5)

Também neste momento está contida a relação com a literatura pertinente ao tema sob investigação, e é ela quem dá as diretrizes para a interpretação do que o pesquisador vai, gradativamente, construindo como forma de agrupamento das falas dos informantes(6). Não se chega, entretanto, a elaborar um sistema, com um número determinado de categorias, com a característica de exclusividade de cada uma delas e que dê conta do critério de exaustividade do conteúdo sob análise, bem como não se firma a necessidade de manutenção, sempre num mesmo nível, das inferências feitas (Biasoli-Alves e Marturano, 1977). Trata-se de um processo, um movimento constante que se traduz em um ir e vir das falas transcritas para a discussão com os pares, para a literatura, para dados de outras pesquisas, que gradativamente permite a composição, através da redação, de um quadro descritivo, que visa representar a percepção que os informantes trazem da realidade, à luz da que o pesquisador apreende e reconstrói a partir de sua abordagem conceituai (Biasoli-Alves, 1989).

Resultados parciais

As pesquisas do Projeto Integrado, que estão tendo como base entrevistas com idosos, vêm permitido um conjunto de observações que abarcam pelo menos três aspectos. Primeiramente, a detecção das formas de os informantes se posicionarem frente ao pesquisador e darem o seu relato, aí incluídos certos procedimentos de sua memória. Segundo, a confirmação da suspeita de que se pode explorar tal tipo de dado de muitas formas, e que há uma opção inicial, muitas vezes alterada ao longo do processo, o que significa que uma infinidade de recortes e categorias são possíveis, condicionados sempre pelo objetivo da pesquisa e pelo referencial teórico do pesquisador. Terceiro, sempre se estaria buscando, ao descrever os resultados, apresentar uma (dentre outras também válidas) das possibilidades de compreensão do fenômeno que se estuda(7).

As entrevistas

As entrevistas com idosos, que se vêm obtendo nos projetos em andamento, têm mostrado alguns pontos que dizem respeito diretamente a sua memória e às maneiras como ela se evidencia em uma rememoração provocada.

Elas podem ser consideradas, de modo geral, como "Entrevistas-Testemunho" em que são gravadas conversas, algumas longas, outras entrecortadas, entre entrevistador e entrevistado, e em que se observa um desfilar de perguntas e um responder ora preocupado e lento, de quem busca muito longe suas reminiscências, ora um responder pronto, seguro e sorridente de quem tem muito bem preparado - ou pronto - seu relato.

Entretanto, nem todos os informantes focalizam os mesmos aspectos e compõem um relato de igual profundidade e visão crítica.

O lembrar

Alguns pontos

1. De início, certa tensão, como se o idoso necessitasse prover o entrevistador de respostas corretas e se sentisse em dúvida quanto às suas possibilidades de dar as informações que são solicitadas .

2. Passado certo tempo, o relato flui com mais facilidade e vão aparecendo determinadas frases indicativas da importância das suas lembranças

... o velho vive só de saudade ... a gente vive de lembranças... e eu lembro muito, de muitas coisas e acho muito bom lembrar...

3. Por outro lado, vai-se identificando, a cada entrevista, que ela está sendo a ocasião em que "coisas completamente esquecidas" ou não percebidas antes, venham à tona, em relatos carregados de "descobertas"

Engraçado .. agora que eu falei deste blusão com laço de fita assim do lado, que a gente usava quando pequena ... e que eu fiz este movimento.... me veio a lembrança da minha irmã e das roupas dela... engraçado, aminha irmã tem mania de roupa assim até hoje!

As comparações

Em todos os relatos observa-se que os entrevistados vão tecendo suas descrições e análises do passado estabelecendo comparações com o hoje.

1. Detecta-se uma tendência a um conhecimento da própria experiência em função do que difere dela, numa identificação do passado através de um presente muito diverso. Seria algo como Eu me vejo em você, um você que recorda partes de mim, e, ao mesmo tempo, eu me sinto ueu'y porque você, geração mais nova, é diferente de mim.

2. Tal comparação é crítica; e isto se observa facilmente, até porque ela é frequente e enfática, e nasce com espontaneidade entre os entrevistados

Outras vezes brincávamos com terra, brincávamos de quitanda e com barro do quintal e os pais permitiam esta brincadeira; não sei hoje ...eu vejo "Não pode sujar aqui, não pode sujar ali" e se tira um pouco a liberdade da criança, né? É uma judiação, mas...

Mas a minha infância foi assim, muito boa ... porque eu podia ir prfa rua, eu podia brincar na casa de amigos, todo mundo tinha quintal muito grande, não tinha ladrão, o máximo que passava era um bêbado, coitado...

3. Muitos são os aspectos que sofrem comparações: do espaço da casa, quintal, rua, às formas de os adultos dirigirem e controlarem as crianças, ao conjunto de valores subjacentes ao certo e errado do cotidiano nas primeiras décadas deste século. Entretanto, é importante salientar que o passado vem justificado, seja pelo que ele tinha de excessos, como a braveza dos adultos, seja pelo que tinha de menos, como a quantidade de brinquedos, de roupa e até a maior simplicidade da comida

Ele era muito bravo, mas agora eu sei que a gente atormentava muito a vida dele ... Hoje, eu penso que ele batia porque era gente demais gritando pai... pai... pai...

Mamãe era brava, queria as coisas como ela queria. Queria que não brigasse, que andasse sempre limpa, arrumada, mas eu ficava com dó da mamãe, era criança e pensava assim ... "ela tem que costurar muito pr'a ganhar o preço destas botinas que compra pr'a mim..."

Era muito difícil você ter um brinquedo ... era dificílimo ...A vida quando eu era criança era muito difícil, os pais trabalhavam bastante, mas com muitos filhos era difícil

A alimentação era boa, né, porque minha mãe sempre fêz o arroz, o feijão, a carne, a verdura ... mas a gente não tinha manteiga, porque a família era muito grande e não tinha condição.

4. Na comparação, o passado é melhor do que o presente, e há grande diversidade de aspectos salientados, podendo-se divisar dois poios: num primeiro, a reafirmação do que foi bom, de algumas coisas que foram de fundamental importância para a vida adulta e, num segundo, a constatação de que há muitos desarranjos no presente. Esta bipolaridade vem expressa quer o entrevistado esteja se referindo à família, à escola ou à sociedade de maneira geral

Eu vou contar justamente que morei ali porque nesta idade de mais ou menos 8, 9 anos eu brincava muito na Praça XV ...as crianças brincavam muito em praça. Hoje não há mais esta oportunidade, porque tudo é difícil, né, e as crianças naquela época frequentavam muito as praças prá brincar, correr... e não podia subir na grama porque eram disciplinadas, eram educadas naquela época, mas tinham assim bastante liberdadepr'a brincar...

Eu acho que a escola naquela época era mais difícil, mas ensinava muito mais do que hoje;pelo menos, eu vejo que a meninada sai da escola hoje, do primário, e não sabe nome da rua onde mora, nem da rua onde está situada a escola, então, no nosso tempo era muito rigoroso, cê tinha que saber ...

... então criava-se muito ... um bercinho de madeira, uma coisa assim rústica, bonecas de pano, coisas mais fáceis de você adquirir. E nós gostávamos imensamente disto tudo ... eram brinquedos deliciosos... E o quintal... eu acho uma coisa extraordinária e que não existe mais. Era um lugar excelente prfa você brincar. Você organizava ali dentro... com árvores, terra, grama... tudo aquilo... água ... organizava brincadeiras interessantes.

Primeiras aproximações a uma descrição do cotidiano

A cada relato aparecem alguns aspectos vinculados à infância de crianças nas cidades, nas primeiras décadas do século XX, que se repetem, independentemente de diferenças no linguajar, na classe social, no sexo, evidenciando um diaa-dia muito estruturado e construído em torno de situações bem determinadas.

1. O cotidiano das crianças é dominado pelas brincadeiras, em geral ao ar livre, mesmo que a Escola assuma um lugar de destaque

Brincava muito ... brincava também na rua, né, assim à noite, no tempo do calor ...brincava de roda, de maré, de esconde-esconde...

... na época que eu fui criança eu podia brincar muito ... na praça XV eu corria, brincava com bastante liberdade ...

2. Existe uma separação nítida entre os sexos, principalmente na escola

... e era menina de um lado e menino de outro, em filas separadas ... e o recreio era dividido por um muro.

3. Há parcimônia no vestir e no se alimentar. Entretanto, se a simplicidade é a norma, também o é a qualidade que, no caso da roupa, garanta a sua durabilidade, e no caso do alimento, aquilo que não faz mal à saúde.

... e o padrão de vida naquela época era melhor, embora a gente ganhava pouco, não tinha o consumo de variedades tão grande que tem hoje.

Até quando deixei a casa de meus pais, a limentação era mais simples, mas era sadia.

A gente tinha um vestidinho melhor, que era de pôr para ir à missa, no domingo; no mais era uma roupa bem simples, e na escola usava um avental. E, como as famílias eram numerosas, a roupa que não servia mais, porque tinha ficado pequena, era logo ajeitada para o menor... a gente vivia de modo muito mais simples...

4. Existe sempre o respeito aos mais velhos, partindo de um contato frequente e natural entre as diferentes gerações de uma família, favorecido pelas próprias condições de moradia. Este contato implicava primeiro em certa distância entre a criança e os adultos, e segundo, na responsabilidade dos mais velhos para com os mais novos, não importanto o tipo de parentesco ou mesmo a sua existência.

Ah! tinha muito respeito, o que os pais falavam a criançada respeitava muito ... era difícil... a vida familiar era deste jeito ... eles eram muito exigentes, não eram de dar muita liberdade ... eles impunham mais com a criançada pr'a poder se dar o respeito.

Não tinha o que falar e a criança vivia mais no mundinho dela, justamente por causa desta separação de que os pais eram lá em cima e a gente cá em baixo, a gente vivia no mundo das crianças, que era só nosso... não ficava sabendo se tinha algum problema.

Cada um chamava a atenção; quem via chamava a atenção, porque criança faz arte, não pode ficar só na vigilância do pai ou mãe. Então os mais velhos, quando viam alguma coisa, chamavam a atenção ... repreendia e mostrava o caminho direito. Mas também cuidava, tinha carinho ... costurava a roupa dos mais novos, penteava o cabelo das meninas...

5. O cotidiano das famílias nas primeiras décadas do século XX é também marcado por divisõessegundo papéis de comando e submissão, em que o domínio do social mais amplo pertence ao sexo masculino e a casa - o Lar - é o : "reino" por excelência do feminino. Cabe ao homem, portanto, ter e exercer uma profissão, e à mulher o gerir a economia doméstica, "tomar conta" das crianças pequenas, educá-las, transmitir-lhes os "bons costumes" e fundamentalmente cuidar de sua saúde. Em contrapartida, das gerações mais novas é exigida a submissão, o cumprimento das obrigações, sem questionamentos.

Minha mãe estudava em colégio interno, porque, naquela época, os pais não gostava que as mulheres estudasse muito, pr'a não ficar escrevendo bilhetinho ... então meu avô pois ela num colégio de freira... foi estudante muito tempo em colégio de freira, de maneira que ela saiu habilitada de lá... bordava, tocava piano, cozinhava ...

Naquele tempo não usava muito os meninos ajudarem no serviço da casa, tarefa dos homens era diferente ...só brincavam, não trabalhavam ...

Nós fomos criados neste ambiente... numa família privilegiada, porque obedeciam à mãe, eram filhos exemplares ...eu era disciplinada, de uma família que respeitava a lei e a ordem.

6. Este cotidiano traz ainda algumas particularidades na maneira de dividir o tempo. Dia e noite são destinados a atividades e afazeres diversos. O dia é reservado ao trabalho, que começa quando o sol nasce e termina antes de ele se por, seguindo um ritmo constante e pouco acelerado (para a visão de hoje). Os finais de tarde são destinados à "prosa" com os vizinhos, na calçada ...

A noite foi feita para o sono, então todos se recolhem cedo.

Não tinha muita distração, não tinha televisão, rádio. O pessoal não tinha com que distrair, deitava logo que escurecia, ali pelas 8 horas ... e levantava cedo também.

... no tempo do calor, a vizinhança ia tudo por as cadeiras na porta, era tempo ainda de lampião de gás... quando era assim 6:30, 7:00 ... juntava vizinho ali, conversava na porta enquanto isto a gente brincava de roda, de bola, estas coisas ... e assim era passada a vida, né ...

7. Num certo sentido, os "ditados populares" que alguns idosos acrescentam aos seus relatos, exprimem, de modo claro, a forma de pensar este cotidiano, dentro de sua regularidade, sem grandes planejamentos, aí incluído o trabalho que se repete a cada dia, mas que é uma obrigação e deve ser cumprida, a diversão que é pouca, a lida da casa, aceita sem muitas tentativas de mudança, numa acomodação grande, até fatalista

Não se deve deixar para amanhã o que se pode fazer hoje

O amanhã a Deus pertence

Quem tudo quer, tudo perde

Quem ri muito hoje, chora amanhã

8. Sobressai ainda como imagem do cotidiano familiar no passado:

a) O tempo dividido conforme as celebrações. Os relatos evidenciam uma sociedade dominada por extrema religiosidade, em que o calendário litúrgico é respeitado na determinação dos Dias Santos, que devem ser guardados não se trabalhando, em que acontecem as missas, as procissões, as ladainhas e também as festas, as quermesses.

b) A educação nas primeiras décadas do século com a conotação de exigente. Entretanto, os informantes, além de darem mostras de havê-la assimilado, na sua íntegra, ainda fazem questão de enfatizar que acreditam que desta forma de proceder dos pais depende a construção de um adulto correto.

c) O pai como uma figura de muito respeito, mas, ao mesmo tempo, como o grande transmissor de conhecimentos para a vida e o centro da afetividade. As mães são, muitas vezes, descritas como mais rígidas no trato com as crianças, mais bravas, presas ao cuidado da casa, da cozinha, da roupa e dos filhos; em contrapartida as avós possuem todo o mel e são reservas de carinho constante, que vem expresso, em especial, nos "quitutes" feitos e guardados para as visitas dos netos.

d) A educação da criança na família feita através do exemplo e do trabalho, numa instrução baseada em tarefas importantes dentro da rotina de vida, exigidas dentro das possibilidades e da idade de cada um, mas geradoras de compromisso entre as diferentes gerações.

e) A presença de sentimentos, desde o início do relato, mostrando a construção da subjetividade das crianças (em especial das meninas) que viveram a infância nas primeiras décadas do século XX,e identificando, nos valores forjados nesta época, as emoções permitidas e proibidas.

f) O incorformismo com a maneira como se desenrola a vida da família, a educação da crianças, a relação com os mais velhos no mundo de hoje, porque muitos valores se perderam...

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Partindo-se do fato de que o relato dos idosos põe às claras a valorização do que viveram em sua infância, reafirmando o que foi bom, que algumas coisas fundamentaram a sua vida adulta, pode-se também reafirmar a importância que o contar as suas experiências para um entrevistador, partícipe de outra geração, dono de uma visão de mundo distante da sua, assume. Existe disponibilidade dos idosos, existe respeito deles para com o trabalho do pesquisador, existe uma "entrega", carregada de emoções, de informações preciosas.

E, se ao pesquisador é dado cumprir os objetivos de seu projeto, de "desenhar quadros representativos da percepção dos 'sujeitos' integrada à percepção elaborada por ele a partir do contato prolongado com os dados", paralelamente outros aspectos vão se tornando salientes, e se constituem em verdadeiros acréscimos ao que este tipo de pesquisa possibilita. Assim é que, além de vir a se transformar em um arquivo vivo, o informante em pesquisas que trabalham com relato oral, tem a oportunidade de elaborar suas memórias para contá-las, o que lhe permite uma visão nova dos fatos, dos sentimentos, das crenças dentro de uma perspectiva diversa que tende a gerar uma compreeensão mais aprofundada e, ao mesmo tempo mais geral, do vivido. Trata-se de uma análise que independe de um conhecimento academicamente construído, e por esta razão acrescenta um sabor totalmente distinto às "descobertas". Segundo, não são poucos os autores que hoje consideram que se os informantes são idosos, a situação os ajuda a conquistar dignidade e autoconfiança, abrindo-se um caminho para o contato profícuo entre gerações (Burke,1992; Thompson, 1992; Nóvoa, 1992). Terceiro, e mais específico, se o tema do relato é a história de sua família, haverá para o informante a condições de desenvolver um sentimento forte de duração ampliada de sua vida pessoal, ao se identificar com figuras de seu passado e se "encontrar" em vários de seus descendentes.

De uma outra perspectiva, se os relatos não sâo inteiramente objetivos, se a memória permite relembrar apenas certas partes do acontecido, se o linguajar é um pouco reticente, isto não invalida os dados que se obtém. Pelo contrário, fica-se diante da percepção que o informante construiu das suas vivências, e é isto que conta.

Se entre os Mali, os generalistas e memorialistas ensinam às crianças e jovens a história de seus ancestrais, com o objetivo de que as vidas dos antigos possam servir de exemplo, admitindo que "o mundo é antigo, mas que o futuro brota do passado", nas sociedades ditas civilizadas, o conhecimento do passado pode significar a maneira mais fecunda de compreender o presente e pensar o futuro.

Neste final de século - e de milênio - quando tudo muda tão rapidamente, estar com os mais velhos, conversar com eles, ouvir o que têm a nos dizer, "beber em fonte de água limpa" as lições que o passado recente encerra, de um lado representa um conforto necessário para as gerações mais velhas, de outro, acentua para o pesquisador os sentimentos de pertença.

E, o que os idosos fazem quando se dispõem a participar de um projeto em que relatam sua vida, na infância e na juventude, é trazer, num curto espaço de tempo, as vivência de uma outra época, para o confronto com a atual. Presenteiam com o passado - impossível de ser obtido de outra forma - através de sua prosa carregada de tons e significados elaborados em anos e anos de existência. Abrem a possibilidade de que a compreensão se instale, aproximando as gerações.

Era um tempo bom... os quintais muito grandes... muita fartura de frutas, verduras limpas, sem veneno... e a gente fazia a vida mais fácil. Hoje, hoje tem muita complicação, é muita fantasia ... naquele tempo ... era mais real...

Trabalhar, pois, com relato oral, para recompor aspectos do cotidiano de décadas aliás, vem se mostrando uma estratégia de pesquisa das mais ricas. Acresça-se ainda o fato de que arquivos permanentes vão sendo construídos e que gerações futuras de pesquisadores terão acesso a eles e poderão reanalisar estes dados e repensar as interpretações que atualmente se elabora.

 

Referências Bibliográficas

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Thompson, P. (1992) A Voz do Passado: História Oral. Rio de Janeiro : Paz e Terra.         [ Links ]

 

 

(1) O presente trabalho apresenta, de forma sintética, aspectos metodológicos ede conteúdo (resultados) de algumas das pesquisas que fazem parte do Projeto Integrado " Família e Socialização: Processos, Modelos e Momentos, no contato sobre gerações"
(2) O termo preferir é o que define de forma exata o procedimento que vem se adotando, porque, se surge uma pessoa idosa, disposta a sentar com o pesquisador e contar sua vida e a de sua familia e o faz durante horas, não se tem por norma elimina-lo da amostra apenas porque nasceu em Campinas, SP., ou passou a infância em outra região que não a de Ribeirão Preto
(3) A opção de se trabalhar sujeito a sujeito - do contato inicial à ultima entrevista, senão transcrita, pelo menos ouvida uma vez na ìntegra - justifica-se pela necessidade de o pesquisador estar o tempo todo investigando se os temas de seu interesse vêm sendo desenvolvidos pelo entrevistado, ou se é preciso retomar aspectos não abosdados a fim de completar seus dados; para orientar esta avaliação, elaborou-se uma listagem se tópicos contendo as temáticas de interesse
(4) Recursos para facilitar as recordações, ou mesmo a abordagem de algum tópico, vêm sendo utilizados e, neste sentido, as fotografias de que os informantes dispõem têm se mostrado um excelente meio para leva-los a discorrer longamente sobre aspectos do cotidiano e situações vivenciada, obtendo-se descrições cheias de detalhes, da mais alta relevância
As categorias vão emergindo, de forma cultural, nesta confrontação entre o que o pesquisador pretendia investigar, que decorre, definitivamente, de sua Abosdagem Conceitual, e o que as leitoras sucessivas das transcrições das entrevistas vão evidenciando
(6) No Projeto Integrado, a Abordagem Conceitual é definida por uma visão de desenvolvimento ao longo da vida, condicionada por tarefas de socialização que se alteram de momento a momento, cultura a cultura, grupo social a grupo social, em que se coloca cada individuo como sendo o produtor do proprio desenvolvimento, dadas as suas condições biológicas e ambientais, o que equivale a dizer que se busca analisar o comportamento, as atitudes, as crenças de um ser bio-psico-social, segundo o contexto sócio-histórico cultural em que se inserem.
(7) O objetivo do item de resultados neste trabalho é apresentar algumas aproximações preliminares destes três aspectos, sendo elas parte do Relatório de Pesquisas - CNPq